2. Rodolfo Alves Amaro
Subjetividade, individualidade e autenticidade:
entre Charles Taylor e Michel Foucault
Dissertação apresentada ao Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Sociologia.
Orientador: Prof. Dr. Frédéric Vandenberghe
Rio de Janeiro
2007
3. Rodolfo Alves Amaro
Subjetividade, individualidade e autenticidade:
entre Charles Taylor e Michel Foucault
Dissertação apresentada ao Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Sociologia.
Banca Examinadora:
_______________________________________________
Prof. Dr. Frédéric Vandenberghe (Orientador)
_______________________________________________
Prof. Dr. Luiz Antonio Machado
_______________________________________________
Prof. Dra. Letícia Veloso
Rio de Janeiro
13/12/2007
4. Agradecimentos
Em primeiro lugar, agradeço a Frédéric Vandenberghe, quem orientou e tornou
possível meu empreendimento teórico; pela confiança, liberdade, atenção, pela capacidade de
esclarecer sem impor e pela habilidade e erudição com que lidou e apontou as questões,
fazendo-me situar devidamente nos intricados campos da teoria social e da filosofia que me
apareceram no decorrer da pesquisa. Aos professores Ricardo Benzaquen de Araújo, Luiz
Antonio Machado e Letícia Veloso, pela qualidade e domínio das questões tratadas em aula.
A meu irmão Lucas, cujas direções intelectuais se apresentam sempre como uma referência
importante. Ao IUPERJ, pelo mestrado, pelo ambiente e pelas condições de pesquisa. À
CAPES, pelo apoio financeiro durante esses quase dois anos. A Jessé Souza, pela atenção e
pelos ensinamentos e convicções que ainda me marcam. Aos meus pais, Vicente e Teresinha,
por todo apoio e carinho. A minha irmã Caroline, também pelo carinho. Aos amigos que se
fizeram presentes durante essa jornada. E, especialmente, a minha namorada Vivian, com
quem pude dividir meus anseios e incertezas, pelo constante apoio, amor, carinho, paciência e
compreensão, em todos esses últimos anos.
5. “Somos então vítimas de uma ilusão que nos faz crer que
elaboramos, nós mesmos, o que se impôs a nós de fora.”
Émile Durkheim
6. RESUMO
Situada na mais problemática encruzilhada entre filosofia, pressupostos metodológicos
e o diagnóstico de época da modernidade, a idéia de uma “subjetividade individual” se
apresenta ainda hoje como um impasse entre diversas vertentes de pensamento. O presente
estudo deve ser entendido como uma tentativa de, mediante o acesso às contribuições de
Charles Taylor e de Michel Foucault, discutir a subjetividade moderna em relação a
categorias como de individualidade, autonomia ou autenticidade, tendo como um dos pontos
de partida a contestação de concepções atomistas e des-situadas de subjetividade. Assim,
pretendo utilizar a obra desses dois grandes nomes da teoria social do século XX para situar a
questão da individualidade moderna dentro de um quadro mais amplo, pelo qual procuro
evidenciar os limites que se fazem presentes por detrás dessa noção, em torno da sua imersão
no problema da ética, da vida moral ou de jogos de poder, que lhe dão sustentação e que são
condições de inteligibilidade para a mesma.
7. Índice
Introdução.........................................................................................................................08
CAPÍTULO I. Charles Taylor: para uma reconstrução dos princípios
subjacentes ao self moderno .......................................................................................28
1. Os fundamentos filosóficos e metodológicos do pensamento tayloriano ..............32
1.1. As dívidas com a filosofia hegeliana..............................................................33
1.2. Transformações na teoria da linguagem: “formas de vida” e imersão
no mundo........................................................................................................40
1.3. Em busca de uma definição do humano.........................................................46
1.4. A opção pela hermenêutica como modelo de ciência.....................................54
2. O resgate genealógico da identidade moderna .......................................................57
2.1. As hierarquizações entre bens ........................................................................63
2.2. As possibilidades de articulação: sobre o status da hermenêutica
como tradução discursiva ...............................................................................66
2.3. As idéias e as práticas: “uma digressão sobre a explicação histórica”...........67
2.4. A singularidade moral do mundo moderno....................................................71
2.4.1. As raízes valorativas do desenvolvimento ocidental: da
guinada rumo ao interior até o ideal de desprendimento...................72
2.4.2. Práticas remodeladas: a afirmação da vida cotidiana........................78
2.4.3. A exploração da natureza interior e os novos horizontes do
expressivismo ....................................................................................81
2.5. Um conflito configurado: entre os ideais de dignidade e de
autenticidade..................................................................................................83
2.6. A exaltação das particularidades: autenticidade e reconhecimento................89
CAPÍTULO II. A historicização da subjetividade: verdade, poder e
práticas de si no pensamento foucaultiano............................................................97
1. Sobre alguns pressupostos das análises foucaultianas ...........................................99
2. Por uma análise historicamente situada dos eventos humanos.............................109
3. O poder disciplinar: contra uma auto-concepção ilusória da modernidade........114
8. 4. A sexualidade e o saber: a construção de uma verdade sobre si.........................125
5. Uma mudança de projeto: o estudo das práticas de si e das relações
entre sujeito, verdade e sexualidade ......................................................................133
Considerações finais ....................................................................................................145
A subjetividade autêntica: entre um presente semi-realizado e um passado
longínquo.......................................................................................................................146
Bibliografia .....................................................................................................................166
9. 8
Introdução
Ainda que muitas vezes mitigada e transfigurada, a imagem de uma noção específica
de subjetividade humana, des-situada e universalizável historicamente, comparece ainda hoje
nos mais variados territórios de nossa ciência. A modernidade se erigiu a partir de um
conjunto de elementos – dentre os quais idéias como de liberdade e autonomia foram cruciais
– que engendraram um tipo determinado de auto-interpretação sobre nós mesmos, muito
marcada por um sentido de individualidade: o sujeito cartesiano, auto-transparente e capaz de
se colocar uma dúvida radical seria uma das primeiras e mais claras versões filosóficas desse
tipo de imagem a que me refiro. Importantes correntes de pensamento se opuseram a tal
concepção, sobretudo a partir do século XIX, desde que um movimento de idéias, cuja força
propulsora é comumente associada ao romantismo alemão, distinto e incompatível com uma
concepção de sujeito a-histórica, ganhou força.
Mas o presente trabalho não pretende tomar como referência apenas o plano de uma
“história das idéias”, ou seja, de verificar a existência de concepções ou formulações
filosóficas, científicas, etc. Na verdade, o que pretendo é refletir sobre o sentido, sobre os
limites e sobre a realidade de uma “subjetividade individual” como um traço peculiar da
modernidade, enquanto uma forma específica de vida que se construiu nos últimos séculos e
que chega a nós hoje, mais do que nunca, com toda sua força. Minha preocupação decorre de
que a história do desenvolvimento ocidental tem freqüentemente sido narrada em termos de
uma progressiva emancipação das personalidades individuais dos contextos gerais nos quais
se inserem. E isso ocorre já há algum tempo. Representações dessa natureza sobre nosso
mundo se sucedem não apenas em vertentes do pensamento político, correntes filosóficas,
10. 9
doutrinas morais e teorias científicas (incluindo a sociologia), mas manifestam-se de forma
efetiva também no senso comum. Muitas teorias e muitos conceitos foram cunhados no
pensamento científico e filosófico para tentar exprimir e designar o processo visto em tais
narrativas, tais como “individualismo”, “individualização” ou “individuação”.
Não obstante os inúmeros esforços e discursos criados a partir de certas idéias que se
colocam em oposição a tais noções de sujeito “regido por conta própria” e à idéia de
individualidade como atomização, algumas características e dinâmicas de funcionamento bem
típicas de nossa época continuam reforçar uma certa impressão de des-aprisionamento e
liberação das “entidades humanas singulares” no mundo. A modernidade seria o lugar por
excelência da construção de uma identidade livre ou liberta, da emancipação desses entes,
cujo sentido chega facilmente a nós pelo simples termo “indivíduo”, corriqueiramente
empregado, tanto no senso comum quanto em versões teóricas.
Uma reelaboração da teoria do sujeito fora realizada em diversos âmbitos, não só no
pensamento filosófico em sentido estrito, mas de uma forma acentuada nas nascentes
disciplinas científicas, sobretudo na psicanálise, na sociologia e na antropologia. Essas
reavaliaram de variadas maneiras a prioridade um tanto sagrada conferida à noção de sujeito
que se consolidara no pensamento ocidental desde Descartes.
Dentro das próprias origens do pensamento sociológico – entendendo aqui o que
usualmente se reconhece como os primórdios dessa disciplina enquanto esfera científica –
formavam-se direções de rejeição a tal concepção de uma subjetividade ou identidade com
inclinações solipsistas ou atomistas. É provável que a própria posição “transmundana” da
subjetividade transcendental, geral e atemporal, tenha colidido com algumas das reflexões das
novas ciências do espírito, já que estas encontravam, em seus respectivos domínios, certas
formações pré-estruturadas simbolicamente, bastante variáveis nos aspectos mais elementares,
que até então eram tomados como universais humanos.
11. 10
Isso significou, para muitos dos que se puseram a pensar sobre isso, um deslocamento
do problema da seguinte forma: no lugar de procurar uma subjetividade livre e desvinculada
do mundo, de uma concepção de sujeito formal e universal, de sujeitos auto-transparentes a si
mesmos e capazes de instrumentalizar o mundo a sua volta, passou-se então à tentativa de
teorizar a especificidade da condição do sujeito na própria modernidade. Daí que, de certa
maneira, surgem variadas constatações de que seus vínculos e sua natureza na modernidade
são quase sempre vistos como qualitativamente distintos em relação a outros tipos de
sociedades humanas. Ou seja, se é que há um certo padrão, um certo tipo específico
(individual, autônomo ou independente) de ser humano característico das formações sociais
que se desenvolveram inicialmente no continente europeu, tipo este ao mesmo tempo
engendrado e valorizado por elas, ele deveria ser buscado a partir de um exame comparativo
com outras sociedades, de um contraste com outros períodos históricos. Acredito que essas
tentativas e esses esforços tenham contribuído decisivamente para a própria especificidade da
sociologia enquanto ciência.
A questão da individualidade ocupa um lugar crucial nas reflexões sobre a
subjetividade moderna. O sentido do desenvolvimento dessa “individualidade” foi algo que
sempre me intrigou – e provavelmente também a todos os grandes pensadores da sociologia.
Em que sentido podemos pensar que as entidades humanas vão se individualizando, que as
pessoas vão ficando cada vez mais “individuais”. O que significa esse individualizar?
Diferenciação? Há sérias controvérsias sobre o real status de diferenciação individual nas
sociedades modernas, apontando mesmo fenômenos inversos, como de massificação ou de
uniformização. O individualismo, em vertentes marxistas seria uma expressão ideológica
tipicamente relacionada à ascensão da burguesia enquanto classe dominante, um fenômeno
superestrutural compatível com o livre mercado e a propriedade privada, que esconderia uma
realidade mais profunda e efetiva, a estruturação das classes sociais. Isso decorre de que o
12. 11
próprio método dialético não autoriza olharmos para os fatos fracionados ou atomizados, mas
sim pela vinculação com uma totalidade. Creio que essa é uma convicção filosófica
importante carregada pelo marxismo, cujas raízes remontam ao pensamento hegeliano. A
categoria da totalidade, nesse sentido, não suprime os aspectos ou elementos individuais, mas
tende a subtraí-los de seu isolamento, onde não faz sentido pensarmos em átomos vagando no
processo histórico, independentes, autônomos e estáticos. Eles fazem parte de uma totalidade,
de um processo em andamento. Ou seja, muitas correntes de pensamento apostariam que a
individualização seria um fenômeno apenas de superfície e aparência, escondendo outros mais
fundamentais para a constituição da vida social.
