O documento discute como a neurociência recuperou as teorias de Freud sobre os sonhos após descartá-las nas décadas de 1970. A pesquisa inicial focou nos mecanismos fisiológicos do sono REM, mas evidências posteriores mostraram que sonhos também ocorrem no sono não-REM, questionando a visão de que sonhos são apenas um epifenômeno do sono REM. Estudos de correlação clínico-anatômica também sugerem que os mecanismos cerebrais do sonho e do sono REM podem ser
1. A Interpretação
dos Sonhos e as
Neurociências
DEPOIS DE REGREDIR
NOS ANOS 70 A UMA
CONCEPÇÃO PRÉPSICANALÍTICA DE
QUE OS SONHOS SÃO
“FRIVOLIDADES”, A
NEUROCIÊNCIA RECUPERA
AS TEORIAS DE FREUD
E VERIFICA AS RELAÇÕES
ENTRE SONO E DESEJO
MARK SOLMS
ILUSTRAÇÕES DE TIDE HELLMEISTER
POR
*
Esta é a versão revista e atualizada de um ensaio originalmente
escrito em alemão para a reimpressão comemorativa do centenário da
1ª edição de A interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud
(Fischer Verlag, 1999).
28
VIVER MENTE&CÉREBRO
A
investigação dos sonhos da perspectiva neurocientífica começou efetivamente logo após a
morte de Sigmund Freud, em 1939. No início,
esses estudos produziram resultados difíceis
de conciliar com as proposições psicológicas
estabelecidas em seu livro A interpretação dos sonhos (1900).
A primeira grande descoberta apareceu em 1953, quando
Eugène Aserinsky e Nathaniel Kleitman identificaram um
estado fisiológico que ocorre periodicamente (em ciclos de
90 minutos) durante o sono, e ocupa cerca de 25% das horas
que dormimos. Entre outras coisas, caracteriza-se por elevada
atividade cerebral, ocorrência de movimentos rápidos dos
olhos (REM), aumento das freqüências cardíaca e respiratória, estimulação genital e relaxamento muscular.
Esse estado consiste em uma condição fisiológica paradoxal, na qual uma pessoa está, ao mesmo tempo, em intenso
estado de vigília e ainda assim completamente adormecida.
Não por acaso, Aserinsky e Kleitman suspeitaram que o sono
REM (como ficou conhecido) era a manifestação externa
do estado de sonho subjetivo, o que foi experimentalmente
comprovado pelos pesquisadores em 1955. Hoje, é consenso que se despertarmos as pessoas durante o sono REM e
perguntarmos se estavam sonhando, elas responderão que
sim em cerca de 95% dos casos. Por outro lado, se forem
acordadas durante o sono não-REM, haverá relatos de sonho
em apenas 5% a 10% dos casos.
Essas descobertas geraram grande entusiasmo entre
neurocientistas: pela primeira vez a manifestação física e objetiva do sonho, um dos mais subjetivos de todos os estados
mentais, parecia estar ao alcance. Portanto, tudo o que restava fazer era revelar os mecanismos cerebrais responsáveis
JULHO 2005
3. O AUTOR
MARK SOLMS é professor de neuropsicologia da Universidade
da Cidade do Cabo, África do Sul, diretor do Centro Arnold
Pfeffer do Instituto de Psicanálise de Nova York, conferencista
honorário da Real Escola de Medicina e Odontologia de Londres
e consultor do Centro Anna Freud, em Londres.
– Tradução de Irati Antonio
30
VIVER MENTE&CÉREBRO
TEGMENTO
IARA COUTINHO
IARA COUTINHO
por esse estado fisiológico; então, teríamos descoberto, no
mínimo, como o cérebro produz os sonhos. Considerando
que o sono REM pode ser demonstrado em quase todos os
mamíferos, tal pesquisa também poderia ser desenvolvida
com outras espécies (o que tem implicações metodológicas
importantes, porque os mecanismos do cérebro não podem
ser manipulados em pesquisas com seres humanos do mesmo
modo que em experiências com animais).
Vários estudos sucederam-se rapidamente, nos quais
diferentes partes do cérebro foram sistematicamente removidas (em gatos) para isolar as estruturas que produziam o
sono REM. Baseado nisso, Michel Jouvet demonstrou em
1962 que o REM (e, portanto, o sonho) era produzido por
um pequeno grupo de neurônios numa parte do tronco
encefálico conhecida como “ponte” (ver ilustração ao lado).
