1) O documento é uma monografia apresentada por Bruno Barros Callado ao Instituto de Psicologia da UFRJ sob orientação do professor Alexandre Abranches Jordão, investigando o fenômeno religioso à luz do referencial psicanalítico.
2) A monografia analisa obras de Freud como Totem e Tabu, Sobre a Transitoriedade, Caso de uma Neurose Demoníaca do Séc. XVII e O Futuro de uma Ilusão para compreender as razões pelas quais indivíduos aderem a religiões e os mecanism
1. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
O FENÔMENO RELIGIOSO À LUZ DO
REFERENCIAL PSICANALÍTICO
POR BRUNO BARROS CALLADO
SOB ORIENTAÇÃO DO PROF. DR. ALEXANDRE ABRANCHES JORDÃO
RIO DE JANEIRO
2009
2. O FENÔMENO RELIGIOSO À LUZ DO REFERENCIAL PSICANALÍTICO
BRUNO BARROS CALLADO
Monografia apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
submetida à aprovação ao examinador e orientador:
Prof. Dr. Alexandre Abranches Jordão
DPGE
IP/UFRJ
Nota
Rio de Janeiro/2009
3. ___________________________________________________________________________
CALLADO, B. B.
O fenômeno religioso à luz do referencial psicanalítico/Bruno Barros Callado, sob
orientação do Prof. Dr. Alexandre Abranches Jordão. – Rio de Janeiro: IP/UFRJ, 2009.
41 p. 29 cm.
Monografia apresentada ao Curso de Formação de Psicólogo do Instituto de Psicologia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
1. Psicanálise/Teoria Psicanalítica. I. Ambivalência. II. Onipotência de pensamento. III.
Desamparo. IV. Ilusão. V. Freud. 2. Religião
Inclui bibliografia.
I. JORDÃO, Alexandre A.: orientador.
II. Título.
___________________________________________________________________________
4. CALLADO, B. B. O fenômeno religioso à luz do referencial psicanalítico. Monografia de
fim de curso de Formação de Psicólogo, Instituto de Psicologia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
41 p.
Resumo
O presente trabalho pretende investigar, com base nos escritos de Sigmund Freud, as razões
pelas quais determinados indivíduos aderem a doutrinas religiosas diversas, orientando suas
vidas de acordo com as exigências por elas ditadas. Para tanto, foram consultadas obras
freudianas referentes ao tema, de forma a reproduzir parcialmente o percurso feito por Freud
em sua análise do fenômeno religioso. Este trajeto atesta a relevância da religião para o
desenvolvimento do arcabouço teórico psicanalítico.
Palavras-chave: psicanálise; ambivalência; onipotência de pensamento; desamparo; ilusão;
religião.
5. Abstract
The present work intends to investigate, based on the writings of Sigmund Freud, the reasons
why certain individuals adhere to diverse religious doctrines, orienting their lives according to
the demands dictated by them. Therefore, Freudian books referable to the theme were
consulted, in order to partially cover the path went through by Freud in his analysis of the
religious phenomenon. That course testifies the relevance of religion for the development of
the psychoanalytical theoretical framework.
Key-words: psychoanalysis; ambivalence; omnipotence of thoughts; helplessness; illusion;
religion.
6. Dedico esse trabalho à sociedade que, através do pagamento de impostos,
financiou meus estudos nessa instituição de excelência, que é a
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
7. Agradecimentos
Ao meu orientador e professor Alexandre Abranches Jordão, pelas conversas sempre
instigantes e pela generosidade e paciência que demonstrou ao longo de todo o processo de
confecção deste trabalho.
A meus amados pais, Eliane e Victor, e à minha adorada irmã, Fernanda. Com vocês, aprendi
os valores – honradez, respeito pelos outros, perseverança, temperança... – que fazem de mim
o homem que sou hoje. Obrigado por todo incentivo e pela confiança depositada em mim.
Essa vitória também é de vocês.
À minha esposa Cintya, pela inspiração do tema desta monografia, por suas preciosas
sugestões e críticas e, sobretudo, por todo o apoio e incentivo que me deu em minha trajetória
acadêmica. Obrigado, meu amor, sem você este trabalho não teria sido possível.
Aos meus professores Angélica Bastos, Marta Rezende, Ana Lila e Roberto Belo, que me
introduziram no fascinante universo da psicanálise de Freud e seus seguidores. Agradeço
também aos professores Antônio Geraldo, Amandio Gomes, Pedro Paulo Bicalho, Fernanda
Bruno, Francisco Portugal, Cristine Mattar e Jane Correia, que alargaram o horizonte dos
meus conhecimentos e me ensinaram a problematizar o homem.
Aos meus pacientes, razão de ser da jornada acadêmica que agora se encerra. Se eu puder
ajudar apenas um de vocês, já terá valido a pena.
A todos aqueles que contribuíram, direta ou indiretamente, para que minha trajetória
acadêmica pudesse ser tão proveitosa quanto foi.
8. Sumário
1. Introdução ............................................................................................................................. 9
2. Totem e Tabu (1913) ........................................................................................................... 13
3. Sobre a Transitoriedade (1916) ........................................................................................... 22
4. Caso de uma Neurose Demoníaca do Séc. XVII (1923) ..................................................... 25
5. O Futuro de uma Ilusão (1927) ........................................................................................... 30
6. Conclusão ............................................................................................................................ 37
7. Bibliografia ......................................................................................................................... 40
9. 1. Introdução
O presente trabalho debruça-se sobre o fenômeno religioso a partir do prisma
psicanalítico. Estudar as manifestações religiosas pelo viés da psicanálise foi uma escolha
quase automática, uma vez que tais manifestações sempre despertaram em mim um particular
interesse, e tendo em vista que a psicanálise vem ganhando mais e mais espaço dentro do meu
leque de interesses acadêmicos. Freud foi um pensador instigante, sagaz, intrépido, e tais
atributos me parecem fundamentais àquele que pretende adentrar o arenoso terreno da religião
para, de perto, examiná-la, com o devido rigor. Ao iniciar este estudo, eu tinha claras as
questões às quais pretendia responder ao final do trajeto, a saber: Quais são os ganhos obtidos
por um indivíduo ao se submeter ao rol de exigências de uma determinada religião? A que
tipos de anseio a religião se propõe atender? Quais são os mecanismos inconscientes
envolvidos na adesão do indivíduo a uma certa doutrina religiosa? Penso ter encontrado
respostas satisfatórias para estas questões, bem como para outras que surgiram no decurso do
meu estudo orientado e que julguei relevante buscar responder. É importante ressaltar que este
trabalho não pretende esgotar o tema, mas endereça-se tão somente às questões acima
assinaladas.
Isto posto, passemos à apresentação do trabalho. Tomemos como ponto de partida o
ano de 1906, quando Freud começa a se corresponder com o jovem psiquiatra suíço Carl
Gustav Jung, um contato bastante estimulante para ambos, como se pode comprovar através
das produções dos dois, – tanto contemporâneas ao período de colaboração, que finda em
1913, quanto posteriores a ele. Jung era recém-graduado em medicina e trabalhava no famoso
hospital de Burghölzli, que era dirigido pelo eminente psiquiatra Eugen Bleuler. A
correspondência tem início por iniciativa de Jung, que envia a Freud um exemplar de seu
"Experiências de Associação em Diagnóstico”. Rapidamente se estabelece uma intensa
relação entre eles. As motivações de Freud são assim resumidas por Fine (1981, p. 65):
O que Freud buscava em Jung? Em 1906 ele ainda se sentia terrivelmente isolado.
Parte deste isolamento ele atribuía ao fato de ser judeu, e Jung era um gentio;
parte era atribuída ao fato de estar separado da psiquiatria, e Jung era um
psiquiatra ligado a um hospital. Mas, acima de tudo, seu anseio tinha um tom
particularmente pessoal. [...] Não tarda muito para que Jung seja saudado entre
outras tantas palavras como ‘meu querido filho e sucessor’ [...].
9
10. A partir de então, Freud passa a se dirigir a Jung como a um filho, procurando
posicioná-lo como seu aprendiz e herdeiro, incentivando-o a aplicar a psicanálise em sua
prática clínica com psicóticos – em particular com esquizofrênicos, então chamados dementes
precoces – no Burghölzli. Jung, de sua parte, conforme Renato Mezan (1985, p. 270), não se
mostrava entusiasmado ante a idéia de ser contado como discípulo e propagador de uma teoria
que não era sua: talentoso e ambicioso, pretendia, antes, ser reconhecido por suas próprias
idéias. No entanto, o papel de discípulo convinha a Jung, à medida que a psicanálise serviu de
mola propulsora à sua carreira psiquiátrica.
As teses de Freud pareciam improváveis a Jung, sobretudo a afirmação de que as
neuroses têm sua gênese em fatores de natureza sexual. Para Mezan, interessa a Jung “a
‘psicologia’ freudiana, mas os pressupostos e as conseqüências desta psicologia [...] parecem-
lhe dispensáveis, ou pelo menos não determinantes” (MEZAN, 1985, p. 270). Apesar disto,
Freud prefere relativizar as diferenças que os afastam e acreditar que Jung acabará por se
convencer, tão logo seja capaz de superar suas próprias resistências inconscientes, da
veracidade de seus postulados. O que se segue entre eles é o que Mezan chama “um diálogo
de surdos”:
Quem se debruça sobre a correspondência entre Freud e Jung não pode furtar-se à
singular impressão de que os dois interlocutores falam línguas diferentes, pensam
em comprimentos de onda antagônicos e padecem de surdez crônica. Ao longo
dos sete anos [que durou a correspondência entre eles], cada qual repete
incansavelmente os seus argumentos e procura diminuir a importância dos do
adversário – pois é bem de dois adversários que se trata, apesar das fórmulas de
polidez e dos protestos de elevada estima e consideração que pontilham as cartas.
