PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: COMUNICAÇÃO ASSERTIVA E INTERPESS...
O protestantismo e os valores éticos
1. O Protestantismo e os Valores
Éticos
Gabriele Greggersen*
Introdução
O título desta palestra sugere dois temas de difícil definição. Para tratarmos
deles, estaremos nos valendo, particularmente para a definição de ética, de
dois filósofos-teólogos, o católico alemão Josef Pieper (1904-1997) e o
professor e crítico literário anglicano de Oxford C.S. Lewis (1898-1963). Para
surpresa de alguns, encontramos uma sintonia fina antropológico-filosófica,
quanto a este e outros temas. Para ambos a ética é, por princípio, indissociável
da moral. As duas coisas reúnem-se sob o conceito clássico de “virtude”.
Tanto a areté de Aristóteles quanto a virtus de Aquino estão intimamente
relacionados ao caráter ou realização plena do ser e, portanto, da felicidade
humana. Só mais recentemente é que ela é mais vista como “qualidade”
positiva individual.
De acordo com Keenan (1998) a chamada “ética das virtudes” se destaca pelo
tipo de pergunta que faz. Ao invés de levantar e discutir diretamente temas
controvertidos como a guerra, a manipulação genética, o aborto e outros, ela
pergunta pelo ser, a começar da questão fundamental: “quem sou eu”? Quão
virtuoso sou eu”? E “quão virtuoso eu devo me tornar?” Esta ética nos ajuda a
traçar objetivos e fins pessoais, que visam ao máximo de cada um, sua
excelência moral, que jamais é idêntica à do outro. Assim, a ética das virtudes
pressupõe que toda ação humana é moral, manifestando-se mais nas pequenas
ações e decisões cotidianas do homem comum, do que nos grandes feitos. É a
ação moral assim orientada que permite a convivência humana e a “comunhão
dos santos”, pois cada membro deste “corpo” tem a liberdade de ser
“infinitamente outro”, ao mesmo tempo em que é um com eles. De acordo
com o autor, aprudência ou sabedoria, uma das quatro virtudes cardeais, que
é bastante mal interpretada e ignorada hoje, é a virtude máxima, como o texto
de Pieper explicita tão bem. [1]
1. O máximo de si
Das diversas vertentes e formas de abordagem da ética existentes estaremos
aqui privilegiando a da ética clássica, que visa à máxima realização do ser
humano, ou o ultimum potentiae. Como esclarece Lauand, esta é “... uma
2. constante na grande tradição sapiencial do Ocidente e nas dos Orientes” [2] A
grande questão que ela coloca é: Qual a areté do homem?
Esta é a pergunta central da ética das virtudes, que se revela, assim com
grande potencial unificador e ladeador de diferenças culturais e também
religiosas, como pretendemos destacar aqui. C.S. Lewis (1997), da mesma
forma que Pieper, procurou formulá-la em Cristianismo Puro e
Simples (CPS) [3] . Esta obra que resultou de uma série de palestras
difundidas pela BBC de Londres na época da guerra para trazer esperança e
orientação moral à população. Ao invés de falar em “ética”, no sentido
teórico, Lewis discute, de forma prática, o que chama de “Lei da natureza
humana”, “Lei Moral” ou “regra do comportamento humano”: o conjunto de
valores que nos faz decidir sobre o certo e o errado. O pressuposto básico da
reflexão sobre “Deus e o mundo” pretendida por Lewis é que todos sabem que
devem ou não agir de determinadas formas e evitar outras, mas
desgraçadamente não conseguem seguir estes princípios básicos plenamente.
De uma maneira geral, o livro discute os pontos comuns e imprescindíveis,
comuns a todos os cristãos. Lewis procura, assim, destacar a obra redentora de
Deus em Cristo, reconhecido como Deus e homem, a um só tempo. Esta busca
pelo núcleo comum ou duro da fé cristã, com o qual todos os cristãos de todos
os tempos concordam, procurando manter distância de controvérsias
especulativas, é um traço característico de toda a obra lewisiana. Daí o “puro e
simples” ou “mero” do título desta obra. Não se trata de um ecumenismo
reducionista, idealista ou superficial, mas da busca pelas verdades mais
simples e universais que fundamentam a perspectiva e estilo de vida do
cristão.