Outros tantos pensadores e vertentes de pensamento procuravam atribuir diferentes
tipos de significação à questão. Alguns, por exemplo, passaram a enfatizar o próprio contexto
normativo pelo qual a individualização seria possível. Mas todo um conjunto de dificuldades
se colocava em como pensar a individualidade nesses termos. Talvez uma das principais fosse
que, em análises sobre a natureza e as condições do indivíduo no mundo moderno, um
obscurecimento adicional estaria presente, às vezes não tão óbvio: refiro-me ao fato do
próprio termo “indivíduo” geralmente ser utilizado para designar dois elementos da realidade
distintos que devem ser analiticamente separados. De um lado temos o “indivíduo” como o
corpo físico e delimitável espacialmente e temporalmente, ou seja, a amostra individual da
espécie humana que serve de substrato para todas as formações sociais; e de outro, o
“indivíduo” como uma categoria moral, a qual no ocidente moderno carrega valores relativos
a um ser moral independente, autônomo e livre. Nesse sentido, o contraste com outras culturas
pode ser esclarecedor: análises comparativas demonstram que a concepção de indivíduo que
impregna nossas auto-compreensões não é algo existente em outras sociedades, mas uma
noção historicamente situada. A noção de indivíduo, tal qual a concebemos é uma
13. 12
peculiaridade importante da modernidade. A idéia de indivíduo passa então a ser vista como
uma categoria moral tipicamente ocidental.
Convém nos atermos um pouco a algumas reflexões clássicas sobre a problemática.
No meio sociológico, Durkheim foi um dos clássicos que colocou a questão no centro de suas
reflexões: a meu ver, algumas das principais inquietações de Durkheim ainda permanecem
vivas, irresolutas. Sob forte influência da biologia o autor defendeu uma metodologia anti-
atomista da análise social. Concebera o conceito de “consciência coletiva” como um conjunto
de crenças, idéias, sentimentos e valores amplamente disseminados entre os membros da
sociedade, que deve ser pensado como um sistema determinado que tem vida própria, ou
seja, como um ente independente das particularidades dos seres humanos tomados
individualmente, que embora tivesse como substrato as consciências individuais, não poderia
ser redutível à soma destas. Percebe-se facilmente o porquê de sua hostilidade quanto ao
individualismo metodológico em toda sua obra, empenhando-se em demonstrar a primazia
dos fatos sociais em relação à natureza e ao desenvolvimento dos tipos individuais. 1
É por
isso que, em sua análise da condição da moderna individualidade, Durkheim não deixava de
entendê-la como tendo um substrato coletivo. A própria formulação do problema básico de
“Da divisão do trabalho social” ficou bastante conhecida no meio sociológico, sendo
expresso da seguinte maneira: “como se dá que, ao mesmo passo que se torna mais autônomo,
o indivíduo depende mais ainda da sociedade? Como pode ser, ao mesmo tempo, mais pessoal
e mais solidário?” (DURKHEIM, 1999b, p. L). Durkheim teria a percepção nítida de que a
1
Na verdade, o fato de ele ser geralmente tomado como um anti-individualista reflete, antes de qualquer coisa,
uma compreensão equivocada acerca do pensamento do autor, pela sua rejeição veemente ao que mais tarde
chamou de “individualismo metodológico”. Durkheim, de fato, apresenta-se muito hostil a esse modo de
abordagem metodológica em toda sua obra, como pode ser observado pelo seu fervoroso combate às teorias
utilitaristas em numerosas oportunidades. Segundo seu esquema de pensamento, o modelo de indivíduo que o
utilitarismo tomou como base de seu esquema analítico seria nada mais que o resultado de um longo processo de
desenvolvimento social: para o autor era de fundamental importância salientar que haveria uma primazia dos
fatos sociais em relação à natureza e ao desenvolvimento dos tipos individuais. Contudo, sua rejeição ao
individualismo metodológico não implica a mesma desaprovação ao que ele denomina de “individualismo
moral”, cujo significado repousa num processo social crônico das sociedades modernas examinadas pelo autor,
sem o qual a organização social seria impensável.
14. 13
solidariedade orgânica implicava na presença de uma sustentação moral de modo semelhante
à solidariedade mecânica, demonstrando que o individualismo seria em si um fenômeno
moral, não podendo portanto ser confundido com o egoísmo. Uma de suas mais significativas
conclusões foi a de que a solidariedade orgânica pressupunha a continuidade de um
componente moral, ou seja, que seria inadequado interpretar o contraste como sendo, de um
lado, no que concerne à solidariedade mecânica, uma comunidade de crenças e valores; e do
outro – na solidariedade orgânica – apenas uma espécie de interdependência econômica entre
especialistas, de base cooperativa. Enquanto o processo de individuação era inescapável à
edificação da divisão do trabalho, ele não implicava a completa erradicação da consciência
coletiva, mas sim sua transmutação na forma de elaboração dos novos ideais morais, ou seja,
o “culto do indivíduo” – única parcela restante da consciência comum – que proporciona uma
validação moral à divisão do trabalho especializada.
Mas em Durkheim a individualização (ou individuação) é também entendida deforma
substantiva: a necessidade da “continuidade” de uma força moral reguladora comum caminha
lado a lado à progressiva liberação das subjetividades individuais, cada vez mais
diferenciadas e entendidas a partir do desenvolvimento de uma dimensão do agente humano
que tem sua fonte em determinados atributos não-sociais presentes em cada membro, ou seja,
no organismo biológico individual. O próprio tratamento da questão da anomia ilustra essa
posição. Quando não suficientemente submetidos à força de uma autoridade moral, os
indivíduos apresentam inclinações a partir de desejos ilimitados, de origem não social. 2
Max Weber, outro gigante do pensamento sociológico, procurou demonstrar como as
concepções religiosas do protestantismo ascético inauguraram uma ênfase peculiar na
2
“Se a divisão do trabalho não produz a solidariedade, é porque as relações entre os órgãos não são
regulamentadas, é porque estão num estado de anomia” (DURKHEIM, 1999b, p. 385). É como se a progressiva
regressão da consciência coletiva tivesse se excedido, deixando um vácuo de direcionamento moral a certos
aspectos da vida, caracterizando uma carência de forças coletivas ditando normas às práticas sociais. Assim,
Durkheim via nas associações profissionais - ou corporações, como ele prefere – uma das únicas possibilidades
para conter o avanço da anomia e restaurar a ordem normal ao sistema.
15. 14
experiência individual que teria sido decisiva para o desenvolvimento ocidental. A doutrina
calvinista da predestinação, ao criar um abismo intransponível entre Deus e os homens e ao
eliminar toda mediação mágica ou sacramental na relação entre eles, traria como
conseqüência uma “inaudita solidão interior do indivíduo”, em que o ser humano se via
relegado a traçar sozinho sua própria estrada (WEBER, 2004, p. 95). Daí a constituição de
uma representação de si a partir de uma auto-determinação como único caminho capaz de
demonstrar a possibilidade de salvação, para a qual o desempenho diferencial vinculado à
noção de vocação, como um “sinal” da salvação, seria crucial. Mas Weber também refletiu
sobre os mecanismos pelos quais a própria determinação religiosa do processo de
racionalização tenderia a desaparecer, ou seja, como certos mecanismos do desenvolvimento
ocidental passaram a uma espécie de reificação das ações encadeadas por concepções
religiosas de mundo que teriam lhe dado suporte. É assim que ele pôde analisar as próprias
formas objetivadas de racionalidade no mercado capitalista e na burocracia estatal como
conflitantes com as novas noções de racionalidade e liberdade subjetivas. Traçando um
diagnóstico sombrio da modernidade, ele viu a constituição da individualidade refletir-se
como “perda da liberdade” do homem moderno, sujeito cada vez mais à limitação de suas
potencialidades, na medida em que uma nova racionalidade, especificamente ocidental
(pensada como uma reificação e uma atitude instrumental em relação a si, aos outros e à
natureza), passava a permear as mais variadas esferas de atividade humana (quadro que mais
tarde serviria de inspiração para os teóricos da Escola de Frankfurt).
Já na sociologia de Georg Simmel, outra referência clássica de peso, o
desenvolvimento da modernidade acarretaria o alargamento dos círculos sociais e uma maior
complexidade de interação entre eles, dando lugar ao desenvolvimento de dois tipos de
individualismo. Analisados na obra simmeliana, cada um desses dois tipos aparece conexo a
um dado momento histórico. Primeiramente, desenha-se um “individualismo quantitativo”,
16. 15
que se consolida no século XVIII, pautando-se em uma concepção de um homem genérico,
elaborando-se em torno de princípios pretensamente universais, expressos em idéias tais como
da igualdade formal. E, posteriormente (já no século XIX), nasce um outro tipo, ligado
fundamentalmente ao romantismo alemão: o “individualismo qualitativo”. Este teria como
características fundamentais a exaltação da particularidade, da diferença, da singularidade de
um indivíduo autêntico3
(VANDENBERGHE, 2005, p. 189). Como assinala Donald Levine, a
individualidade tornava-se possível por uma espécie de relaxamento transformativo de várias
coerções jurídicas e dos costumes em direção à autodeterminação e à responsabilidade
individual. Liberdade pessoal e individualidade seriam princípios ligados ao desenvolvimento
de uma economia monetarizada: o uso do dinheiro aumentaria as possibilidades da pessoa em
expressar sua individualidade ímpar. Esse é seu posicionamento expresso em “Sobre a
diferenciação social”. Mas em trabalho posterior (“A filosofia do dinheiro”), Simmel
examinará papel do dinheiro como abastecendo um processo inverso ao anteriormente
descrito, ou seja, o de impor barreiras à emancipação da individualidade genuína, por meio da
natureza opressiva do que chamou de “cultura objetiva” (LEVINE, 1997, pp. 187-188). Ou
seja, trata-se de uma concepção que conserva certa ambivalência sobre a individualidade
moderna, considerando, de um lado, a individualização e a liberação do indivíduo, mas, de
outro, a reificação e a alienação (VANDENBERGHE, 2005, p. 21).
Algumas décadas depois, Norbert Elias trazia uma reflexão na qual a individualidade
moderna implicava não somente em especialização, mas em uma conformação em termos de
desenvolvimento de formas de autocontrole. Os problemas que surgem para os membros das
sociedades modernas seriam de natureza peculiar: desde a infância, as pessoas seriam
treinadas para desenvolver um grau bastante elevado de autocontrole e independência pessoal,
a desenvolver modos de competição com as outras. Haveria um aprendizado no sentido de
3
Ver sobre isso a interessante e esclarecedora publicação “As sociologias de Georg Simmel”, de Frédéric
Vandenberghe (sobre essa questão específica, ver as discussões sobretudo dos capítulos 5 e 6 do livro).
17. 16
tornar desejável distinguir-se dos outros pelas suas qualidades, esforços e realizações próprias,
e também de aprender a encontrar satisfação nesse tipo de sucesso. Contudo, Elias também
observa que ao mesmo tempo, em todas essas sociedades, há rígidos limites estabelecidos
quanto à maneira como o sujeito pode distinguir-se e os campos em que pode fazê-lo. Fora
desses limites, ele é conformado, não sendo valorável que se destaque dos outros.
O autocontrole do indivíduo, por conseguinte, é dirigido para ele não sair da linha, ser como
todos os demais, conformar-se. Muitas vezes não é menos difícil conformar-se num aspecto do
que distinguir-se em outros. Sem dúvida, nunca é tarefa simples chegar ao equilíbrio exato
entre ser como os demais, em alguns aspectos, e ser singular e diferente deles em outros
(ELIAS, 1994, p. 120).