Essa parte do sistema nervoso está situada em um nível
ligeiramente acima da medula espinhal, próxima à nuca.
Os níveis superiores do cérebro, como os próprios hemisférios cerebrais que preenchem a grande cavidade do
crânio humano, não pareciam exercer qualquer influência
na geração do sonho. O sono REM ocorre com regularidade
invariável ao longo do sono enquanto a ponte se mantém
intacta, mesmo se os grandes hemisférios cerebrais forem
completamente removidos.
A pesquisa neurocientífica sobre o mecanismo do sono
REM continuou nessa linha, recorrendo a vários métodos, até
que, em 1975, surgiu um quadro detalhado da anatomia e da
fisiologia do “sono de sonhos”. Esse quadro, sistematizado nas
teorias de interação recíproca e de ativação-síntese de Robert
McCarley e J. Allan Hobson, dominou o campo desde então:
ou, pelo menos, como veremos, até muito recentemente.
Estas reconhecidas teorias propuseram que o sono e o sonho
REM eram literalmente “ligados” por um pequeno grupo de
neurônios situado no interior da ponte, que produz a chamada
“acetilcolina”, substância química que ativa as partes superiores
do cérebro estimulando-as a gerar imagens conscientes (intrinsecamente sem significado). Segundo os neurofisiologistas,
essas imagens sem significado são nada mais que o cérebro
superior fazendo “o melhor de um trabalho ruim… a partir de
sinais desconexos enviados pelo tronco encefálico”. Depois
de alguns minutos de atividade REM, a ativação colinérgica
que surge do tronco encefálico é neutralizada por outro grupo
de neurônios — também situado na ponte — que produz a
NÚCLEO DA
RAFE DORSAL
LOCUS
CERULEUS
NÚCLEOS DA PONTE encefálica ligados ao sono REM
noradrenalina e a serotonina. Ambas as substâncias “desligam”
a ativação colinérgica e portanto, de acordo com a teoria, a
experiência consciente de sonhar.
Desse modo, todos os processos mentais complexos que
Freud elucidou em seu livro dos sonhos foram deixados de
lado e substituídos por um mecanismo oscilatório simples,
por meio do qual a consciência é automaticamente ligada
e desligada em intervalos de cerca de 90 minutos durante
todo o sono pela interação recíproca de substâncias químicas
produzidas numa parte primária do cérebro, que nada tem a
ver com funções mentais complexas. Com isso, até mesmo
as mais básicas proposições da teoria de Freud não pareciam
plausíveis. Em 1977, Hobson e McCarley escreveram que
“a força motivadora primária de sonhar não é psicológica,
mas fisiológica, uma vez que os intervalos de ocorrência
e a duração do sono de sonhos são muito constantes,
sugerindo uma gênese pré-programada e determinada do
ponto de vista neurológico. De fato, os mecanismos neurais envolvidos podem ser hoje precisamente descritos. Se
assumirmos que o substrato fisiológico da consciência está
no cérebro anterior, esses fatos (isto é, que o REM é gerado
automaticamente por meio de mecanismos do tronco encefálico) eliminam qualquer possível contribuição das idéias
(ou seu substrato neural) para a força primária que motiva
o processo do sonho”.
Com base nisso, parecia legítimo concluir que os mecanismos causais subjacentes ao sonho eram “motivacionalmente neutros” e que a imagem onírica nada mais era que
“o melhor ajuste possível de dados incipientes produzidos
pelo cérebro-mente auto-ativado”. A credibilidade da teoria
de Freud foi, em resumo, desvirtuada de maneira severa pela
primeira onda de dados sobre o sonho obtidos de preparaJULHO 2005
4. ções anatômicas: e o mundo neurocientífico (na verdade,
o mundo científico como um todo) retrocedeu à visão prépsicanalítica de que “os sonhos são frivolidades”.
Entretanto, ao lado dessas observações, que ofereciam
um quadro cada vez mais preciso e detalhado da neurologia
do sono REM, um segundo conjunto de evidências começou
a configurar-se, o que levou alguns neurocientistas, entre os
quais me incluo, a reconhecer que talvez o sono REM não
fosse, afinal de contas, o equivalente fisiológico do sonho.