Lewis lembra que o que distingue a visão cristã está muito relacionado à
imagem que se tem de Deus. É ela que nos dá o grau de liberdade que temos
para falar de religião:
Se você é um cristão, você não precisa crer que tudo nas demais religiões é
simplesmente errado. Se você é ateu, então sim, você tem de crer que o ponto
central de todas as religiões do mundo não passa de um enorme engano. Se
você é um cristão, você é livre para pensar que todas as demais religiões,
mesmo as mais excêntricas, contêm ao menos alguma alusão à verdade. [4]
Valendo-se muito dos clássicos da Idade Média, particularmente de Agostinho
e São Tomás, Lewis concebe Deus como alguém a um tempo inteligível, e
inescrutável ou indefinível. Não, por não ser definido, mas, pelo contrário, por
ser definitivo demais. Diz a Bíblia que Ele é o que é, e ponto. Enquanto a
razão humana se limita a assimilar as realidades inteligíveis e sistematizáveis,
a imaginação é o “órgão” que se encarrega do sentido mais profundo da
totalidade deste real, que transcende a razão. Sua função é, assim, a de
3. unificar os aspectos espirituais, racionais, emocionais e até materiais do
homem. Após explicitar os dogmas básicos do cristianismo, da criação, queda,
redenção e transcendência do bem em relação ao mal (o mundo é um
“território ocupado pelo inimigo”), Lewis compara os valores éticos a uma
orquestra ou frota de navios bem alinhada. Ou seja, a moral é a harmonização
das diferenças, visando algo de bom para todos.
A primeira das “virtudes cardeais”, a prudência, é definida como o bom
senso, a capacidade de pensar sobre a ação; de refletir e considerar as coisas.
Em suma, trata-se da inteligência ou sabedoria exigida de todo cristão - não
que ele necessitasse de algum “diploma” para tornar-se cristão. A segunda
virtude, a temperança não é a mera capacidade de abstenção dos “prazeres da
carne”. Trata-se antes da abstenção de qualquer prazer que possa escravizar e
homem, por mais aparentemente “inocente” que possa parecer. Também
a justiça é muitas vezes reduzida a um conceito simplista, no caso, do direito
ou da observância das leis, quando na verdade ela envolve uma série de outras
qualidades: “honestidade, reciprocidade, veracidade, fidelidade aos
compromissos, todo esse lado da vida”. [5] Finalmente, a fortaleza diz
respeito à coragem, ou disposição para encarar os desafios, mas também para
suportar a dor.
Por outro lado, nem todo aquele que pratica alguma destas virtudes pode ser
considerado já virtuoso ou pode ter certeza da sua salvação, pois:
A questão não é que Deus recusará a admissão em seu reino eterno de quem
não tenha certas qualidades de caráter; a questão é que, para quem não tiver
pelo menos os primórdios dessas qualidades no seu íntimo, não haverá então
condições externas possíveis que lhe façam um “Céu”, isto é, que lhe façam
feliz com a profunda, forte e inabalável espécie de felicidade que Deus quer
proporcionar. [6]
As outras duas partes da moral, a social e a sexual [7] consideradas pelo autor
estão ambas relacionadas com o amor, que é uma das três virtudes teologais,
junto com a fé e a esperança, analisados em capítulos separados. O tema do
amor merece especial destaque na obra de Lewis. Sua dissertação de
mestrado, A Alegoria do Amor (The Allegory of Love), foi dedicada
precisamente ao conceito de “amor cortês”, presente na literatura inglesa
medieval e renascentista. A outra obra, Os Quatro Amores, mais destinada a
cristãos leigos, é muito citada também no mundo secular, principalmente pela
discussão sobre a amizade. Este tema é igualmente discutido por Aristóteles,
como lembram alguns revisores. [8]
Em CPS, depois de tocar em assuntos delicados e difíceis como o perdão, o
casamento, o tempo e a trindade, Lewis conclui que os valores cristãos se
destacam de outros conjuntos de valores, porque não se reduzem a fórmulas
4. de como “ser bonzinho”. Eles nos remetem a um processo dialético de
transformação da vida; de realização efetiva da busca do bem; de perseguição
deste élan vital, que move todos os seres humanos rumo à felicidade eterna. O
que está em jogo é nada menos, do que a nossa rendição e regeneração total,
nossa metamorfose em “pequenos Cristos”.
Outro livro importante para compreendermos a ética de Lewis é A Abolição
do Homem (The Abolition of Man). Ele a inicia, fazendo uma crítica à
ao Green Book ou “Livro Verde” das virtudes, usado no passado para
“ensinar” ética para as crianças. Na verdade ele promovia um relativismo
moral velado. Usando argumentos e exemplos do mundo tecnológico de hoje
e da literatura de ficção, ele defende que querer “reinventar” os valores
morais, principalmente do passado, considerados “superados” ou criar valores
absolutamente novos seria fomentar a destruição da humanidade. [9] Ao final
ele traz um interessante quadro comparativo de máximas e provérbios das
mais variadas culturas e épocas, que se mostram perfeitamente compatíveis e
equivalentes, formando uma espécie de “Tao” re-significado pelo
cristianismo. Em que medida uma ética assim universal pode ser considerada
“protestante”?