(MEZAN, 1985, p. 268)
As expectativas de Freud em relação a Jung não se confirmaram, caindo por terra uma
a uma. Jung procurava não se implicar com a teoria sexual de Freud, alegando razões de
ordem pedagógica, com o objetivo de encontrar maior aceitação para a psicanálise. Freud, por
seu turno, mantinha-se firme no tocante às suas teses e admoestava Jung, que, com o tempo,
se afastava mais e mais dele. Em 1908, Freud escreve a Jung dizendo-lhe abertamente que
pretendia que este aplicasse às psicoses o que ele começara com as neuroses. Em vão. No
final daquele mesmo ano, Jung começa a demonstrar interesse por mitologia, campo em que
pretendia se destacar de Freud. Conforme Mezan (1985, p. 285), “em janeiro de 1909, Freud
10
11. ainda se compara a Moisés, cabendo a Jung o papel de Josué; mas este começa a recusar o
papel de filho, [...] anunciando seu interesse pela teologia”. É quando Freud começa a se dar
conta do quanto ele e Jung estão distantes um do outro. Ele chega a expressar, em carta a Jung
que “os jovens são assim mesmo; os únicos lugares que gostam de visitar são aqueles onde
não podemos acompanhá-los, aos quais nossa respiração curta e nossas pernas bambas não
podem segui-los” (Apud. MEZAN, 1985, p. 285).
Freud havia publicado “Atos obsessivos e práticas religiosas” em 1907, estudo em que
apresentava aproximações entre os neuróticos obsessivos e os devotos religiosos, sem,
contudo, reduzir estes àqueles. Dois anos depois, Freud publicou os casos do Pequeno Hans
(“Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”) e do Homem dos Ratos (“Notas sobre
um caso de neurose obsessiva”), ampliando a área de abrangência da psicanálise a novas
entidades patológicas, para além das histerias. Em 1911, quando o desgaste da relação entre
Freud e Jung já era evidente, foi publicado o caso Schreber (“Notas psicanalíticas sobre um
relato autobiográfico de um caso de paranóia”), onde Freud aplicou brilhantemente a
psicanálise às psicoses. O texto autobiográfico de Schreber fora apresentado à Freud por Jung,
que por ocasião desta publicação escreveu: "É duro ter um homem como você como rival"
(Apud FINE, 1981, p. 66).
Naquele mesmo ano, em maio, Jung escreveu a Freud: "O ocultismo é outro campo
que teremos de conquistar [...]. Por favor, não se preocupe com minhas peregrinações nestas
infinitudes. Voltarei carregado de troféus para nosso conhecimento da psique humana" (Apud
FINE, 1981, p. 66). Em setembro, Freud iniciou a redação de “Totem e Tabu”, finalizado em
maio de 1913, período no qual escreveu apenas artigos curtos, tal foi a sua dedicação à
confecção desta obra. De acordo com Mezan (1985, p. 286),
Freud, tendo percebido por onde Jung tratará de escapar à sua influência, começa
a se interessar pelo simbolismo e pela mitologia, isto é, pela esfera da imaginação
coletiva, sobre a qual suas idéias até então haviam sido relativamente pouco
desenvolvidas. É como se, querendo se antecipar a Jung, Freud desejasse
desbravar rapidamente o domínio que este se reservara, interpretando as
formações arcaicas em termos psicanalíticos a fim de impedir que nelas seu
‘herdeiro’ encontrasse apoio para seu modo peculiar de teorização. É este, sem
dúvida, o motivo principal que o conduz a mergulhar nas leituras das quais surgirá
Totem e Tabu.
11
12. Freud tinha ainda grande apreço por Jung, tendo incorrido, inclusive, na inimizade de
alguns psicanalistas por conta de defendê-lo, mas o rompimento entre eles mostrava-se, então,
inevitável. O que permanece do encontro entre ambos, e que se deve ressaltar, são as marcas,
presentes em suas produções, de “uma colaboração que strito senso não ocorreu – visto que
houve [...] mais discordâncias do que anuências – mas que produziu frutos que ainda hoje
conservam seu frescor e nos convidam a provar seu sumo” (JORDÃO & PINHEIRO, 2000, p.
27).
A respeito das contribuições de Jung, a título de finalização, é possível afirmar com
Jordão e Pinheiro (2000, p. 27) que
Freud pôde tirar proveito do colaborador capaz que via em Jung. Se podemos e
devemos discordar das soluções junguianas para os problemas apresentados a
Freud, temos que reconhecer o valor de seus questionamentos, tão pertinentes que,
a partir da produção freudiana para dar conta desses questionamentos, assistimos a
uma incansável revisão dos pontos anteriormente apresentados e a novos
desenvolvimentos ainda adormecidos na mente brilhante de Freud.
Após 1914, quando Jung deixa a presidência da Associação Psicanalítica Internacional
– cargo que ocupava desde a sua criação, em 1910 – e a cisão entre ele e Freud se formaliza,
Freud dá seguimento à sua produção teórica, publicando textos de originalidade e riqueza
singulares. Para os propósitos do presente trabalho, destaco as publicações de “Sobre a
Transitoriedade” (1916), “Caso de uma Neurose Demoníaca do Séc. XVII” (1923) e “O
Futuro de uma Ilusão” (1927), que serão devidamente apresentadas mais à frente. Antes,
porém, cabe avaliar mais detidamente a obra “Totem e Tabu”, a fim de apontar seus principais
postulados e angariar subsídios que nos permitam responder às questões norteadoras deste
estudo e outras que, porventura, surjam.
12
13. 2. Totem e Tabu (1913)
De acordo com Renato Mezan (1985, p. 286), desde o retorno dos Estados Unidos
para as conferências na Clark University, em 1909, o tema da mitologia se mostrou recorrente
nos diálogos entre Freud e Jung. Não demorou muito para que Freud afirmasse a Jung que
“muito provavelmente, a mitologia está centrada no mesmo complexo nuclear que as
neuroses” (Apud MEZAN, 1985, p. 286). É disto que trata Freud em “Totem e Tabu”,
procurando demonstrar que, nos mitos criados pelos povos ditos selvagens, esconde-se “a
sexualidade reprimida, sendo os mitos projeções de conteúdos inconscientes e personificação
das tendências silenciadas” (MEZAN, 1985, p. 287).
“Totem e Tabu” é composta por quatro ensaios e consiste numa tentativa de
reconstrução das origens da religião. Freud escolhe os aborígenes australianos como objeto de
investigação, uma vez que os etnólogos entendiam que estas tribos eram as mais selvagens e
isoladas então conhecidas, “e mesmo assim Freud toma a precaução [...] de afirmar que estes
grupos têm atrás de si uma longa história, sendo por isso errôneo ver em suas crenças e
instituições o marco inicial da civilização” (MEZAN, 1985, p. 320). De fato, veremos que
Freud realizará inferências a respeito do passado desses grupos tribais.
A obra é iniciada com o ensaio “O horror do incesto”, em que Freud afirma que, entre
os aborígenes australianos, “o lugar das instituições religiosas e sociais [...] é ocupado pelo
sistema do totemismo” (FREUD, 1913, p. 21). O próprio Freud define o totem como um
animal – e mais raramente um vegetal ou fenômeno natural – que se liga de maneira particular
a todo o clã: é o antepassado comum e o espírito guardião do clã, que os guia por meio de
oráculos e os protege, e ante o qual observam uma série de obrigações sagradas, como evitar
comer a carne do animal totêmico e celebrar festas para reverenciá-lo. A proibição, no
entanto, que mais chama a atenção nos sistemas totêmicos é a das relações sexuais entre
indivíduos de um mesmo clã, o que Freud denomina de instituição da exogamia. Estes e
outros povos selvagens, escreve Freud, apresentam grande preocupação com a prevenção do
incesto, quiçá porque estejam mais propensos à tentação de cometê-lo do que nós, em nossa
civilização, que podemos contar com “profundas repressões organizadas” (BALOGH, 1974,
p. 81). Este primeiro ensaio evidencia, além da universalidade do complexo de Édipo1, o
significado paterno do totem e a ambivalência frente aos objetos do tabu.
1
Complexo de Édipo é o conjunto de desejos amorosos e hostis experimentados por toda criança
frente aos pais. Diz respeito ao desejo de morte pelo progenitor do mesmo sexo e ao desejo sexual
pelo progenitor do sexo oposto, tal como nos apresenta a tragédia grega de Édipo. Possui grande
13
14. O segundo ensaio da obra intitula-se “O tabu e a ambivalência dos sentimentos”. Nele,
Freud trata das proibições a que se submetem os povos primitivos, podendo estas ser de
ordem moral ou religiosa, como as supracitadas, ou da ordem do tabu. Tabu é uma palavra
polinésia que encerra em si duas idéias centrais, quais sejam: a de sagrado, consagrado,
misterioso, inalcançável; e a de proibido, perigoso, impuro, condenável. De antemão, percebe-
se que o termo é ambivalente, já que significa, simultaneamente, “sagrado” e “impuro”. Os
fundamentos dos tabus podem ser mais ou menos inteligíveis, mas eles são, de todo modo,
naturalmente aceitos e assumidos pelos aborígenes, sob pena, acreditam, de severas punições.
Freud chega a se espantar com o número de proibições a que estão sujeitos estes povos:
“Tudo é proibido, e eles não têm nenhuma idéia por quê e não lhes ocorre levantar a questão.
Pelo contrário, submetem-se às proibições como se fossem coisa natural [...]” (FREUD, 1913,
p. 41).
Freud equipara as proibições dos tabus às dos neuróticos obsessivos, sendo ambas
destituídas de sentido e de origem desconhecida. A ameaça externa de punição não se faz
necessária, à proporção que o indivíduo, tanto num caso como no outro, crê firmemente que a
violação da proibição atrairá desgraças sobre si. A contaminação pelo toque (delire du
toucher ou fobia de contato) é temida em ambos os casos. A proibição de tocar estende-se por
uma ampla gama que vai desde o contato físico direto até o contato por pensamento – as
proibições estão sujeitas ao deslocamento. Freud (1913, p. 48) vai além:
As proibições obsessivas envolvem renúncias e restrições tão extensivas na vida
dos que a elas estão sujeitos como as proibições do tabu, mas algumas podem ser
suspensas se certas ações foram realizadas. A partir daí, essas ações devem ser
realizadas; elas se tornam atos compulsivos ou obsessivos, não podendo haver
dúvida de que são da mesma natureza da expiação, da penitência, das medidas
defensivas e da purificação.