A noção de que sonhar é um mero “epifenômeno do
sono REM”, como propôs Hobson, baseou-se quase exclusivamente na análise de relatos de sonhos de 70% a 95%
das pessoas despertadas durante o estado REM, enquanto
apenas 5% a 10% das pessoas acordadas durante o sono
não-REM relataram sonhos. Considerando os caprichos da
memória subjetiva (em especial, da memória de sonhos),
isto está tão perto de uma correlação perfeita quanto se
poderia esperar. Porém, a divisão rigorosa entre sono
(“sonho”) REM e sono (“não-sonho”) não-REM começou a
deteriorar-se quando se descobriu que relatos de atividade
mental complexa podiam ser observados, de fato, em cerca
de 50% dos despertares durante o sono não-REM.
Isso ficou claro quando David Foulkes despertou seus pacientes durante o sono não-REM e perguntou-lhes “O que se
passava em sua mente?”, em vez de “Você estava sonhando?”.
Os relatos resultantes de sonho não-REM foram mais “do
tipo pensamento” (menos alucinatórios), mas essa distinção
se aplica apenas para a média estatística. Permaneceu o fato
de que pelo menos de 5% a 10% dos relatos de sonho nãoREM eram “indistinguíveis por qualquer critério daqueles
obtidos dos despertares pós-REM”. Esses achados não
admitem uma distinção dicotômica entre atividade mental
REM e NREM, mas antes sugerem a hipótese da existência
de um processo de sonho contínuo caracterizado por uma
variabilidade durante e entre as fases do sono.
Os relatos de sonho não-REM não puderam ser classificados como sonhos REM mal lembrados, pois logo ficou
claro que tais narrativas poderiam ser obtidas regularmente
até mesmo antes de o sonhador ter entrado na primeira
fase REM. De fato, hoje sabemos que relatos de sonho
ocorrem em cerca de 50% a 70% dos despertares durante
a fase inicial do sono, isto é, logo nos primeiros minutos
após termos adormecido. Esse índice é o mais alto obtido
quando comparado a qualquer outro ponto durante o ciclo
não-REM, e quase tão alto quanto o índice REM. De modo
semelhante, descobriu-se recentemente que sonhos nãoREM surgem com crescente duração e freqüência próximos
ao final do sono, durante o início da fase matutina do ritmo
diurnal. Em outras palavras, sonhos não-REM não aparecem
de maneira aleatória durante o ciclo do sono; o sonho é
gerado durante o sono não-REM por meio de mecanismos
não-REM específicos.
A única diferença confiável entre relatos de sonho REM,
de sono inicial e outras classes de relatos de sonho não-REM
é que os primeiros são mais longos. Em todos os outros
aspectos, os sonhos não-REM e REM parecem idênticos.
Isso demonstra que sonhos completos podem ocorrer independentemente do estado fisiológico específico do sono
REM. Portanto, qualquer que seja a explicação para a forte
correlação entre sonho e sono REM, já não é mais possível
aceitar que o sonho é causado apenas pelo estado REM.
O isomorfismo presumido entre sono e sonho REM
viu-se mais desgastado pelo aparecimento de uma nova e
inesperada evidência relativa aos mecanismos cerebrais do
sonho. Como já observamos, a hipótese de que sonhar é
um mero epifenômeno do sono REM apoiou-se na grande
correlação entre o despertar do sono REM e os relatos de
sonho. Mas isto não implica necessariamente que REM e
sonho compartilhem um mecanismo cerebral único. Com
a descoberta de que os sonhos ocorrem de modo regular e
independente do sono REM, é com certeza possível que o
estado e o sonho REM sejam controlados por mecanismos
cerebrais independentes. Os dois mecanismos bem poderiam estar situados em diferentes partes
do cérebro, com o mecanismo REM
freqüentemente ativando o sonho. Um
fator causal de dupla fase do sonho
REM implica que o mecanismo do
sonho poderia também ser deflagrado por gatilhos diferentes do mecanismo REM, o que
explicaria por que os sonhos
ocorrem com tanta freqüência
fora do sono REM.
APESAR DA FORTE CORRELAÇÃO ENTRE SONHO
E SONO REM, JÁ NÃO É MAIS POSSÍVEL
ACEITAR QUE A ATITUDE ONÍRICA OCORRE
EXCLUSIVAMENTE DURANTE ESSE ESTADO
WWW.VIVERMENTECEREBRO.COM.BR
VIVER MENTE&CÉREBRO
31
5. CORRELAÇÃO CLÍNICO-ANATÔMICA
A tese de que existem no cérebro dois mecanismos
separados – um para o REM e um para o sonho –, pode
ser facilmente testada por um método padrão de pesquisa
neurológica conhecido como correlação clínico-anatômica.
