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Saúde Coletiva
Editorial Bolina
editorial@saudecoletiva.com.br
ISSN (Versión impresa): 1806-3365
BRASIL




                                                         2007
                                                     Elma Zoboli
                     ÉTICA DO CUIDADO: UMA REFLEXÃO SOBRE O CUIDADO DA PESSOA IDOSA
                                NA PERSPECTIVA DO ENCONTRO INTERPESSOAL
                                  Saúde Coletiva, bimestral, año/vol. 4, número 017
                                                    Editorial Bolina
                                                  São Paulo, Brasil
                                                     pp. 158-162




             Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal

                            Universidad Autónoma del Estado de México

                                       http://redalyc.uaemex.mx
ética e cuidado ao idoso
            Zoboli E. Ética do cuidado: uma reflexão sobre o cuidado da pessoa idosa na perspectiva do encontro interpessoal




           Ética do cuidado: uma reflexão sobre o
           cuidado da pessoa idosa na perspectiva
           do encontro interpessoal
           Trata-se de um artigo de revisão sobre a ética do cuidado voltado para a pessoa idosa trazendo uma reflexão sobre esse
           tema na perspectiva interpessoal.
           Descritores: Cuidado, Ética, Idosos.

           That is a review article about the ethics of the care directed toward the elderly bringing a reflection on this subject in the
           interpersonal perspective.
           Descriptors: Care, Ethics, Elderly people.

           Se trata de un artículo de revisión sobre la ética del cuidado vuelto a los ancianos trayendo una reflexión sobre este tema
           en la perspectiva interpersonal.
           Descriptores: Cuidado, Ética, Ancianos.



           ELMA ZOBOLI
           Enfermeira. Mestre em Bioética. Doutora em Saúde Pública. Docente do Departamento de Saúde Coletiva da Escola de Enferma-
           gem da Universidade de São Paulo. Segunda Vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética(2005-2007). Membro da Diretoria
           da Associação Internacional de Bioética(2003-2007; 2007-2010).
           elma@usp.br


           Recebido: 03/08/2007
           Aprovado: 12/09/2007




           ABORDANDO O CUIDAR-CUIDADO E A DIMENSÃO ÉTICA                                  bilidades profissionais, ou seja, uma forma de humanizar os

           O  termo cuidado tem diversos entendimentos na área da
              saúde. O primeiro deles vem da contraposição entre
           curar e cuidar. O cuidado é quase um prêmio de consolação
                                                                                          serviços de saúde. Ainda pode o cuidado ser considerado
                                                                                          um afeto, uma emoção que decorre de empatia e aproxima-
                                                                                          ção com o outro. Sem menosprezar nenhuma das acepções
           quando o conhecimento e as habilidades técnicas perdem a                       mencionadas, mas abarcando-as e, em certo sentido, ultra-
           batalha contra a morte. Esquece-se que a concretude da vida                    passando-as, tem-se a compreensão do cuidado enquanto
           humana inclui em si uma realidade: sua finitude e que cui-                     proposta ética. O cuidado, então, deixa de representar um
           damos sempre e curamos freqüentemente, mas não sempre.                         dos elementos da atenção em saúde, para ser seu mote, sua
           O cuidado também é entendido, comumente, como atenção                          razão de ser. É com esta compreensão que se trabalha no
           biológica. Nestas circunstâncias, pode ser avaliado pelos re-                  presente artigo.
           sultados fisiológicos alcançados. Uma terceira compreensão                         Ao longo da história da humanidade, várias abordagens,
           de cuidado considera-o como ação terapêutica: a pessoa                         como a mitológica, a filosófica e a psicológica têm concor-
           percebe suas necessidades, demandando o tipo de cuida-                         rido para o desenvolvimento de uma noção da ética do cui-
           do necessário a um profissional de saúde que oferta ações                      dado. Estas diversas compreensões revelam que não há uma
           orientadas à satisfação destas.                                                idéia única de cuidado, e sim, um conjunto de noções que
              Em uma outra visão, o cuidado é tido como trato huma-                       se unem por sentimentos, narrativas e temas recorrentes e
           no, um modo de agir incorporado aos conhecimentos e ha-                        que, conseqüentemente, acabam por implicar em distintas



           158                                                 Saúde Coletiva 2007;04(17):158-163




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ética e cuidado ao idoso
                                               Zoboli E. Ética do cuidado: uma reflexão sobre o cuidado da pessoa idosa na perspectiva do encontro interpessoal




           estruturas explicativas para a ética do cuidado.
               De maneira geral, cuidado é toda ação que contribui
           para promover e desenvolver o que faz bem viver as pessoas
           e os grupos. É tudo que contribui para promover e fomentar
           a boa vida e a boa saúde. Cuidar é um ato de vida, pois, de
           fato, tudo que não é cuidado morre: as plantas, os animais e
           as pessoas. Também as relações, se não cuidadas fenecem: a
           amizade; o amor conjugal; as relações familiares; a relação
           profissional de saúde – idoso; a relação da equipe multipro-
           fissional.
               Por isto, Waldow1 afirma que o cuidado “consiste de
           esforços transpessoais de ser humano para ser humano no
           sentido de proteger, promover e preservar a humanidade,
           ajudando as pessoas a encontrarem significado na doença,
           sofrimento e dor, bem como na existência”.
               Etimologicamente, a palavra “cuidado” deriva do latim
           cura, ou em sua forma mais antiga coera. Usada em um con-
           texto de relações de apreço e amizade, expressava atitude
           de cuidado, desvelo, preocupação e inquietação pela pessoa
           querida ou por um objeto de estimação. Parece, então, que
           não há curar sem cuidar, já que curar traz em si o cuidado.
               Outra derivação da palavra cuidado remete a cogitare-co-
           gitatus, que significa cogitar, pensar, colocar atenção, mostrar
           interesse, revelar uma atitude de desvelo e de preocupação2.
               Assim, a palavra “cuidado” inclui duas significações bási-
           cas intimamente ligadas entre si. A primeira abarca a atitude
           de desvelo, solicitude e atenção para com o outro. A segun-
           da diz respeito à preocupação e inquietação que advêm do
           envolvimento, da ligação afetiva, do sentir-se responsável
           pelo outro e da necessidade de acolhê-lo, pois nos reconhe-
           cemos inseridos, participes e co-dependentes de uma rede
           de vida, entrelaçados em todo orgânico, complexo, dialético
           e complementar. Os seres humanos formam uma teia de re-
           lações vitais das quais são co-responsáveis e co-dependen-
           tes, e podem potenciar a vida ou ameaçá-la2,3.
               O cuidado tomado como proposta ética, não se resume a
                                                                                         “O CUIDADO É QUASE UM PRÊMIO DE CONSOLAÇÃO
           um ato isolado. É uma atitude, um modo de ser, ou seja, é a                     QUANDO O CONHECIMENTO E AS HABILIDADES
           maneira como a pessoa estrutura e funda suas relações com                     TÉCNICAS PERDEM A BATALHA CONTRA A MORTE”
           as coisas, os outros, o mundo e, também, consigo mesma.
           É mais que um momento de atenção, zelo e desvelo. É uma                  Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que
           atitude de ocupação, preocupação, responsabilização radi-                havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto
           cal e aproximação afetiva e vincular com o outro, que pos-               o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu,
           sibilita a sensibilidade para com a experiência humana e o               de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à
           reconhecimento da realidade do outro como pessoa e como                  criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra.
           sujeito, com suas singularidades e diferenças.                           Originou-se então, uma discussão generalizada. De comum
               Segundo Boff2, esse entendimento de que o ser humano é               acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro.
           essencialmente cuidado e que cuidar é central para as pes-               Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa: ‘Você, Jú-
           soas e suas vidas, remonta a Roma Antiga, à fábula greco-                piter, deu-lhe o espírito, receberá, pois, de volta este espírito
           latina de Higino que conta:                                              por ocasião da morte da criatura. Você, Terra, deu-lhe o cor-
               “Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço              po; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quan-
           de barro. Logo, teve uma idéia inspirada. Tomou um pouco                 do essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem,
           do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contempla-                  por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados
           va o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe                enquanto viver. E uma vez que entre vocês há acalorada dis-
           que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado.              cussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chama-