O indivíduo que viola a proibição do tabu torna-se também tabu e deve, à semelhança
do neurótico obsessivo, obedecer a complicados rituais de purificação para que possa
restabelecer suas atividades cotidianas. Os rituais obsessivos podem ser adequadamente
descritos como tabus individuais. Assim, Freud dirá que "as neuroses apresentam fortes
semelhanças com as grandes produções sociais da arte, da religião e da filosofia e, de fato,
importância para a organização da personalidade e para a orientação do desejo do indivíduo
(LAPLANCHE; PONTALIS, 1986. P.116).
14
15. aparecem como caricaturas delas". Mais adiante, vai afirmar que “a neurose obsessiva é uma
caricatura da religião” (Apud BALOGH, 1974, p. 81). Este tópico será retomado
posteriormente para reflexões mais aprofundadas.
De volta aos tabus, Freud afirma que suas proibições (não cometer homicídio e não
praticar o incesto) estão na base da nossa civilização e somente através da coerção das pulsões
é que ela pode se estabelecer. Se os homens dessem livre curso a seus arcaicos e intensos
desejos2, a sociedade se extinguiria e retornaríamos à barbárie. Segundo Mezan (1985, p.326),
“aqui se perfila todo o problema da sublimação3 e do acesso do ser humano à vida social”.
A partir da análise de exemplos particulares, Freud encontra na ambivalência4 dos
sentimentos o fundamento dos tabus. Se, de um lado, os indivíduos acedem à proibição do
tabu, de outro “o desejo de violá-lo persiste no inconsciente; aqueles que obedecem ao tabu
têm uma atitude ambivalente quanto ao que o tabu proíbe” (FREUD, 1913, p. 55). Esta
dinâmica mostra-se particularmente clara na análise dos tabus referentes aos inimigos, em que
estes são objetos de sentimentos ambivalentes: por um lado ódio e, por outro, grande
admiração. Morto o inimigo, extingue-se o ódio e este passa a ser considerado um grande
homem, vindo este sentimento a prevalecer. Os tabus referentes aos mortos remetem aos tabus
frente aos inimigos, uma vez que todos os mortos são inimigos. Aqui, é possível destacar o
mecanismo da projeção. A proibição de pronunciar o nome do morto, por exemplo, pauta-se
na crença de que este ato evocaria a presença do inimigo cheio de sentimentos de vingança
para com ele – já que a morte é vista invariavelmente como resultado da maldade de outrem.
Ora, o desejo de vingança, atribuído ao outro, é a projeção, na consciência, dos impulsos
hostis daquele indivíduo. Por intermédio da projeção, o homem primitivo é capaz de se livrar
de uma parcela significativa da culpabilidade proveniente dos impulsos hostis presentes em
2
É fundamental mantermos em vista que, neste momento, a oposição entre o princípio do prazer e o
princípio de realidade rege a construção teórica de Freud. Por princípio de prazer entende-se a busca
de prazer e a evitação do desprazer que orientam a atividade psíquica de cada indivíduo; já o princípio
de realidade impõe-se como regulador desta atividade, fazendo com que a busca por satisfação possa
ser adiada em conformidade com as exigências da realidade exterior. (LAPLANCHE; PONTALIS,
1986, pp. 466-470).
3
“Freud descreveu como atividades de sublimação principalmente a atividade artística e a
investigação intelectual. Diz-se que a pulsão é sublimada na medida em que é derivada para um novo
alvo não sexual ou em que visa objetos socialmente valorizados” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1986,
p. 638).
4
A ambivalência pode ser entendida como “as ações e os sentimentos que resultam de um conflito
defensivo em que entram em jogo motivações incompatíveis; visto que o que é agradável para um
sistema é desagradável para outro, pode-se qualificar de ambivalente qualquer ‘formação de
compromisso’. [...] A componente positiva e a componente negativa da atitude afetiva estão
simultaneamente presentes, indissolúveis, e constituem uma oposição não dialética, inultrapassável
para o indivíduo que diz ao mesmo tempo que sim e que não” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1986, pp.
50-1).
15
16. seu inconsciente. Freud verá na culpabilidade um germe da consciência, uma consciência-tabu
primordial, sobre a qual discorrerá longamente. Para os nossos propósitos, basta que
entendamos, com Freud, que os primitivos
se acham literalmente perseguidos pela tentação de matar seus reis e sacerdotes,
cometer incestos e maltratar seus mortos [...]. A tendência a matar é, em nós, mais
forte do que cremos, e se manifesta por efeitos psíquicos, mesmo se escapam à
consciência [...]; esta tendência existe realmente no inconsciente, e o tabu, como
mandamento moral, explica-se e se justifica por uma atitude ambivalente quanto
ao impulso homicida (Apud MEZAN, 1985, p. 328).
Já na análise dos tabus referentes aos chefes, observa-se que as obrigações visam
menos a proteção dos indivíduos frente à suposta extraordinária força mágica do chefe do que
a proteção deste contra a hostilidade latente de seus súditos. O fundamento desta atitude hostil
reside na inveja pelas honrarias a que os chefes tem direito. Na prática, ocorre que o chefe se
vê forçado a realizar uma enorme quantidade de atos sob o pretexto de proteger os súditos de
seus poderes, fazendo a realeza parecer, desse modo, menos atraente. É fácil estabelecer
paralelos entre as realidades aqui expressas e as formas religiosas que abundam em nossa
cultura hoje.
Ao fim do segundo ensaio, Freud retoma aquilo que havia apenas apontado no ensaio
precedente, a fim de aclará-lo: a hipótese de que os selvagens estivessem mais inclinados a
dar vazão a seus impulsos hostis do que nós, ditos civilizados. Isto se deve, de acordo com
ele, à carência de mecanismos de repressão interna como aquele com o qual contamos, diga-
se, o superego ou a “instância [...] de representação da autoridade coletiva” (MEZAN, 1985,
p. 328). Nos grupos primitivos, a própria sociedade se encarrega de punir aqueles que
infringem os tabus, descarregando sobre eles sua agressividade e realizando, indiretamente,
aquilo que o tabu proíbe. Partindo de um ponto de vista evolucionista, Freud sugere a
probabilidade de que
os impulsos psíquicos dos povos primitivos fossem caracterizados por uma
quantidade maior de ambivalência que a que se pode encontrar no homem
moderno civilizado. É de supor-se que como essa ambivalência diminuiu, o tabu
(sintoma da ambivalência e um acordo entre os dois impulsos conflitantes)
lentamente desapareceu. Dos neuróticos, que são obrigados a reproduzir o conflito
16
17. e o tabu dele resultante, pode-se dizer que herdaram uma constituição arcaica
como vestígio atavístico [herdado de gerações antigas]. (FREUD, 1913, p. 88)
Freud chega a estas conclusões a partir das considerações de Wilhelm Wundt sobre
ambivalência inerente às relações dos vivos com os mortos, expressas especialmente em mitos
demoníacos. Aos demônios eram atribuídas atividades majoritariamente maléficas e,
historicamente, desta mesma raiz, surgiram dois esquemas psíquicos completamente
antagônicos: o medo de demônios e fantasmas, e a admiração pelos ancestrais. Os demônios
eram sempre encarados como espíritos recentemente desencarnados, donde Freud conclui pela
importância do luto na origem da crença em demônios. “O luto tem uma missão psíquica
muito específica a efetuar; sua função é desligar dos mortos as lembranças e as esperanças dos
sobreviventes” (FREUD, 1913, p. 87). Isto ocorrendo, dá-se a diminuição das autocensuras e,
conseqüentemente, do medo dos demônios, passando estes a serem considerados ancestrais,
com os quais se pode, agora, contar e aos quais evocam amistosamente. Com o transcurso do
tempo, percebe-se, conforme Freud, uma diminuição da ambivalência, de forma que a
hostilidade contra os mortos é mantida inconsciente sem maiores gastos de energia psíquica:
onde antes opunham-se ódio e afeto, vê-se hoje a piedade. Nos neuróticos, no entanto, as
autocensuras permanecem, como vimos, como resquícios herdados.
A terceira parte de "Totem e Tabu" recebeu o título de “Animismo, magia e
onipotência de pensamentos”. Nela, “Freud foi capaz de traçar uma correlação direta entre a
crença primitiva na mágica e as fantasias neuróticas e a vida mental das crianças pequenas”
(BALOGH, 1974, p. 82). Inicialmente, Freud define o animismo como “um sistema
psicológico de interpretação do mundo, o primeiro elaborado pela humanidade” (MEZAN,
1985, p. 330). Segundo este sistema, todos os componentes da natureza (minerais, vegetais,
animais, fenômenos naturais e o próprio homem) são habitados por seres espirituais que lhes
conferem vida. No homem, a alma seria capaz de se destacar do corpo e reencarnar. Freud
chamará de magia o conjunto das técnicas existentes capazes de influenciar estes espíritos,
conforme as necessidades dos homens. Assim, acreditava-se que desenhar um bisão na parede
da caverna favorecia a sua captura, ou que um feitiço lançado sobre os pertences de alguém
atingiria a esta pessoa. À forte crença de que os desejos se realizam por si mesmos Freud
chamou de onipotência das idéias.
17
18. Ao investigar a origem da onipotência de idéias observada entre os primitivos, Freud é
levado a estabelecer um paralelo entre esta e o narcisismo5, momento em que os atos
psíquicos são sobrevalorizados. No campo das psicopatologias, a neurose obsessiva fornece
um interessante paralelo, na medida em que o obsessivo crê firmemente que seus desejos
homicidas se realizarão por si próprios, razão pela qual ele se cerca de excessivos cuidados.
Para Freud, o animismo, a religião e a ciência correspondem a fases no processo
evolutivo de explicação do mundo pelo pensamento humano. A estas fases, Freud equipara as
fases do desenvolvimento psicossexual: narcísica, edipiana e da maturidade, respectivamente.