Na verdade, se tomarmos o próprio estudo etimológico do termo indivíduo – ou da
família de conceitos agrupados em torno dele - veremos como o sentido atribuído a ele hoje
data de uma época relativamente recente. O termo vem do latim “individuus”, ou seja, não-
divisível ou indivisível, uma tradução do vocábulo grego “atomon”. 4
Seu uso significou, do
ponto de vista lógico, um objeto do qual se pode asseverar algo e, do ponto vista ontológico, o
caso singular numa espécie de coisas, um determinado ente singular (HABERMAS, 1990, pp.
187-188). “Indivíduo” passou a significar um ente com determinações qualitativas que o
diferenciam de todas as outras coisas. Mas a transição do sentido do termo para designar seres
humanos foi possivelmente uma obra apenas do século XVII, em que se tornou mais
específico esse conceito que, anteriormente, no campo da lógica e da gramática, tinha sido
usado como conceito universal. Em relação ao uso do conceito no sentido de algo distinto e
singular, Elias lembra que
os filósofos da Igreja haviam constatado que tudo o que existe neste mundo é, em certos
aspectos, um indivíduo, ou seja, único. A andorinha que está fazendo seu ninho sob os beirais
de minha casa é única, é um indivíduo. Nenhuma outra está fazendo isso, aqui e agora. Cada
pinheiro da montanha agitado pelo vento tem uma forma única. A mosca que está zumbindo
pela janela aqui e agora é um indivíduo; não há nenhuma outra que o esteja fazendo (ELIAS,
1994, p. 134).
4
É provável que o emprego da palavra individuus como símbolo de unidade indivisível se tenha ligado, na
comunicação entre os eruditos da Igreja medieval, a uma outra ocorrência que provavelmente estabeleceu a
ponte para o desenvolvimento do conceito mais recente de "indivíduo".
18. 17
Quais seriam as razões para o termo indivíduo ter ganhado a conotação que possui
hoje? Em outras palavras, como foi que, da designação da singularidade qualquer ente, de
qualquer espécie, o seu uso veio a se estreitar até o conceito referir-se apenas à singularidade
dos seres humanos? Segundo Elias, isso teria acontecido ao longo do desenvolvimento social
ocidental, em que as pessoas, talvez a princípio restritas a algumas camadas sociais
específicas, sentiram uma necessidade mais intensa de se comunicar umas com as outras a
respeito de sua singularidade, em termos mais gerais, a respeito da singularidade de cada
pessoa, da qualidade especial de sua existência, comparada à de todas as demais. Também
houve a possibilidade e a necessidade de oposição a antigas tradições que, aparentemente,
eram mais rígidas e uniformes quanto às “livres aptidões individuais”. A partir do período do
Renascimento as pessoas puderam, mais do que antes, ascender de suas comunidades
tradicionais e sentir como abertas certas oportunidades sociais de progresso individual
(ELIAS, 1994, pp. 133-135).
Dadas todas as dificuldades de pensar a questão, que se colocam tanto no plano
filosófico quanto metodológico de cada pensador (por exemplo, o modo como se situa diante
das opções analíticas dicotômicas como indivíduo e sociedade, ação e estrutura, etc.), a
individualização foi pensada, no decorrer das reflexões sociológicas, filosóficas ou políticas,
de distintas maneiras: como diferenciação, ou seja, por uma multiplicidade de combinações
possíveis e biografias cada vez mais diversas uma das outras; pelo grau de independência
individual frente ao grupo; como um centramento em torno de instâncias de autocontrole,
auto-responsabilidade, autodisciplina; como uma valorização da vida privada em relação às
atividades “públicas”; como estruturação interna da subjetividade em termos de um centro e
uma periferia; como a proliferação de uma espécie de autonomização, ou seja, do
desenvolvimento de um centro de auto-comando individual; pela intensidade das relações de
si para consigo mesmo; como uma valorização moral específica em torno de princípios como
19. 18
liberdade e autonomia individuais; como uma transparência e reflexividade para consigo
mesmo, etc. Na verdade, essas características aparecem freqüentemente conjugadas em cada
teoria. Algumas enfatizam a identidade no sentido de uma “ipseidade” (como diz Ricoeur), no
sentido do caráter particular, peculiar e único do ente, que o distingue de todos os outros;
outras a identidade “idem”, no sentido de uma “mesmidade”, ou seja, podem ser pensadas,
por exemplo, em termos de certas configurações que dão algum tipo de centramento ao
indivíduo, remetendo a algo como auto-responsabilidade, autocontrole, etc. Numa mesma
teoria é freqüente termos a fusão de vários desses aspectos.
Nas últimas décadas, com o aprofundamento da modernidade nos países nos quais ela
teve origem – ou seja, uma radicalização de seu projeto – e com a instauração de certas
dinâmicas tipicamente modernas a outras tantas área do globo, uma boa parte da agenda das
ciências sociais se inclinou a novas formulações sobre o problema, até mesmo pela crescente
pluralização, diferenciação de grupos e de padrões de sociabilidade que se apresentam em
nossa época. Uma corrente de destaque passou a pensar a individualização a partir do conceito
de reflexividade, envolvendo nomes como Anthony Giddens, Ulrich Beck ou Scott Lash – a
teoria da modernização reflexiva.
Em Giddens, por exemplo, a individualização se torna possível pelo que chama de
mecanismos de desencaixe, que promovem o contexto em que a individualização se amplia,
ao passo que o modelo de self se configura como um projeto reflexivo. Não obstante a idéia
de reflexividade ser respaldada numa âncora institucional – envolvendo o funcionamento dos
sistemas peritos e da dupla hermenêutica – ela parece se curvar (sobretudo nos últimos
escritos do autor) ao legado racionalista, enfatizando sobretudo a dimensão individual, na qual
se dá o estabelecimento crônico do princípio da dúvida radical como o mote central da
construção do self reflexivo. Temos com isso uma “modernização reflexiva”, no seio da qual
os próprios termos da modernização são negociados pelos atores sociais, na medida em que as
20. 19
identidades antes mais rígidas como de classe, família, gênero vão sendo abaladas, forçando
os indivíduos a reconstruir suas identidades concretas de modo crescentemente reflexivo
cognitivos, estéticos e morais (GIDDENS, 1991a, 1991b, 2001).
Também Beck, de forma análoga a Giddens, vê um crescente processo de
individualização que mantém um nexo muito forte com a idéia de reflexividade: Beck
descreve uma ampliação do processo de individualização, responsável por fornecer maior
poder às subjetividades individuais no que tange à construção de suas próprias identidades e
biografias. Procura dirigir seu foco sobretudo à dimensão subjetiva de tal fenômeno,
esforçando-se para ressaltar a complexa conexão entre o modelamento das identidades e da
consciência e os novos contextos de organização social e possibilidades abertas de
reconstrução das biografias pessoais. Como o próprio título do livro sugere, o autor alemão
acredita que a sociedade que se desenha – que recebe o nome de “segunda modernidade” –
deve muito de suas novas características à categoria “risco”, que tem relevância acima de tudo
pelas formas de percepção em torno de possíveis ameaças objetivas, que são produzidas pelos
discursos dos sistemas especializados de conhecimento científico e alcançam as “pessoas
comuns” das mais variadas maneiras. Com isso, modos de identificação, interpretação e
prevenção de riscos são difundidos forjando uma “sociedade do risco”, na qual se aprofundam
e se liberam mecanismos de crítica social, abrindo-se a novas possibilidades de reinvenção e
de contestação de “certezas” e instituições pelas quais a modernidade se erigiu (BECK, 1992,
p.128-132).5
Assim a individualização consiste, em primeiro lugar, numa “desincorporação, e,
[em] segundo, a reincorporação dos modos de vida da sociedade industrial por outros modos
novos, em que os indivíduos devem produzir, representar e acomodar suas próprias
5
A interpretação de riscos abriria as portas para um exame reflexivo que se situa num mundo onde há uma
experimentação de novos estilos de vida, tornados possíveis pelo fato da sociedade ter se destradicionalizado.
Nasceria daí um potencial emancipatório que se contrabalançaria com interpretações sobre riscos mediante a
reflexividade (conceito este que não recebe um tratamento mais sistemático na obra do autor, a despeito de sua
centralidade para a análise), permitindo a reformulação das identidades e das biografias individuais, ou seja,
novas trajetórias são abertas em um mundo onde os atores optam por planos de vida mais contingentes.
21. 20
biografias” (BECK, 1997, p. 24). A individualização significa então uma transição de uma
“biografia padronizada” por uma “biografia escolhida” – uma biografia reflexiva.
O presente trabalho, contudo, procurará se distanciar dessas correntes, na medida em
que tentarei evidenciar e privilegiar justamente aspectos não-reflexivos da construção da
subjetividade moderna. Ao longo do texto, creio que ficarão claros os argumentos e os
raciocínios que me levam a isso.
Mais tarde, será a concepção de autenticidade que passará a designar o
aprofundamento das singularidades individuais na modernidade. Autores como Alessandro
Ferrara supõem que a noção de subjetividade autêntica representa para a modernidade
contemporânea o mesmo tipo de princípio central de organização que a noção de
subjetividade autônoma teria representado numa primeira fase da modernidade. Uma nova
etapa da modernidade significaria uma ênfase crescente na autenticidade como um princípio
normativo, capaz de ensejar as particularidades de uma forma nunca antes vista. Veremos
como o princípio da autenticidade também consiste no ponto de chegada da análise de Charles
Taylor quanto ao problema. Contudo, já posso adiantar que o mesmo não se dará em
Foucault, que ao contrário, vê certos tipos de “cuidados consigo mesmo” como algo distante
da realidade moderna.
Na verdade, praticamente todos os grandes pensadores da teoria sociológica, da teoria
social, ou mesmo da filosofia tem algo a dizer sobre essa questão. Daí também a
impossibilidade de desenvolver um trabalho envolvendo mesmo as principais visões sobre o
tema, pois muitas tendências tentaram lidar com o problema, de formas muito díspares. Em
decorrência disso, tive de realizar uma opção: a de me dirigir a análises que atingiram meu
interesse por razões que veremos ao longo do texto. O texto contemplará os pensamentos de
Charles Taylor e de Michel Foucault. Essa opção foi ao mesmo tempo “unilateral” e
razoavelmente consciente, por dois autores que, apesar das inúmeras discrepâncias entre eles,
22. 21
tem em comum algumas coisas importantes. A crítica a uma concepção de sujeito solto no
mundo, descontextualizado talvez seja uma das mais evidentes. Pode-se dizer que ambos
participam do projeto de uma situalização da subjetividade, de uma tentativa de situar
historicamente o fenômeno. Mas tanto seus caminhos, suas opções filosóficas e
metodológicas quanto a visão final que os dois terão a respeito das condições específicas do
sujeito moderno são bem distintas.
Assim, a escolha desses dois autores deveu-se, em primeiro lugar, à possibilidade de
encontrar, mesmo em vertentes de pensamento que evitam por completo qualquer noção de
sujeito transcendental ou desprendido do mundo, uma reflexão sobre o significado da
individualidade para a subjetividade moderna. Ou seja, ainda que eles neguem qualquer
individualidade solipsista ou atomista, eles tendem a visualizar, no mundo moderno ou fora
dele, um padrão de individualização, tenha esse termo certos sentidos específicos para cada
um deles; talvez possamos dizer que para Taylor e para Foucault, ao fim e ao cabo, uma certa
idéia de liberdade (no sentido de uma maior mobilidade quanto ao desenho dos selves
individuais) ainda aparece no fim do túnel.