                                                         Saúde Coletiva 2007;04(17):158-163                                                               159




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ética e cuidado ao idoso
            Zoboli E. Ética do cuidado: uma reflexão sobre o cuidado da pessoa idosa na perspectiva do encontro interpessoal




           da Homem, isto é, feita de Húmus, que significa terra fértil.’ ”               de, mas seu eixo norteador, seu moto propulsor. O cuidado
               Em uma abordagem psicológica da ética do cuidado                           é a base sobre a qual o profissional se estrutura e funda
           Gilligan4 aponta como essencial para sua compreensão:                          suas ações e seus procedimentos. Não prestamos cuidados,
               - a consciência da conexão entre as pessoas, reconhecen-                   mas somos “cuidado”, fazemo-nos presença no mundo
           do a responsabilidade de uns pelos outros;                                     como “cuidado”.
               - a convicção de que a comunicação é o modo de solu-                           Na área da saúde, podemos dizer que o cuidado é a ati-
           cionar os conflitos.                                                           tude determinante de ações que, inerentemente, têm como
               Esta aposta na solução não-violenta de conflitos, fazen-                   finalidade fomentar uma existência saudável do outro ou de
           do com que se veja as pessoas envolvidas em uma questão                        uma comunidade.
           ética não como adversários em uma pendência de direitos,                           Boff2 distingue dois modos-de-ser-no-mundo: trabalho e
           mas partícipes interdependentes de uma rede de relaciona-                      cuidado. O “modo-de-ser-no-mundo trabalho” é interven-
           mentos de cuja continuidade depende a manutenção da vida                       cionista, marcado por uma interação tecnicista. Configura o
           de todos. O caminho para soluções duradouras é o diálogo                       situar-se sobre as coisas e as pessoas para dominá-las e co-
           incansável, a tolerância constante e a busca permanente de                     locá-las a serviço dos interesses de terceiros. Busca compar-
           convergências nas diversidades, e não a violência. A solução                   timentar a realidade para melhor conhecê-la e, conseqüen-
                                                                                          temente, subjugá-la, utilizando-se do poder agressivo para
                                                                                          alcançar seus objetivos utilitários.
                 “CUIDADO É TODA AÇÃO QUE CONTRIBUI PARA                                      No “modo-de-ser-no-mundo cuidado” a relação não
              PROMOVER E DESENVOLVER O QUE FAZ BEM VIVER AS                               é mais sujeito-objeto, mas sujeito-sujeito, ou seja, não se
                                                                                          almeja o domínio sobre, mas a convivência com, através
              PESSOAS E OS GRUPOS. É TUDO QUE CONTRIBUI PARA                              da interação, da conjunção e não da mera intervenção. Há
               PROMOVER E FOMENTAR A BOA VIDA E BOA SAÚDE”                                uma proximidade, uma acolhida do outro, sentindo-o den-
                                                                                          tro, respeitando-o, provendo-lhe sossego e repouso. A ex-
                                                                                          periência que ocorre é do valor intrínseco às pessoas em
           dos conflitos, então, consiste em ativar esta rede de relações                 um encontro interpessoal e não de seu valor utilitário em
           pela comunicação cooperativa e não competitiva, visando a                      uma relação contratual.
           inclusão de todos mediante a potencialização positiva das                          Estes dois modos-de-ser não se opõem, ao contrário,
           relações em vez do rompimento das conexões. Os conflitos                       complementam-se3. Isto porque se, por um lado, a negação
           éticos são problemas que envolvem as relações humanas e a                      do cuidado com a adesão incondicional à lógica do modo-
           violência é destrutiva para todos. A paz é simultaneamente                     de-ser-trabalho resulta em um processo de desumanização e
           método e meta como fruto do cuidado de todos por todos.                        embrutecimento das relações. Por outro, o cuidado em de-
           O equacionamento ético não pode se pautar exclusivamente                       masia leva a uma preocupação obsessiva por tudo e todos,
           pelas regras, em uma abordagem formal e abstrata, ao con-                      em um perfeccionismo imobilizador. Cuidar é a essência do
           trário, tem de se guiar por uma abordagem contextual e nar-                    humano, porém o humano não é feito só de sua essência.
           rativa nutrida por uma vida vivida de forma suficientemente                        O grande desafio, então, é combiná-los, já que ambos to-
           intensa para criar uma paixão por tudo que é humano2,3.                        mam parte da integralidade da experiência humana. Como
               As atividades de cuidado são as que fazem o mundo so-                      fazê-lo? Em que medida lançar mão de cada um? A resposta
           cial seguro, evitando o isolamento e prevenindo a agressão                     não se encontra escrita em lugar nenhum, é preciso estabe-
           e, portanto, não correspondem à mera enunciação de regras                      lecê-la a partir de uma profunda sensibilidade, comunhão e
           limitantes da abrangência dos atos agressivos. Nesta pers-                     sintonia com a própria vida, reconhecendo-se envolto em
           pectiva, a agressão deixa de ser entendida como um impulso                     uma atmosfera de cuidado e de responsabilidade solidária
           incontrolável que deve ser contido, para ser vista como um                     de um para com o outro.
           sinal de ruptura na conexão, de falha no relacionamento. O                         O desafio é, sob a inspiração da alteridade, encontrar as
           ideal do cuidado consiste, então, em uma atividade de re-                      mediações técnicas, de procedimentos e instrumentos, bem
           lacionamento, de perceber e responder às necessidades, de                      como as melhores condições organizacionais e do processo
           tomar conta do mundo, buscando a manutenção da teia de                         de trabalho para fazer com que, dentro dos limites e do al-
           conexão de modo que ninguém seja deixado sozinho5.                             cance das situações particulares, o cuidado não seja traído
               A imagem alegórica da humanidade retratada anterior-                       ou negado, mas sim, concretizado da melhor forma possível.
           mente traz diferentes implicações para a área da saúde.                            A pessoa vista como abertura, relação, comunicabilidade
           Tomar o cuidado como este modo-de-ser essencial, sempre                        é a base, o fundamento preliminar da alteridade, de alter, do
           presente e irredutível à outra realidade anterior, significa                   latim, outro. Constituímo-nos pessoas pela intimidade, pro-
           assumi-lo como proposta ética que pauta a prática cotidia-                     ximidade e abertura, assim, alteridade entra na definição de
           na dos profissionais e serviços de saúde. Ou seja, o cuida-                    pessoa. Por isso, todo compromisso ético, toda reflexão ética
           do não é mais um mero componente da assistência à saú-                         e toda conduta ética fundamentam-se no valor e na digni-