Mezan (1985, p. 331) afirma, ao analisar o primeiro grau desta escala (a etapa narcisista), que
ela “está numa relação de causalidade frente à etapa animista, que simplesmente transpõe para
todo o Universo a crença infantil na onipotência do pensamento”. Se inicialmente Freud
definiu a magia como a técnica do animismo, posteriormente ele reforma esta assertiva,
defendendo que, historicamente, a magia precede o animismo, ao passo em que, naquela, se
crê que os atos mágicos controlam os fenômenos naturais, enquanto que nesta uma parcela da
onipotência é projetada sobre os espíritos. Desse modo, teríamos o seguinte esquema de
coisas: 1) o conflito afetivo (ambivalência) diante da morte, de acordo com Freud (Apud
MEZAN, 1985, p. 333), “impulsiona os homens a refletir e a investigar”; 2) a ambivalência
impõe a necessidade de renúncia ao desejo, fazendo com que o homem abra mão de parte de
sua onipotência, projetando sua agressividade sobre espíritos, passando, dessa maneira, da
magia ao animismo, conforme redefinidos por Freud; 3) o animismo ultrapassa, então, a
esfera intrapsíquica e se cristaliza na vida social, sob a forma de instituições “que, juntamente
com as demais instituições sociais [...] determinam as ações da comunidade considerada”
(MEZAN, 1985, p. 333). Com o advento da linguagem, a vida interior do indivíduo é
instaurada e a escala evolutiva de que tratamos segue seu curso.
A partir do exposto e tendo em vista nossos objetivos, importa destacar que Freud
posiciona a ambivalência na origem não só das primeiras criações teóricas do homem, como
também das primeiras restrições morais, da crença nos espíritos e dos tabus. Além disto, é
digno de nota que, para Freud, o selvagem se encontra próximo da criança e do neurótico,
sem, com eles, se confundir. Na verdade, esta aproximação era aventada já no segundo ensaio,
quando veio à baila o tema do tabu, e Freud afirmava que o homem primitivo tinha no
5
Freud distingue entre um narcisismo primário e um secundário. Segundo Laplanche (1986, pp. 368-
9), “em Freud, o narcisismo primário é de um modo geral o primeiro narcisismo, o da criança que
toma a si mesma como objeto de amor, antes de escolher objetos exteriores. Esse estado
corresponderia à crença da criança na onipotência dos seus pensamentos”. Já o narcisismo secundário
é entendido como “um retorno ao ego da libido retirada de seus investimentos objetais”.
18
19. homicídio e no incesto os dois prazeres mais antigos (referência à infância) e intensos
(referência à neurose) com os quais tinha de se haver.
A quarta parte da obra recebeu o título de “O retorno infantil do totemismo”. Nela,
Freud procura retomar as questões tratadas nos capítulos anteriores e deixadas estanques umas
das outras, como o totemismo e sua origem, a lei da exogamia, a ambivalência dos
sentimentos e os tabus que dela emergem, a importância da projeção etc. De acordo com
Mezan (1985, p. 337), Freud redigiu este capítulo apoiado sobre “dois pilares: a psicologia do
inconsciente [...] e o testemunho de historiadores e etnólogos”. É a partir destes parâmetros
que Freud tenta solucionar as questões que se lhe colocam.
Freud passa em revista as teorias que tentam dar conta do fenômeno do totemismo,
dividindo-as em três categorias: 1) teorias nominalistas (segundo as quais o totem foi
inicialmente uma denominação, a qual se associou uma espécie animal); 2) teorias
sociológicas (para as quais o totem possui uma função social); 3) teorias psicológicas (que
entendem o totem como a alma de um ancestral). Nenhuma das teorias parece satisfatória a
Freud, para quem “só a psicanálise projeta alguma luz sobre estas trevas” (Apud MEZAN,
1985, p. 338). No que diz respeito à exogamia, basta, para nossos fins, apontar que ela é
diversa do totemismo em gênese (sendo-lhe posterior) e natureza, embora apareçam
associadas em muitas culturas primitivas.
Uma tentativa em particular de responder à questão da origem do totemismo, no
entanto, chamou a atenção de Freud: a do naturalista inglês Charles Darwin. Freud adotou,
então, como ponto de partida para a elaboração de “seu mito científico” (MEZAN, 1985, p.
339), a hipótese de Darwin segundo a qual os homens primitivos viviam em pequenas hordas,
como os macacos superiores, com um macho dominante e diversas fêmeas. Este macho
poderoso afastava os mais fracos, privando-os da satisfação sexual. Para Atkinson, estudioso a
quem Freud recorre, esta proibição deve ter afetado especialmente os jovens do sexo
masculino. Estes, eventualmente encontravam companheiras e estabeleciam novas hordas,
onde o mesmo princípio era imposto, de forma a resguardar o novo líder.
O mito pensado por Freud pode ser assim descrito:
Um dia, os filhos da horda primitiva rebelaram-se contra o pai. Mataram-no e
comeram seu cadáver. Após o assassinato, renegaram sua má ação e, em seguida,
inventaram uma nova ordem social, através da renúncia à posse das mulheres da
tribo (exogamia) e da proibição do assassinato do substituto do pai (totem). Desse
modo – com proibição do incesto (interdição à posse das mulheres da tribo) e
19
20. proibição de matar o pai (o pai-totem) – estariam fundadas religião, a organização
social e as restrições morais”. (DAVID, 2003, p. 38)
Para Freud, nada há de ousado em propor, a esta altura, a substituição do animal
totêmico pelo pai, já que os próprios selvagens referem-se ao totem “como sendo seu
ancestral comum ou pai primevo” (FREUD, 1913, p. 159). Se o totem é o pai, diz Freud, as
proibições de cometer assassinato e incesto correspondem às proibições do Édipo (matar o pai
e casar-se com a mãe). Desse modo, os desejos primários das crianças e os dos primitivos
coincidem. Freud recruta argumentos, ainda, recorrendo ao pensador William Robertson
Smith, que aventara a hipótese da refeição totêmica como parte integrante do totemismo
“desde o princípio” (FREUD, 1913, p. 159). A citada refeição é apresentada como uma
celebração, da qual participavam todos os integrantes do clã (todos deveriam comer a carne
do animal abatido, de modo a dividir a responsabilidade pela sua morte) e na qual o animal
totêmico era solenemente sacrificado, pranteado, festejado e devorado. A proposta de Freud é
a de que “adotemos a hipótese de Robertson Smith de que a matança sacramental e a ingestão
comunal do totem animal, cujo consumo era proibido em todas as outras ocasiões, constituía
uma característica importante da religião totêmica” (FREUD, 1913, pp. 167-8). Para Balogh
(1974, p. 82),
desta maneira, o assassinato original é repetido, seguido primeiramente pelo pesar
e depois pela alegria. Assim, a comunidade permanente, através das experiências
individuais e grupais, continuamente absorve e reabsorve as virtudes do grande
ancestral. Após milhares de anos, o totem transforma-se num deus e a história da
religião começa.
A partir daí, podemos retornar aos tabus descritos no segundo ensaio, os quais dizem
respeito aos inimigos, aos mortos e aos chefes, para revê-los por um outro ângulo: o
personagem que reúne em si todas estas características (“inimigo”, “morto”, “chefe”) é o líder
da horda primitiva. Cada um destes tabus representam, na verdade, “diferentes encarnações de
um personagem onipotente, cuja força e cuja vingança são temidas pelos outros” (MEZAN,
1985, p. 327).
Quase ao fim da obra, Freud afirma que “as origens da religião, da moralidade, da vida
social e da arte encontram-se no complexo de Édipo" (FREUD, 1913, p. 185). Por esta
asserção, podemos entender que a culpa resultante dos desejos de morte podem ter ensejado o
desenvolvimento de nossa vida em sociedade, dado que, no inconsciente infantil, desejo e ato
20
21. fazem parte de um mesmo continuum. Daí a frase lapidar de Freud: "No princípio foi o ato”
(FREUD, 1913, p. 191).
O ápice de “Totem e Tabu” é, indubitavelmente, o posicionamento da ambivalência e
da culpa (em outras palavras, do Édipo) nas origens da civilização em geral, e da religião em
particular. Para Freud, a ambivalência moveu o homem no sentido das suas maiores criações e
conquistas, dentre as quais figuram a religião e a moralidade.
“Totem e Tabu” é considerada uma das obras capitais de Freud. A seu respeito, ele
próprio escreveu que talvez se tratasse de seu maior e último bom trabalho (Apud BALOGH,
1974, p. 81). Apesar de os especialistas identificarem erros e interpretações equivocadas na
obra, seu valor é inegável, em especial se mantivermos em mente que se trata de uma
tentativa de reconstrução das origens da religião – e que é como tentativa que ela deve ser
avaliada –, e que, apesar de se valer de dados etnológicos, o texto é, fundamentalmente,
psicanalítico.
Com “Totem e Tabu”, as questões norteadoras do presente estudo começam a ser
esclarecidas. Se antes nos pareciam excessivas as restrições impostas aos adeptos de uma
determinada religião, agora entendemos que os ganhos são também muitos: amparo diante das
incertezas e perigos da vida, respostas para questões inquietantes, compensação para os
sofrimentos derivados de nossa vida em sociedade, direcionamento para a ambivalência e para
a culpa dela decorrente. Nossas questões, no entanto, permanecem abertas ao aprofundamento
e à revisão, conforme avançamos no estudo da teoria de Freud.
21
22. 3. Sobre a Transitoriedade (1916)
O ensaio “Sobre a Transitoriedade” foi escrito em novembro de 1915 e remete ao
verão de 1913, quando, caminhando pelo campo na companhia de dois amigos –
possivelmente o poeta Rainer Maria Rilke e a intelectual Lou Andreas-Salomé –, Freud se viu
em meio a um debate sobre o valor das coisas igualmente belas e efêmeras. Naquela
circunstância, o poeta contemplava a beleza da natureza que os circundava, mas o fazia
perturbado pelo pensamento de que as maravilhas que ora admirava sucumbiriam com a
chegada do inverno. Não só a natureza com que deparava estava sujeita à extinção, pensava o
poeta, mas também a beleza do homem e de suas criações. “Tudo aquilo que, em outra
circunstância, ele teria amado e admirado”, afirmou Freud (1916, p. 345), “pareceu-lhe
despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade”.