2. A Ética da Reforma
Sem entrarmos no mérito das classificações mais recentes e detalhadas do
protestantismo, que incluem movimentos pós-Reforma, e apesar da
diversidade entre as vertentes do protestantismo, há uma unidade doutrinal
essencial muitas vezes desprezada entre eles. Para evidenciar isto, basta
destacar alguns dos “reformadores”, fundadores respectivamente da igreja
luterana e das reformadas, sem desmerecer as outras.
Como a palavra mesmo diz, “protestante” é alguém que se manifesta
efusivamente contra algo. Na verdade, entretanto, a palavra surgiu mais de
uma década depois dos famosos argumentos de Lutero contra a doutrina
praticada na época pela Igreja católica, que protestava contra a supremacia dos
direitos dos que se chamavam evangélicos e procurava distingui-los dos
“protestantes”.
Mas foi inevitável a associação posterior dos cristãos reformados aos
“protestantes”. Neste sentido de protesto, quem talvez tivesse mais bem
expressado o lado “protestante” da reforma, fosse Martinho Lutero (1483-
1546), que usava e abusava de recursos dramáticos e retóricos para dar vazão
ao seu protesto contra os equívocos teológicos do clero. Como se sabe, depois
de ingressar no nível superior, ele teve uma visão e decidiu-se pela vida
monástica, para a qual parecia ter nascido. Ele costumava dizer que, se a
dedicação à batina e à igreja salvasse, ele, sem dúvida, teria se salvado.
Acontece que ele tinha plena consciência da incapacidade do homem de
5. salvar-se a si mesmo, através de boas obras ou qualquer outra medida. Assim,
a justificação pela fé tornou-se a base da sua ética e um dos pilares da
Reforma. Para Lutero não há nada que seja válido ou existente em si mesmo.
Tudo depende da graça divina e a ela responde. O agir ético é precisamente
esta resposta livre e espontânea ao amor de Deus, símbolo da gratidão a ele
devida. Com isto ele refutava a ética do dever e da obrigação presente em
muitos seguimentos da Igreja, bem como a vida monástica, que se isola da
vida e do homem comum. Para Lutero, é preciso perder a sua ética em-si-
mesmada para conquistar a verdadeira.
Foi numa sessão de auto-flagelamento, muito comum na época para
purificação dos pecados, que ele se conscientizou do absurdo do que estava
cometendo. Após aprofundar-se nas Escrituras, por recomendação do seu
superior, coisa que não era muito comum ou simples de se fazer na época,
Lutero deu-se conta da falta de fundamento bíblico de outros dogmas
católicos também não coincidiam com elas. Então ele resolveu arrolar todas
estas discordâncias e torná-las públicas, pregando-as na porta do templo da
cidade. [10] Seus famosos 95 artigos de protesto denunciavam basicamente a
venda de indulgências e outros aspectos, relacionados ao “sistema penitencial”
como o purgatório e o perdão de pecados mediado pelo padre; entre outros.
Ele também chegou à conclusão, de que a hierarquia eclesiástica praticada
estava equivocada, manifestando-se efusivamente contra ela.
Longe de querermos entrar no mérito destas controvérsias, importa-nos
lembrar a forte influência tanto da Bíblia, quanto dos clássicos no pensamento
dos reformadores. Ao contrário da crítica usual de individualismo e
subjetivismo em Lutero, Reardon (1995) argumenta que os clássicos não lhe
permitiram entrar nesta “onda”, de fato existente na época, mas que era mais
associável aos humanistas. Lutero pode ser considerado antes personalista, ou
seja, acreditava em um Deus pessoal e na experiência religiosa interior. Ele se
encontrava bastante distante do humanismo de sua época e muito mais
próximo do pensamento patrístico, do que outros reformadores. Como se sabe,
os primeiros pensadores do cristianismo buscavam uma visão unificada,
extraindo do pensamento grego e romano, o que fosse compatível com a
Bíblia.
Lutero é considerado por muitos estudiosos quem melhor conseguiu
aproximar a doutrina católica dos ideais da Reforma, reconhecendo alguns
pontos em comum, principalmente nos seus pressupostos:
O cristianismo católico da mesma forma que o protestante sempre foram
inequivocamente supranaturalistas. Nenhum deles poderia ter interpretado o
evangelho em termos de um humanismo ativista, já que para ambos trata-se da
revelação do poder e propósito divinos. Sem Deus o homem na verdade não
6. teria como ter conhecimento da sua própria salvação, nem aqui, nem no por
vir. [11]
Embora não concordemos com a visão da maioria dos historiadores
protestantes, de Lutero como “revolucionário”, no sentido de mudança
deliberada, na verdade ele acabou provocando uma “revolução” na história.
