A bioética e sua relação com os direitos humanos pdf
1. 1
A BIOÉTICA E SUA RELAÇÃO COM OS DIREITOS HUMANOS
BIOETHICS AND ITS RELATION TO HUMAN RIGHTS
Prof. Ms. Ricardo George de Araujo Silva1
Resumo: O presente texto pretende ser uma reflexão sobre a relação entre bioética e direitos humanos.
Nossa hipótese sustenta que não temos como fundamentar um, sem tocar nas premissas do outro, para
tanto nos utilizamos de elementos históricos, no que concerne, a ocupação do espaço público e as
ações do totalitarismo. Apoiamos-nos teoricamente no pensamento de Hannah Arendt, para dar
suporte a nossa análise. Assim, queremos ser mais uma provocação ao tema, sem pretensões de
esgotar a questão em debate.
Palavras chaves: Bioética, Direitos humanos, Espaço Público, Totalitarismo.
Abstract: This text is a reflection on the relationship between bioethics and human rights. Our
hypothesis maintains that we can not substantiate one, without touching the premises of another, for
both the use of historical elements, as regards the occupation of public space and the actions of
totalitarianism. Theoretically support us at the thought of Hannah Arendt, to support our analysis.
Thus, we want to be more a provocation to the theme, without trying to exhaust the issue under
discussion.
Key words: Bioethics, Human Rights, Public Space, Totalitarianism.
Introdução
O objetivo desse texto é trazer à baila uma discussão que, no mundo contemporâneo,
não pode ser entendida como secundária, pois diz respeito à grande parcela do meio
intelectual desde as ciências humanas as ciências biomédicas, de modo que não considerar os
aspectos éticos, políticos e jurídicos da tocante questão passa a ser no mínimo uma grave
omissão. Não temos a pretensão de esgotar o problema da bioética e dos direitos humanos, ao
contrário, queremos ser uma positiva provocação ao problema e, na medida do possível,
iluminar alguns caminhos para a discussão do mesmo. Assim, assumiremos o pensamento de
Hannah Arendt como fio condutor de nossa exposição.
Hannah Arendt nasceu em Hanover, no ano de 1906, e morreu nos Estados Unidos em
1975. Na Alemanha, país de origem, o qual teve de deixar em 1933 devido ao exílio, estudou
nas Universidades de Marburgo, Friburgo e Heidelberg. Hannah Arendt, no percurso
intelectual, conviveu com grandes expressões do meio acadêmico. Foi aluna de Heidegger e
1
Profº. Ms. da Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE.
( ricardogeo11@yahoo.com.br)
2. 2
Jaspers. Doutorou-se em 1928, com uma tese sobre o Conceito de Amor em Santo Agostinho,
orientada por Jaspers. Nesse contexto, Hannah Arendt se define como uma pensadora política,
justamente porque teve que enfrentar com a perseguição nazista e, com o exílio, a negação de
seus direitos mais elementares e, assim, entendeu que deveria tratar de questões relevantes da
política. O desencanto de Hannah Arendt com as questões de ordem intelectual ocorre quando
grande parte dos intelectuais assume a adesão ao partido nazista, no início da década de 30, do
século 20.
É relevante ressaltar que Hannah Arendt nunca se deteve diretamente sobre a
problemática dos direitos humanos ou propôs em seus escritos uma ética seja intencionalista
ou consequêncialista. Para ser claro, não propôs diretamente ética nenhuma. Contudo, é
possível discutir em sua obra uma postura nesse seguimento, já que tematizou a ação humana
e a vida em sociedade. Sendo assim, encontramos na autora uma centelha que nos autoriza a
identificar um lugar de origem para o tema dos direitos humanos e da bioética no contexto da
sua obra, qual seja: suas observações brotam da sua experiência como judia perseguida e
presa pelo regime nazista. Além da sua condição de apátrida, posteriormente, o que
significou, de forma prática, e, não só para ela, uma desproteção total. Assim, em Hannah
Arendt
A experiência dos displaced people levou-a a concluir que a
“cidadania é o direito a ter direitos”, pois a igualdade em
dignidade e direito dos seres humanos não é um dado. É um
construído da convivência coletiva, que requer o acesso publico
comum. Em resumo, é este acesso ao espaço púbico – “o direito
de pertencer a uma comunidade política” – que permite a
construção de um mundo comum através do processo de
asserção dos direitos humanos” (LAFER, 2003, p. 114)
A Questão do Totalitarismo: Negação dos Direitos Humanos
Em Hannah Arendt, a questão totalitária ou, mais precisamente, o horror totalitário,
ocorrido nos campos de concentração instigou-a a investigação de tal fato, levando-a a
concluir que acontecia, naquele momento histórico, algo desnecessário e desprovido de
significado político.