Trata-se de um método clássico para testar esse tipo de hipótese: as partes do cérebro que suprimem o sono REM são
removidas e o pesquisador observa se o sonho ainda ocorre;
depois, as regiões cerebrais que suprimem o sonho são retiradas e checa-se se o REM ainda é atingido. Se os dois efeitos
dissociam-se, então são causados por mecanismos cerebrais
diferentes. Caso sejam simultaneamente afetados por danos
em uma única estrutura cerebral, então são condicionados
por um só mecanismo.
As partes do cérebro cruciais para o sonho e aquelas que
são imprescindíveis para o sono REM estão completamente
separadas, tanto no nível anatômico como do ponto de vista
funcional. Enquanto as primeiras estão na ponte, localizada no
tronco encefálico, próxima da nuca, as regiões essenciais para
o sonho estão situadas apenas nas partes mais altas do cérebro,
em duas áreas específicas nos próprios hemisférios cerebrais.
A primeira dessas áreas encontra-se no interior da substância branca dos lobos frontais do cérebro, logo acima dos
olhos. Esta parte dos lobos frontais contém um grande feixe
de fibras que transporta uma substância química chamada
dopamina do centro para as partes mais altas do cérebro (ver
ilustração abaixo). Lesões nesse feixe tornam o sonho impossível, mas mantêm o ciclo REM inalterado. Isto indica que
o sonho é gerado por um mecanismo diferente daquele que
gera o sono REM: conclusão corroborada pela observação
de que a estimulação química desse feixe de dopamina (com
drogas como a L-DOPA) leva a um aumento maciço na
freqüência e vivacidade dos sonhos, sem que haja qualquer
efeito na freqüência e intensidade do sono REM.
CÓRTEX
FRONTAL
ÁREA
SEPTAL
HIPOTÁLAMO
AMÍGDALA
ÁREA TEGMENTAL
VENTRAL
IARA COUTINHO
GIRO DO
CÍNGULO
CAMINHO DA DOPAMINA do centro para a parte frontal do cérebro
32
VIVER MENTE&CÉREBRO
Da mesma forma, sonhos excessivamente freqüentes e
vívidos, causados pelo estimulante dopamina, podem ser
interrompidos por drogas (como os antipsicóticos) que
bloqueiam a transmissão da dopamina nesse feixe. Em resumo, sonhar pode ser “ligado” e “desligado” por um feixe
neuroquímico que nada tem a ver com o oscilador REM
na ponte. Qual é, portanto, o papel desse feixe emissor no
cérebro, tão crucial para a geração do sonho? De acordo
com Jaak Panksepp, sua principal função é “instigar a busca
de realizações e a interação do organismo com o mundo
baseada no desejo”; quer dizer, motivar o sujeito a procurar e garantir objetos externos que possam satisfazer suas
necessidades biológicas internas. Estas são precisamente
as funções que Freud atribuiu ao “impulso libidinoso” – o
motivador primário dos sonhos – em sua teoria do início
do século XX. Assim, é importante observar que lesões nesse
feixe provocam a cessação do sonho junto com uma redução
substancial no comportamento motivado.
SONHOS E LOUCURA
Em vista da estreita associação entre sonhos e certas
formas de loucura, vale também observar que lesões cirúrgicas no feixe dopaminérgico (que eram o objetivo básico
da lobotomia pré-frontal das décadas de 50 e 60) reduzem
alguns sintomas de doenças psicóticas, junto com a cessação
do sonho. Seja o que foi que impediu os pacientes submetidos à lobotomia de manter os sintomas psiquiátricos,
também os privou de gerar sonhos. Teorias contemporâneas
sobre a esquizofrenia atribuem um papel central na causa de
alucinações e ilusões ao feixe dopaminérgico, que parece
gerar os sonhos.
Em resumo, a evidência neurocientífica corrente nos dá
os argumentos para considerar seriamente a hipótese radical – estabelecida primeiro por Freud há mais de cem anos
– no sentido de que os sonhos são fenômenos motivados,
determinados por nossos desejos. Embora seja verdade
que o mecanismo (colinérgico) que gera o estado REM é
“motivacionalmente neutro”, o mesmo não pode ser dito do
mecanismo (dopaminérgico) que gera o estado de sonho.
De fato, este último é um “sistema de comando” do cérebro
baseado no desejo (isto é, libidinoso), ainda segundo Panksepp; e uma evidência recente confirma que ele é ativado ao
máximo durante o sono REM.