Diante da tendência à evanescência, Freud enxerga duas saídas possíveis: a
melancolia, tal como a experimentada pelo poeta, ou a combatividade. De um ou outro modo,
se crê que a beleza será capaz de permanecer, escapando à aniquilação. “Mas essa exigência
de imortalidade [isto é, de permanência]”, aponta-nos Freud (1916, p. 345), “por ser tão
obviamente um produto dos nossos desejos, não pode reivindicar seu direito à realidade; o
que é penoso pode, não obstante, ser verdadeiro”. A transitoriedade das coisas, portanto, não é
o objeto da discussão empreendida por Freud junto a seus amigos, mas o pessimismo de que é
tomado aquele que atrela a efemeridade do belo a uma perda de seu valor. Ao que Freud
exclama com veemência: “Pelo contrário, implica um aumento! O valor da transitoriedade é o
valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa
fruição” (FREUD, 1916, p. 345). Para ele, a natureza pode ser considerada eterna na medida
em que ela ressurge, a cada verão, com todo o seu vigor. Além disso, é de se ter em conta que
“se o valor de toda essa beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para
nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da
duração absoluta” (FREUD, 1916, p. 346).
Visto que as considerações supracitadas não lograram convencer seus interlocutores,
Freud é levado a inferir pela interveniência de um fator emocional que lhes afetasse o
entendimento. Trata-se, de acordo com Freud, de uma antecipação do luto pela perda da
beleza:
O que lhes estragou a fruição da beleza deve ter sido uma revolta em suas mentes
contra o luto. A idéia de que toda essa beleza era transitória comunicou a esses
22
23. dois espíritos sensíveis uma antecipação de luto pela morte dessa mesma beleza;
e, como a mente instintivamente recua de algo que é penoso, sentiram que em sua
fruição de beleza interferiam pensamentos sobre sua transitoriedade (FREUD,
1916, p. 346).
Freud dirá que permanece um enigma a razão pela qual o desligamento de nossos
afetos de determinados objetos configura-se tão penoso. Afirmará apenas que “a libido se
apega a seus objetos e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando um substituto se
acha bem à mão. Assim é o luto” (FREUD, 1916, p. 347).
Em seguida, Freud narra o irrompimento da Primeira Guerra Mundial, evento que
varreu do mundo parte de sua beleza, fossem elas naturais, fossem produtos da criação
humana. O conflito, na análise de Freud (1916, p. 347), “revelou nossos instintos em toda a
sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados
para sempre, por séculos de ininterrupta educação”. O orgulho ostentado pelos feitos da
civilização fora arrasado.
O nacionalismo emergirá deste quadro como um apego da libido à pátria enquanto um
dos poucos objetos de que não havia sido privado o povo, e que os unia em torno de algo
comum. O que se perdeu, reafirma Freud, deixou de ter valor apenas para aqueles que
vivenciavam, ainda, o luto. Apesar do grande sofrimento que pode experimentar um indivíduo
em luto, este chega a um fim naturalmente e, liberado aquele afeto para se ligar a um outro
objeto, o indivíduo é capaz de perceber que aquilo que se perdeu não tem, por isso, menos
valor.
O luto e a melancolia frente à inevitável evanescência da natureza e do homem são a
tônica deste ensaio. A religião, assunto de que tratamos neste trabalho, procura oferecer ao
homem uma opção de como se colocar diante da transitoriedade da vida. Propõe a existência
de um ser que tem sob seu controle todas as coisas, inclusive a natureza e a sua efemeridade, e
traz consigo a promessa de uma existência futura livre de necessidades de qualquer ordem,
onde a aniquilação não mais poderá tocar o homem. O “desejo de permanência” de que fala
Freud, que freqüentemente conduz o indivíduo ao luto antecipatório, pode, em outros casos,
levá-lo ao franco alinhamento com os ditames da religião. Em outras palavras, o luto e a
melancolia são expressões do desamparo do homem, ao qual se dirige a religião a fim de lhe
conceder um sentido e uma resolução, ainda que frágil.
23
24. Apontadas as contribuições de “Sobre a Transitoriedade” para os nossos propósitos,
avancemos na obra de Freud, em busca de um esclarecimento mais amplo para nossas
questões centrais.
24
25. 4. Caso de uma Neurose Demoníaca do Séc. XVII (1923)
No ensaio “Uma neurose demoníaca do século XVII”, Freud investiga, pela
perspectiva da psicanálise, a história de um pintor bávaro chamado Christoph Haizmann, que,
segundo consta – Freud baseou sua escrita em manuscritos da época, aos quais teve acesso –,
estabelecera com o diabo um pacto. Possessões demoníacas e êxtases religiosos eram típicos
daquele período histórico – assim como a hipocondria e as somatizações eram recorrentes no
início do século XX, quando atuou Freud –, e correspondiam às neuroses. Em “Totem e
Tabu”, os demônios nos foram apresentados como projeções de entidades mentais para o
mundo externo; no atual ensaio, Freud os aborda mais propriamente como produtos da vida
interna do indivíduo, dirigindo para este ponto sua atenção.
Em setembro de 1677, Christoph Haizmann chegou ao santuário de Mariazell, na
Áustria, trazendo consigo uma carta de apresentação do pároco da aldeia onde habitava. A
carta declara que, em agosto daquele ano, Christoph se encontrava na igreja da aldeia quando
sofreu fortes convulsões, que tornaram a ocorrer nos dias seguintes. Questionado a este
respeito, o homem assumiu que havia estabelecido com o Demônio um pacto. Este contrato
fora assinado havia nove anos, após Christoph haver sido tentado nove vezes, e atestava que
ele pertenceria de corpo e alma ao maligno após o transcurso de nove anos, prazo este que,
agora, achava-se próximo de expirar. (Freud verá no aparecimento recorrente do número nove
uma referência inequívoca à gestação e tecerá considerações a este respeito que não nos cabe
retomar). Tal pacto, escrito com sangue, fora motivado pelo pessimismo do pintor diante da
vida e pelas dúvidas que o atormentavam, no tocante a seu próprio sustento a partir de seu
trabalho como artista. Acometido pelas convulsões, o homem mostrou-se, então, arrependido,
e o padre da aldeia, compadecido, o recomendou à Mariazell.
Antes de prosseguirmos, um adendo: os documentos de que dispôs Freud foram cinco,
a saber, a citada carta de apresentação do padre da aldeia; o relatório dos padres de Mariazell,
em especial um, que procura atestar a cura milagrosa ocorrida no santuário; o diário do pintor,
que dá conta do período de um ano subseqüente ao suposto milagre; pinturas de Christoph,
ilustrando cenas diversas, como a assinatura do pacto, a redenção em Mariazell e aparições do
Demônio; e o prefácio do editor. Freud contrastou estas fontes e observou discrepâncias que
julgou dignas de investigação. Veremos, mais adiante, a reconstrução dos eventos
empreendida por Freud.
Dando seguimento à história, Christoph permaneceu em Mariazell em oração e
penitência, até que, no dia da Natividade da Virgem, teria sido visitado pelo Maligno, que lhe
25
26. entregou o documento assinado em sangue, desobrigando-o. Após o pretenso milagre,
Christoph deixou o santuário e viveu em Viena com a irmã até outubro, quando passou a
apresentar novamente as graves crises convulsivas, acompanhadas de visões e sintomas
conversivos, como a paralisia das pernas. Experimentava tormentos terríveis, inflingidos não
pelo Demônio, mas, desta vez, pelas figuras de Cristo e da Virgem Maria. Em todo caso,
atribuía estas manifestações ao “Espírito Mau” (FREUD, 1923, p. 93). De volta à Mariazell, o
pintor disse aos padres que precisava solicitar ao Maligno a devolução de um outro
compromisso, assinado à tinta e anterior àquele assinado com sangue. Reintegrado ao
santuário, orou, recebeu de volta o acordo assinado e, sentindo-se livre da obrigação
assumida, tomou parte na Ordem dos Irmãos Hospitalários.
Neste ponto do ensaio, Freud começa a tecer suas considerações. Que razões teriam
levado o jovem Haizmann a compactuar com o Demônio? Sabemos que sua motivação está
ligada a seu desalento, às dificuldades relacionadas à sua prática profissional e às incertezas
diante do futuro – para Freud trata-se, portanto, de um caso de depressão melancólica. Os
manuscritos permitiram a Freud concluir que a melancolia apresentada pelo rapaz devia-se ao
recente falecimento de seu pai, o que lhe entristecera profundamente, afetando seu trabalho.
Freud resume:
Temos aqui, portanto, uma pessoa que assinou um compromisso com o Diabo, a
fim de ser libertado de um estado de depressão. Um motivo excelente,
indubitavelmente, como concordará quem quer que possa ter um senso
compreensivo dos tormentos de tal estado e que saiba bem quão pouco os
remédios podem fazer para aliviar essa enfermidade (FREUD, 1923, p. 97).
O conteúdo dos dois compromissos é igualmente avaliado por Freud, fornecendo-lhe
novos elementos e permitindo-lhe a reconstrução do pacto, firmado nos seguintes termos:
O Demônio compromete-se a substituir o pai perdido pelo pintor durante nove
anos. Ao final desse tempo, o pintor se torna propriedade, em corpo e alma, do
Demônio, como era o costume usual em tais barganhas. A seqüência de
pensamento que motivou o pintor a fazer o pacto parece ter sido esta: a morte do
pai o fizera perder sua disposição de ânimo e capacidade de trabalhar; se pudesse
conseguir um substituto paterno, poderia esperar reconquistar o que perdera
(FREUD, 1923, p. 98)
26
27. Outra questão, porém, se coloca: se Christoph amava seu pai, como é de se supor,
como pôde aceitar o Demônio como substituto dele? Vimos em “Totem e Tabu” que Deus é
um substituto do pai tal como ele é experimentado pelos indivíduos em sua própria infância, e
pela humanidade em seus primórdios. Vimos também que a relação entre filhos e pai é
permeada por uma ambivalência, em que impulsos hostis e amorosos – o anseio pelo pai e o
medo dele – se opõem. Sabemos, por fim, que o Demônio, de acordo com a crença cristã,
compartilha da mesma natureza que Deus, embora represente a antítese dele. Remotamente,
podemos observar a incidência destes aspectos antitéticos em uma mesma figura divina, como
ocorre, a título de exemplificação, com o deus dos judeus, apresentado na Torá como justo,
porém irado e ciumento, capaz de enviar tempestades devastadoras (Gn 7ss)6, destruir cidades
inteiras (Gn 19ss) e assolar com terríveis pragas (Ex 7, 14ss)7 aqueles que não lhe prestassem
obediência. A este respeito, Ribeiro (1999, p. 42) afirma que “o Deus dos antigos era sagrado
e congregava todas as coisas, todos os aspectos – elevados ou profanos. Era a junção destes
dois aspectos que caracterizava o sagrado”.