Hannah Arendt identifica, então, o problema central do totalitarismo como a
necessidade de afrontar a dignidade humana pelo sistema estratégico da descartabilidade dos
homens. Aqui encontramos toda e qualquer forma de direito do homem negada na medida em
3. 3
que o campo de concentração se transforma na “fábrica de morte”, capaz de produzir
cadáveres em série e estabelecer-se na atualização do mal radical, entendido por ela como o
progressivo assassinato jurídico, moral e físico, realizado contra as pessoas nos governos
totalitários. O ato da descartabilidade humana nos coloca na rota dos direitos humanos, na
medida em que estes representam os direitos fundamentais do homem que, ao longo da
história, foram assumindo a forma de direito positivo como uma tentativa de singularmente
garantir a todo e qualquer indivíduo proteção. Assim, segundo Celso Lafer, “o “valor” da
pessoa humana como “valor fonte” da vida em sociedade encontra sua expressão jurídica nos
direitos humanos”(LAFER, 2003, p.112), de modo que pensar a defesa da vida, não no
sentido abstrato, mas localizado, historicamente determinado no horizonte de sentido de uma
comunidade torna-se a tarefa fundante dos direitos reivindicados na teoria de Hannah Arendt,
o que autoriza legitimar uma discussão pertinente dos direitos do homem e do cidadão a partir
de seu arcabouço teórico.
É preciso tornar evidente o conceito de cidadania em Hannah Arendt para não
incorrermos no equívoco de entendê-lo como simples defesa ideológica, pois o mesmo deve
ser entendido como “o direito a ter direito”. Nessa perspectiva, entramos na esfera do direito
não como algo dado ou metafisicamente posto, e sim, como uma construção histórica
determinada; em outras palavras, como uma criação da convivência coletiva, que requer uma
convivência em um espaço público comum. Assim, a postura ética vislumbrada por Hannah
Arendt nada tem a ver com as tentativas do jusnaturalismo centrada na perspectiva abstrata do
bem e do dever. Na visão jusnaturalista o homem aparece como uma idéia universal, eterna e
imutável que em última instância, não está em lugar nenhum. Em contraponto a essa idéia,
Hannah Arendt resgata a categoria da ação, na qual vai pensar a dimensão ética. Nesse
contexto, as dimensões da comunidade e da liberdade emergem como fundantes no horizonte
do homem como ser de ação, isto é, como agente constituidor do espaço público. Nesse
sentido, tomando por base a questão totalitária, cabe agora um maior detalhamento dessa ação
principalmente no tocante ao uso da violência que aparece nesse contexto como negadora dos
direitos humanos.
4. 4
A Violência Totalitária – O Braço do Terror
A descrição abaixo mostra todo o horror vivido pelos judeus nos campos de
concentração, os quais trouxeram à tona toda a capacidade de destruição sistemática do
regime totalitário, tanto quanto apresentou seu principal método de atuação, a violência:
Nas fábricas da morte [...]. Todos eles morreram juntos, os
jovens e velhos, os fracos e fortes, os doentes e os saudáveis;
não como povo, não como homens e mulheres, crianças e
adultos, meninos e meninas, não como bons e maus, belos e
feios, mas reduzidos ao denominador comum do mais baixo
nível da vida orgânica em si mesma, mergulhados no abismo
mais escuro e profundo da igualdade primitiva, como gado,
como matéria, como coisa sem corpo nem alma, sem nem
mesmo uma fisionomia sobre a qual a morte pudesse imprimir
seu selo. É nessa igualdade monstruosa, sem fraternidade ou
humanidade [...], que nós vemos, como que refletida, a imagem
do inferno. A maldade grotesca daqueles que estabelecem tal
igualdade está para além da capacidade de compreensão
humana. Mas igualmente grotesca e para além do alcance da
justiça humana está a inocência daqueles que morreram nesta
ingenuidade. A câmara de gás foi mais do que qualquer um
poderia ter merecido, e, frente a ela, o pior criminoso era tão
inocente quanto um recém-nascido. (ARENDT, 2005, p. 198).