Além das mencionadas teses, seu questionamento da visão monolítica da
Igreja Católica da época provocou uma abertura e valorização da diferença, da
liberdade de pensamento e da língua vernácula. Neste sentido ele pode de fato
ser considerado o fundador do protestantismo, um profeta e o mais
empenhado em convencer Roma dos princípios da Reforma. Sua intenção era
a de contribuir com a Igreja Católica e não a de a destruir. Ele costumava
dizer que se Roma não o tivesse impedido de cumprir a sua missão e, se não
fosse a Providência Divina, a Reforma não teria acontecido. De acordo com o
autor ainda, Lutero não foi um reformador político, mas um gênio da vida
religiosa, que preferia deixar a teologia sistemática para os outros. Ele apelava
para o homem comum e seus limites, numa linguagem clara e didática, que
chegava às vezes a ser considerada grotesca e rudimentar. Daí que ele já tenha
sido considerado o primeiro jornalista da história. “Meus professores”,
costumava dizer ele, “são a dona de casa e seu lar”. Ele era crítico também em
relação a certos humanistas do seu tempo, como Erasmo e Zwinglio, por sua
tentativa de desvendar todos os mistérios acerca de Deus e da religião.
Suas doutrinas mais caras, a da justificação, da trindade e da predestinação,
permaneceram atreladas a Agostinho e ao pensamento medieval por toda a sua
vida. A santificação é o processo de transformação do cristão em santo, em
um pequeno Cristo, o que só pode ser produzido pelas virtudes teologais,
conceito presente também em São Tomás.
Além da mencionada perspectiva sobrenaturalista, que subordina o natural ao
divino e não, ao controle humano, católicos e protestantes têm em comum, a
centralização na soberania de um Deus triuno e pessoal, que se revela,
principalmente através da Bíblia, na igreja e nos sacramentos, embora com
prioridades diferentes. Estes pontos em comum pesaram muito no diálogo
posterior entre católicos e protestantes.
Com ajuda de seu amigo Melancton, educador assumido, ele ajudou a
organizar o sistema educacional alemão, que forma a sua base até hoje,
naquelas cidades que adotaram o protestantismo oficialmente. Desta maneira,
ele introduziu um modelo de ensinoconfessional e ao mesmo tempo, público e
gratuito, pelo menos naqueles Estados que abraçaram o protestantismo
oficialmente. Não é para menos que este país também se tornou o berço de
pensadores fundamentais para a educação como Froebel (1782-1852), Herbart
(1776-1841) e Francke (1663-1727), entre outros. Se abrirmos o leque para a
Europa toda, não poderemos deixar de mencionar o mal compreendido João
7. Amos Comênius, que foi pastor protestante, Pestalozzi, e tantos outros
educadores protestantes fundamentais.
Outro traço comum a católicos e protestantes em geral é a autocrítica, a partir
da literatura “pagã” e do legado da igreja primitiva. João Calvino (1509-
1564) é um exemplo disso. Ele iniciou os seus estudos clássicos em Paris, mas
acabou se formando em direito, por imposição do pai, em Orleans e Burges.
Nunca chegou a exercer oficialmente a profissão, que resolveu abandonar para
voltar a dedicar-se aos clássicos, após a morte dele. Depois da uma
“conversão súbita”, passou a estudar teologia na Universidade de Paris. Mas
acabou sendo expulso da cidade, voltando bem mais tarde.
Tudo leva a crer, porém que ara Calvino, “reformar” significa em última
instância, “repensar”, “reavaliar”, “atualizar” aqueles aspectos da teologia que
tendiam ao esquecimento e embotamento em sua época. Embora esta intenção
possa parecer “denunciatória”, “pessimista” ou escandalosa para alguns, seu
fim último era a “reconstrução” ou “resgate” de valores ameaçados já de
extinção. Assim, a visão de mundo protestante é motivada, antes de tudo, pelo
sentimento de gratidão e vontade de servir a Deus e ao próximo como resposta
ao dom da graça. Trata-se, então, muito mais de um corretivo, do que de uma
“revolução” religiosa.
Além de Lutero, outra influência forte sobre Calvino foi Martinho Bucer,
conhecido por suas idéias ecumênicas, moderação, equilíbrio e espírito
pacífico. Suas idéias inspiraram alguns conflitos de Calvino com as
autoridades civis, como em relação aos assuntos morais e religiosos, que para
Calvino deviam ser tratados exclusivamente pela Igreja. Ele defendia ainda
que o Estado não deveria mais ser obrigado a prestar contas à Igreja. Esta por
sua vez, deveria gozar de liberdade total. À semelhança de Agostinho, para
Calvino a Igreja diz respeito à Cidade de Deus, enquanto o Estado não passa
de um representante temporal do poder, que, em última instância, também
procede de Deus. No caso extremo do poder ultrapassa os limites da liberdade
humana, é dever dos cristãos reagir, para não se tornarem coniventes. Estas e
outras idéias fizeram com que Calvino fosse expulso da cidade de Genebra.