Destes dados podemos postular com Freud que
Se o Deus benevolente e justo é um substituto do pai, não é de admirar que
também sua atitude hostil para com o pai, que é uma atitude de odiá-lo, temê-lo e
fazer queixas contra ele, ganhe expressão na criação de Satã. Assim, o pai,
segundo parece, é o protótipo individual tanto de Deus quanto do Demônio
(FREUD, 1923, p. 102).
Quanto maior a ambivalência apresentada pelo indivíduo, segundo Freud, maiores as
chances do luto se tornar melancolia, como no caso do jovem Haizmann.
Freud acredita que a história dos dois contratos surgiu para dar conta da nova
necessidade de redenção sentida por Christoph, após a sua primeira estada em Mariazell.
Visto que precisaria justificar o seu retorno ao santuário, teria inventado a assinatura de um
contrato à tinta, anterior ao assinado com sangue. Garantida sua volta, Christoph afirmou ter
recebido de volta também o primeiro contrato e conhecemos o curso ulterior dos
acontecimentos. O rapaz, no entanto, acabou traído por “uma amostra de honestidade não
intencional”8 (FREUD, 1923, p. 112) em sua tentativa de encobrir suas simulações, deixando
6
Livro do Gênesis. In: BÍBLIA SAGRADA. 159ª ed. São Paulo: Ave-Maria, 2004.
7
Livro do Êxodo. In: BÍBLIA SAGRADA. 159ª Ed. São Paulo: Ave-Maria, 2004.
8
Referência aos atos falhos ou falhados. Estes são atos em que “o resultado explicitamente visado não
é atingido, antes se acha substituído por outro”. Trata-se de “comportamentos em que o indivíduo é
27
28. pistas – erros na datação dos documentos, por exemplo – de que se valeu Freud em seu
trabalho de elucidação. O jovem Haizmann, tendo produzido o contrato que afirmara haver
recebido do Diabo, precisou assim proceder de forma a dar livre curso à sua fantasia
neurótica.
Por fim, Freud analisa a decisão do jovem de voltar ao santuário e, em última análise,
de entrar para a vida religiosa, como uma busca de auxílio junto ao clero. Desta forma, suas
necessidades materiais foram-lhe garantidas e desapareceram as dúvidas que lhe
atormentavam. Na verdade, o jovem, em seu desamparo, buscava sentir-se seguro, procurando
proteção junto ao Demônio às custas de sua salvação e, posteriormente, junto ao clero, às
custas de sua liberdade. Haizmann é definido por Freud (1923, p. 119) como “um daqueles
tipos de pessoas que são conhecidas como ‘bebês eternos’ - incapazes de arrancar-se do
estado beatífico no seio da mãe e que, por toda a vida, persistem na exigência de serem
nutridos por alguém”. Atestam a conclusão de Freud dois eventos em particular: a primeira
visão de Christoph em que o Diabo, na figura de um cidadão irrepreensível, lhe pergunta o
que fará de sua vida, já que não possui ninguém que zele por ele; e uma visão singular, em
que o jovem observa um eremita sendo alimentado por anjos. “Podemos ver qual a tentação
que as piedosas visões ofereciam ao pintor: destinavam-se a induzi-lo a adotar um modo de
existência em que não mais necessitaria preocupar-se com a subsistência” (FREUD, 1923, p.
118).
Freud sustenta não se tratar de um embuste por parte do artista, mas de um estado
clínico, em que a simulação aparece submetida à neurose, servindo aos seus propósitos.
Vimos nas obras precedentes que a religião concede ao indivíduo amparo, proteção,
afeto – aspectos que o atual ensaio novamente sublinha. Importa-nos, neste ponto de nosso
estudo, destacar um dado que não é novo, mas que até aqui não recebeu o devido vulto: a
importância, para o indivíduo, de ser acolhimento no seio de uma comunidade religiosa.
Embora nem todos os indivíduos tomem parte da vida religiosa tal como o jovem Heinzmann,
a religião freqüentemente oferece ao homem um sentimento de agregação, de pertencimento,
de suporte por uma comunidade. Dado que vivemos tempos em que o individualismo grassa e
os laços que ligam indivíduos são voláteis9, é especialmente reconfortante para o homem se
habitualmente capaz de obter êxito, e cujo fracasso é tentado a atribuir apenas à sua falta de atenção ou
ao acaso. Freud demonstrou que os atos falhos eram, tal como os sintomas, formações de
compromisso entre a intenção consciente do indivíduo e o recalcado [conteúdo inconsciente]”
(LAPLANCHE; PONTALIS, 1986, p. 32).
9
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2001) adota a metáfora do líquido para se referir à
volatilidade dos vínculos sociais em nossos tempos. Para ele, a pós-modernidade é marcada pelos
28
29. ver envolvido por uma rede de solidariedade, de ajuda mútua. As pastorais da igreja católica e
a ação dos obreiros das igrejas protestantes são exemplos destas redes de acolhimento e
assistência. Portanto, os ganhos obtidos com a religião estendem-se para além do espectro
intrapsíquico, alcançando o âmbito das relações interpessoais. Este dado é sobremaneira
relevante para o esclarecimento de nossas questões iniciais.
Explicitadas as contribuições deste ensaio, vejamos o que “O Futuro de uma Ilusão”
nos poderá oferecer.
desejos ambivalentes de estreitar os laços sociais e, ao mesmo tempo, mantê-los frouxos. Num mundo
repleto de sinais desencontrados, propenso a mudar com rapidez e de maneira imprevisível, os
indivíduos passam a preferir os relacionamentos em redes, que podem ser tecidos e dissolvidos com
grande facilidade. Segundo Bauman, como conseqüência desta flexibilização das relações sociais,
níveis de insegurança cada vez maiores acometem o homem nos dias de hoje.
29
30. 5. O Futuro de uma Ilusão (1927)
Em 1927, Freud retorna ao tema religioso, para abordá-lo de maneira diferenciada. Se
em “Totem e Tabu” Freud examinou as origens da religião, em “O Futuro de uma Ilusão” ele
vai
explicar o que é uma ilusão, por que a religião é uma ilusão, por que a psicanálise
se contrapõe às explicações religiosas e por que ela pode oferecer um caminho de
superação do infantilismo que compele o homem a criar deuses à imagem e
semelhança de seus pais. É nesse livro que Freud vem mostrar a natureza
grandiosa da religião e o que ela se propõe a fazer pelos seres humanos (DAVID,
2003, p. 39).
O ponto de partida de Freud nesta obra é a observação de que os homens trazem em si
tendências destrutivas, anti-sociais e anti-culturais, que precisam ser interditadas em favor da
civilização. Esta é alcançada por meio da coerção instintual, por um lado, e da recompensa
pelos sacrifícios feitos em favor da coletividade, por outro. A transgressão destes
regulamentos promoveria “um estado de natureza” (FREUD, 1927, p. 24) insustentável, que
inevitavelmente destruiria aos homens. É precisamente por esta razão que eles criaram a
civilização: para se defender dos perigos desta natureza e possibilitar a vida em sociedade.
Esta função é cumprida satisfatoriamente pela civilização, embora, de tempos em
tempos, a natureza se levante poderosamente contra o homem – através dos fenômenos
naturais, das moléstias e da morte –, lembrando-o da condição de desamparo à qual procurava
escapar. A vida civilizada prescreve ao homem uma ampla gama de privações e, soma-se a
isto, os sofrimentos que os outros lhe impõe. Diante disto, o homem reage criando resistências
e hostilidades, mas frente à natureza, ao “Destino”, pergunta-se Freud, como se defender?
Freud atesta que a civilização toma para si as tarefas de oferecer consolo, despojar a
natureza de seus terrores e satisfazer a curiosidade prática do homem. A humanização da
natureza representou um primeiro passo nesse sentido. Ao atribuir alma aos elementos da
natureza (animismo), o homem a aproxima de si, abrindo a possibilidade para tentar
influenciá-la (práticas mágicas). Passamos, assim, de uma condição de temor à natureza para
outra, em que podemos contar com ela para nos favorecer. Consoante Freud, esta situação
possui um protótipo infantil e filogenético: em nossa própria infância, bem como na infância
da raça humana, nos encontrávamos desamparados, temerosos de nossos pais, mas, ainda
30
31. assim, podíamos contar com sua proteção. De maneira análoga, o homem não só se aproxima
das forças da natureza, associando-se a elas, mas também lhes confere o status de um pai e,
em última análise, de deuses.
Com o tempo, a partir da observação da regularidade de seus fenômenos, a natureza
perdeu seus aspectos humanos, permanecendo, contudo, o desamparo e o anseio pelo pai e
pelos deuses. “Estes mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar
os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e
compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs”
(FREUD, 1927, p. 26). Nisto consiste o valor das idéias religiosas: possibilitar que os
acontecimentos deste mundo sejam reduzidos às intenções de uma inteligência superior, que
tenha controle sobre todas as coisas e as ordene para o melhor. Desta forma, o homem não se
encontraria à mercê das forças da natureza, cegas e cruéis, mas sob os cuidados de uma
providência que se alça acima delas e que prima pelo seu bem; a morte não representaria mais
a aniquilação do homem, mas a passagem para um novo estágio da existência; enfim, as leis
que regem nossas vidas em sociedade se aplicariam também a todo o universo, sendo que, ali,
estariam sob as rédeas de uma justiça infinitamente superior à nossa. “Ao final, todo o bem é
recompensado e todo o mal, punido, se não na realidade, sob esta forma de vida, pelo menos
em existências posteriores que se iniciam após a morte. Assim, todos os terrores, sofrimentos
e asperezas da vida estão destinados a se desfazer”, arremata Freud (1927, p. 28).