O extermínio silencioso produzido pelas fábricas da morte reduz o significado da
existência humana a um nada, em que ser ou não ser2 não tem significado. Para a crueldade
nazista, a descartabilidade do outro era algo certo e necessário de tal forma que o extermínio
em massa não reflete sobre o significado da existência do outro e, atropelando todos os
princípios, cria uma fábrica de cadáveres, para pôr em frente seu objetivo de domínio total,
este que é concebido como meta fundamental, tão fundamental que a vida humana passa a ser
secundária em nome do objetivo a ser alcançado. Nessa perspectiva, a violência totalitária
atua resguardada pelo Estado, ou seja, o Estado aparece aí como fachada, que possibilita ao
monstro3 liberar seus tentáculos. Usando sua política secreta e agindo sob suas próprias
insígnia e vontade,
[...]este [o líder] decide sobre quais categorias sociais incidirão
os conceitos de inimigo objetivo ou de sociedade indesejável,
2
Aqui chamamos a atenção para a questão da dignidade humana, isto é, para o indivíduo que se coloca no
mundo como gente que é capaz de transformação. Contudo, essa violência produzida nos campos de
concentração impede esse homem de ser e, o anulam, de forma covarde e brutal, reduzindo-o a um nada.
3
É preciso ter claro o papel primordial do partido que aqui é central, na medida em que é nele que se encontra
todo o processo de doutrinação e enquadramento do idealismo absurdo, acalentado pela ideologia do terror.
5. 5
tipologias que designam aqueles cuja existência implica
discordância para com a ideologia totalitária, merecendo ser
exterminados independentemente do que pensem. (DUARTE,
2000, p.65).
Esse proceder nos leva à compreensão de como o sistema totalitário é capaz de
destruir o “humano construído nos indivíduos”4, a tal ponto de vítima e carrasco serem
atingidos, pois, na medida em que o campo de concentração anula a liberdade de alguns e
produz uma matança sistemática de outros, não apenas as vítimas são desumanizadas, mas
executores perdem também o sentido da dignidade humana, fato esse que nos revela a forte
característica de novidade do totalitarismo, tanto quanto nos esclarece o seu poder de
destruição. Nesse sentido, os campos de concentração se apresentam como a principal
instituição dos regimes totalitários, não apenas porque eles condensam e potencializam todos
os absurdos implementados na tessitura do social, por essa forma de dominação sem
precedentes, mas, também, porque justamente aí se manifesta o objetivo crucial do
totalitarismo: a destruição da infinita pluralidade e diferenciação dos seres humanos.
A violência produzida nos campos de concentração ganhou dimensões inimagináveis.
É possível afirmar que até os mais competentes roteiristas de filmes de guerra ou literatos do
gênero não tenham, até então, colocado em suas obras tamanho requinte de crueldade e horror
como fez o totalitarismo nos campos de concentração e nas câmaras de gás. Essa violência
manifesta, sobretudo um novo desafio para a compreensão da política, na medida em que as
categorias da modernidade se mostram inadequadas ou insuficientes para dar conta de
tamanha ruptura que se apresenta na história da humanidade. O terror entra no cenário político
para fincar marcas indeléveis na história dos homens, mas, sobretudo, para provocar um
desafio de compreensão, respostas e ressignificação do agir humano, ainda que essa não fosse
sua intenção, mas veio à tona em vista de tamanha violência aplicada.
A violência totalitária é apolítica, na medida em que não permite ao outro o direito de
manifestar-se. Até as antigas tiranias eram capazes de se encantar com o discurso contrário as
suas práticas5 e até aderir a posições daqueles que em algum momento se apresentaram como
4
Quando falo de humano construído nos indivíduos, refiro-me à compreensão de Hannah Arendt acerca da
natureza mutável, onde o que temos de humano não é algo inerente e eterno, mas uma construção de artifícios,
produzidos pela liberdade, pelo discurso e pela ação, de tal modo que a experiência dos campos de concentração
aniquila esses artifícios. Sendo assim, a legalidade, o respeito à pluralidade e à cidadania deixam de imprimir
sentido à dignidade humana de modo que o homem se reduz a um ser natural desumanizado.
5
Basta lembrarmos do despotismo esclarecido, segundo o qual tiranos foram capazes de abolir torturas e
julgamentos sumários, por terem ouvido o outro. Nesse sentido, percebemos a novidade totalitária que entende o
outro como algo a ser descartado, caso não comungue de seus ideais. O totalitarismo aparece para a história da
humanidade como um regime negador do discurso e da ação, categorias centrais para a colocação do outro no
6. 6
inimigo político. No totalitarismo, tal fato é inviável já que o outro não tem direito a compor o
tecido social, sendo enviado a confinamentos que destroem sua humanidade ou são
diretamente exterminados em câmaras de gás ou com outros recursos, contanto que sejam
silenciados. O lugar que ocupa o silêncio no modo de agir do totalitarismo tem significado
ímpar, tendo em vista que a capacidade do discurso é sempre uma ameaça. O silêncio ganha
importância, o mesmo só deve ser quebrado para exaltar os objetivos do movimento
totalitário, o líder e seus símbolos. Portanto, o discurso no totalitarismo tanto é mudo, na
medida em que é controlado e direcionado, quanto carente de significado e de poder de
denúncia. O único discurso que sobrevive é o do regime totalitário. Fora esse, todos os outros
ou se enquadram ou experimentam um último diálogo nos campos de concentração ou
câmaras de gás.