Mas, na verdade, a opção por Charles Taylor e Michel Foucault foi feita, acima de
tudo, pelo fato de que as duas formas de pensar se enveredam, de distintas maneiras, ao
campo da ética como condição de inteligibilidade da noção de indivíduo moderno. Ou seja,
uma posição – da qual compartilho – de que é partir dos valores, das normas, das prescrições
e da moralidade que é viável situar corretamente uma noção de subjetividade individual na
modernidade. Claro, pode-se dizer com razão, que eles não foram os primeiros nem os
últimos a deslocar o problema nessa direção. Mas certamente eles estão entre os que
realizaram as mais interessantes formulações sobre essa problemática que atraiu minha
preocupação. Além disso, será através de duas interpretações distintas do legado ético ou
23. 22
moral do ocidente, vale dizer, fundamentalmente construído sobre a herança do cristianismo,
que Taylor e Foucault terão duas visões do “indivíduo” na modernidade.
Taylor deve ser visto como um dos mais influentes pensadores da atualidade por
reivindicar, com um embasamento teórico muito consistente, a extrema importância da
moralidade, dos valores ou da linguagem para a explicação dos fenômenos humanos. A
fundamentação de sua antropologia filosófica é praticamente toda formulada para demonstrar
como os homens são seres auto-interpretativos e como essa característica acaba sendo de uma
ou de outra forma menosprezada nas explicações das ciências humanas. Veremos o quão
longos são os caminhos que Taylor percorre a fim de fundamentar essas convicções. Taylor
adota, em virtude de tais convicções, uma opção hermenêutica de ciência, justamente porque
é ela que permite elucidar essas auto-interpretações. O objetivo de Taylor em um de seus
principais livros – “As fontes do self” – será o de capturar as fontes morais que levaram o
mundo moderno a ser o que é. Esse certamente é um ponto que o aproxima de Weber, cuja
análise desvendou a importância da contribuição especificamente religiosa do protestantismo
ascético na construção do racionalismo e das principais instituições ocidentais. Taylor segue a
tese weberiana de que as concepções religiosas do mundo foram as grandes responsáveis
pelos desenvolvimentos que levaram à singularidade do ocidente moderno, para diversas
práticas econômicas, políticas, etc. Contudo, Taylor não quer simplesmente demonstrar a
importância dos valores religiosos como um impulso inicial para formação do mundo
moderno, mas deseja evidenciar o pano de fundo moral inarticulado que continua a ser o
fundamento do mundo contemporâneo.
Para Taylor, o mundo moderno foi montado em torno de duas configurações morais
que têm origem numa mesma concepção religiosa – a interioridade –, cada uma das duas
guardando um sentido de individualidade peculiar. No fundo, Taylor vê a modernidade como
o lugar onde se desenvolveram éticas universais, formas de individualismo e uma ênfase nos
24. 23
princípios de liberdade, autonomia, dignidade e autenticidade. A intenção da análise histórica
de Taylor é tornar claros os “bens” (goods) que fundamentam a modernidade e, ao mesmo
tempo, o sentido da individualidade moderna; bens estes que estariam enterrados bem fundos
e esquecidos. Esse “esquecimento” das fontes morais é o que traria as dificuldades do seres
humanos em interpretar suas identidades em relação à estrutura moral pré-existente.
Aliás, já que falei em análise histórica, convém lembrar que ambos – Foucault e
Taylor – intitulam seus procedimentos de investigação histórica de genealogia, embora, como
terei a oportunidade de demonstrar, o mesmo rótulo não signifique a mesma compreensão
sobre quais são os atributos básicos desse procedimento.
Foucault traz uma crítica da modernidade. Seu modo de pensar foi inovador no sentido
de denunciar, como ninguém havia feito, a atuação de mecanismos de poder não
simplesmente tomado a partir centros políticos, do Estado, etc., mas em micro-instâncias da
realidade cotidiana. Sua análise das formações discursivas traduzia a íntima relação entre
poder e saber. A partir de sua “fase genealógica” ele evidenciou ainda mais o projeto de uma
genealogia do self moderno (ou da “alma” moderna), com uma influente análise sobre a
centralidade dos dispositivos disciplinares como matriz das subjetividades modernas. Mas ele
foi além disso quando seu projeto delineou-se, em sua última fase, para as formas de
“subjetivação”, para as relações entre subjetividade e verdade e para a identificação das
“práticas de si”. Nessa sua última fase, ganha relevo a preocupação com a ética para a
constituição do self. Enfim, por essas vias se dão suas contribuições para o diagnóstico do
caráter do indivíduo na modernidade, como veremos em detalhe.
Os dois projetos teóricos podem ser vistos como uma busca pelo diagnóstico de nossa
situação no presente, e permitem formas de afastar essas ingênuas percepções cotidianas a que
me referi. Para Taylor, significará tentar desmistificar essas percepções a partir da
demonstração do pano de fundo moral que subjaz à construção da identidade moderna. E,
25. 24
para Foucault, uma forma de desmistificá-las em torno da demonstração de como a
subjetividade moderna está inserida em mecanismos específicos e historicamente situados de
poder.
Veremos que uma opinião compartilhada pelos dois é a de que a proximidade com o
presente prejudica nossa autocompreensão da realidade, nos dois autores por uma impressão
de liberdade que invade nossa percepção de nós mesmos. Em Taylor esse fenômeno vincula-
se ao influente e errôneo modo de pensar que chama de “naturalismo” e, em Foucault, à
impressão de autonomia engendrada pelos mecanismos de disciplina, ou por outros
dispositivos que se apresentam a nós na forma de uma liberação.
Até mesmo pelas escolhas dos autores, notar-se-á como, no presente texto, não tenho a
intenção de desenvolver formas de explicação causal, no sentido de procurar estabelecer
relações entre os variados fatores que teriam “gerado” o self moderno, ou de tentar indicar
como se deram as formas de dinâmica entre distintas dimensões da vida social, ou seja, as
múltiplas relações possíveis entre esfera econômica, política, cultural que levaram ao seu
desenvolvimento. Não é esse meu objetivo. Mas o de discutir uma espécie de ontologia da
subjetividade enquanto individualidade na modernidade. Consiste na tentativa de lidar com a
questão da individualidade levando em consideração as análises desses dois pensadores da
segunda metade do século XX.
Assim, o primeiro capítulo consistirá numa tentativa de trazer à tona as contribuições
do canadense Charles Taylor: a modernidade é pensada fundamentalmente a partir de um
ponto de vista holista-hermenêutico, pelo nascimento de certas configurações culturais ou
morais específicas, onde formas de distorção presentes cotidianamente impediriam-nos de ver
o vínculo de nós mesmos com o mundo; vínculos estes pensados em termos de grandes
conjuntos de valores que permeiam as mais cotidianas ações e que, exaltando a liberdade ou a
singularidade individual, contribuem para uma dinâmica específica das identidades
26. 25
individuais dentro da modernidade ocidental. Fundamentalmente, o que procurarei é
evidenciar o nexo entre questões como individualidade, identidade, moralidade e
reconhecimento.
No segundo capítulo, pretendo fornecer uma visão geral do pensamento de Michel
Foucault, sobretudo a partir de seus empreendimentos genealógicos. Muitas de suas
contribuições podem ser agrupadas em torno da demonstração do poder como condição de
inteligibilidade das próprias formas em que são pautadas as noções de indivíduo moderno; a
análise se adentra no exame das correlações entre os saberes, as verdades, as subjetividades e
uma “microfísica do poder”.
Nesse estudo não pretendo afirmar que as análises realizadas por Foucault ou Taylor
podem ser estendidas em todo o seu alcance para qualquer das sociedades que viermos a
considerar como modernas. Na verdade, trata-se de um estudo teórico calcado na análise de
dois pensadores de peso que analisaram, com olhos nas sociedades européias e norte-
americanas, processos gerais que marcariam a especificidade dessas sociedades em relação a
outras sociedades precedentes. Por outro lado, penso que entender o pensamento deles seja
profícuo para analisarmos outras “modernidades”, por dois motivos básicos: em primeiro
lugar, porque muitas de considerações se situam no terreno que já algum tempo vem sendo
chamado de “teoria social”, enquanto conjunto de questões que se situam na fronteira entre a
filosofia e as ciências sociais, que se ocupam dos fundamentos não restritos a uma ou outra
disciplina, mas às ciências sociais de uma forma geral. É por meio de questões desse tipo que
podemos articular categorias de pré-compreensão da realidade, imprescindíveis a análises
preocupadas com seus alicerces. Ora, por mais despreocupada teoricamente que uma análise
se pretenda, ela jamais estará livre de teorias ou categorias implícitas, e o pior, é que estas
serão usadas de maneira impensada, não tematizada ou inquestionada. Nesse sentido, coloco-
me em defesa de uma fundamentação filosófica da sociologia como única forma de adotarmos
27. 26
um olhar reflexivo sobre nós mesmos no mundo e sobre nossas possibilidades de
compreensão do mesmo, até mesmo porque ela não deve abdicar de suas pretensões críticas.
Em segundo lugar, porque facilmente vemos como a modernidade desses países afetou
profundamente as mais variadas formações sociais do planeta, que embora recebendo sua
“herança” de acordo com seus próprios arranjos internos, com uma dinâmica que somente em
cada caso possa ser explicada, disseminou instituições, valores, formas de poder, de saber,
com um formato no mínimo semelhante, em alguns aspectos, ao das sociedades originárias.
Pensemos, por exemplo, nas duas mais fundamentais instituições do mundo moderno: estado
racional burocratizado e mercado capitalista e na vastíssima extensão que conseguiram
alcançar.
Seguramente, no momento atual de minhas pesquisas seria algo imprudente de minha
parte tentar emitir um juízo sobre a “aplicabilidade” desses estudos que realizo em outras
modernidades que aparecem em outras partes do mundo, como a modernidade brasileira.
Trata-se mesmo de um estudo comparativo, entre Taylor e Foucault a respeito das feições
modernas da individualidade – cujos parâmetros de análise para esses autores é a
modernidade da forma como foi desenvolvida primeiramente na Europa e na América do
Norte – e de seus respectivos arsenais teóricos e conceituais para dar conta do problema.
Ao longo de minha pesquisa (aliás, espremida por um calendário apertado e por
obrigações de outros cursos) fui me dando conta, sobretudo à medida que conseguia adentrar
no pensamento de Michel Foucault, da quantidade de outras questões que essa temática iria
me colocar. Ao ver que um pensador da grandeza de Foucault, após a publicação do seu
primeiro volume da “História da sexualidade”, passaria anos sem publicar sua continuidade
justamente em virtude de ter percebido tamanha complexidade de tal problemática, e o que o
faria deslocar o ponto de enfoque de seu projeto inicial, fui tendo uma dimensão mais exata
do quão isso exige de um pesquisador. Muitos dos problemas que se colocaram a mim no
28. 27
decorrer da pesquisa, em virtude do tempo que tinha pra refletir sobre cada um deles, não
puderam ser explorados, aprofundados, pensados; isso representou, de um lado um esforço
instigante, mas também uma frustração em saber o que podia estar sendo deixado de lado.
Mas enfim, toda pesquisa envolve certos tipos de limitações, de delimitações, de escolhas.
Não creio que isso seja de todo ruim. Mesmo porque me permitiu um envolvimento centrado
em certas questões que sabia não poder ir além delas. Aliás, devo dizer que o próprio sentido
de meu empreendimento foi ficando mais claro a mim com o decorrer do tempo. Mas creio
que uma boa pesquisa talvez seja exatamente aquela em que não se sabe de antemão onde se
vai terminar ou se vai chegar, pois há uma dimensão crucial da experiência científica que só
pode se fazer onde há dúvidas e descobertas.