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ética e cuidado ao idoso
                                               Zoboli E. Ética do cuidado: uma reflexão sobre o cuidado da pessoa idosa na perspectiva do encontro interpessoal




           dade da pessoa. A alteridade corrige uma visão individualista  psicológicas e espirituais, raramente são levadas em conta.
           e abstrata do personalismo e resgata o sujeito real concreto.      O objeto da assistência para o profissional que se guia
           Também re-alinha o encontro profissional de saúde – idoso      pelo “tratar” é a doença, sendo a pessoa vista como um con-
           para seu verdadeiro eixo: uma relação inter-pessoal, quando    junto de órgãos que podem deixar de exercer corretamen-
           um e outro tratam-se como pessoas, e uma relação de ajuda5.    te sua função. Diante da pessoa doente, este profissional de
               O aspecto fundamental da ética do cuidado é empenhar-      saúde age como um cientista perante seu objeto de estudo,
           se na compreensão da realidade do outro, saindo da própria     entusiasma-se pela situação clínica, especialmente se esta for
           estrutura referencial e entrando na do outro. É sentir-se com  incomum ou grave, ignorando os aspectos humanos. Preocu-
           o outro. Ao percebermos a                                                                      pa-se em agir eficazmente e
           realidade do outro como uma                                                                    emprega todos os meios diag-
           possibilidade para nós, somos                                                                  nósticos e terapêuticos a seu
           chamados a agir para elimi-                                                                    alcance, pois sua única finali-
           nar o intolerável, reduzir o                                                                   dade é vencer a luta contra a
           sofrimento, preencher a ne-                                                                    doença. É praticamente capaz
           cessidade, atualizar o sonho1.                                                                 de obrigar o doente a aceitar
               Surge-nos, então, a per-                                                                   tudo que tenha por fim o diag-
           gunta: quem é o outro? E este                                                                  nóstico e a cura, até mesmo
           pode ser um desconhecido,                                                                      ocultando-lhe informações e
           um excluído do convívio                                                                        nunca lhe dando a oportuni-
           social, alguém em extrema                                                                      dade de recusar o tratamento.
           necessidade e cansado ou,                                                                      Quando a cura não é possível,
           simples e radicalmente, Ou-                                                                    o sentimento de frustração é
           tro, com quem compartilho                                                                      enorme e o profissional é ca-
           a mesma origem e a mesma                                                                       paz de abandonar o doente.
           natureza humana3. Se por um                                                                    Neste contexto, o paciente
           lado este sentimento expõe                                                                     é reduzido a um diagnóstico
           nossa vulnerabilidade, por                                                                     por um profissional de saúde
           outro aproxima-nos, remete-                                                                    que, esquecendo a pessoa do-
           nos ao cuidado de uns com             “O CUIDADO CONSISTE DE ESFORÇOS TRANSPES-                ente, não estabelece com ela
           os outros e com todos. A éti-                                                                  qualquer relação e limita-se a
           ca na chave do cuidado, no
                                                 SOAIS DE SER HUMANO PARA SER HUMANO, NO                  conhecê-la por um número ou
           mínimo, pressupõe a acolhi-         SENTIDO DE PROTEGER, PROMOVER E PRESERVAR A                pelo nome da doença. A pes-
           da do outro como outro, o            HUMANIDADE, AJUDANDO AS PESSOAS A ENCON-                  soa é apenas mais um caso.
           respeito por sua singularidade                                                                     O profissional de saúde,
                                              TRAREM SIGNIFICADO NA DOENÇA, NO SOFRIMENTO
           e disposição de uma aliança                                                                    nesta perspectiva do tratar, va-
           duradoura com ele3.                       E NA DOR, BEM COMO NA EXISTÊNCIA”                    loriza tudo o que é técnico, e
               As ações em saúde com-                                                                     preocupa-se apenas em tratar
           portam duas dimensões: uma                                                                     o doente com eficácia e com-
           mais técnica e relacionada com o diagnóstico e tratamento da   petência. Limita-se a executar rigorosamente todas as tare-
           doença, designada por “tratar” e outra mais expressiva e preo- fas e todas as técnicas que têm por fim restabelecer a saúde,
           cupada com a pessoa em sua integralidade, o “cuidar”6. Em      dando preferência às mais sofisticadas, ainda que impliquem
           um paralelo, pode-se dizer que estes seriam os equivalentes    em mais sofrimento para o doente. Não se envolve emocio-
           na saúde, do modo-de-ser trabalho e do modo-de-ser cuida-      nalmente e considera perda de tempo conversar e ouvir a
           do, respectivamente.                                           pessoa doente ou sua família. Ser bom profissional significa
                                                                          não sentir compaixão e não revelar quaisquer sentimentos.
           TRAÇANDO PARALELOS ÉTICOS ENTRE O CUIDAR - TRATAR                  Por cuidar, entende-se o prestar atenção global e con-
           Por tratar, compreende-se a execução dos procedimentos         tinuada a um doente, nunca esquecendo que este é, antes
           técnicos e especializados, tendo em vista somente a doença     de tudo, uma pessoa, um ser único e insubstituível. Assim,
           e com a finalidade principal de reparar os órgãos doentes      a pessoa do doente é o centro da atenção do que cuida e,
           para se obter a cura. É uma atitude que pensa no doente,       por isso, todos os cuidados, sejam físicos, psicológicos ou
           mas que tende a esquecer a integralidade da pessoa doente      espirituais, e não somente os exigidos pela doença em si, in-
           e suas necessidades. Assim, as necessidades físicas, especial- tegram a assistência. O idoso não é visto como um objeto,
           mente as relacionadas com a doença, recebem atenção, po-       um número, um diagnóstico, um órgão ou um caso a mais, e
           rém, as necessidades que ultrapassam este âmbito, como as      sim como uma pessoa única, singular em uma situação par-