Os campos de concentração trouxeram como novidade uma total falta de finalidade,
isto é, apresentavam um caráter despropositado em seu agir, tinham que se financiar a si
mesmos e eram praticamente destituídos de qualquer produtividade econômica ou de qualquer
finalidade política clara e imediata. Por certo, criminosos e opositores ao regime também
foram neles encarcerados, mas a verdadeira natureza dos campos não pode ser compreendida
recorrendo-se a esse fato, já que eles só se tornaram abundantes tanto na Alemanha, quanto na
União soviética, uma vez sufocada toda oposição. Do mesmo modo, os seus internos, em
ambos os países, foram várias vezes obrigados a cumprir trabalhos forçados em regime de
escravidão, o que ainda poderia ser humanamente compreensível, pois apresentava precedente
histórico. Entretanto, a própria falta de planejamento e de organização dessas tarefas forçadas,
somada ao fato de que o trabalho jamais constituiu a regra geral no sistema
‘concentracionário’, denuncia a verdadeira destinação dos campos de concentração: a de não
servirem para coisa alguma, senão para destruição da liberdade.
A negação e anulação da liberdade humana promovida pelos campos de concentração
criaram um clima de destruição do homem, isto é, daquilo que faz o homem ser homem.
Artifícios como a liberdade, a pluralidade e a existência de um espaço de convivência política
garantem humanidade, enquanto a ausência desses nos leva em direção contrária6, mutilando
a dignidade humana ou até destruindo-a por inteira.
A violência dos campos de concentração traz no seu interior tamanha força destrutiva,
que é capaz de aniquilar o último resíduo humano presente no homem, transformando-o em
espaço público. A cada prisão, expurgo ou assassinato, o regime totalitário traz à tona o princípio da
descartabilidade que torna a produção sistemática de cadáveres uma prática constante.
6
O trabalho desenvolvido pelo Nazifascismo vislumbrava o desmantelamento da esfera pública por meio da
destruição de elementos-chave como a liberdade.
7. 7
mero “feixe de reações”7 que, por sua vez, pode ser aniquilado sem oferecer qualquer
resistência. Tudo isso torna claro que a violência encontra morada nos campos de
concentração. Sendo ela “senhora-mor” dessa casa de horrores, conduz forçadamente cada um
de seus habitantes, que aí se encontram, a uma certeza: sua dignidade como pessoa está
marcada para sempre8, pelo menos a dos que sobrevivem.
Cabe agora, exposto os malefícios da violência do terror que nega os direitos humanos,
discutir como apareceu no contexto contemporâneo à questão específica da bioética, e como
ocorreu seu desenvolvimento histórico e sua ligação com as questões de respeito a vida.
A Bioética e Sua Implicação Histórico-Filosófica Com os Direitos Humanos
O termo bioética tem formulação estabelecida nos anos 70 do século 20, por ocasião
da publicação de um artigo e posteriormente de um livro do prof. Van Rensellaer Potter.
Lançava-se aqui a idéia de uma “ponte” entre as ciências da vida e os estudos dos valores.
Contudo, é preciso considerar uma evolução histórica do conceito de bioética nas duas
décadas seguintes a sua formulação inicial. Vejamos: O professor Potter tinha uma grande
preocupação com a interação do problema ambiental e das questões de saúde. Suas idéias
baseavam-se nas propostas do Prof. Aldo Leopold, especialmente na sua Ética da Terra.
Atualmente, esta primeira proposta é classificada por ele próprio como Bioética Ponte,
especialmente pela característica interdisciplinar que foi utilizada como base de suas idéias.
Esta primeira reflexão incluía um grande questionamento sobre a repercussão da visão de
progresso existente na década de 1960. A Partir dos anos 70 o termo bioética ganha um
especificidade, tendo em vista os avanços da biomedicina e suas implicações diretas para com
7
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. 8. ed. Tradução Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Companhia das
Letras, 1998, 492.