É interessante notar que a bondade, a sabedoria, a justiça, enfim, todos os atributos dos
antigos deuses acham-se, atualmente, condensados na figura de um único deus. O pai, oculto
na figura de deuses diversos, mostra-se agora claramente, o que abre o precedente para uma
relação de intimidade, entre pai e filhos. O alvorecer destas noções se deu após “um longo
processo de desenvolvimento, e diversas civilizações a elas aderiram em diversas fases”
(FREUD, 1927, p. 28).
A religião é altamente valorizada pela civilização, que a põe à disposição de seus
participantes como herança. A necessidade de tornar tolerável o desamparo é de tal forma
premente, que a religião é assumida e reproduzida sem questionamentos. Neste tocante, David
(2003, pp. 41-2) nos oferece uma importante contribuição:
Quando indagamos em que ela [a religião] se funda, as respostas são: devemos
acreditar porque nossos primitivos antepassados já acreditavam; possuímos provas
que nos foram transmitidas desde os tempos primitivos; é proibido questionar a
autenticidade. [...] É crer ou não crer. E pronto. Aqui entra a fé.
31
32. Analisemos este ponto mais detidamente. As idéias religiosas consistem em
ensinamentos e asserções a respeito do que se passa no universo e no interior dos homens.
Como vimos, são idéias altamente valorizadas e requisitam a crença do homem, mas não
oferecem fundamentos para tanto: estas idéias seriam o resultado de um longo processo de
refinamento, que não caberia ao homem passar em revista, mas apenas acatar o seu resultado
final. No passado, o mais simples questionamento seria rigorosamente punido; hoje, se
pusermos em dúvida os ensinamentos religiosos, obteremos como resposta que eles merecem
crédito porque foram nossos ancestrais que no-las transmitiram com evidências, e porque é
proibido desconfiar delas. Isto nos dá a medida da fragilidade dos fundamentos destas
doutrinas. Como conclusão, temos que, de todas as contribuições com que nos presenteia a
civilização, é exatamente a menos autêntica delas – a religião – que representa uma das mais
importantes, já que se dirige ao desamparo do homem, compensa-lhe por seus sofrimentos,
responde-lhe às dúvidas.
Freud volta-se, aqui, para a origem psíquica das idéias religiosas. Sabe-se que não são
o resultado de um processo de pensamento ou de acúmulo de experiências. São, antes, ilusões,
através das quais fortes e antigos desejos dos homens são realizados. Uma vez que o
desamparo experimentado na infância estende-se por toda a vida, faz-se necessário “aferrar-se
à existência de um pai, dessa vez, porém, um pai mais poderoso” (FREUD, 1927, p. 39).
Deus, assim, aplaca a ansiedade do homem, proporciona-lhe uma ordem moral e uma justiça
infalível, responde-lhe as curiosidades, estabelece um tempo eterno em que todos os seus
desejos serão satisfeitos. Este último item é bem ilustrado por uma passagem do Novo
Testamento: “É como está escrito: Coisas que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram,
nem o coração humano imaginou, tais são os bens que Deus tem preparado para aqueles que o
amam” (I Cor 2, 9)10.
Mas o que é uma ilusão, e por que a religião se enquadra nesta categoria? David
(2003, pp. 7-8) assim a explica:
Uma ilusão não é um erro. É simplesmente algo que não precisa se confirmar.
Basta acreditar nela, independentemente de qualquer verificação. É uma ilusão
exatamente por isso: não defende o homem da natureza (majestosa, cruel,
inexorável), não retifica a cultura (permanece o mal-estar do homem na cultura),
10
Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios. In: BÍBLIA SAGRADA. 159ª ed. São Paulo: Ave-
Maria, 2004.
32
33. mas precisa manter essa promessa de que é, será ou seria possível fazê-lo. Em
outras palavras, a religião ilude o homem porque, baseada em uma hipótese
superior dominante, propõe-se não deixar nenhuma pergunta sem resposta. Desse
modo, tudo o que inquieta o homem teria uma solução.
Algumas doutrinas religiosas são tão improváveis que poderiam ser comparadas a
delírios. Freud sustenta que somente o trabalho científico pode levar o homem ao
conhecimento da realidade externa, sendo a intuição e a introspecção de pouca valia neste
tocante. Uma questão, no entanto, se coloca: dadas as vantagens oferecidas pela religião, por
que não devemos acreditar nela? Freud (1927, p. 41) é categórico em sua resposta:
“Ignorância é ignorância; nenhum direito a acreditar em algo pode ser derivado dela”. A
religião muito ofereceu à humanidade, mas vemos hoje que se mostra insuficiente em sua
tarefa. Prova disto é o crescente número dos insatisfeitos com a civilização, daqueles que
pretendem reformá-la, visto que a percebem menos como dádiva do que como jugo. O
espírito científico, advoga Freud, tornou as pessoas menos críveis. Quanto mais os homens
têm acesso ao conhecimento científico, mais se afastam da crença religiosa, ainda que
cautelosamente. As pessoas instruídas são, elas próprias, modificadoras e reprodutoras da
civilização. Mas e quanto à massa oprimida, que têm todos os motivos para se rebelar contra a
civilização? É preciso que o pensamento científico opere neles, produzindo resultados
semelhantes àqueles descritos a respeito dos instruídos. Do contrário, o declínio de Deus
representará a derrocada da civilização, um retorno à barbárie.
Em “Totem e Tabu”, tudo gira em torno da relação entre pai e filhos. Agora, em “O
Futuro de uma Ilusão”, tudo é explicado em termos de desamparo, mas não há aí uma
incoerência. Vejamos: a mãe é o primeiro objeto amoroso para a criança, pois é quem lhe
alimenta e protege. Posteriormente, a mãe é substituída pelo pai mais forte, mas a relação com
o pai traz a marca da ambivalência: o pai representa também um perigo para a criança. Esta
ambivalência encontra-se incrustada em toda religião.
Quando o indivíduo em crescimento descobre que está destinado a permanecer
uma criança para sempre, que nunca poderá passar sem proteção contra estranhos
poderes superiores, empresta a estes poderes as características pertencentes à
figura do pai; cria para si próprio os deuses a quem teme, a quem procura
propiciar e a quem, não obstante, confia sua própria proteção. Assim, seu anseio
por um pai constitui um motivo idêntico à sua necessidade de proteção contra as
conseqüências de sua debilidade humana (FREUD, 1927, p. 33).
33
34. A formação da religião atrela-se, assim, à reação do adulto ao desamparo com o qual
tem que lidar.
Apesar de seus esforços no sentido de alcançar a plena felicidade, o homem – em
qualquer tempo e em qualquer sociedade – jamais foi capaz de atingi-la. A vida em comum é
necessária, mas impossibilita a completa realização do homem. O próprio aparelho psíquico
do homem se estrutura de forma que a felicidade absoluta lhe esteja sempre fora de alcance. É
neste sentido que Freud atribui o estatuto de ilusão à crença na religião como sendo capaz de
prover a completude ansiada pelo homem.
Ainda de acordo com Freud, as ilusões trazem a marca do infantilismo. Em “Totem e
Tabu”, ele havia postulado que o pensamento humano evoluiu da etapa animista para a
religiosa, e desta para a científica, no sentido de uma compreensão do homem e do mundo.
Para Freud, a etapa científica corresponde à maturidade do pensar, de forma que, na citada
obra, o pensamento psicanalítico (científico) é contraposto ao religioso, superando-o. Em “O
Futuro de uma Ilusão”, Freud retoma a questão, reafirmando seu ponto de vista: a religião
consiste numa ilusão e precisa ser suplantada. Isto nos conduz às seguintes interrogações: a
psicanálise tem como pretensão ocupar o lugar da religião? Possui ela um propósito salvífico
para o homem? A religião é, afinal, uma neurose? E mais: não seria cruel privar o homem dos
benefícios que a religião lhe confere? Abordemos estes questionamentos um a um.
Segundo David (2003, p. 27), “o modo pelo qual Freud propõe que a psicanálise possa
educar o eu é, em síntese, diferente do que prevêem a religião, o direito, a ciência, a
pedagogia e a própria filosofia”. O que Freud sugere é que o homem possa assumir o seu
desejo e se posicionar diante dele, saindo da posição de passividade para assumir alguma
responsabilidade pelo que lhe ocorre. Para ele, a psicanálise é incompatível com a religião
porque suas teses não possuem caráter de delírio, além de poderem ser corrigidas caso se
mostrem inverídicas.
Entre as razões pelas quais sua ciência figuraria como superior à religião, Freud aponta
a consideração de nosso aparelho psíquico como parte constituinte do mundo que
pretendemos examinar. Sem dúvida, trata-se de um avanço, mas é interessante notar que a
ciência moderna, em sua crença de que possa explicar e controlar todas as coisas num futuro
não muito distante, mostra-se tão animista quanto os homens primitivos que realizavam
práticas mágicas com o propósito de interferir na natureza, acreditando poder manipulá-la a
seu favor. O pensamento onipotente move o homem tanto num caso quanto no outro. Desse
34
35. modo, a noção segundo a qual o pensar científico é mais maduro que o religioso, parece-me
equivocada.
Freud (1927, p 63.) finaliza sua obra com a seguinte sentença: “Não, nossa ciência não
é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos
conseguir em outro lugar”. Com estas palavras, ele procura dar por encerrada a discussão
sobre a superioridade de seu pensamento. Este fato deve ser avaliado em seu contexto: Freud
foi um homem de seu tempo, simpático ao positivismo, ao evolucionismo e às promessas da
ciência para o homem. Neste tocante, Ribeiro (1999, p. 48) atesta que
“Freud, de modo bem próprio à sua época, tenta corresponder, através da sua
ciência psicanalítica, ao ideal progressista e ordenador do mundo, demonstrando
também confiar nos progressos da ciência para a resolução de problemas vitais,
tais como o empecilho da finitude”.