29. 28
CAPÍTULO I. Charles Taylor: para uma reconstrução dos princípios
subjacentes ao self moderno
Ainda relativamente pouco conhecida no campo das ciências sociais, a obra do
filósofo canadense Charles Taylor tem progressivamente se mostrado fonte de
desenvolvimentos significativos para a teoria social e mesmo para análises de diversas áreas
da sociologia e da ciência política. O leque de sua produção intelectual abrange contribuições
para a filosofia das ciências humanas, teoria social, filosofia política, história moral do
ocidente, entre outros. Considerado um dos mais influentes filósofos dentre países de língua
inglesa da atualidade, às vezes classificado como comunitarista6
, embora ele mesmo não se
identifique com tal rótulo, às vezes como filósofo pós-analítico, Taylor parece permanecer, no
decorrer de sua produção intelectual nas últimas décadas, com a mesma convicção sobre
algumas das principais questões que norteiam e caracterizam sua obra.
O interesse crescente por suas reflexões e a conseqüente assimilação de algumas de
suas idéias às ciências sociais, ao que me parece, está especialmente relacionado ao
progressivo avanço das teorizações sobre a questão do reconhecimento e paralelamente do
multiculturalismo, no cenário das sociedades modernas contemporâneas. Ao lado de Axel
Honneth e de Nancy Fraser, Taylor é considerado um dos principais expoentes quando o
assunto é teoria do reconhecimento. A grande preocupação se dá fundamentalmente sobre o
reconhecimento político de grupos minoritários, “subalternos” ou da questão feminista, o que
obrigatoriamente remete à questão da própria consolidação das identidades desses grupos.
Mas não é exatamente esse o aspecto de meu interesse no presente estudo. Na verdade, a
6
Em linha gerais, diz-se comunitaristas daqueles pensadores que têm procurado enfatizar a importância dos
arranjos e instituições sociais e coletivos – ou seja, da inserção numa comunidade – para o desenvolvimento da
identidade e dos sentidos individuais. Na verdade, as tendências comunitaristas de Taylor aparecem mais em
termos de um comunitarismo como “ontologia” – como pressupostos de análise da realidade. Talvez por isso
mesmo sua rejeição ao rótulo.
30. 29
problemática do reconhecimento de grupos é para Taylor uma das duas faces de um
movimento de crescente valorização de um “ser autêntico” no mundo contemporâneo.
Voltaremos a essa questão nas últimas seções desse capítulo.
Na verdade, minha atenção no presente capítulo estará voltada para o modo como
Charles Taylor responde a uma série de indagações acerca do caráter e do status da “condição
individual” na modernidade. Afinal, qual significado da “individualidade” como um traço
peculiar do desenvolvimento ocidental? Qual o status ontológico de um indivíduo e de sua
relação com mundo social? Existe um padrão de subjetividade “individual” no mundo
moderno que não há em sociedades pré-modernas? No que ele consiste? A meu ver, Taylor
construiu um aparato teórico potencialmente profícuo e original que o possibilitou um modo
sensível de tratar essa temática. Seu esforço para refutar as correntes intelectualistas,
subjetivistas e atomistas, sua rejeição à idéia de uma consciência monológica, sua peculiar
defesa da tradição hermenêutica e sua assimilação das obras de Hegel, Herder, Wittgenstein,
Heidegger, Merleau-Ponty, entre outros, fazem de seu modo de pensar uma referência ímpar
na teoria social contemporânea. A partir dessas influências ele desenvolvera sua própria
filosofia da ação e também uma antropologia filosófica original. No intuito de alcançar meus
objetivos, minha intenção será também de apreender o seu diagnóstico substantivo do
desenvolvimento moderno e da tematização dos núcleos morais que para ele constituem os
pilares da modernidade ocidental. Apenas depois de acompanhar esse diagnóstico é que estará
aberta a possibilidade de entendermos as duas concepções de individualidade que convivem
na modernidade e de que forma elas são pensadas. Para tanto, terei que percorrer um caminho
relativamente longo, o que reclama certa paciência do leitor para os problemas
“incontornáveis” pelos quais terei que passar ao longo das páginas do texto.
Talvez seja o modo mais conveniente e sensato de se dar início a um texto sobre
Charles Taylor apontando, desde logo, o seu repúdio a uma dada forma de reflexão e de
31. 30
concepção de ciência, estas que seriam responsáveis diretas por uma esterilização, deturpação,
implausibilidade de como pensar o homem, de como caracterizar e como fazer as ciências
humanas. O imaginário moderno – ou ao menos uma parcela demasiado expressiva e bastante
influente deste – teria solidificado e cristalizado formas de compreensão incompletas dos
fenômenos humanos, formas restritivas de pensar a linguagem, modos impróprios de conceber
a inserção dos agentes no mundo. Dito isto, devo dizer que, a meu ver, muitas das
contribuições mais relevantes de Charles Taylor são praticamente configuradas em torno de
demonstrar: i) o “como” e os “porquês” de tamanha força de persuasão de tais modos
“ingênuos” de reflexão; ii) e de fornecer longos e incansáveis estudos empenhados em afastar
tais pressupostos e ao mesmo tempo apontar o que acredita serem os caminhos possíveis para
uma compreensão mais adequada do universo humano.
Por isso, uma parcela considerável dos escritos do autor pode ser vista como um
esforço para demonstrar a inadequação e a implausibilidade de todo um conjunto de teorias
sobre o homem. Os reducionismos que Taylor privilegia em seus ataques estão
consubstanciados na família de teorias e de modos de entender o ser humano que ele colocou
sob rótulo de “naturalismo” (TAYTOR, 1985a, pp. 1-4). Em uma definição provisória, uma
visão naturalista implica
não apenas a visão em que o homem pode ser visto como parte da natureza – o que em um
sentido ou em outro seguramente seria aceito por todo mundo – mas que a natureza da qual ele
faz parte é compreensível de acordo com os cânones que emergiram na revolução das ciências
naturais do século XVII (TAYLOR, 1985b, p. 2 – minha tradução).
Como veremos, seu ponto de vista anti-naturalista está intimamente ligado à sua
inclinação comunitarista, em termos de pressupostos anti-atomistas da realidade social. Será a
partir de tal crítica ao naturalismo que o filósofo irá fornecer um exame peculiar do
individualismo na modernidade, longe de ser tomado em termos de uma atomização ou da
perda de nexo entre os “agentes individuais”. Sua postura permitirá exatamente demonstrar
32. 31
como o próprio individualismo deve ser entendido a partir de uma hermenêutica que leva em
conta pressupostos holistas de análise. Ademais, Taylor é um crítico das teorias da
modernidade que se pautam em um viés “acultural”, ou seja, teorias que descrevem as
transformações responsáveis pela modernidade em termos de operações culturalmente
neutras, que distorcem e empobrecem nosso auto-entendimento. Por isso, seu objetivo é
captar exatamente os aspectos morais, culturais ou valorativos que tornam possível a
modernidade e sem os quais ela não pode ser explicada (TAYLOR, 2001).
Analiticamente, dois grandes conjuntos de problemas serão aqui tratados: i) os temas
por assim dizer “metodológicos” e ao mesmo tempo “filosóficos”, por meio dos quais o
filósofo procura se dirigir rumo à construção de uma teoria da ação, de uma “antropologia
filosófica” e de uma teorização acerca da especificidade das ciências humanas; ii) e, por outro
lado, o autor lança-se no empreendimento, bastante ambicioso aliás, de prover um diagnóstico
peculiar e bem amplo das propriedades mais básicas e fundamentais da identidade do homem
na modernidade. Obviamente, os dois tipos de questões estão quase sempre entrelaçados,
sobretudo na medida em que, segundo nos diz o autor, as próprias concepções fundamentais
da modernidade nos impelem a um modo específico e inadequado de opções metodológicas
sobre o estudo do ser humano.
Antes de continuarmos, uma palavra sobre a forma como procurei montar o texto que
se segue. Busquei organizar o capítulo em duas seções básicas: (1) a primeira seção representa
um esforço para permitir a compreensão do conjunto de pressupostos filosóficos e
metodológicos do autor. Essa seção está divida em quatro subseções. Em linhas gerais, inicio
(1.1) com a apresentação de algumas questões essenciais de seus estudos sobre Hegel (1975-
1979); a seguir, passo à análise de seus “Philosophical Papers” (1985) e de alguns textos
mais recentes como “Argumentos Filosóficos” (1995) – pelos quais examino: em primeiro
lugar, (1.2) sua assimilação dos avanços na filosofia da linguagem; (1.3) sua fundamentação
33. 32
de uma antropologia filosófica e teorização acerca da especificidade das ciências do homem;
(1.4) sua postura quanto à necessidade de uma direção hermenêutica nas ciências humanas. A
partir daí, (2) passo para a segunda seção (subdividida em outras seis subseções), com o
diagnóstico tayloriano da modernidade presente em “As fontes do Self” (1989), elencando de
forma breve alguns conceitos analíticos adicionais e sua tentativa de resgate genealógico e de
tematização da “ontologia moral” sobre a qual teria se erigido o ocidente; ainda nessa parte
pretendo alcançar seu entendimento sobre a constituição dos principais traços da subjetividade
no mundo moderno, abordando assim suas discussões em torno da questão dos ideais de
autonomia, de dignidade e autenticidade. E, por fim, encerro com uma discussão específica
sobre o tema da autenticidade e seu vínculo com a categoria do reconhecimento; nessa parte,
os principais trabalhos utilizados são “The Ethics of Authenticity” (1991) e “A política do
reconhecimento” (1992) – que aparecem como extensão do projeto de “As fontes do self”
mas ao mesmo tempo trazem reflexões sobre alguns pontos não desenvolvidos naquele livro.
Enfim, no intuito de permitir a compreensão de suas idéias pretendi percorrer alguns
delineamentos básicos de sua obra, esta que se torna significativa a partir dos anos 70 e chega
até o presente momento mantendo certa coerência com suas etapas anteriores. As seções do
capítulo também correspondem, no geral, às fases cronológicas da produção do autor, ainda
que, em virtude da própria natureza de inter-relação entre os vários temas tratados que surgem
e ressurgem em variadas fases e em várias obras, isso não tenha sido feito de forma rígida.
1. Os fundamentos filosóficos e metodológicos do pensamento tayloriano
Na medida em que as concepções correntes de ciência social são fortemente
enraizadas em uma doxa que Taylor acredita ser intrinsecamente prejudicial à nossa auto-
compreensão, ou em outras palavras, em um conjunto de juízos característicos de nosso
34. 33
momento histórico que impõem certas noções como verdades auto-evidentes e naturais,
incompatíveis com uma mais adequada compreensão da vida social e de suas sutilezas,
impõe-se a necessidade de rediscutir todas as bases sobre as quais se pautam. Para ele, noções
reduzidas do discurso, da linguagem, da natureza do agente humano e de suas relações com o
mundo, penetram e solidificam-se nos principais pressupostos da filosofia ou das ciências
humanas.