Como já afirmamos, parece agora que o REM causa o
sonho através da intermediação desse mecanismo motivational. Além disso, o REM é apenas um dos muitos gatilhos
diferentes capazes de ativar esse mecanismo. Uma variedade
de outros gatilhos, que agem de forma independente do
REM, tem exatamente o mesmo efeito. Os sonhos da fase
inicial do sono e os últimos sonhos matutinos são dois exemplos desse tipo. Sonhos induzidos por L-DOPA (e várias
JULHO 2005
6. DORMINDO, SONHANDO, ACORDANDO
O sono REM e o não-REM diferem de várias maneiras. Veja algumas delas nas ilustrações abaixo,
e também uma das funções sugeridas para cada tipo de sono
SONO REM
SONO NÃO-REM
VIGÍLIA
Disparo dos neurônios indutores de sono
REM no tronco cerebral
Disparo dos neurônios indutores
de sono no prosencéfalo
Neurônios indutores do
sono estão desativados
Movimento
rápido dos olhos
Ausência de sonhos vívidos
Estado desperto
KEITH KASNOT
Ocorrência de sonhos vívidos
O SONO REM É O ESTÁGIO em que a ocorrência de sonhos é mais intensa, mas observações detalhadas da neurobiologia desse estágio
indicaram que ele não é o equivalente fisiológico do sonho. Na verdade, os mecanismos cerebrais responsáveis por sonho e sono REM são
independentes anatômica e funcionalmente. Isso indica que a atividade onírica não cessa de todo durante o sono não-REM, ainda que os
sonhos nesse estágio sejam menos vívidos
drogas estimulantes) são outros. De interesse especial a esse
respeito é o fato de que pesadelos estereotipados recorrentes
podem ser induzidos por convulsões que acontecem durante
o sono, deflagradas no sistema límbico temporal, que auxilia
as funções emocional e da memória. Localizado no cérebro
anterior, o sistema límbico, esse sistema é intensamente
interligado pelo feixe de dopamina do lobo frontal. Além
disso, sabemos que tais convulsões em geral ocorrem ao
longo do sono não-REM. O fato de que pesadelos possam
ser “ligados” por mecanismos nas partes mais altas do cérebro,
que nada têm a ver com a ponte ou com o sono REM, é mais
uma evidência de que o sonho e o REM são gerados por
mecanismos cerebrais separados e independentes.
Não é por acaso que todos esses diferentes mecanismos
capazes de ativar o sonho têm em comum o fato de criar um
estado de vigília durante o sono. Isso corrobora outra hipótese central que Freud propôs em 1900, qual seja, a hipótese de
que os sonhos são uma resposta a algo que perturba o sono.
Pacientes que perderam a capacidade de sonhar devido à
lesão cerebral têm mais distúrbios do sono que aqueles com
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lesão cerebral que continuam a sonhar. Mais importante, um
estudo polissonográfico recente de um paciente que não
sonha registrou “insônia de manutenção do sono”, precisamente como a proteção do sono de Freud teria previsto.
Mais pesquisas sobre essa questão são necessárias.
No entanto, parece que os estímulos causadores do
estado de vigília só disparam o sonho se e no momento
em que ativam o feixe terminal comum motivacional nos
lobos frontais do cérebro, pois somente quando esse feixe é
lesionado (em vez dos próprios gatilhos de vigília, inclusive
o REM) o sonho se torna impossível. Essa relação entre os
vários gatilhos de vigília e o próprio mecanismo do sonho
inicial lembra a famosa analogia de Freud: o sonho só ocorre
se o estímulo que atua como o “empreendedor” do sonho
atrai o apoio de um “capitalista”, um impulso libidinoso
inconsciente que sozinho tem poder de gerar o sonho.
Assim, as principais inferências de Freud, com base
na evidência psicológica relativa às causas e à função do
sonho, são pelo menos compatíveis e até mesmo indiretamente sustentadas pelo conhecimento neurocientíVIVER MENTE&CÉREBRO
33
7. fico atual. O mesmo se aplica ao mecanismo do sonho?
Nosso entendimento neurocientífico atual desse mecanismo gira essencialmente em torno do conceito de regressão.
A visão predominante é a de que imagens de todos os tipos
(inclusive imagens oníricas) são geradas “projetando-se
informações de volta no sistema”. Desse modo, sonhar é
definido pelo neurobiólogo Semir Zeki como “imagens
internamente geradas que são retroalimentadas no córtex
como se estivessem vindo de fora”. Essa concepção de
imagem onírica é baseada numa ampla gama de pesquisas
neurofisiológicas e neuropsicológicas sobre numerosos aspectos do processamento visual. No entanto, demonstramos
a natureza regressiva do processamento do sonho em casos
clínicos neurológicos.