                                                         Saúde Coletiva 2007;04(17):158-163                                                               161




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ética e cuidado ao idoso
            Zoboli E. Ética do cuidado: uma reflexão sobre o cuidado da pessoa idosa na perspectiva do encontro interpessoal




                                                                                          o contrário, esta proximidade práxica deve desvelar o outro
                  “OS CONFLITOS ÉTICOS SÃO PROBLEMAS QUE                                  como o que ele não é no sistema, mas poderia sê-lo por sua
               ENVOLVEM AS RELAÇÕES HUMANAS. E A VIOLÊNCIA É                              condição de pessoa digna, chama à liberdade e libertação.
                                                                                          E na saúde o outro “não é”, porque luta para sobreviver e
               DESTRUTIVA PARA TODOS. A PAZ É SIMULTANEAMENTE
                                                                                          não goza de saúde por más condições de vida decorrentes
                  MÉTODO E META COMO FRUTO DO CUIDADO DE                                  de inserções sociais injustamente desiguais. A alteridade na
                             TODOS POR TODOS”                                             ação de saúde, deve pois, revelar o rosto do outro alienado,
                                                                                          escutar sua voz e tornar-se saída para sua exterioridade, afir-
                                                                                          mando, na práxis, a sua prioridade5.

                                                                                          SITUANDO A RELAÇÃO ÉTICA ENTRE O CUIDAR-TRATAR
                                                                                          E O IDOSO
                                                                                          O comportamento do cuidador está relacionado a receber
                                                                                          atenção, carinho, a ter paciência, a estar disponível que re-
                                                                                          sultam em satisfação e sensação de segurança por parte de
                                                                                          quem é cuidado. Os idosos percebem o cuidado como uma
                                                                                          conjugação de sentimentos e procedimentos técnicos, sen-
                                                                                          do que os primeiros fazem com que estes sejam executados
                                                                                          com amor e carinho. Sentindo-se cuidado, o idoso desperta
                                                                                          para sentimentos e emoções positivas, recuperando a auto-
                                                                                          nomia e retomando a vida1.
                                                                                             Conferir centralidade ao cuidado, tomando-o como pro-
                                                                                          posta ética, não significa deixar de trabalhar e de intervir,
                                                                                          de tentar avanços tecnológicos, de executar rotinas e proce-
                                                                                          dimentos, de solicitar exames, de prescrever tratamentos. O
                                                                                          desafio de integrar, na saúde, tratar e cuidar é fazer convi-
                                                                                          ver as dimensões da produção e da técnica com o cuidado,
           ticular, que deve ser assistida de maneira individualizada,                    da efetividade e da eficácia com a solidariedade, gentileza e
           respeitando-se seus direitos e necessidades.                                   cordialidade.
               Assim, o profissional de saúde não se preocupa apenas                         Por meio do toque e de procedimentos executados com
           com o tratar a doença ou aliviar os sinais e sintomas, embo-                   destreza, habilidade, delicadeza e gentileza, o profissional
           ra isso faça parte de sua atenção. Sua presença não é mera-                    de saúde demonstra o quanto o corpo biológico do idoso é
           mente física ou profissional, mas de uma pessoa capaz de                       precioso para ele. Por meio das ações educativas e orien-
           escutar, entender e acolher, em uma relação de abertura,                       tações feitas de maneira clara, cordial, leal e dialógica, o
           compreensão e confiança. Há uma valorização da relação                         profissional torna familiar o que é estranho e amedrontador,
           interpessoal, o respeito pelos valores e pela cultura do idoso                 contribuindo e favorecendo a expressão autonômica do pa-
           e a participação deste nas decisões que devem ser tomadas.                     ciente. Com sua presença disponível à escuta e ao acolhi-
               Cuidar é considerar o outro como um fim em si mesmo e                      mento, expressa sua preocupação e co-responsabilização
           não apenas mero meio para fins científicos, técnicos ou institu-               pela saúde e melhora do paciente. E escutar é mais atinente
           cionais. Isto exige sensibilidade às emoções do outro, manifes-                ao coração do que aos ouvidos, pois trata de abrir-se cor-
           tando por este interesse, respeito, atenção, compreensão, con-                 dialmente, com um sentimento de quem percebe o outro e
           sideração e afeto, para ser capaz de responder às experiências                 tenta vê-lo a partir dele mesmo e não a partir dos conceitos
           específicas de aflição e sofrimento trazidas pelas pessoas que                 e pré-conceitos, pois só assim captamos a diferença como
           buscam a atenção dos profissionais de saúde.                                   diferença e não como desigualdade ou inferioridade3.
               O cuidado representa um compromisso, pois dele decor-                         Isto significa renunciar à vontade de poder que reduz
           re o envolvimento. O cuidar é ação. E agir movido pela ética                   tudo e todos a objetos, desconectados da subjetividade hu-
           do cuidado inclui afeto, consideração, promoção do bem-                        mana e ver a criança, o jovem, o adulto, o idoso, enfim,
           estar do outro1.                                                               todo aquele que é assistido como pessoa, como sujeito em
               Mas, cuidar não é qualquer tipo de ação. É uma ação                        sua integralidade, pois é pessoa em sua totalidade existen-
           práxica. Alguém é pessoa só quando está na relação da prá-                     cial que busca a atenção dos profissionais de saúde.
           xis. Uma pessoa é pessoa só quando está ante outra pessoa.                        Significa impor limites à obsessão pela eficácia a qual-
           Estar frente a frente, pessoa a pessoa constitui relação práti-                quer custo, reconhecendo quando se deve parar e tendo hu-
           ca de proximidade, de vizinhança com as pessoas que reve-                      mildade para admitir que se pode estar errado ou que não
           la o outro. Mas, não como ele é dentro do sistema. É justo                     se sabe. Significa derrubar a barreira da racionalidade fria e



