Franklin Leopoldo e Silva (Filósofo – USP)
Há vários modos de enunciar a relação entre Eu e o Mundo, e o sujeito moderno é apenas uma dessas configurações possíveis, ainda que nós, ocidentais vivendo nos últimos séculos, dificilmente possamos imaginar com alguma clareza uma situação em que o ser humano não desfrutasse da hegemonia inerente à posição que passou a ocupar desde o século XVII.
1. CONHECIMENTO DE SI E O HUMANISMO1
Franklin Leopoldo e Silva (Filósofo – USP)
Há vários modos de enunciar a relação entre Eu e o Mundo, e o sujeito moderno é
apenas uma dessas configurações possíveis, ainda que nós, ocidentais vivendo nos
últimos séculos, dificilmente possamos imaginar com alguma clareza uma situação em que
o ser humano não desfrutasse da hegemonia inerente à posição que passou a ocupar
desde o século XVII. Ao longo dessas variações, todavia, algo permanece, reaparecendo
de distintas maneiras, mesmo que à guisa de questão. A busca ética de si passou por
grandes mudanças. No período helenístico, em que os indivíduos já não tinham laços
orgânicos com a cidade, pois viviam sob o domínio de um grande império, era preciso
procurar dentro de si critérios e fundamentos éticos que já não mais eram oferecidos pela
comunidade. Algo semelhante se passa na transição renascentista para um humanismo
laico e na reivindicação cartesiana de autonomia teórica e prática. Também se pode
dizer, e de forma mais determinada, que a interioridade agostiniana, presença de Deus ao
homem e do homem a Deus, prolonga-se e transforma-se na metafísica da subjetividade dos
primeiros modernos. De modo semelhante, essa metafísica se transforma em ontologia da
existência na filosofia contemporânea (em Sartre, por exemplo). Tal história do Eu de forma
alguma significa uma pura e simples continuidade de caráter afirmativo, mas manifesta, ao
menos, a persistência da questão da identidade.
Foucault entende que se pode constatar, por esta via, "o enraizamento da questão que
no ocidente foi posta à filosofia ou, se quisermos, o desafio do pensamento ocidental à
filosofia como discurso e como tradição. É este o desafio: de que modo aquilo que se oferece
como objeto de saber articulado pelo domínio da tekhné2
pode ser ao mesmo tempo o lugar em
que se manifesta, em que se experimenta e onde dificilmente se realiza a verdade do sujeito
que somos?” O mundo é uma esfera de objetividade articulada pelas tecnologias do
entendimento, tendo em vista conhecimento, exploração e controle. Mas é, ao mesmo
tempo, o mundo da vida, aquele em que a espontaneidade das atitudes naturais vive uma
verdade construída a partir da necessidade e por via da cultura. A representação técnica do
mundo vem se acentuando no decorrer da modernidade, por meio do exercício de uma
racionalidade constituída nesse processo. Ao mesmo tempo, o indivíduo vive o drama
decorrente deste progresso: ou ele se mantém como autor e mesmo criador desta
civilização ou ele se deixa absorver nos parâmetros objetivos de uma situação que tende a
fugir de seu controle. Ou ele se mantém como sujeito ético ou se resigna a se transformar
num sujeito técnico. O humanismo moderno é uma ‘faca de dois gumes’: enaltece no
homem a capacidade de constituir uma infinidade de meios para promover a sua
emancipação, mas fortalece o risco de que, absorvido pela tarefa que abraçou, o homem
venha a perder o discernimento necessário para vincular meios e fins, o que significa, no
limite, a destituição da subjetividade como liberdade.
Isso quer dizer que a história do sujeito desemboca na crise ética que muitos
entendem como o diagnóstico mais pertinente da fase da modernidade que estamos
vivendo. Nessas circunstâncias, a identidade subjetiva viria a diluir-se nas determinações
1
Transcrito (pgs 137~142) do livro “O Conhecimento de Si” (Casa do Saber, 2011)
2
Tekhné: termo da língua grega que designava tanto o que hoje chamamos de técnica quanto o que entendemos por arte.