Para ilustrar esse ponto, é preciso lembrar o leitor de que
a perda da capacidade de sonhar devido a dano neurológico
está associada a lesões em duas áreas do cérebro. A primeira
delas é o feixe de fibras brancas dos lobos frontais de que já
tratamos. A segunda consiste de uma porção da substância
cinzenta do córtex na parte posterior do cérebro (logo atrás
e acima das orelhas), chamada junção occipito-têmporo-parietal (ver ilustração na pág. 35). Essa parte do cérebro realiza os
mais altos níveis do processamento da percepção e é essencial
para a conversão da percepção concreta em pensamento abstrato, que sempre acontece na forma de esquemas internos, e
para a memorização da experiência organizada ou, em outras
palavras, não apenas para a percepção de informações, mas
também para o seu armazenamento.
O fato de que sonhar cessa completamente quando há
danos nessa parte do cérebro sugere que essas funções (a
conversão de percepções concretas em pensamentos abstratos e memórias), como as funções motivacionais realizadas
pelo feixe do lobo frontal, já discutido, são fundamentais a
todo o processo de sonhar. Entretanto, se a teoria de que
a imagem do sonho é gerada por um processo que reverte
a seqüência normal dos eventos em processamento perceptual estiver correta, podemos esperar que nos sonhos
os pensamentos abstratos e as memórias convertidos em
percepções concretas.
Isto é exatamente o que Freud tinha em mente quando
escreveu que “na regressão, o tecido dos pensamentos do
sonho converte-se em sua matéria primordial”. Essa inferência é sustentada de maneira empírica pela observação de
que o sonho pára de todo quando há danos no nível mais
alto dos sistemas da percepção (na região da junção occipito-têmporo-parietal), ao passo que só aspectos específicos
da imagem onírica são afetados no caso de danos nos níveis
mais baixos do sistema visual, mais próximo da periferia
do sistema perceptual (na região do lobo occipital). Isto
significa que a contribuição dos níveis mais altos precede
a dos níveis mais baixos. Quando há danos nos níveis mais
altos, o sonho é bloqueado, enquanto danos nos mais baixos
apenas suprimem algo da fase final do processo onírico. Isso
é o oposto ao que acontece na percepção consciente, que
é toda eliminada quando há danos nos níveis mais baixos
do sistema. Em outras palavras, sonhar reverte a seqüência
normal dos eventos externos.
A evidência neurocientífica disponível, portanto, é
compatível com a concepção de Freud sobre onde e como
o processo do sonho tem início (por exemplo, por um
estímulo de vigília que ativa os sistemas emocional e motivacional), e sobre onde e como ele termina (por exemplo,
através do pensamento abstrato na memória e nos sistemas
motivacionais, que retorna na forma de imagens concretas
nos sistemas da percepção).
De fato, hoje é possível ver onde essa atividade neural é
PERDA DA CAPACIDADE DE SONHAR
Sabe-se que a destruição de partes da ponte encefálica (e de nenhuma outra parte) leva a uma cessação
do sono REM em mamíferos inferiores, mas tais experimentos não podem, é claro, ser feitos em humanos:
a única espécie que poderia nos dizer se a destruição
daquelas partes do cérebro leva, ao mesmo tempo, a
uma cessação do sonho. Felizmente (para a ciência),
estruturas cerebrais relevantes são ocasionalmente destruídas em seres humanos em conseqüência de danos,
como doenças ou lesões traumáticas. Vinte e seis casos
de danos na ponte foram registrados pela literatura
neurológica , o que resultou em perda total ou semitotal
do sono REM. Surpreendentemente, a eliminação do
REM nesses pacientes foi acompanhada pela perda do
34
VIVER MENTE&CÉREBRO
sonho em apenas 1 desses 26. Nos outros 25 casos, os
pesquisadores ou não puderam estabelecer essa correlação ou não a consideraram.
Por outro lado, em todos os outros casos já publicados na literatura neurocientífica, nos quais lesões no
cérebro resultaram em perda da capacidade de sonhar
(um total de 110 pacientes), uma parte diferente do
cérebro havia sido danificada, enquanto a ponte permaneceu intacta. Além disso, ficou provado que o sono
REM foi preservado nesses casos, apesar da perda da
capacidade de sonhar. Essa dissociação entre cessação
do REM e cessação do sonho abala seriamente a doutrina de que o estado REM é o equivalente fisiológico
do estado de sonho.
