1) O documento discute a necessidade de mudanças na escola para torná-la mais flexível e centrada no aluno, incluindo uma mudança do currículo prescritivo para um currículo focado nas aprendizagens efetivas.
2) Propõe que a autonomia e flexibilidade curricular são essenciais para promover o sucesso de todos os alunos, permitindo abordagens diferenciadas.
3) Argumenta que isso exige uma "mudança da gramática escolar", com mais flexibilidade nos agrupamentos de alunos, espa
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Autonomia e Flexibilidade: pensar e praticar outros modos de gestão
curricular e organizacional
José Matias Alves
Centro de Estudos em Desenvolvimento Humano (CEDH) da Universidade Católica Portuguesa
Resumo
O presente texto procura identificar as caraterísticas estruturais da escola atual e perspetivar as
necessárias metamorfoses nos vários planos da ação política, organizacional e profissional. O
currículo prescrito tem de ser assumido como um processo que gera aprendizagens em todos os
alunos. O contexto organizacional onde o currículo é praticado e desejavelmente aprendido terá
de assumir as regras de uma outra gramática que institua outros modos de pensar e praticar os
conhecimentos, de organizar os espaços, os tempos e o modo de agrupar os alunos, de constituir
outras formas de trabalho pedagógico.
Por outro lado, as lideranças educacionais têm de ver estas outras possibilidades de ação e de
organizar o trabalho educativo de modo a que outras práticas de flexibilização e diferenciação
sejam possíveis. Por fim, os modos de ser professor têm de evoluir para uma prática profissional
mais autónoma, interativa e colaborativa.
Palavras Chave: organização, escola, professor, currículo, flexibilidade
O presente texto organiza-se em seis tópicos: o primeiro procede à caraterização sumária da
escola que temos e esboça o cenário da escola que desejamos; o segundo enuncia os conceitos de
currículo e advoga a necessidade de uma focalização no currículo aprendido; o terceiro enuncia o
requisito da flexibilidade como condição de sucesso para todos; o quarto convoca a necessidade
de mudar, não apenas a gestão do currículo, mas também as regras da gramática escolar; o quinto
explicita a centralidade das lideranças e da gestão das equipas, dos espaços e tempos. Por fim,
enuncia-se a imprescindibilidade da ação profissional docente ver as virtualidades de um outro
modo de trabalho interativo e colaborativo.
1. Da escola que temos à escola que queremos
A escola que hoje ainda temos é uma invenção da revolução industrial. Era necessário
escolarizar largas massas da população campesina para poder ler os manuais de instrução
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que punham em marcha as roldanas das fábricas. E treiná-la para se disciplinar numa
ordem mecânica, repetitiva, baseada no comando e no controlo.
A escola é, assim, uma invenção das necessidades de produção dos tempos modernos
tendo prestado relevantíssimos serviços de natureza funcional. Era preciso homogeneizar,
estandardizar, disciplinar, ordenar as vontades e os gestos. Era preciso assegurar que a
passagem do campo para a fábrica assegurasse os mecanismos de uma produção regrada.
Mas, para além deste imperativo produtivista, a escola cumpria ainda uma importante
função social e política de natureza ideológica. Era preciso que fosse uma agência de uma
socialização mais ou menos passiva, que os “cidadãos” aceitassem ser funcionários de um
estado, em muitos casos emergente, e que contribuísse para a sua constituição e
legitimação.
Esta escola seguiu o padrão da fábrica, da cadeia de montagem. Dividiu e segmentou os
modos, os tempos, os espaços de produção. Especializou e hierarquizou as pessoas em
séries. Organizou o trabalho numa lógica de reprodução e repetição. Alienou e escravizou
as pessoas. O filme Tempos Modernos é o exemplo paradigmático desta ordem fabril que
a escola adotou. E o paradigma da crítica a esta ordem pode ainda ser a canção dos Pink
Floyd, Another brick in the Wall (https://www.youtube.com/watch?v=YR5ApYxkU-U) ,
também representado no documentário A Educação Proibida
(https://www.youtube.com/watch?v=ceIuwmpyIX0 ).