Necessita-se, portanto, de uma grande reformulação dos pressupostos para a
compreensão do mundo humano: um dos grandes desafios do empreendimento tayloriano e
que se coloca como uma das questões de primordial interesse no presente trabalho é,
indubitavelmente, o de fornecer uma arquitetura filosófica e um método capazes de acessar
com maior acuidade as inúmeras práticas e contextos humanos. O procedimento investigativo
pressupõe uma ampla e árdua busca em torno do que permite a validade das investigações da
sociologia e das ciências humanas em geral, ou seja, se as ciências sociais se pretendem
minimamente reflexivas, deve-se procurar fundamentar de maneira exaustiva a natureza da
possibilidade de compreensão da realidade, deve-se estar continuamente atento sobre os
limites e dificuldades de um procedimento que busca oferecer um “algo a mais” do que as
inarticuladas, fragmentárias e não-transparentes impressões da realidade que chegam aos
agentes cotidianamente. Talvez seja uma luta contra uma impressão de facilidade no acesso
imediato aos fatos humanos um dos traços mais marcantes da produção do autor.
1.1. As dívidas com a filosofia hegeliana
Assim como em todos os clássicos da teoria sociológica e também os grandes
expoentes mais recentes da disciplina, até mesmo os temas mais propriamente “sociológicos”
e substantivos são fundamentados e orientados por fortes premissas filosóficas, sem as quais
35. 34
aqueles carecem de sentido. O acesso ao pensamento de um autor requer um exercício, nem
sempre fácil e bem sucedido, de compreensão das condições estruturantes que subjazem a
toda elaboração sistemática de idéias, a todo movimento teórico mais pretensioso.
Obviamente, isso impõe-nos a obrigação de realizar um estudo sistemático de algumas das
influências do autor, ou ao menos das mais significativas. No caso de Taylor, cabe em
primeiro lugar nos debruçarmos rapidamente sobre seus estudos sobre Hegel, dentre os quais
se destacam dois livros de sua autoria publicados ainda na década de 1970, “Hegel” e “Hegel
and the Modern Society” e ainda um texto presente em seus Philosophical Papers: “Hegel’s
Philosophy of Mind”.
É justamente em seus instigantes trabalhos sobre a obra desse gigante da filosofia
ocidental que, acredito eu, encontram-se os atalhos mais seguros para o início de uma fiel
reconstrução do edifício tayloriano. Porém, levando-se minimamente em conta o
reconhecimento de tamanha complexidade da obra de Hegel, não se faz possível nem cabível,
no presente texto, um exame sobre a validade ou fidelidade das interpretações que Taylor faz
do filósofo alemão. Interessa-nos aqui mais o entendimento e os temas que se fizeram
importantes para Taylor, sobretudo os que o autor incorporou à sua própria forma de pensar.
Foi com Hegel – cuja produção remete ao início do século XIX – que Taylor
encontrou uma forma original e brilhante de pensar uma questão que, para o autor canadense
(e, segundo este, também para Hegel) era definitivamente central: como conciliar a idéia de
liberdade a uma determinada situação “cultural” específica? De que modo é possível conceber
uma noção de subjetividade ao mesmo tempo livre e “situacionada” em uma comunidade de
valores?
De acordo com Taylor, a concepção predominante de subjetividade na modernidade
teria se desenvolvido a partir de um viés extremamente marcado por uma idéia de liberdade,
que seria um dos valores mais invocados e cultuados da época moderna e que impõe uma
36. 35
imagem dos seres humanos vistos como desvencilhando-se de impedimentos, amarras ou
obstáculos externos: “ser livre é, de certa forma, ser desimpedido, é depender apenas de si
mesmo; [...] a nova identidade como sujeito definidor seria conquistada libertando-se da
matriz mais ampla de uma ordem cósmica” (TAYLOR, 2005, p. 193).
Por certo, as reflexões de Hegel estavam animadas pela certeza de que a compreensão
da sociedade moderna exigia a superação de uma concepção atomista que permeava as formas
dominantes de práticas filosóficas. Dito de outra forma, Hegel se pautava numa intuição
original da necessidade de um contexto normativo prévio, de um ethos preexistente como
dado básico de toda prática social e de toda formação de identidades. Assim, segundo a leitura
de Taylor, um dos maiores desafios da filosofia de Hegel foi o de tentar conciliar a liberdade
do indivíduo que se conhece como racionalidade universal com uma vida em comunidade,
com um ethos localizado. A teoria hegeliana do sujeito se mostra como uma teoria da auto-
realização, radicalmente oposta ao dualismo da filosofia pós-cartesiana (incluindo o
empirismo) e ao dualismo de ambos os lados em sua ascendência. Tal dualismo era
caracterizado por uma concepção de sujeito como um centro da consciência, percebendo o
mundo exterior e a si mesmo, centro que era imaterial e, por isso, heterogêneo do mundo do
corpo, incluindo o próprio corpo do sujeito. As funções “espirituais”, como o pensamento, a
percepção e o entendimento, são atribuídas a esse ser não-material. E essa “mente” é às vezes
considerada perfeitamente autotransparente, ou seja, capaz de ver claramente seus próprios
conteúdos ou suas “idéias” – para Taylor, tal teria sido a concepção de Descartes (TAYLOR,
2005, p. 29).
Ora, se minha interpretação está correta, a força e o brilhantismo do argumento
hegeliano residiu exatamente na constatação de que não fazia mais sentido procurar uma
maneira a-histórica e des-situada de definir o sujeito em termos formais. Hegel buscou ir além
dos conceitos de subjetividade correntes, sugerindo uma rígida refutação aos conceitos de
37. 36
sujeito que marcavam as filosofias de Kant a Fichte, baseados em um formalismo de caráter
a-histórico e universal. Mas por que faria sentido para Hegel pensar um espírito que é maior
que um indivíduo? Qual o significado da suposição de que um indivíduo é parte de uma vida
mais ampla e ao mesmo tempo é inerente a ela? Taylor responde dizendo que essas idéias
parecem misteriosas justamente em virtude de uma
forte influência que temos dos preconceitos atomistas, que foram muito importantes na cultura
e no pensamento político modernos. Só poderemos pensar que o indivíduo é o que é em
abstração em relação a sua comunidade se pensarmos nele qua organismo. Contudo, quando
pensamos num ser humano, não concebemos simplesmente um organismo vivo, mas um ser
que pode pensar, sentir, decidir, emocionar-se, reagir, estabelecer relações com os outros, e
isto tudo implica uma linguagem, um conjunto correlato de maneiras de experimentar o
mundo, de interpretar os sentimentos, de compreender as relações com os outros, com o
passado, com o futuro, com o absoluto, e assim por diante. É a maneira particular como o
indivíduo situa a si mesmo neste mundo cultural que chamamos de identidade (TAYLOR,
2005, p. 112 – grifos meus).
Através dos conceitos de “Espírito” e “Idéia” Hegel procurava demonstrar a
indissociabilidade entre sujeito e objeto, pois a subjetividade não era possível de ser pensada
fora de uma determinada contextualização histórica, fora de uma situação, de uma totalidade
contextual.7
Portanto, algumas das dicotomias que Hegel almejou superar foram entre
subjetividade e objetividade, ou entre pensamento e coisa; o pensamento não é distinto das
coisas, mas está inserido nelas e assim torna-se também responsável por sua natureza e
desenvolvimento.
Na filosofia hegeliana a subjetividade está desde sempre envolvida por uma “vida
ética”, por uma “Sittlichkeit”.8
Deve-se ter em mente que a Sittlichkeit para Hegel, diz Taylor,
7
Creio ser importante aqui esclarecer que o conceito de Idéia em Hegel vai muito além do sentido de uma mera
representação subjetiva de uma realidade; ela não contrasta com a realidade. Afastando-se da filosofia platônica,
Hegel rejeita qualquer visão de dois mundos, aproximando-se mais da noção aristotélica de que as idéias estão
em coisas (ver, por exemplo, INWOOD, 1997, pp. 168-171).
8
Optei, tal como Taylor, pela não tradução do termo Sittlichkeit, usualmente traduzido como “eticidade”,
“moralidade” ou “vida ética”. A palavra vem de Sitte, que designa algo como “costume”, “hábito”, ou seja,
algo como um modo de conduta habitualmente praticado dentro de um grupo social (nação, uma classe, família,
etc.), mas que se afasta de conotações que tenham inclinação pejorativa, pois é geralmente associado com uma
norma de comportamento “decente”. Ou seja, Sitte não pode significar um costume individual deliberadamente
38. 37
refere-se à dimensão de nossas obrigações éticas relativas a uma vida mais ampla à qual
temos de dar suporte e seguimento. A dimensão “sittlich” é importante na vida ética dos
homens, na qual há uma profunda identificação entre a sociedade e suas instituições. Onde
isto não ocorre, onde o que é de importância central para os homens está em outro lugar,
temos o que Hegel caracteriza como alienação. Hegel não acredita, dessa maneira, que uma
sociedade livre possa ser mantida e sustentada sem esse tipo de identificação que sustenta
uma Sittlichkeit vital (TAYLOR, 2005, pp. 157-158). Nesse sentido, podemos pensar nas
instituições e práticas de uma sociedade como um tipo de “linguagem” na qual suas idéias
fundamentais se expressam, mas o que é “dito” nesta linguagem não são idéias que poderiam
estar nas mentes de apenas alguns indivíduos, mas, antes, elas são comuns a uma sociedade
por estarem imbuídas em sua vida coletiva, nas práticas e instituições que pertencem à
sociedade inseparavelmente. Nestas, o espírito da sociedade é, em certo sentido, objetivado.
Elas correspondem, no vocabulário hegeliano ao “Espírito objetivo”.
O modo de viver é tanto uma maneira de cumprir as funções necessárias da vida –
nutrição, reprodução e assim por diante – como uma expressão cultural que revela e determina
o que somos, nossa identidade. O que Hegel chama de Espírito (Geist) engloba a mente
humana, suas funções intelectuais e seus produtos. E o Espírito objetivo é o espírito comum
de um grupo social, consubstanciado em seus costumes, leis e instituições e impregnando o
caráter e a consciência dos indivíduos de uma dada sociedade. De certa maneira, ele é algo
como a objetivação do Espírito subjetivo. Esta idéia de um Espírito objetivo iria então
influenciar fortemente Taylor, que entenderia as instituições e práticas de uma época como
reflexo dos conjuntos básicos de valores que se fazem presentes como uma ontologia moral.
Enfim, foi com a apropriação de tais temas hegelianos que Taylor teve a esperança de
prover uma crítica definitiva a saberes que teriam produzido uma forma caricatural de
escolhido. Dessa maneira, Sittlichkeit pode ser entendida como normas éticas consubstanciadas nos costumes e
instituições da sociedade a que se pertence (INWOOD, 1997, pp. 322-324).
39. 38
postulados acerca da compreensão humana, uma auto-distorção que significaria perder de
vista a unidade entre a consciência individual e uma Sittlichkeit (TAYLOR, 2005, pp. 11-12).
Além disso, Taylor consegue depreender do pensamento de Hegel algumas bases para
sua teoria da ação. Em seu “Hegel’s philosophy of mind” (In: TAYLOR, 1985a), observa-se
como a construção de sua teoria da ação deve muito a uma idéia presente no sistema
hegeliano que Taylor chamou de princípio de “corporificação” (embodiment). De acordo
com esse princípio, o que tenderíamos a focar como fenômenos “mentais” pode somente ser
entendido como processos em que formas de pensamento são corporificadas, ou seja, são
concretizadas e impregnadas no “corpo”, de inúmeras maneiras. É assim que linguagem e
corpo são unidos enquanto meios de manifestações expressivas, ou seja, é a categoria da
corporificação que garante às “linguagens” serem o que são, enquanto manifestações no
mundo em termos de “expressão”. Linguagens são entendidas como veículos, concretizando-
se a partir de um meio e como um meio expressivo; a vida espiritual envolve uma dimensão
expressiva (TAYLOR, 1985a, pp. 87-88). Por isso, para Taylor, a expressão está vinculada à
própria espontaneidade não reflexiva que se corporifica nos gestos, nos modos de se portar,
falar, andar, etc. Ela que pode ser trazida como uma “consciência de si” mediante formas de
reflexão, que é então uma possibilidade para o próprio autoconhecimento e também a melhor
possibilidade de expressão.