           162                                                 Saúde Coletiva 2007;04(17):158-163




158a163 - Ética e cuidado ao Idoso.indd 162                                                                                                       9/28/07 11:44:44 AM

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A etica do cuidado84201706

  • 1. Saúde Coletiva Editorial Bolina editorial@saudecoletiva.com.br ISSN (Versión impresa): 1806-3365 BRASIL 2007 Elma Zoboli ÉTICA DO CUIDADO: UMA REFLEXÃO SOBRE O CUIDADO DA PESSOA IDOSA NA PERSPECTIVA DO ENCONTRO INTERPESSOAL Saúde Coletiva, bimestral, año/vol. 4, número 017 Editorial Bolina São Paulo, Brasil pp. 158-162 Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal Universidad Autónoma del Estado de México http://redalyc.uaemex.mx
  • 2. ética e cuidado ao idoso Zoboli E. Ética do cuidado: uma reflexão sobre o cuidado da pessoa idosa na perspectiva do encontro interpessoal Ética do cuidado: uma reflexão sobre o cuidado da pessoa idosa na perspectiva do encontro interpessoal Trata-se de um artigo de revisão sobre a ética do cuidado voltado para a pessoa idosa trazendo uma reflexão sobre esse tema na perspectiva interpessoal. Descritores: Cuidado, Ética, Idosos. That is a review article about the ethics of the care directed toward the elderly bringing a reflection on this subject in the interpersonal perspective. Descriptors: Care, Ethics, Elderly people. Se trata de un artículo de revisión sobre la ética del cuidado vuelto a los ancianos trayendo una reflexión sobre este tema en la perspectiva interpersonal. Descriptores: Cuidado, Ética, Ancianos. ELMA ZOBOLI Enfermeira. Mestre em Bioética. Doutora em Saúde Pública. Docente do Departamento de Saúde Coletiva da Escola de Enferma- gem da Universidade de São Paulo. Segunda Vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética(2005-2007). Membro da Diretoria da Associação Internacional de Bioética(2003-2007; 2007-2010). elma@usp.br Recebido: 03/08/2007 Aprovado: 12/09/2007 ABORDANDO O CUIDAR-CUIDADO E A DIMENSÃO ÉTICA bilidades profissionais, ou seja, uma forma de humanizar os O termo cuidado tem diversos entendimentos na área da saúde. O primeiro deles vem da contraposição entre curar e cuidar. O cuidado é quase um prêmio de consolação serviços de saúde. Ainda pode o cuidado ser considerado um afeto, uma emoção que decorre de empatia e aproxima- ção com o outro. Sem menosprezar nenhuma das acepções quando o conhecimento e as habilidades técnicas perdem a mencionadas, mas abarcando-as e, em certo sentido, ultra- batalha contra a morte. Esquece-se que a concretude da vida passando-as, tem-se a compreensão do cuidado enquanto humana inclui em si uma realidade: sua finitude e que cui- proposta ética. O cuidado, então, deixa de representar um damos sempre e curamos freqüentemente, mas não sempre. dos elementos da atenção em saúde, para ser seu mote, sua O cuidado também é entendido, comumente, como atenção razão de ser. É com esta compreensão que se trabalha no biológica. Nestas circunstâncias, pode ser avaliado pelos re- presente artigo. sultados fisiológicos alcançados. Uma terceira compreensão Ao longo da história da humanidade, várias abordagens, de cuidado considera-o como ação terapêutica: a pessoa como a mitológica, a filosófica e a psicológica têm concor- percebe suas necessidades, demandando o tipo de cuida- rido para o desenvolvimento de uma noção da ética do cui- do necessário a um profissional de saúde que oferta ações dado. Estas diversas compreensões revelam que não há uma orientadas à satisfação destas. idéia única de cuidado, e sim, um conjunto de noções que Em uma outra visão, o cuidado é tido como trato huma- se unem por sentimentos, narrativas e temas recorrentes e no, um modo de agir incorporado aos conhecimentos e ha- que, conseqüentemente, acabam por implicar em distintas 158 Saúde Coletiva 2007;04(17):158-163 158a163 - Ética e cuidado ao Idoso.indd 158 9/28/07 11:44:41 AM
  • 3. ética e cuidado ao idoso Zoboli E. Ética do cuidado: uma reflexão sobre o cuidado da pessoa idosa na perspectiva do encontro interpessoal estruturas explicativas para a ética do cuidado. De maneira geral, cuidado é toda ação que contribui para promover e desenvolver o que faz bem viver as pessoas e os grupos. É tudo que contribui para promover e fomentar a boa vida e a boa saúde. Cuidar é um ato de vida, pois, de fato, tudo que não é cuidado morre: as plantas, os animais e as pessoas. Também as relações, se não cuidadas fenecem: a amizade; o amor conjugal; as relações familiares; a relação profissional de saúde – idoso; a relação da equipe multipro- fissional. Por isto, Waldow1 afirma que o cuidado “consiste de esforços transpessoais de ser humano para ser humano no sentido de proteger, promover e preservar a humanidade, ajudando as pessoas a encontrarem significado na doença, sofrimento e dor, bem como na existência”. Etimologicamente, a palavra “cuidado” deriva do latim cura, ou em sua forma mais antiga coera. Usada em um con- texto de relações de apreço e amizade, expressava atitude de cuidado, desvelo, preocupação e inquietação pela pessoa querida ou por um objeto de estimação. Parece, então, que não há curar sem cuidar, já que curar traz em si o cuidado. Outra derivação da palavra cuidado remete a cogitare-co- gitatus, que significa cogitar, pensar, colocar atenção, mostrar interesse, revelar uma atitude de desvelo e de preocupação2. Assim, a palavra “cuidado” inclui duas significações bási- cas intimamente ligadas entre si. A primeira abarca a atitude de desvelo, solicitude e atenção para com o outro. A segun- da diz respeito à preocupação e inquietação que advêm do envolvimento, da ligação afetiva, do sentir-se responsável pelo outro e da necessidade de acolhê-lo, pois nos reconhe- cemos inseridos, participes e co-dependentes de uma rede de vida, entrelaçados em todo orgânico, complexo, dialético e complementar. Os seres humanos formam uma teia de re- lações vitais