A escola passou, assim, de uma ordem limitada, artesanal e pessoal para uma ordem de
produção em série, tendo a capacidade de formar milhões de pessoas para viverem num
outro mundo empresarial e político. E não há dúvida que esta revolução nos modos de
ensinar – do ensino individual para um ensino coletivo, do ensinar a todos como se todos
fossem um só – correspondeu a um considerável avanço na massificação e
democratização do acesso à instrução. Esta passagem parecia assegurar o ideal
proclamado por Coménio (1976: 45) na sua notável Didática Magna publicada no início do
século XVII [1627]:
“Nós ousamos prometer uma Didática Magna, isto é, um método
universal de ensinar tudo a todos. E de ensinar com tal certeza, que seja
impossível não conseguir bons resultados. E de ensinar rapidamente, ou
seja, sem nenhum enfado e sem nenhum aborrecimento para os alunos e
para os professores, mas antes com sumo prazer para uns e para outros. E
de ensinar solidamente, não superficialmente e apenas com palavras, mas
encaminhando os alunos para uma verdadeira instrução, para os bons
costumes e para a piedade sincera. “
Esta ilusão tecnocrática e romântica de tudo ensinar a todos com prazer está longe das
evidências empíricas e mesmo da visão profética de um seu quase contemporâneo,
António Vieira. Com efeito, este mestre da oratória afirma
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“O Mestre na Cadeira diz para todos; mas não ensina a todos. Diz para
todos porque todos ouvem; mas não ensina a todos, porque uns
aprendem e outros não. E qual é a razão desta diversidade se o Mestre é o
mesmo e a doutrina a mesma? Porque para aprender não basta só ouvir
por fora, é necessário entender por dentro. Se a luz de dentro é muita,
aprende-se muito; se pouca, pouca; se nenhuma nada.”
Edição de Referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998. [Sermão do
Espírito Santo] , em linha
http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&i
d=37387
A escola que hoje, no início do século XXI, ainda temos é ainda a herdeira de uma
gramática que tem início na revolução industrial e que sumariamente se carateriza pela
separação e hierarquização dos conhecimentos, pela divisão dos espaços, pela
segmentação do tempo, pela separação dos alunos em anos e turmas, pela separação dos
professores em níveis e especialidades, pela alocação rígida de professores a alunos, por
uma pedagogia coletiva e uniforme, por dar o mesmo a todos no mesmo espaço e no
mesmo tempo (Barroso: 2001) , Formosinho: 1999), Cabral: 2014 , Alves e Cabral: 2017).
Esta escola segue a metáfora do quadro negro que metaforicamente representa a escola
do século XX: um quadro vazio, fixo, instituinte de uma pedagogia coletiva, hierárquica e
verticalizada. Mas hoje os quadros negros são já outros: em vez de vazios estão cheios de
milhões de informações; em vez de estarem fixos, estão e são móveis, andam nos bolsos
e carteiras pessoais; em vez de gerarem uma pedagogia coletiva permitam uma pedagogia
mais individual e horizontal.
A escola que queremos tem, pois, de ser muito mais flexível, muito mais variada, muito
mais sensível à diversidade de inteligências, ritmos e vontades. Tem de atender às pessoas
e colocar as aprendizagens de todos no centro das suas preocupações e da sua
organização. E isto implica pensar e praticar uma outra gramática (Alves e Cabral: 2017).
2. Uma outra gramática implica ver e praticar o currículo de um outro modo. Aceita-se que o
currículo prescrito integre um conjunto de conhecimentos, competências, capacidades,
valores que um dado poder político considera relevante impor (ou propor) a todos os
cidadãos.