Decerto, a idéia da expressividade da ação será um elemento chave para a
compreensão das inclinações teóricas do filósofo canadense; sua ênfase quanto à natureza
expressiva da existência humana é uma de suas grandes dívidas para com o pensamento
hegeliano. A dimensão expressiva da existência humana é o que possibilita Hegel pensar em
uma comunhão entre consciência de si e a natureza, entre a finita subjetividade e a infinita
vida que brota na natureza, entre liberdade e a vida numa comunidade. O homem é um ser
40. 39
expressivo, ou seja, um ser cujo pensamento sempre e necessariamente se expressa num certo
meio.
Por conseguinte, na visão de Taylor, ao agir o indivíduo está se expressando, está
articulando formas em que seus valores podem ser expressos. A própria noção de linguagem
que descendeu de Herder – e sobre a qual falarei logo adiante – era tomada como um meio de
expressão, onde o pensamento é inseparável da linguagem, que é muito mais do que um meio
para designar objetos no mundo.
Até agora vimos como a questão de uma subjetividade des-situada tornava-se
notoriamente implausível de acordo com o desenvolvimento de idéias que acompanhamos.
Mas esse não é o ponto de chegada: o cerne da questão passava a ser o de desvendar o
movimento responsável pela constituição, pela gênese e pelo desenvolvimento histórico da
própria subjetividade. O homem passa a ser pensado como uma nova totalidade em relação à
natureza, o que supõe princípios de entendimento radicalmente diferentes. É assim que, na
filosofia hegeliana, podemos falar de uma hierarquia de níveis do ser, onde os “superiores”
podem ser vistos como realizando, num nível mais elevado, o que os inferiores representam
de modo imperfeito. Hegel adota essa hierarquia do ser, que tem seu ápice na subjetividade
consciente. Os tipos inferiores de vida exibiriam protoformas, por assim dizer, da
subjetividade, exibindo em gradações ascendentes propósito e auto-preservação como formas
de vida, conhecimento daquilo que os cerca. Essas formas de vida assemelham-se cada vez
mais a agentes, e os animais superiores carecem somente da capacidade de expressão para
alcançar essa subjetividade. “Nos fenômenos inanimados, podemos ver uma hierarquia que
aponta para o mais elevado estágio da vida, assim como os animais apontam para a
subjetividade humana” (TAYLOR, 2005, p. 33). A subjetividade se desenvolve através da
história por movimentos intrínsecos às próprias contradições inerentes à inserção dos eventos
41. 40
humanos no mundo, a partir de um movimento dialético.9
É por isso que a racionalidade não
seria algo simplesmente dado para o homem; haveria, na verdade, o desenvolvimento
histórico do próprio pensamento: haveria uma hierarquia dos modos de pensamento, que
expressariam diferentes níveis de consciência de si ao longo do tempo. A linguagem, a arte, a
religião e sua filosofia seriam os veículos da compreensão do Espírito, mas possuiriam
diferentes graduações, porque o pensamento não pode alterar-se sem uma transformação de
seu meio de expressão. Desse modo, tem de haver uma hierarquia de modos de expressão na
qual o modo superior possibilite um pensamento mais exato, mais lúcido e mais coerente que
o inferior (TAYLOR, 2005, p. 34).
Com esse breve exame, espero ter permitido o entendimento subseqüente de algumas
das posturas cruciais do pensamento de Taylor, não só as relativas à elaboração de sua
problemática metodológica e de sua antropologia filosófica, mas também o conjunto de
problemas “substantivos” (seu diagnóstico acerca do caráter e do status do homem na
modernidade) e até mesmo os problemas relacionados à ordem política contemporânea.10
1.2. Transformações na teoria da linguagem: “formas de vida” e imersão no mundo
Após esboçar alguns tópicos da filosofia hegeliana que marcaram o pensamento de
Taylor, creio que seja mais fácil avançar com a questão da linguagem e das transformações
9
Isso porque a subjetividade “possui certas condições de existência, as do corpo, mas, ao mesmo tempo, é
caracterizada teleologicamente, como tendendo a uma determinada perfeição, a perfeição da razão e da
liberdade, e isso está de acordo tanto com Aristóteles quanto com a teoria expressivista. E as exigências dessa
perfeição se opõem, ao menos de início, às condições de existência do sujeito” (TAYLOR, 2005, pp. 32-34).
10
Vale lembrar que a apropriação de reflexões hegelianas obviamente não é algo novo nas ciências sociais. O
filósofo foi e continua a ser fonte de inspiração para distintos pensadores extremamente fecundos e influentes no
âmbito das ciências sociais, representantes de diferentes tendências. Foi de onde Marx retirou suas principais
inspirações para a elaboração de suas sistematizações, especialmente de sua concepção dialética da história;
Dilthey, também um estudioso do pensamento de Hegel, teria feito uso da noção hegeliana de “espírito objetivo”
em sua descrição de produtos culturais, compartilhando da crença hegeliana de que “somente através da história
o homem descobre o que é” (INWOOD, 1997, p. 35); Habermas, por sua vez, encontrou nos escritos de
juventude de Hegel, sobretudo nos escritos de Jena, uma das formulações embrionárias de uma das noções mais
importantes de sua obra: a de intersubjetividade (HABERMAS, 2001); Axel Honneth, também bebendo na fonte
do jovem Hegel, fundamenta aí alguns dos aspectos centrais de sua “luta pelo reconhecimento”; e não seria
difícil lembrar de vários outros exemplos.
42. 41
que permitiram uma maneira completamente diferente no modo de concebê-la. Aliás, o autor
acredita que o desenvolvimento mais importante da filosofia do século XX provavelmente
tenha sido a focalização nas teorias do significado e na filosofia da linguagem, o que segundo
ele vincula-se, ao menos em parte, ao desejo de definir uma noção de subjetividade na
situação (TAYLOR, 2005, p. 201). A transição do “paradigma da filosofia da consciência”
para o “paradigma da filosofia da linguagem” constitui um corte profundo na agenda da
vanguarda das ciências sociais do século XX e, nesse ponto, Taylor não está sozinho.11
Mas qual seria a relação da filosofia de Hegel com essa guinada contemporânea?
Como vimos, o princípio da corporificação é fundamental na teoria de Hegel. A subjetividade
está necessariamente situada na vida, na natureza, e num contexto de práticas sociais e
instituições. O pensamento ou a linguagem existem necessariamente concretizados no corpo,
corporificadas: assim, Hegel vê a linguagem e os símbolos como veículos da consciência e
entende que os diferentes veículos correspondem a diferentes níveis nos diversos estágios da
arte, da religião e da filosofia.
É com Herder que se efetua uma mudança radical em relação ao tipo de concepção de
linguagem que Taylor constantemente critica. Ele deixa de aceitar como dada a relação de
referência na qual determinados signos seriam associados a determinados objetos e passa a se
concentrar no próprio fato da existência dos signos. A partir de então a linguagem não é mais
vista um mero agrupamento de signos, mas o veículo de nossa consciência. A reação de
Herder a Condillac e à teoria então estabelecida da linguagem seria uma antecipação, em
alguns aspectos, das premissas do último Wittgenstein. Concebendo a linguagem como uma
11
Praticamente todos os nomes ligados aos avanços da teoria social da segunda metade do século XX, e que
obtiveram algum destaque, se esforçaram para assimilar, de algum modo, as modificações ocorridas nessa área
da filosofia. Poderíamos citar por exemplo Jürgen Habermas, Anthony Giddens, Pierre Bourdieu, entre tantos
outros. Habermas, por exemplo, inicia seu “Pensamento pós-metafísico” dizendo que “A partir desse momento
[de ruptura com o paradigma da filosofia da consciência e transição para o paradigma da filosofia da linguagem],
os sinais lingüísticos, que serviam apenas como instrumento e equipamento das representações, adquirem, como
reino intermediário dos significados lingüísticos, uma dignidade própria. As relações entre linguagem e mundo,
entre proposição e estados de coisas, substituem as relações sujeito-objeto. O trabalho de constituição do mundo
deixa de ser uma tarefa da subjetividade transcendental para se transformar em estruturas gramaticais”
(HABERMAS, 1990, p. 15).
43. 42
atividade expressiva de uma determinada consciência, Herder a situa na forma de vida do
sujeito, e, por conseguinte, desenvolve a noção de diferentes linguagens como expressivas,
cada uma delas, de uma visão peculiar à comunidade que a fala.12
Em seu texto “A importância de Herder”, Taylor (2000a) alega que Herder teria sido
uma figura revolucionária por ter criado um modo fundamentalmente diferente de pensar a
linguagem e o significado. Trata-se de um combate às teorias da linguagem e do significado
que ele rotula como designativas e que teriam se tornado potencialmente influentes no
pensamento ocidental:
A antiga perspectiva, que tem uma venerável tradição, é aquela que Wittgenstein ataca na
forma de uma afirmação influente de Agostinho. Podemos defini-la em termos de sua
abordagem “designativa” à questão do significado. As palavras adquirem sentido ao serem
usadas para designar objetos. Aquilo que designam é seu significado (TAYLOR, 2000a, p.
94).
Nesse sentido, a concepção herderiana de linguagem nasce como um contra-impulso a
tal movimento, em primeiro lugar porque chama a atenção para a necessidade de se levar em
consideração a idéia de um pano de fundo, que serviria como um elemento de sustentação
para todos nossos pensamentos, percepções, formas de compreensão, etc. E, em segundo
lugar, pela tentativa de situar nossos pensamentos em “formas de vida”, ou seja, em contextos
específicos de organização social (fossem eles pensados em termos de “nação”, “povo”,
“cultura”, “língua” ou “natureza”) (TAYLOR, 2000a, p. 106).
12
Talvez seja conveniente constar em nota um relato biográfico de Taylor a respeito do contexto que, segundo
sugere o autor, teria facilitado sua visualização de distintas concepções de linguagem: “Minha atração por
Herder estava há muito tempo preparada por minha situação em Quebec, onde duas línguas assim como também
duas filosofias da linguagem, estavam cara a cara. Enquanto os falantes de língua inglesa consideravam a
linguagem como um instrumento [...], para os falantes da língua francesa a linguagem constitui um modo de ser
no mundo. Tendo pertencido a uma família mista por várias gerações, sempre pareceu óbvio pra mim que a
linguagem é mais do que um instrumento, que cada linguagem carrega consigo seu próprio senso de humor,
concepção de mundo, etc. daí o meu interesse pela linguagem e pela filosofia romântica da linguagem, que
criticou a filosofia instrumentalista de Hobbes, Locke ou Condillac” (TAYLOR apud ABBEY, 2000, p. 7 –
minha tradução). Em se tratando de notas biográficas sobre Taylor, é conveniente salientar que muitas de suas
posições só se fazem plenamente inteligíveis levando-se em conta suas inclinações religiosas católicas e também
uma certa postura nacionalista, que transparecem sobretudo em suas discussões mais propriamente políticas e
sobre o contexto canadense.
44. 43
Ora, a partir do momento em que uma “consciência explícita” não mais parece algo
que possamos dar como certo, temos uma modificação substancial no quadro de uma
concepção da linguagem; a linguagem assemelha-se mais a algo como um “veículo” e, por
conseguinte, torna-se um objeto de estudo relevante não apenas como uma junção ou um
conjunto de termos pelos quais designamos as coisas, mas sobretudo como aquilo que dá
sustentação, aquilo que serve de base para tais fenômenos. Em outros termos, o significado,
de acordo com tal perspectiva, não é simplesmente uma propriedade que pertence a cada
palavra individualmente, mas um fato sobre a atividade do discurso como um todo que é, em
certo sentido, anterior aos termos individuais (TAYLOR, 2005, pp. 201-202).