Em Estrasburgo onde ficou exilado, escreveu várias obras importantes. Nesta
época ele participou como consultor de encontros teológicos na Alemanha,
que visavam reaproximar protestantes e católicos. Depois de alguns convites
dos líderes de Genebra, ele acabou voltando para a cidade, que já era
oficialmente protestante, graças, em parte, ao incentivo dos seus amigos, que
o consideravam missionário para aquela cidade.
Uma das suas primeiras medidas foi elaborar as “ordenanças eclesiásticas”,
pelas quais eram estabelecidos quatro ofícios na igreja: pastor, mestre ou
doutor, presbítero e diácono. Sua ética “concreta” ou prática, considerava os
8. aspectos sociais e econômicos da época, fomentando a articulação entre teoria
bíblica e prática. [12]
Calvino também influenciou a cidade no aspecto civil, introduzindo leis que
não versassem somente sobre deveres, mas também falassem de direitos, além
de instituir o ensino público obrigatório e leis de higiene e ética profissional,
trazendo certo civismo para a cidade. Com sua diplomacia ele acabou se
tornando a pessoa mais procurada para resolver todo o tipo de problemas
civis. Ele também lutava pela abertura de uma escola ao lado de cada igreja
protestante, articulando fortemente a formação de valores éticos à educação
cristã, mas também à formação cultural. Por este e outros motivos, Genebra
passou assim a ser conhecida como a “cidade de Calvino”.
Na famosa Academia de Genebra fundada por ele em 1559, desenvolveu um
programa de ensino unificado de nível primário, secundário e universitário.
Com isto ele provava o “óbvio não dito” [13] que para ele representava a
educação.Em 25 de dezembro do mesmo ano, ele recebeu o título de cidadão
da cidade. No ano da sua morte (1564), a Academia contava com 1200 alunos
universitários, além de 300 alunos de outros cursos.
Assim, ele alcançou muito mais do que o seu objetivo quase impossível de
reformar toda a cidade. Suas idéias contagiaram também franceses, e ingleses
residentes em Genebra, que por sua vez as levaram para os seus respectivos
países.
Há sem dúvida elementos capitalistas neste “espírito protestante”, como
destacava Weber, referindo-se à Europa da época, mas que valeriam
perfeitamente para os Estados Unidos e outros países “protestantes” de hoje:
pragmatismo, simplicidade, acúmulo de riquezas, devoção metódica ao
trabalho, racionalismo, individualismo, visão do lucro como bênção divina.
Mas isto não invalida as contribuições deste “espírito” para a época.
A história de Calvino revela, assim, implícita no seu pensamento, uma
proposta educacional holística que visava à formação de bons cidadãos,
capacitados intelectual e profissionalmente, além de bons ministros da Igreja.
Embora o seu objetivo maior tivesse sido a formação de pastores e líderes
para servir melhor à igreja e à sociedade. A Academia de Genebra admitia
alunos interessados em se aperfeiçoar nos estudos clássicos, que Calvino
sempre apreciou. Para ele “a formação mental e a religião, a cultura e a
moralidade andavam de mão dadas”. [14] Quem sabe seja por este motivo que
o calvinismo tenha sido mais bem compreendido pela Igreja Católica, do que
por qualquer outro movimento reformado, tornando-se o seu “melhor
oponente”.
9. Daí que a escola tenha procurado sempre seguir um currículo das “artes
liberais”, muito semelhante ao praticado pelas escolas antigas e universidades
medievais. Os níveis eram divididos em básico (Escola Privada) e superior
(Escola Pública).
Segundo a visão de Calvino, todo homem, criado à imagem e semelhança de
Deus tem embutido em si, a “semente da religião” [15] , muito ligada à
aquisição do conhecimento. De acordo com as Institutas, em princípio, todos
são capazes de aprender qualquer coisa, religiosa ou não, independente das
diferenças econômicas, sociais, religiosas, etc. Acontece que o homem só
chega ao conhecimento, se antes se confrontar com o conhecimento de Deus,
que o conscientiza da sua limitação e necessidade de estudo. A tarefa do
educador é desenvolver as faculdades humanas de forma equilibrada [16] ,
com vistas à restauração da imagem de Deus através da obra redentora de
Cristo e regeneradora do Espírito Santo. Assim, a teologia é considerada
a Rainha das Ciências. Mas este privilegiado posto, que vinha mantendo
desde a Antigüidade, viria a ser totalmente perdido, com a declaração da
independência da razão humana pelo movimento iluminista, positivista e
naturalista. Para Calvino, a ciência, que resulta da revelação geral de Deus,
não é antagônica à fé, mas até meio auxiliar para um melhor conhecimento
dEle, de si e do próximo.