das quais são co-responsáveis e co-dependen- tes, e podem potenciar a vida ou ameaçá-la2,3. O cuidado tomado como proposta ética, não se resume a “O CUIDADO É QUASE UM PRÊMIO DE CONSOLAÇÃO um ato isolado. É uma atitude, um modo de ser, ou seja, é a QUANDO O CONHECIMENTO E AS HABILIDADES maneira como a pessoa estrutura e funda suas relações com TÉCNICAS PERDEM A BATALHA CONTRA A MORTE” as coisas, os outros, o mundo e, também, consigo mesma. É mais que um momento de atenção, zelo e desvelo. É uma Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que atitude de ocupação, preocupação, responsabilização radi- havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto cal e aproximação afetiva e vincular com o outro, que pos- o seu nome. Enquanto Júpiter e Cuidado discutiam, surgiu, sibilita a sensibilidade para com a experiência humana e o de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à reconhecimento da realidade do outro como pessoa e como criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da Terra. sujeito, com suas singularidades e diferenças. Originou-se então, uma discussão generalizada. De comum Segundo Boff2, esse entendimento de que o ser humano é acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. essencialmente cuidado e que cuidar é central para as pes- Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa: ‘Você, Jú- soas e suas vidas, remonta a Roma Antiga, à fábula greco- piter, deu-lhe o espírito, receberá, pois, de volta este espírito latina de Higino que conta: por ocasião da morte da criatura. Você, Terra, deu-lhe o cor- “Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço po; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quan- de barro. Logo, teve uma idéia inspirada. Tomou um pouco do essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, do barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contempla- por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados va o que havia feito, apareceu Júpiter. Cuidado pediu-lhe enquanto viver. E uma vez que entre vocês há acalorada dis- que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado. cussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chama- Saúde Coletiva 2007;04(17):158-163 159 158a163 - Ética e cuidado ao Idoso.indd 159 9/28/07 11:44:42 AM
  • 4. ética e cuidado ao idoso Zoboli E. Ética do cuidado: uma reflexão sobre o cuidado da pessoa idosa na perspectiva do encontro interpessoal da Homem, isto é, feita de Húmus, que significa terra fértil.’ ” de, mas seu eixo norteador, seu moto propulsor. O cuidado Em uma abordagem psicológica da ética do cuidado é a base sobre a qual o profissional se estrutura e funda Gilligan4 aponta como essencial para sua compreensão: suas ações e seus procedimentos. Não prestamos cuidados, - a consciência da conexão entre as pessoas, reconhecen- mas somos “cuidado”, fazemo-nos presença no mundo do a responsabilidade de uns pelos outros; como “cuidado”. - a convicção de que a comunicação é o modo de solu- Na área da saúde, podemos dizer que o cuidado é a ati- cionar os conflitos. tude determinante de ações que, inerentemente, têm como Esta aposta na solução não-violenta de conflitos, fazen- finalidade fomentar uma existência saudável do outro ou de do com que se veja as pessoas envolvidas em uma questão uma comunidade. ética não como adversários em uma pendência de direitos, Boff2 distingue dois modos-de-ser-no-mundo: trabalho e mas partícipes interdependentes de uma rede de relaciona- cuidado. O “modo-de-ser-no-mundo trabalho” é interven- mentos de cuja continuidade depende a manutenção da vida cionista, marcado por uma interação tecnicista. Configura o de todos. O caminho para soluções duradouras é o diálogo situar-se sobre as coisas e as pessoas para dominá-las e co- incansável, a tolerância constante e a busca permanente de locá-las a serviço dos interesses de terceiros. Busca compar- convergências nas diversidades, e não a violência. A solução timentar a realidade para melhor conhecê-la e, conseqüen- temente, subjugá-la, utilizando-se do poder agressivo para alcançar seus objetivos utilitários. “CUIDADO É TODA AÇÃO QUE CONTRIBUI PARA No “modo-de-ser-no-mundo cuidado” a relação não PROMOVER E DESENVOLVER O QUE FAZ BEM VIVER AS é mais sujeito-objeto, mas sujeito-sujeito, ou seja, não se almeja o domínio sobre, mas a convivência com, através PESSOAS E OS GRUPOS. É TUDO QUE CONTRIBUI PARA da interação, da conjunção e não da mera intervenção. Há PROMOVER E FOMENTAR A BOA VIDA E BOA SAÚDE” uma proximidade, uma acolhida do outro, sentindo-o den- tro, respeitando-o, provendo-lhe sossego e repouso. A ex- periência que ocorre é do valor intrínseco às pessoas em dos conflitos, então, consiste em ativar esta rede de relações um encontro interpessoal e não de seu valor utilitário em pela comunicação cooperativa e não competitiva, visando a uma relação contratual. inclusão de todos mediante a potencialização positiva das Estes dois modos-de-ser não se opõem, ao contrário, relações em vez do rompimento das conexões. Os conflitos complementam-se3. Isto porque se, por um lado, a negação éticos são problemas que envolvem as relações humanas e a do cuidado com a adesão incondicional à lógica do modo- violência é destrutiva para todos. A paz é simultaneamente de-ser-trabalho resulta em um processo de desumanização e método e meta como fruto do cuidado de todos por todos. embrutecimento das relações. Por outro, o cuidado em de- O equacionamento ético não pode se pautar exclusivamente masia leva a uma preocupação obsessiva por tudo e todos, pelas regras, em uma abordagem formal e abstrata, ao con- em um perfeccionismo imobilizador. Cuidar é a essência do trário, tem de se guiar por uma abordagem contextual e nar- humano, porém o humano não é feito só de sua essência. rativa nutrida por uma vida vivida de forma suficientemente O grande desafio, então, é combiná-los, já que ambos to- intensa para criar uma paixão por tudo que é humano2,3. mam parte da