Sendo assim, a idéia fundamental que se coloca é que a linguagem impõe-nos modos
específicos de “estar no mundo” e portanto, é a imersão em uma dada “comunidade
lingüística” que institui os limites e as possibilidades de ação e expressão. Em outras
palavras, dizer que uma linguagem só pode ser sustentada por uma comunidade não significa
entender a linguagem apenas como um “meio de comunicação”, como um medium utilizável
para transmitir impressões entre experiências privadas de indivíduos. Ora, o que Taylor está
dizendo é que nossa própria maneira de experienciar o mundo é o que é pelo conjunto de
“termos lingüísticos” que estão disponíveis em uma dada situação “cultural”, em uma
determinada comunidade.
Essa concepção foi desenvolvida no período romântico, e não apenas por Herder, mas
por também outros pensadores vinculados à corrente de pensamento expressivista, tal como
von Humboldt. A teoria herderiana da linguagem marcará de maneira incisiva o pensamento
de Taylor, acima de tudo sobre o modo de ver as expressões humanas enquanto manifestação
significativa de suas identidades.
Mas embora as raízes dessa reconsideração do fenômeno lingüístico remontem ao
século XIX, foi apenas no século XX que essa reconsideração assumiu uma forma filosófica
45. 44
mais sistematizada, culminando na tendência que acabaria conhecida como “guinada
lingüística” (linguistic turn). Foi sobretudo diante da ruptura que Ludwig Wittgenstein
apresentou como uma reformulação radical da própria postura de seu “Tractatus Logico-
Philosophicus” que a “filosofia restritiva da linguagem” sofrera seus mais sérios abalos. Em
“Investigaçoes Filosóficas”, uma nova articulação entre a linguagem, o significado, a ação,
a convenção e as práticas foi pensada. Ao pensar a maneira como a linguagem está embutida
nas práticas sociais, o filósofo desfaz todo o conjunto de distinções que caracterizavam as
concepções de linguagem que procura combater: linguagem e mundo aqui já não mais se
opõem, mente e mundo não são mais entidades desentrelaçadas. Linguagem e práxis são
indissociáveis. A articulação entre linguagem e práxis passa a ser entendida pela noção
wittgensteiniana de “jogos de linguagem”, que sugere as mais variadas formas de usos
contextuais, situados e com suas próprias “regras lingüísticas” internas, relativas a distintas
“formas de vida”.
Ora, disso resulta que devemos passar a entender a linguagem como uma atividade,
como usos em andamento guiados por regras onde os significados apenas são compreensíveis
dentro da imersão em uma “práxis vital”. Conseqüentemente, os termos da linguagem não
podem fazer sentido quando tomados separadamente, mas somente a partir da totalidade das
relações em que estão inseridos, ou seja, a partir dos jogos de linguagem que só existem em
práticas situadas. É por isso que as reflexões de Wittgenstein também devem ser pensadas
como uma “filosofia da ação”.
Enfim, creio que pude até aqui elucidar as bases cruciais para os pressupostos
filosóficos que Taylor carregará consigo na criação de todo o seu aparato conceitual e
analítico do qual se valerá para a consideração dos fenômenos de seu interesse. A
especificidade da filosofia de Taylor pode ser vista pela forma como o autor concilia, em
primeiro lugar, a imersão inevitável da subjetividade em uma Sittlichkeit; a teoria hegeliana
46. 45
do Espírito, onde as “atitudes mentais”, as idéias – as quais Taylor entenderá a partir dos
conceitos sobre moralidade que veremos a seguir – estão expressas tanto num nível individual
quanto num nível “objetivo” (a existência concomitante de um espírito expresso nas
instituições e também no plano do self – Espírito subjetivo), sendo elementos centrais para
uma “fenomenologia moral”; ao mesmo tempo, far-se-á importante o expressivismo, cujas
origens remontam às concepções românticas, desde Herder e passando por Hegel, onde a ação
humana é entendida como expressão, ou seja, o espírito ou o pensamento sempre e
necessariamente se expressam a partir de um certo meio: sua existência corporificada; e, por
último, o legado do segundo Wittgenstein, sobretudo sustentando a idéia do vínculo entre
práxis e linguagem; entre a ação e as regras subjacentes às formas de vida. Taylor irá unir as
intuições hegelianas do princípio de corporificação e do expressivismo, à idéia
wittgensteiniana da linguagem enquanto prática situada.
A partir dessas heranças, Taylor acrescentará sua ênfase numa concepção
hermenêutica de ciência e numa refundamentação da moralidade – sobre a qual falarei adiante
– que reflete o seu repúdio às formas “naturalistas” de fazer ciências humanas. Sendo assim,
podemos pensar em Taylor como um filósofo analítico da ação, onde a ação não é vista como
um ato discreto, que se encerra em si mesma e transparente aos agentes. Toda ação é uma
ação moral, situada em “formas de vida”, nas quais e pelas quais encontra os meios (corpo e
linguagem) para sua existência expressiva. Portanto, toda práxis é uma práxis moral, ou seja,
sua existência é indissociável à de uma ontologia moral que lhe dá sustentação. É isso o que
irá permitir a Taylor vincular ação, identidade e moralidade. Mas esta conexão só estará
suficientemente explicitada quando, a seguir, adentrarmos na específica antropologia
filosófica do autor.
47. 46
1.3. Em busca de uma definição do humano
Antes de procurarmos apreender as razões de sua opção por uma concepção
hermenêutica de ciência, cumpre averiguarmos os pressupostos elementares de sua
antropologia filosófica, pela qual o filósofo canadense explicita os seus principais
fundamentos, o núcleo de toda a sua teoria.
Como postulado básico da postura hermenêutica de Charles Taylor temos a idéia de
que os homens são animais que interpretam a si mesmos (TAYLOR, 1985a, p. 45). O próprio
autor considera tal assertiva como um elemento definidor para a própria singularidade
constitutiva das ciências do homem, o elemento que traz o traço distintivo destas para com as
ciências naturais.
Mas, para ele, a tese de que o homem é um ser que se auto-interpreta ainda
permanecia, nas reflexões examinadas pelo filósofo, sem uma demonstração mais detalhada.
De acordo com sua postura, tal tese não pode ser afirmada com superficialidade, não pode ser
tomada como um truísmo sem um argumento forte que dê respaldo a ela, mesmo porque levá-
la a fundo significa romper com alguns dos mais fundamentais preceitos do pensamento e
cultura modernos: significa “violar um paradigma de clareza e objetividade” (TAYLOR,
1985a, p. 45). Em “Self-interpreting animals”, o objetivo de Taylor é o de tentar apresentar
algumas respostas, ou seja, algumas justificativas elementares para demonstrar por qual linha
de raciocínio o homem deve ser tomado como um animal que se auto interpreta (self-
interpreting animal).
Insere-se nesse contexto sua discussão em torno do conceito de “import”, que designa
certas significações importantes, ou seja, modos em que algo pode ser relevante ou importante
para os desejos, propósitos, aspirações ou sentimentos – uma questão de não-indiferença
(TAYLOR, 1985a, p. 48). Ou seja, a noção de import, que a meu ver será central para o
48. 47
desenvolvimento subseqüente da noção de “avaliação forte”, implica algo como uma
propriedade de atribuição de significações importantes a objetos do mundo (incluindo aqui os
próprios sentimentos, pensamentos, etc.). Nesse sentido, tentar identificar os imports em uma
dada situação equivale a empreender um esforço de desvendar o que, nesta situação, serve de
fundamento ou de base para os nossos sentimentos.
Em termos bastante sintéticos, as conclusões mais expressivas às quais chega Taylor
nessa parte de seu trabalho são de que: em primeiro lugar, uma parte substancial de nossas
emoções está permeada pela atribuição de significações importantes; em segundo lugar, de
que essas significações (imports) estão muito freqüentemente vinculadas ao entendimento do
que é (ou deve ser) um ser humano, ou seja, do papel que desempenhamos (ou devemos
desempenhar)13
; e, finalmente, de que tais imports vinculam-se a sentimentos em contextos
específicos em função de certas articulações que são contingencialmente aceitas num dado
ambiente social. Tais articulações, que também podemos pensar como interpretações,
requerem linguagem. Aos olhos de Taylor, tais proposições oferecem um conjunto que, se
aceito, permite-nos pensar no homem (ou nos atributos essenciais de sua existência) como ser
auto-interpretativo (TAYLOR, 1985a, pp. 75-76).
Vimos anteriormente a centralidade da questão do expressivismo e do princípio de
corporificação para Taylor. A partir daqui vai então se tornando clara a articulação dessas
questões com o “realismo moral” de Taylor. Podemos acompanhar a cadeia de raciocínios: o
conceito de import já permite pensar em certas articulações que são significantes para nossas
interpretações e mesmo para a parcela mais potente de nossas emoções; emoções são
perpassadas por linguagens, na medida em que estas articulam aquelas; as linguagens existem
enquanto corporificadas nos agentes; interpretarmo-nos significa exatamente avaliar nossas
13
Um exemplo freqüentemente utilizado por Taylor – exatamente por ser de fácil visualização – é o de que
sentimentos ou emoções de vergonha, por exemplo, só existem por uma devida corporificação de linguagens que
distinguem entre que é vergonhoso e o que não é em cada contexto.
49. 48
emoções no plano da linguagem; e, enfim, a expressão é entendida enquanto manifestação do
próprio ser moral, cujos veículos são a linguagem e o corpo.
Essa conexão ficará mais explícita a seguir, mediante a introdução do conceito de
“avaliação forte”, que permite passarmos da questão da auto-interpretação para a questão da
própria moralidade. Esse conceito será igualmente relevante para a compreensão da natureza
da condição humana como ser que se auto-interpreta, que será a chave para o entendimento
das formulações ulteriores do autor. Em “What is human agency”, ele nasce de uma
interlocução com as elaborações filosóficas de Harry Frankfurt em torno de como pode ser
formulado um conceito de pessoa e de quais são suas características fundamentais.
Para Frankfurt, uma diferença essencial entre pessoas e outras criaturas pode ser
encontrada na existência de um tipo específico de desejos para as primeiras. Os seres
humanos não estariam sozinhos na capacidade de ter desejos e motivos, ou mesmo de fazer
escolhas. Eles compartilham essas características, diz Frankfurt, com vários membros de
outras espécies, algumas das quais aparentemente apresentam formas de deliberar, de tomar
decisões baseadas em um pensamento prévio. Contudo, o autor aponta como uma
peculiaridade dos seres humanos a capacidade para formar aquilo que ele chama de “desejos
de segunda ordem” (“second-order desires”):
Além de querer, escolher e de ser movido para fazer isso ou aquilo, os homens podem também
querer ter (ou não ter) determinados desejos e motivos. Eles são capazes de querer ser
diferentes, em suas preferências e propósitos, do que eles são. Muitos animais parecem ter a
capacidade do que eu gostaria de chamar de ‘desejos de primeira ordem’, que consistem
simplesmente em desejar fazer ou não fazer uma coisa ou outra (FRANKFURT, 1971, p.6 –
minha tradução).
Colocando em outras palavras, enquanto “animais” têm desejo de fazer X, pessoas
podem ter um desejo reflexivo para com o próprio desejo de fazer X. O filósofo parte da idéia
de que nenhum animal além do homem parece ter a capacidade de uma auto-interpretação