O currículo é, pois, o enunciado de um “plano para a aprendizagem”, um conjunto de
objetivos de aprendizagem, um resultado explicitamente visado, um conjunto de
conteúdos organizados em áreas disciplinares, ou ainda uma conjunto de experiências que
os aprendentes realizam sobre o patrocínio da escola (cf. Gaspar, Santos & Santos: 2013).
No entanto, torna-se conveniente passar de um currículo prescrito para um currículo
aprendido. Esta passagem é um grande desafio para as políticas educativas, para a ação
organizacional das escolas, para a ação profissional dos docentes, e para a comunidade
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educativa em geral. Por uma razão basilar: porque a missão central da escola é fazer
aprender todos os alunos (Roldão: 2009).
De facto, não basta prescrever o que de melhor existe dos saberes disponíveis para o
desenvolvimento dos seres humanos e sociais. Há, certamente, saberes universais,
abstratos, formais que é necessário incorporar no currículo. Mas também aprender a
fazer, aprender a ser e aprender a viver juntos como nos lembra o célebre relatório da
UNESCO (UNESCO: 1996) ). É uma condição de cidadania epistemológica esta
incorporação equilibrada de todos os saberes necessários à condição humana.
Mas, mais importante do que a prescrição é a aprendizagem efetiva dos saberes essenciais
à vida, onde quer que ela seja vivida. Ora, dada esta centralidade das aprendizagens de
todos, o foco tem de passar do centro político-administrativo da decisão e da prescrição
para o centro da realização da ação educativa que é a escola e as salas de aula. Porque é
aqui que as aprendizagens se cumprem ou não cumprem. E, portanto, tem de ser em cada
ano de escolaridade, em cada agrupamento de alunos que a missão de fazer aprender
todos os alunos tem de ser perseguida. E cada escola tem de construir uma prática
curricular atenta, próxima e flexível, tendo em conta os contextos e os alunos concretos.
Isto é, tem de planear, monitorizar, avaliar, melhorar de forma continuada e consistente
as aprendizagens dos seus alunos. E quando não aprendem tem de se gerar dispositivos de
compreensão dos obstáculos e agir em conformidade.
3. É neste contexto, sumariamente exposto, que a autonomia e a flexibilidade curricular têm
de ser equacionadas. De facto, estas duas dimensões são fulcrais para a promoção do
sucesso educativo. Porque as escolas, os alunos, os contextos são diferentes. E esta
diferença exige políticas e práticas locais de diferenciação positiva, exige o incremento das
autonomias e das capacidades e competências de criação de respostas ajustadas. Porque
dar o mesmo a todos, do mesmo modo, no mesmo espaço e no mesmo tempo só pode
gerar mais desigualdade (Barroso: 2001, Cabral: 2014). Temos de procurar pôr termo às
políticas hipócritas da igualdade de oportunidades e da uniformidade, não sendo mais
legítimo continuar a confundi-las com justiça. Há um grande número de evidências
empíricas de que ensinar a todos como se todos fossem um só conduz necessariamente à
desigualdade, ao insucesso e ao abandono.
Se se quer que todos aprendam o máximo possível, o único caminho viável é uma
diferenciação inclusiva. O caminho que diferencia processos, que diferencia produtos para
que a equidade de resultados escolares e do usufruto dos bens educacionais seja mais
possível (Pires et al: 1991).