A autora afirma, ainda, que o declínio do pensamento judaico-cristão na modernidade
atrela-se diretamente à crescente confiança depositada pelo homem no progresso científico. É
neste sentido que o filósofo Nietzsche11 proclama a “morte de Deus" no fim do século XIX. O
homem moderno ocupa o lugar de Deus, abandonando a promessa da eternidade pela da
imortalidade (RIBEIRO, 1999, p. 48). As duras críticas dirigidas por Freud à religião devem
ser vistas sob esta perspectiva.
Este debate nos leva à questão seguinte: pode-se dizer que a psicanálise possui um
propósito salvífico para o homem se – e somente se – estivermos dispostos a entender esta
salvação como o reconhecimento das limitações próprias de nossa condição humana, id est,
nossa castração. A salvação entendida como realização da promessa de plenitude, tal como a
religião propõe aos indivíduos, encontra-se na contramão da proposta psicanalítica. Ao
enfrentar suas impossibilidades, o homem pode criar para si um sentido, fazer escolhas,
buscar uma felicidade possível, relativa. É neste sentido que a psicanálise busca auxiliar ao
homem.
Quanto à equiparação da religião à neurose, é importante ter cautela, visto que este
tópico enseja muitas interpretações equivocadas. Ao dizer que a neurose obsessiva é uma
11
Friedrich Nietzsche é um pensador contemporâneo de Freud, conhecido por ter anunciado a morte
de Deus e o advento do “homem superior”. Em “Assim Falou Zaratustra”, chega a afirmar: “Aquele a
quem chamam o Salvador, pôs-lhes [nos homens] as algemas. As algemas dos valores falsos e das
palavras ilusórias! Ai! Haja quem os salve do seu Salvador!”. Para Nietzsche, a religião diminuía o
homem, impossibilitando-o de tornar-se grandioso. “A alma ali [sob a religião] não pode voar até a sua
própria altura”. (NIETZSCHE, 2008, p. 87).
35
36. caricatura da religião, Freud não quis reduzir uma à outra, mas simplesmente apontar as
semelhanças entre elas. Aqueles que apressadamente afirmam que a religião é uma neurose
obsessiva, esquecem-se de apontar as diferenças que Freud enxergava entre uma e outra. Em
“Atos obsessivos e práticas religiosas” (1907), Freud trata amplamente deste tópico, que se
estende para além de nossos objetivos atuais. Importa-nos que a religião é qualificada como
uma ilusão, e que as ilusões, como vimos, não são necessariamente erros, mas apenas crenças
aceitas sem que tenham sido testadas.
Por fim, analisemos se privar o homem da religião é cruel ou necessário. Para Freud,
nada de bom pode decorrer do erro. Ao aceitarmos as ilusões, estaríamos aceitando receitas
para a felicidade, deixando de buscar a felicidade a nosso próprio modo. “Não existe regra de
ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo
específico ele pode ser salvo”, dirá Freud (Apud DAVID, p. 43) em “O Mal-estar na
Civilização”. O homem tem que encontrar recursos próprios para lidar com a vida hostil, a
fim de que possa decidir por si, sem as muletas oferecidas pela religião. A psicanálise propõe,
portanto, uma educação para a realidade, sendo esta a principal razão pela qual Freud redigiu
“O Futuro de uma Ilusão”.
36
37. 6. Conclusão
A organização do presente trabalho em capítulos que obedecem à cronologia da
produção teórica de Freud foi pensada de forma a facilitar a percepção de como o tema da
religião perpassa o conjunto de sua obra. O pensamento de Freud a respeito da religião foi
sendo construindo com o avanço de suas investigações, e seu percurso foi parcialmente
reproduzido nestas páginas.
A atenção de Freud volta-se para o campo religioso – conforme o próprio Freud
admite no prefácio de “Totem e Tabu” – por influência de Jung. Esta obra, conforme vimos, é
resultado de uma revisão exaustiva da literatura disponível na época e versa sobre as possíveis
origens da religião. Nela, Freud aproxima a infância do gênero humano da infância
propriamente dita, isto é, entendida como fase do desenvolvimento psicossexual de cada
individuo. O “retorno do totemismo na infância” de que nos fala Freud diz respeito à
equiparação do animal totêmico ao pai, de forma que os dois interditos impostos pelo
totemismo – o do incesto e o do assassínio do animal totêmico – coincidem com as
transgressões de Édipo, que matou o pai e casou-se com a mãe. Os crimes de Édipo
representam, como sabemos, os desejos primários das crianças, e estariam nas origens das
psiconeuroses. Assim, temos que “os primórdios da religião, da moral, da sociedade e da arte
convergem para o complexo de Édipo” (ROTHGEB, 1998, p. 191).
A hipótese aventada por Freud da eliminação do pai da horda primeva teria deixado
marcas indeléveis na história da humanidade. O sentimento de culpa decorrente do ato
homicida teria perpassado inúmeras gerações, ensejando a proibição de repeti-lo, exceto nas
festividades em que o tabu era solenemente quebrado. Nestas ocasiões – os chamados
banquetes totêmicos – festejava-se a liberdade de fazer o que a regra vedava, e as virtudes do
totem eram transmitidas a todos os membros do clã. Segundo Rothgeb (1998, p. 191), “supõe-
se que o próprio Deus era o animal totêmico, e que a partir dele desenvolveu-se um estágio
posterior de sentimento religioso”. A religião totêmica funda-se, desse modo, sobre o
sacrifício e a ingestão comunal do totem. Com o tempo, este perde seu caráter sagrado e o
sacrifício permanece como uma oferenda à divindade. Um exemplo interessante da
permanência de traços da religião totêmica ainda hoje nos é dado pela eucaristia cristã. Nela, a
deidade é sacrificada num ritual que repete o ato culposo. A comunhão cristã traz a marca do
crime que tanto pesou sobre os seguidores de Cristo, mas que, não obstante, os concederia a
redenção, tornando-se necessária.
37
38. Esclarecidas as possíveis origens da religião, passamos a abordar, em nosso trajeto
rumo a um entendimento mais profundo do fenômeno religioso, a questão da finitude. Diante
do entristecimento do homem que constata a sua própria efemeridade a partir da observação
dos ciclos da natureza, Freud dirá que o escasso tempo de vida que nos é concedido implica
num aumento no valor da vida, não numa diminuição. A melancolia apresentada diante da
finitude sinaliza a antecipação do luto pela perda da vida. O desamparo próprio da condição
humana impõe ao indivíduo uma escolha: acatar suas impossibilidades (castrações), conforme
propõe Freud, ou negá-las, preferindo aderir a crenças infantis que prometem a extensão da
vida ad eternum e a supressão de suas fontes de insatisfação.
Com “Caso de uma Neurose Demoníaca do Século XVII”, aprendemos que o
Demônio, assim como Deus, é um substituto do pai. Ambos são frutos da ambivalência do
homem frente à figura paterna: Deus é concebido a partir do amor pelo pai, dado que este
concede ao filho cuidados e proteção; o Diabo, por seu turno, é expressão do ódio e do temor
pelo pai, devido às privações edipianas impostas ao filho. Tais emoções são projetadas nestes
seres, de maneira que o homem passa a enfrentar seus processos mentais fora de si mesmo.
O pacto com o Demônio estabelecido pelo jovem Heinzmann fora motivado pelo
falecimento do pai e pelo medo de garantir seu próprio sustento – em outras palavras, pelo
desalento em que se viu o rapaz. O acolhimento e a segurança de que necessitava foi
encontrado junto aos monges, cujo modelo de vida adotou o jovem. Freqüentemente, ainda
em nossos dias, a religião é buscada como refúgio tanto nas situações de desamparo afetivo,
quanto nas de necessidades materiais.
Apesar do que se pode obter como benefício a partir da religião, Freud insiste que esta
deve ser superada pelo pensamento racional, científico. A religião nada mais seria do que uma
crença sem fundamentos, um retrocesso, do qual não se pode derivar qualquer bem, visto que
seu pressuposto é ilusório. “Freud sabia que a religião negava muito ao homem, acenando-lhe
com satisfações futuras”, afirma David (2003, p.44). Com “O Futuro de uma Ilusão”, Freud
propõe que o homem reconheça suas limitações e busque aí sua felicidade. Não haveria riscos
de um retorno ao caos primordial com a superação da religião, dado que o homem racional
será capaz de identificar o bônus decorrente de nossa vida em sociedade. A primazia da
inteligência se dará com o tempo, aposta Freud, e aquilo que buscávamos em Deus, teremos
então por nós mesmos: o amor dos homens e a atenuação do sofrimento.
Neste contexto, a que se propõe a psicanálise? Sabemos que não se alinha ao
curandeirismo, às promessas de milagres ou às explicações mágicas do mundo. Ao propor que
os argumentos racionais sejam opostos às ilusões religiosas, Freud pretendia que o desejo do
38
39. indivíduo fosse por ele reconhecido. Não se trata de tentar domar as pulsões por meio da
razão, mas de se posicionar frente a elas, admiti-las e realizar uma escolha, “respondendo
[cada indivíduo] se quer o que de fato deseja” (DAVID, 2003, p. 55). Freud opunha-se à idéia
de que o homem é vítima de um destino tramado por forças estranhas, tais como Deus ou o
Diabo; acreditava, antes, que cada ser humano, motivado por influências infantis, era o
artífice destas histórias.
A psicanálise, de acordo Freud (Apud DAVID, 2003, p. 53), não deve ser subestimada
nem superestimada. Seus limites devem ser reconhecidos. Dentro destes limites, no entanto,
ela sugere ao homem a busca de uma terceira via, entre a perdição e a salvação, o otimismo e
o pessimismo, a partir de seus próprios recursos.
39
40. 7. Bibliografia
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