Mas na contemporaneidade, técnica significa a vocação instrumental do saber científico, que não se restringe à fabricação de
artefatos, mas recobre um certo modelo de racionalidade, que se impõe como dominante. A questão é saber se a verdade do
homem pode ser inteiramente compreendida neste contexto.
2. externas do mundo objetivo, e o espírito pode, mais do que abandonar o mundo, deixar de
habitar a própria realidade humana. Numa época em que já não se aceita a identidade da
alma individual afirmada como essência absolutamente determinante, em que a
subjetividade se configura social e culturalmente, a integridade do Eu e a soberania do
sujeito tornam-se experiências difíceis, o que nos leva a ceder a tentação da renúncia e a
incorporação da individualidade singular à objetividade impessoal da sociedade de massas.
Depois que os grandes conceitos abrangentes deixaram de cumprir seu papel, a
universalidade de cunho psicossociológico aparece como opção, mas também como
ameaça. A organização funcional do mundo da vida representa o triunfo da normatividade
racional, mas o que ela traz em termos de controle da subjetividade a torna, por outro lado,
terrível.
“(...) as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão
em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o individuo moderno, até
então visto como um sujeito unificado. A assim chamada ‘crise de identidade’ é vista como
parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e
processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que
davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social."3
Uma vez constatado que
a crise de identidade provém da dificuldade de os indivíduos se reconhecerem nas
estruturas e nos processos histórico-sociais com os quais interagem, o caminho que se
apresenta para a manutenção das instâncias das quais os indivíduos se distanciaram e a
revelação plena da coerção inerente ao poder do qual essas estruturas estão revestidas, o
que pode ser feito por meio da violência direta ou por via do controle ideológico da
subjetividade, que, no limite, é a segregação do caráter político da sociabilidade (a
consciência subjetiva) ou o advento do autômato social, o homem formalmente individual e
formalmente social, que vive no espaço apolítico de uma democracia formal. É assim, sem
grande alarde, que se decreta a falência da esfera pública e se encerra a vida democrática,
isto é, o processo de identificação ético-política do sujeito. Esse fenômeno é mais do que
aquilo que muitos querem entender como a experiência da incerteza: é a anulação da
experiência. [uma experiência desorientada, desnorteada, de percepção e resultado nulos]
Essa negação da experiência é, no entanto, vivida no anonimato do indivíduo, no
nivelamento das singularidades subjetivas e na universalidade abstrata do sistema social.
De tal modo que a pergunta “quem sou?”, quando feita no contexto contemporâneo, possui
imediatamente uma ressonância objetiva: as possibilidades de respostas, o indivíduo não
as encontrara em si mesmo, mas nas determinações externas, que se apresentam sob o
ardil de solicitações às quais o indivíduo julga responder por si mesmo, mas que o
determinam quase da mesma maneira que a causa age sobre seu efeito; a diferença é que,
nesse caso, a definição de efeito é uma conciência que consente. [cordata]
Assim se completa o arco da questão do conhecimento de si: começamos por uma
situação que se caracterizava pela tensão ético-política entre Sócrates e a cidade, e
terminamos apontando para uma situação que se caracteriza pela conciliação alienante
entre o indivíduo e os mecanismos sociais. Como se vê, a dimensão ampla da questão
impede que ela seja posta somente nos termos de uma crítica ao capitalismo, mas convida
a perceber na história as armadilhas da alienação, que podem ser montadas de várias
maneiras e a partir de diversos mecanismos. Importa notar em todos os estes ardis a
mesma finalidade: tornar os seres humanos estranhos a si mesmos e, assim, conduzi-los à
inumanidade.
3
Livro “A identidade cultural na pós-modernidade” de Stuart Hall (DP&A, 2006), pg. 7.