4. Flexibilizar os modos de fazer aprender os alunos exige que se vá além do currículo pois
este opera num contexto organizacional e profissional. Exige uma mudança da gramática
escolar, a mudança das regras do jogo para que todos aprendam mais. Isto significa
também flexibilizar os modos de agrupar os alunos, flexibilizar a concetualização dos
espaços e tempos, instituir modos mais colaborativos de ser professor através da
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tecnologia organizacional das equipas educativas (Formosinho e Machado: 2016; Cabral e
Alves: 2016). Como os alunos precisam de respostas diferentes tem de se ir além da
rigidez da turma e da aula e permitir que em alguns tempos semanais os alunos de um
determinado ano ou ciclo possam ser agrupados de forma diferente para trabalharem em
função das suas necessidades de aprendizagem (Cf. Cabral e Alves: 2016). Isto obriga a que
toda a equipa docente (ou quase toda a equipa) tenha tempos comuns para poderem
trabalhar com grupos diversificados de alunos – por exemplo, duas tardes por semana, 6
horas – e que construa projetos múltiplos de aprendizagem de natureza disciplinar,
interdisciplinar e transdisciplinar de modo a que os alunos possam trabalhar de modo de
diferente. Trata-se de instituir uma metamorfose, uma passagem de uma pedagogia de
transmissão para uma pedagogia da produção (Cf. Alves e Cabral: 2017).
5. Estas mudanças são um desafio às lideranças escolares. Às lideranças de topo e às
lideranças intermédias. Porque obriga a rever a missão da escola e da docência. Obriga a
uma metamorfose nos modos de pensar, planear, agir e interagir. E estas mudanças não
ocorrem se não ativarmos lideranças inspiradoras e transformacionais e se não criarmos
as condições de gestão dos tempos e dos espaços onde trabalham alunos e professores.
Figura 1 – Horário semanal das equipas educativas do 2º ciclo, em 3 complexos escolares
Fonte: Escolas d’ Óbidos [Óbidos]
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6. As metamorfoses que se assinalam e que passam por uma flexibilização a vários níveis são
um desafio ao profissionalismo docente. De facto, estas mudanças ao serviço das
aprendizagens dos alunos exigem que o professor queira abdicar do estatuto de
funcionário cuja primeira função é obedecer e dar a matéria prevista no programa
(mesmo que os alunos nada aprendam). E queira pensar-se e ver-se como um autor de
possibilidades de aprendizagem. Esta radical mudança só é viável no quadro de um
profissionalismo mais interativo e colaborativo. Um profissionalismo em que os
professores veem a grande liberdade, a grande satisfação e a grande responsabilidade de
quererem ser autores do seu destino e do destino das jovens gerações que lhe são
confiadas, como recomendaria Pierre Bourdieu:
Ensinar não é uma actividade como as outras. Poucas profissões serão causa de
riscos tão graves como os que os maus professores fazem correr aos alunos que
lhe são confiados. Poucas profissões supõem tantas virtudes, generosidade,
dedicação e, acima de tudo, talvez entusiasmo e desinteresse. Só uma política
inspirada pela preocupação de atrair e de promover os melhores, esses homens e
mulheres de qualidade que todos os sistemas de educação sempre celebraram,
poderá fazer do ofício de educar a juventude o que ele deveria ser: o primeiro de
todos os ofícios. (Bourdieu: 1985)
Nas mãos dos professores e das políticas que os podem (des)inspirar está, pois, um outro
possível futuro. Basta alimentar a capacidade de olhar, ver, reparar. E de querer, saber e
poder.
Referências
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Barroso, J. (2001). O século da escola, do mito da reforma à reforma de um mito. O século da
escola, entre a utopia e a burocracia. Porto: Edições ASA.
Bourdieu, P. (1985). Propositions pour l’enseignement de l’avenir. Rapport du Collège de France.
Paris: Minuit [tradução portuguesa publicada nos Cadernos de Ciências Sociais. 1987. 6]
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http://www.fep.porto.ucp.pt/sites/default/files/files/FEP/RPIE/RPIE1604_UmModeloIntegradoPro
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Cabral, I. (2014). Gramática Escolar e (In)sucesso. Porto: Católica Editora Porto
Coménio, J. (1985) Didática Magna. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian
Formosinho, J. (1999). A Renovação Pedagógica numa Administração Burocrática Centralizada.
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Livraria do Minho.
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Porto: Faculdade de Educação e Psicologia
Pires, E. , Formosinho, J. e Fernandes, A. (1991). A Construção Social do Sucesso Escolar. Porto:
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http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=37387