integralidade da experiência humana. Como As atividades de cuidado são as que fazem o mundo so- fazê-lo? Em que medida lançar mão de cada um? A resposta cial seguro, evitando o isolamento e prevenindo a agressão não se encontra escrita em lugar nenhum, é preciso estabe- e, portanto, não correspondem à mera enunciação de regras lecê-la a partir de uma profunda sensibilidade, comunhão e limitantes da abrangência dos atos agressivos. Nesta pers- sintonia com a própria vida, reconhecendo-se envolto em pectiva, a agressão deixa de ser entendida como um impulso uma atmosfera de cuidado e de responsabilidade solidária incontrolável que deve ser contido, para ser vista como um de um para com o outro. sinal de ruptura na conexão, de falha no relacionamento. O O desafio é, sob a inspiração da alteridade, encontrar as ideal do cuidado consiste, então, em uma atividade de re- mediações técnicas, de procedimentos e instrumentos, bem lacionamento, de perceber e responder às necessidades, de como as melhores condições organizacionais e do processo tomar conta do mundo, buscando a manutenção da teia de de trabalho para fazer com que, dentro dos limites e do al- conexão de modo que ninguém seja deixado sozinho5. cance das situações particulares, o cuidado não seja traído A imagem alegórica da humanidade retratada anterior- ou negado, mas sim, concretizado da melhor forma possível. mente traz diferentes implicações para a área da saúde. A pessoa vista como abertura, relação, comunicabilidade Tomar o cuidado como este modo-de-ser essencial, sempre é a base, o fundamento preliminar da alteridade, de alter, do presente e irredutível à outra realidade anterior, significa latim, outro. Constituímo-nos pessoas pela intimidade, pro- assumi-lo como proposta ética que pauta a prática cotidia- ximidade e abertura, assim, alteridade entra na definição de na dos profissionais e serviços de saúde. Ou seja, o cuida- pessoa. Por isso, todo compromisso ético, toda reflexão ética do não é mais um mero componente da assistência à saú- e toda conduta ética fundamentam-se no valor e na digni- 160 Saúde Coletiva 2007;04(17):158-163 158a163 - Ética e cuidado ao Idoso.indd 160 9/28/07 11:44:42 AM
  • 5. ética e cuidado ao idoso Zoboli E. Ética do cuidado: uma reflexão sobre o cuidado da pessoa idosa na perspectiva do encontro interpessoal dade da pessoa. A alteridade corrige uma visão individualista psicológicas e espirituais, raramente são levadas em conta. e abstrata do personalismo e resgata o sujeito real concreto. O objeto da assistência para o profissional que se guia Também re-alinha o encontro profissional de saúde – idoso pelo “tratar” é a doença, sendo a pessoa vista como um con- para seu verdadeiro eixo: uma relação inter-pessoal, quando junto de órgãos que podem deixar de exercer corretamen- um e outro tratam-se como pessoas, e uma relação de ajuda5. te sua função. Diante da pessoa doente, este profissional de O aspecto fundamental da ética do cuidado é empenhar- saúde age como um cientista perante seu objeto de estudo, se na compreensão da realidade do outro, saindo da própria entusiasma-se pela situação clínica, especialmente se esta for estrutura referencial e entrando na do outro. É sentir-se com incomum ou grave, ignorando os aspectos humanos. Preocu- o outro. Ao percebermos a pa-se em agir eficazmente e realidade do outro como uma emprega todos os meios diag- possibilidade para nós, somos nósticos e terapêuticos a seu chamados a agir para elimi- alcance, pois sua única finali- nar o intolerável, reduzir o dade é vencer a luta contra a sofrimento, preencher a ne- doença. É praticamente capaz cessidade, atualizar o sonho1. de obrigar o doente a aceitar Surge-nos, então, a per- tudo que tenha por fim o diag- gunta: quem é o outro? E este nóstico e a cura, até mesmo pode ser um desconhecido, ocultando-lhe informações e um excluído do convívio nunca lhe dando a oportuni- social, alguém em extrema dade de recusar o tratamento. necessidade e cansado ou, Quando a cura não é possível, simples e radicalmente, Ou- o sentimento de frustração é tro, com quem compartilho enorme e o profissional é ca- a mesma origem e a mesma paz de abandonar o doente. natureza humana3. Se por um Neste contexto, o paciente lado este sentimento expõe é reduzido a um diagnóstico nossa vulnerabilidade, por por um profissional de saúde outro aproxima-nos, remete- que, esquecendo a pessoa do- nos ao cuidado de uns com “O CUIDADO CONSISTE DE ESFORÇOS TRANSPES- ente, não estabelece com ela os outros e com todos. A éti- qualquer relação e limita-se a ca na chave do cuidado, no SOAIS DE SER HUMANO PARA SER HUMANO, NO conhecê-la por um número ou mínimo, pressupõe a acolhi- SENTIDO DE PROTEGER, PROMOVER E PRESERVAR A pelo nome da doença. A pes- da do outro como outro, o HUMANIDADE, AJUDANDO AS PESSOAS A ENCON- soa é apenas mais um caso. respeito por sua singularidade O profissional de saúde, TRAREM SIGNIFICADO NA DOENÇA, NO SOFRIMENTO e disposição de uma aliança nesta perspectiva do tratar, va- duradoura com ele3. E NA DOR, BEM COMO NA EXISTÊNCIA” loriza tudo o que é técnico, e As ações em saúde com- preocupa-se apenas em tratar portam duas dimensões: uma o doente com eficácia e com- mais técnica e relacionada com o diagnóstico e tratamento da petência. Limita-se a executar rigorosamente todas as tare- doença, designada por “tratar” e outra mais expressiva e preo- fas e todas as técnicas que têm por fim restabelecer a saúde, cupada com a pessoa em sua integralidade, o “cuidar”6. Em dando preferência às mais sofisticadas, ainda que impliquem um paralelo, pode-se dizer que estes seriam os equivalentes em mais sofrimento para o doente. Não se envolve emocio- na saúde, do modo-de-ser trabalho e do modo-de-ser cuida- nalmente e considera perda de tempo conversar e ouvir a do, respectivamente. pessoa doente ou sua família. Ser bom profissional significa não sentir compaixão e não revelar quaisquer sentimentos. TRAÇANDO PARALELOS ÉTICOS ENTRE O CUIDAR - TRATAR Por cuidar, entende-se o prestar atenção global e con- Por tratar, compreende-se a execução dos procedimentos tinuada a um doente, nunca esquecendo que este é, antes técnicos e especializados, tendo em vista somente a doença de tudo, uma pessoa, um ser único e insubstituível. Assim, e com a finalidade principal de reparar os órgãos doentes a pessoa do doente é o centro da atenção do que cuida e, para se obter a cura. É uma atitude que pensa no doente, por isso, todos os cuidados, sejam físicos, psicológicos ou mas que tende a esquecer a integralidade da pessoa doente espirituais, e não somente os exigidos pela doença em si, in- e suas necessidades. Assim, as necessidades físicas, especial- tegram a assistência. O idoso não é visto como um objeto, mente as relacionadas com a doença, recebem atenção, po- um número, um diagnóstico, um órgão ou um caso a mais, e rém, as necessidades que ultrapassam este âmbito, como as sim como uma pessoa única, singular em uma situação par- Saúde Coletiva 2007;04(17):158-163 161 158a163 - Ética e cuidado ao Idoso.indd 161 9/28/07 11:44:42 AM
  • 6. ética e cuidado ao idoso Zoboli E. Ética do cuidado: uma reflexão sobre o cuidado da pessoa idosa na perspectiva do encontro interpessoal o contrário, esta proximidade práxica deve desvelar o outro “OS CONFLITOS ÉTICOS SÃO PROBLEMAS QUE como o que ele não é no sistema, mas poderia sê-lo por sua ENVOLVEM AS RELAÇÕES HUMANAS. E A VIOLÊNCIA É condição de pessoa digna, chama à liberdade e libertação. E na saúde o outro “não é”, porque luta para sobreviver e DESTRUTIVA PARA TODOS. A PAZ É SIMULTANEAMENTE não goza de saúde por más condições de vida decorrentes MÉTODO E META COMO FRUTO DO CUIDADO DE de inserções sociais injustamente desiguais. A alteridade na TODOS POR TODOS” ação de saúde, deve pois, revelar o rosto do outro alienado, escutar sua voz e tornar-se saída para sua exterioridade, afir- mando, na práxis, a sua prioridade5. SITUANDO A RELAÇÃO ÉTICA ENTRE O CUIDAR-TRATAR E O IDOSO O comportamento do cuidador está relacionado a receber atenção, carinho, a ter paciência, a estar disponível que re- sultam em satisfação e sensação de segurança por parte de quem é cuidado. Os idosos percebem o cuidado como uma conjugação de sentimentos e procedimentos técnicos, sen- do que os primeiros fazem com que estes sejam executados com amor e carinho. Sentindo-se cuidado, o idoso desperta para sentimentos e emoções positivas, recuperando a auto- nomia e retomando a vida1. Conferir centralidade ao cuidado, tomando-o como pro- posta ética, não significa deixar de trabalhar e de intervir, de tentar avanços tecnológicos, de executar rotinas e proce- dimentos, de solicitar exames, de prescrever tratamentos. O desafio de integrar, na saúde, tratar e cuidar é fazer convi- ver as dimensões da produção e da técnica com o cuidado, ticular, que deve ser assistida de maneira individualizada, da efetividade e da eficácia com a solidariedade, gentileza e respeitando-se seus direitos e necessidades. cordialidade. Assim, o profissional de saúde não se preocupa apenas Por meio do toque e de procedimentos executados com com o tratar a doença ou aliviar os sinais e sintomas, embo- destreza, habilidade, delicadeza e gentileza, o profissional ra isso faça parte de sua atenção. Sua presença não é mera- de saúde demonstra o quanto o corpo biológico do idoso é mente física ou profissional, mas de uma pessoa capaz de precioso para ele. Por meio das ações educativas e orien- escutar, entender e acolher, em uma relação de abertura, tações feitas de maneira clara, cordial, leal e dialógica, o compreensão e confiança. Há uma valorização da relação profissional torna familiar o que é estranho e amedrontador, interpessoal, o respeito pelos valores e pela cultura do idoso contribuindo e favorecendo a expressão autonômica do pa- e a participação deste nas decisões que devem ser tomadas. ciente. Com sua presença disponível à escuta e ao acolhi- Cuidar é considerar o outro como um fim em si mesmo e mento, expressa sua preocupação e co-responsabilização não apenas mero meio para fins científicos, técnicos ou institu- pela saúde e melhora do paciente. E escutar é mais atinente cionais. Isto exige sensibilidade às emoções do outro, manifes- ao coração do que aos ouvidos, pois trata de abrir-se cor- tando por este interesse, respeito, atenção, compreensão, con- dialmente, com um sentimento de quem percebe o outro e sideração e afeto, para ser capaz de responder às experiências tenta vê-lo a partir dele mesmo e não a partir dos conceitos específicas de aflição e sofrimento trazidas pelas pessoas que e pré-conceitos, pois só assim captamos a diferença como buscam a atenção dos profissionais de saúde. diferença e não como desigualdade ou inferioridade3. O cuidado representa um compromisso, pois dele decor- Isto significa renunciar à vontade de poder que reduz re o envolvimento. O cuidar é ação. E agir movido pela ética tudo e todos a objetos, desconectados da subjetividade hu- do cuidado inclui afeto, consideração, promoção do bem- mana e ver a criança, o jovem, o adulto, o idoso, enfim, estar do outro1. todo aquele que é assistido como pessoa, como sujeito em Mas, cuidar não é qualquer tipo de ação. É uma ação sua integralidade, pois é pessoa em sua totalidade existen- práxica. Alguém é pessoa só quando está na relação da prá- cial que busca a atenção dos profissionais de saúde. xis. Uma pessoa é pessoa só quando está ante outra pessoa. Significa impor limites à obsessão pela eficácia a qual- Estar frente a frente, pessoa a pessoa constitui relação práti- quer custo, reconhecendo quando se deve parar e tendo hu- ca de proximidade, de vizinhança com as pessoas que reve- mildade para admitir que se pode estar errado ou que não la o outro. Mas, não como ele é dentro do sistema. É justo se sabe. Significa derrubar a barreira da racionalidade fria e 162 Saúde Coletiva 2007;04(17):158-163 158a163 - Ética e cuidado ao Idoso.indd 162 9/28/07 11:44:44 AM