JULHO 2005
8. IARA COUTINHO
JUNÇÃO
OCCIPTO-TÊMPOROPARIETAL
LOBO FRONTAL
A PERDA DA CAPACIDADE de sonhar devido a dano neurológico relaciona-se a duas áreas do cérebro
distribuída no cérebro que sonha. Métodos neuroradiológicos modernos produzem imagens da atividade metabólica
padrão no cérebro vivo, enquanto ele está realizando uma
função específica e, no caso do sonho, essas imagens mostram como a energia cerebral relativa à catexia (“cathexis”
como Freud a denominou) se concentra nas áreas anatômicas
discutidas acima: ou seja, as partes (frontal e límbica) do cérebro referentes à consciência, emoção, memória e motivação,
por um lado, e as partes (posteriores do cérebro) referentes
ao pensamento abstrato e à percepção visual, por outro.
Essas imagens também revelam algo sobre o que acontece
entre as fases iniciais e finais do processo onírico. Nesse
aspecto, a característica mais notável do cérebro que sonha
é o fato de que uma região cerebral conhecida como convexidade frontal e dorsolateral permanece quase completamente
inativa durante os sonhos. Isto é surpreendente porque essa
área, que se conserva inativa durante os sonhos, é uma das
mais ativas de todo o cérebro durante a atividade mental
consciente. Se compararmos as imagens do cérebro consciente com as do cérebro que sonha, literalmente veremos
a verdade da afirmação de Gustav Fechner no sentido de
que “a cena da ação onírica é diferente daquela em que se
passa a vida consciente das idéias”. Enquanto na vida consciente a “cena da ação” se concentra na região dorsolateral
na frente do cérebro – a extremidade superior do sistema
motor onde ocorre a passagem do pensamento para a ação
–, nos sonhos a cena se concentra na região occipito-têmporo-parietal na parte posterior do cérebro, na memória e
nos sistemas da percepção. Em resumo, nos sonhos, a “cena”
muda da função motora do aparato para a função perceptual. É interessante observar que os sistemas repressivos
mais importantes do cérebro anterior estão concentrados
na extremidade do seu sistema motor, como descritos por
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Freud na representação diagramática do aparato mental.
Isso reflete o fato de que, durante a vida consciente, o
curso normal dos eventos mentais é dirigido para a ação,
enquanto nos sonhos esse caminho não está disponível. A
“passagem” para o sistema motor (convexidade frontal e dorsolateral do cérebro) é inacessível durante os sonhos, assim
como o são os canais de saída motora (os neurônios motores
alfa da medula espinhal). Desse modo, tanto a intenção
como a habilidade para agir estão ausentes durante o sono,
e parece razoável inferir (como fez Freud) que essa ausência
é a causa imediata do processo do sonho, que assume um
caminho regressivo, longe do sistema motor do cérebro e
próximo dos sistemas perceptuais.
Finalmente, devido à relativa inatividade durante o sono
de partes cruciais dos sistemas reflexos nas regiões frontais
do cérebro límbico, a cena onírica imaginada é aceita sem
discernimento, e o sonhador confunde a cena interiormente
gerada com uma percepção real. Disfunções nesses sistemas
reflexos (que não estão de todo inativos durante o sono) resultam num estado curioso de sonho quase constante durante
o sono e uma inabilidade para distinguir entre pensamentos
e eventos reais durante a vida consciente. Isso oferece outra
evidência de que há um processo de pensamento contínuo
durante o sono, que é transformado em sonho sob várias
condições fisiológicas, em que o sono REM é apenas uma
entre muitas.
As pesquisas neurocientíficas recentes indicam que o
quadro do cérebro que sonha pode ser resumido da seguinte
forma: o processo do sonho é iniciado por um estímulo de
vigília. Se o estímulo é suficientemente intenso ou persistente para ativar os mecanismos motivacionais do cérebro
(ou se ele atrai o interesse desses mecanismos por alguma
outra razão), o processo do sonho começa.
VIVER MENTE&CÉREBRO
35
9. DEVEMOS CONSIDERAR SERIAMENTE A HIPÓTESE
RADICAL DE FREUD SEGUNDO A QUAL OS
SONHOS SÃO FENÔMENOS MOTIVADOS E
DETERMINADOS POR NOSSOS DESEJOS
O funcionamento dos sistemas
motivationais do cérebro, em
geral, é canalizado para a ação
dirigida a realizações, mas o
acesso ao sistema motor está
bloqueado durante o sono.