Ele levava tão a sério os valores reformados que provocou uma verdadeira
revolução no sistema de ensino da época e na cidade como um todo. Seus
alunos de Genebra chegaram a ser comparados aos “doutores da
Sorbonne” [17] . “Eles aprendiam a avaliar criticamente as idéias lidas e
expostas nas aulas” [18] , o que servia de alimento a novos debates teológicos,
lembrando muito asquaestio disputata da Escolástica. A única restrição à
liberdade de idéias era a finalidade última de glorificar a Deus, do contrário
todo e qualquer conhecimento humano poderia tornar-se vão.
A Academia de Genebra foi se tornando, assim, além de centro de excelência
acadêmica, como a própria cidade vinha sendo, lugar de refúgio dos
perseguidos e de fomento da democracia e da representatividade do governo.
Para ele, embora Lutero e Calvino tenham trilhado caminhos diferentes,
chegaram ao mesmo lugar: somente a graça, a fé e as Escrituras podem levar a
Deus. Ambos tinham toda a liberdade de se valer dos recursos seculares para o
estudo da Bíblia, ainda que não de forma acrítica. Ambos desprezavam um
excessivo apego a provas racionais, valorizando o papel do Espírito Santo
como “confirmador” interno da verdade e da salvação. Calvino chegou a ser
chamado de “teólogo do Espírito Santo”, pois segundo ele, sua função era a de
renovar, alimentar, proteger e unificar a Igreja com vistas à glória de Deus,
que a todos quer salvar.
10. Além de suas confissões doutrinárias, os “calvinistas” de todo o mundo
passaram a defender o governo constitucional e representativo, o direito do
povo à mudança de governo e a separação entre poder civil e Igreja,
inicialmente limitados à aristocracia, mas posteriormente universalizados.
Calvino entrou para a história como o reformador mais preocupado e
empenhado em defender a ética cristã e social e evangelizar o mundo, pois
acreditava, como Agostinho, que ninguém sabe quem são os
“eleitos”. [19] Temos assim, mais um ponto em comum na ética católica e
protestante.
Muito bem, pode estar pensando meu interlocutor, tudo isto é história lá para
os Europeus, mas o que nós temos a ver com isto, que somos um país
majoritariamente católico?
Talvez fosse interessante notar, neste sentido, que até os protestantes já se
fizeram esta pergunta no passado: para quê enviar missionários para os países
latino-americanos, que são notadamente católicos? Tanto católicos quanto
protestantes Europeus falam de condições muito diferentes das nossas. Na
verdade nós nunca vivemos o que foi a Reforma no seu sentido original.
Assim, grande parte do que nos ficou legado do protestantismo foi
devidamente “filtrado” pelo messianismo e moralismo das igrejas eletrônicas
americanas.
Por outro lado, consciente ou inconscientemente, educadores respeitados
como Euclides da Cunha, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, mostravam
claras influências deste pensamento, via Dewey e contatos feitos na Europa.
Estes pensadores perceberam que não é nada saudável e até perigoso fechar-se
para as outras culturas, quer sejam americanas, européias, africanas, não
importa. Eles notaram que era preciso dar voz a diferentes visões de mundo e
culturas, inclusive para melhor nos identificarmos com a nossa. Não temos
razões para preconceito contra as fábulas e lendas indígenas, da mesma forma
como não devemos nos fechar para a mitologia grega e para os contos-de-fada
e mitos europeus e nem mesmo para as versões “comportadas” de Disney.
Então, por que não considerar o pensamento da Reforma, o que não significa
já nos tornar Reformados.
Longe de termos pretendido aqui reduzir a questão da ética protestante aos
aspectos culturais e de querer dar conta de sua extensão religiosa e teológica,
sobre a qual já existe literatura suficiente e competente, gostaríamos de apelar
para um recurso que consideramos o melhor que há para enfrentar questões
aparentemente inesgotáveis: a imaginação.
Imaginemos um mundo em que todas as igrejas cristãs fossem iguais. Mesma
liturgia, mesma tradição histórica, virtudes idênticas e problemas idênticos.
Não seriam extremamente monótonas e mortas? Os cristãos não acabariam
11. tornando-se seres exatamente contrários ao que Cristo propôs: massificados,
sem criatividade ou liberdade? Não me refiro ao corpo de Cristo vivo reunido,
previsto e prometido na Bíblia, e também chamado de “noiva” de Cristo. Há,
no senso comum, uma freqüente confusão entre “identidade” e “unidade” ou
harmonia, sem negação das diferenças. Confusão esta que devemos à
dificuldade do homem moderno de ponderar e harmonizar as diferenças e à
visão fragmentária, viciosa ou viciante, criadora de infinitos “ciclos viciosos”.
Felizmente Deus foi tão feliz e perfeito em imprimir a sua imagem no homem,
que nenhum diabo tem o poder de exterminá-la totalmente. Por que existem
tantas igrejas e tendências religiosas? Por causa de Deus é que não!