A ação propositiva que seria
o resultado normal do interesse motivado torna-se, assim,
impossível. Como conseqüência (e bastante possivelmente
para proteger o sono), o processo de ativação assume um
curso regressivo. Isso parece envolver um processo de duas
fases. Primeiro, as partes mais altas dos sistemas da percepção (que operam a memória e o pensamento abstrato) são
ativadas, seguidas pelas mais baixas (que operam a imagem
concreta). Como resultado desse processo regressivo, o
sonhador, de fato, não ocupa a atividade motivada durante
o sono, mas imagina fazê-lo. Em razão da inatividade dos
sistemas reflexos durante o sono na parte frontal do cérebro
límbico, a cena imaginada é aceita sem discernimento, e o
sonhador a confunde com uma percepção real.
Há uma grande área do cérebro que sonha ainda não
compreendida. Também é evidente que ainda não descobrimos as correlações neurológicas de alguns componentes
cruciais do “trabalho do sonho”, na forma usada por Freud.
A função de “censura” é o exemplo mais flagrante aqui.
Entretanto, começamos a entender algo sobre a correlação
neurológica dessa função, e sabemos pelo menos que as estruturas mais prováveis nesse sentido estão realmente ativas
durante o sono em que se sonha.
O quadro do cérebro que sonha, que começou a emergir
das mais recentes pesquisas neurocientíficas, é amplamente
compatível com a teoria psicológica que Freud desenvolveu.
Aspectos das proposições freudianos sobre a mente que
sonha são tão consistentes com os dados neurocientíficos
disponíveis que seria bastante aconselhável usarmos o
modelo de Freud como guia para a próxima fase de nossas
investigações neurocientíficas.
Ao contrário da pesquisa feita nas últimas décadas, o
próximo estágio de nossa busca pelos mecanismos cerebrais
do sonho (se tiver êxito) deve considerar como seu ponto
de partida a nova perspectiva que adquirimos sobre o papel
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VIVER MENTE&CÉREBRO
do sono REM. O sono REM, que tem até agora desviado
nossa atenção dos mecanismos neuropsicológicos do
sonho, deveria simplesmente ser somado às várias “fontes
somáticas” dos sonhos que Freud discutiu nos capítulos
1 e 5 de A interpretação dos sonhos. O enfoque principal de
nossas futuras pesquisas deveria ser dirigido, portanto,
para elucidar as correlações cerebrais dos mecanismos que
Freud discutiu nos capítulos 6 e 7, que são os mecanismos
do trabalho do sonho. Não teremos nenhuma surpresa
perante a superestimação do papel exercido na formação
dos sonhos por estímulos que não decorrem da vida mental.
Não apenas eles são fáceis de descobrir e até mesmo passíveis de comprovação experimental; mas a visão somática
da origem dos sonhos está em completa harmonia com a
corrente de pensamento predominante hoje na psiquiatria.
É verdade que o domínio do cérebro sobre o organismo
é sustentada com aparente confiança. Contudo, qualquer
coisa que possa indicar que a vida mental é independente
de alterações orgânicas demonstráveis, ou que suas manifestações são de alguma forma espontâneas, alarma o
psiquiatra moderno, como se o reconhecimento dessas
coisas inevitavelmente trouxesse de volta os dias da filosofia
da Natureza, e da visão metafísica da natureza da mente.
As suspeitas dos psiquiatras puseram a mente, vamos dizer,
sob tutela, e agora insistem que nenhum de seus impulsos
possa sugerir que ela dispõe de quaisquer meios próprios.
Esse comportamento apenas mostra a pouca confiança que
eles realmente têm na validade de uma relação causal entre
o somático e o mental. Mesmo quando a pesquisa mostra
que a causa primária de um fenômeno é psíquica, pesquisas
mais aprofundadas um dia irão delinear o caminho futuro
e descobrir uma base orgânica para o evento mental. Mas
se, no momento, não podemos ver além do mental, não
há razão para negar sua existência.
VMC
PARA CONHECER MAIS
A interpretação dos sonhos. S. Freud. Imago, 1999.
A vision of the brain. S. Zeki. Blackwell, 1993.
The dreaming brain. J. Hobson. Basic Books,1988.
Freud está de volta. Mark Solms, em www.vivermentecerebro.
com.br (Reportagens, edição no 0, setembro de 2004).
JULHO 2005