Em suma, a ética protestante, considerada como parte da ética cristã mais
ampla é a dos valores do não-conformismo-re(con)formante; da crítica
reflexiva, mas também da re-construção de pontes ladeadoras de diferenças.
Ela é muito bem conceituada por outro reformado, Paul Ricoeur, que propõe
com seu “círculo hermenêutico”, a “desmitificação” as coisas, com vistas ao
retorno às suas de raízes mais profundas, comuns a todos os cristãos.
Considerações Finais
A própria conversão de Lewis ao protestantismo é um exemplo da cooperação
possível entre católicos e protestantes. Por ironia ou não, um católico romano
teve um papel fundamental neste processo. Este seu colega de Oxford, J.R.R.
Tolkien (1892-1973) havia se “convertido” anos antes de um lar protestante
para o catolicismo, seguindo os passos da sua falecida mãe. Este “papista”,
como Lewis o chamava no seu diário, quando o conheceu, viria a tornar-se o
seu maior amigo. Quem sabe não foram estas “coincidências” que o levaram a
dedicar grande parte de sua vida e obra ao que os cristãos têm em comum.
Apesar das convincentes razões pessoais e culturais que apresentava
ocasionalmente para a sua adesão à Reforma, um dos posicionamentos mais
característicos do pensamento de Lewis, quanto a tais assuntos era o de não
perder tempo ou deixar-se distrair por detalhes e questões inescrutáveis. Não é
para menos que é esta precisamente a estratégia de Screwtape em Cartas de
um Diabo a seu Aprendiz: distrair o “paciente” humano do que realmente
importa: as coisas que unificam as diferentes histórias, gostos e missões de
cristão individual. Daí que Lewis descrevesse a experiência de conversão,
como a de quem se vê em uma espécie de “ante-sala” ou sala de espera das
denominações. Somente a vocação divina mostrará a que vertente do
cristianismo cada um acabará aderindo, ou em qual cômodo se instalará.
Por outro lado, este foco no comum, não impedia que Lewis, à semelhança de
Lutero ou Agostinho, pudesse ser igualmente firme na sua crítica contra as
heresias que andavam soltas na sua época. Eles também reconheciam a
12. literatura e a educação como as melhores vias para manifestação do seu
protesto. Não é para menos ou por acaso certamente que grande parte das
sentenças de Lutero comecem por “é preciso ensinar aos cristãos que...”.
Longe de querermos denegrir católicos praticantes e honestos ou protestantes
brasileiros, especialmente o que procuram ser fiéis aos princípios da Reforma,
preocupam-nos aqueles que se afastam perigosamente do “mero cristianismo”
proposto por Lewis e seu fundamento claramente bíblico, tanto para o lado do
fundamentalismo, quanto do fanatismo religioso.
Mas o que mais precisamente significa ser protestante, além de ser um “eterno
aprendiz" dos princípios da Bíblia, como fonte de autoridade doutrinal e
libertação para a glorificação de Cristo?
Como destacado acima, infelizmente, o chamado “fanatismo” [20] é um
fenômeno individual ou coletivo que pode ocorrer em qualquer religião, mais
ou menos facilmente, e em qualquer momento da vida. Na “cidade dos
homens” vive-se numa verdadeira “miscelânea” de tendências, pensamentos,
etc. Somos convidados, assim, ao discernimento, sabedoria ou prudência,
como já mencionado anteriormente, ao invés de nos deixar intimidar e invadir
pelo medo, que leva ao fanatismo ou ao agnosticismo.
Não foi certamente o medo que moveu o movimento e a visão protestante,
visto muitos mártires provaram sua fé com sangue, à semelhança dos
primeiros cristãos da história, em que se inspiravam.
Os que os inspirou, antes, foi a necessidade de repensar certas práticas e
doutrinas predominantes na Igreja, voltando a harmonizá-las com as
Escrituras. Não é certamente por acaso que desde o início de CPS, Lewis
deixa bem clara esta sua visão dos valores unificadores do cristianismo,
também fomentados pelos Reformadores, embora ou precisamente porque
estivessem já bastante esquecidos:
Quero advertir o leitor de que não é o meu objetivo oferecer ajuda a quem
esteja hesitando entre duas “denominações” cristãs. Não lhe direi se deve ser
anglicano, batista, católico-romano, metodista ou presbiteriano... A omissão é
intencional... Não há mistério sobre a minha própria posição. Sou um leigo
comum da Igreja da Inglaterra, nem particularmente da ala da `alta´, nem da
`baixa´, nem de qualquer outra. [21]
Esta é igualmente a nossa advertência neste artigo, focado nos valores éticos
do protestantismo, que, a nosso ver, buscou a atualização dos valores comuns
às várias vertentes do cristianismo. Quem sabe, o protestantismo não necessite
hoje de uma revisão crítica semelhante. Como bem lembra Mehl (1968), não
há modelos de comportamento prontos na Bíblia. Para além das diferenças de
13. ênfase, a busca por uma visão de homem e seu destino, ou seja, por um
a antropologia filosófica, unifica todos os cristãos em torno dos grandes
valores fraternalmente compartilhados. É esta pergunta pela arete do homem
que, a nosso ver, dá sentido aos valores cristãos, que mobilizam cristãos de
todas as vertentes para o cumprimento de sua missão transcultural e
transcendente neste mundo.
Referências Bibliográficas
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1972.
* Docente do Programa de Mestrado em Teologia do Centro de Pós-
Graduação Andrew Jumper (CPAJ) e do curso de filosofia da Universidade
Presbiteriana Mackenzie e pós-doutoranda do Instituto de Pesquisas
Avançadas da USP (IEA). Autora de Antropologia Filosófica de C.S. Lewis,
São Paulo: Editora Mackenzie, 2001.
[1] Pieper, Josef, “Estar certo como Homem – as virtudes cardeais”,
disponível em http://www.hottopos.com.br/videtur11/estcert.htm, atualizado
em 24.02.2001, acesso em 01.09.2003.
[2] Lauand, Luiz Jean, “A Unidade da Idéia de Homem em Diferentes
Culturas” , disponível em http://www.hottopos.com/seminario/sem2/jean.htm
, atualizado em 18.04.2002, acesso em 01.07.2003.
[3] Lewis, C.S., Cristianismo Puro e Simples, 5a ed., São Paulo: ABU, 1997,
19. Esta obra foi traduzida por Mero Cristianismo, posteriormente pela editora
Quadrante.
[4] Ibidem, p. 19. Interessante notar que Lutero disse algo muito semelhante,
como veremos, e que estas alusões foram traduzidas como “inklings” para o
15. inglês, nome dado ao clube fundado por Lewis e seu amigo e colega de
Oxford J.R.R. Tolkien.
[5] Ibidem, p. 44.
[6] Ibidem, p. 44.
[7] O amor erótico e o amor a si mesmo são temas claramente visíveis em Até
que tenhamos Faces (Till we have Faces), que Lewis escreveu em
homenagem à esposa. Trata-se do mito de Eros, recontado, sob outra
perspectiva.
[8] Ver quanto a isto interessante artigo de Huerta, Daniel Mansuy, “La
Amistad”, disponível
emhttp://www.duoc.cl/etica/mat_apoyo/general/amistad.html, acesso em
30.06.2003.
[9] Não é por coincidência então que Skinner faz uma crítica contundente a
este livro de Lewis em Muito Além da Liberdade e Dignidade (Beyond
Freedom and Dignity), em que ele defende que o homem não tem
necessidade desta tal “liberdade” e “dignidade” que o cristianismo lhe atribui.
Todas estas coisas seriam obsoletas no mundo por vir, controlado pela ciência,
em que o homem declararia a sua independência definitiva da religião.
[10] Há controvérsias, se foi na porta, na parede ou se elas foram distribuídas
por escrito.
[11] Reardon, Bernard M.G. Religious Thought in the Reformation, 2ª ed.,
New York: Longman, 1995, xii, (traduzido pela autora).
[12] De acordo com Mehl (1968) e tantos outros autores posteriores a ele, é a
ética social que une católicos e protestantes até hoje. De nossa parte,
acreditamos que Lewis descobriu um veio mais profundo, com sua “Lei
moral”, que para o autor é precisamente o pomo da discórdia entre a moral
católica e a protestante.
[13] Vide quanto a isto Greggersen, Gabriele, “Perspectivas Educacionais de
João Calvino”, em Fides Reformata, São Paulo: Editora Mackenzie, V, VII, n.
2, 2002.
[14] Reardon, 1995, 152.
[15] Calvino, apud Heber Carlos de Campos, “A filosofia educacional de
Calvino e a fundação da Academia de Genebra”, Fides Reformata, V, n1,
2000, 46.
16. [16] Campos, idem, 46.
[17] Macneill, John T., apud Campos, idem., 49.
[18] Ibid.
[19] Como se sabe, esta idéia é muito forte também em A Cidade de Deus:
nem os anjos, diz Agostinho, sabem quem é cidadão da Cidade de Deus.
[20] Ver quanto a isto, artigo extremamente esclarecedor de Lauand, Jean ,
“Religião e Liberdade – a `Revanche de Deus´, Neo-Maniqueísmo e
Fanatismo Religioso”, disponível
em http://www.hottopos.com/mirand14/jean.htm, acesso em 01.07.2003.
[21] Lewis, C.S., op cit, 1997, i.