8
Auschwitz é a grande representação disso, o campo de concentração polonês, que enquadrou centenas de
judeus como se confina gado, submetendo-os às maiores atrocidades. Auschwitz aparece para o mundo como a
maior expressão do requinte da crueldade do regime totalitário. Para Arendt, foi o momento de despertar para o
problema: “[...] é como se um abismo se abrisse”. As primeiras notícias sobre os campos de extermínio nazistas,
diz um dos sobreviventes de Auschwitz, primo Levi, no seu prefácio a I sommersi e i salvati (1986):
”começaram a difundir-se no ano crucial de 1942. Eram notícias vagas, mas convergentes entre si: delineavam
um massacre de proporções tão amplas, de uma crueldade tão extrema, de motivação tão intricada que o público
tendia a rejeitá-las em razão do seu próprio absurdo. É significativo como essa rejeição tenha sido prevista com
muita antecipação pelos próprios culpados; muitos sobreviventes [...] recordam que os SS se divertiam avisando
cinicamente os prisioneiros: ‘Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos; ninguém
restará para dar testemunho, mas mesmo que alguém escape o mundo não dará crédito. Talvez haja suspeitas,
discussões, investigações de historiadores, mas não haverá certezas, porque destruiremos as provas junto com
vocês. E ainda que fiquem algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão
monstruosos que não merecem confiança: dirão que são exageros da propaganda aliada e acreditarão em nós, que
negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos a história dos Lager’ (A tradução francesa desse texto,
realizada por Sylvie Courtine-Denamy, foi publicada, em 1980, no nº 06 da revista Esprit [p. 19-40] e disposta
no artigo “A natureza do Totalitarismo: o que é compreender o totalitarismo” de Theresa C. Magalhães,
publicado, por sua vez, na obra AGUIAR et al., 2001, p. 58. [As nossas referências são desse artigo]).
8. 8
os profissionais de saúde, assim, pesquisadores como os professores Warren Reich e LeRoy
Walters, ambos vinculados ao Instituto Kennedy de Ética, da Universidade
Georgetown/Washington DC, e do professor David Roy, do Canadá, restringiram esta
reflexão apenas às questões de assistência e pesquisa em saúde. Em resposta a essa
especificidade surgem novas abordagens para a bioética, como a posição do Prof. Warren
Reich que reiterou, em 1995, sua perspectiva para o termo, incorporando à sua proposta de
Bioética as perspectivas interdisciplinar, pluralista e sistemática. Nessa mesma linha, anos
antes, precisamente em 1988, o Prof. Potter reiterou as suas idéias iniciais criando a Bioética
Global. O Prof. Potter entendia o termo global como sendo uma proposta abrangente, que
englobasse todos os aspectos relativos ao viver, isto é, envolvia a saúde e a questão ecológica.
E, por fim, para fechar o leque de amplitude da ação do termo bioética, o Prof. Potter propôs,
em 1998, a nova definição de Bioética Profunda, termo que passou a ser cooptado por
importantes organizações, como ocorreu em 2001 com o Programa Regional de Bioética,
vinculado a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) que definiu bioética igualmente
de forma ampla, incluindo a vida, a saúde e o ambiente como área de reflexão. Essa visão
Profunda da bioética recai diretamente no respeito à vida, tanto no tocante à saúde como à
fundação de mundo comum, ou seja, do espaço que teremos que perpetua até as próximas
gerações. Sendo assim, há na bioética uma dimensão política muito forte a considerar, desde o
direito a vida estendendo-se ao direito a ter direitos. Neste sentido, entendemos que a bioética
guarda uma discussão ético-política pautada na ação como proposta de parâmetro para seu
ethos, isto é, para sua reflexão.
Pelo exposto anteriormente, destacamos a visão de Hannah Arendt no tocante ao
direito, como algo que se encontra alicerçado na relação entre os homens, e, na participação
dos mesmos na vida da comunidade. É, portanto, a relação entre homens, o chão na qual se
ergue à idéia de direito em Hannah Arendt. Isto é, a categoria própria para se pensar o direito
em Hannah Arendt é a Ação. Sendo assim, cabe agora destacarmos, partindo desses
princípios, a questão da bioética que podemos tranquilamente fundamentar na declaração de
Nurembergue, que busca promover a vida através da liberdade do livre agir e do princípio de
dignidade presentes nos seres humanos como seres singulares portadores de direitos. A
declaração de Nurembergue de 1947 destaca pontos centrais para o tratamento dispensado à
prática médica ou similar que envolva seres humanos de modo que não temos como pensar a
bioética sem considerar esses fatos. Entendemos ainda, que a visão de Hannah Arendt acerca
do direito vem alicerçar as orientações desta declaração. Vejamos os 10 pontos centrais do
texto de Nurembergue:
9. 9
• O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial. Isso significa
que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de
dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem
qualquer intervenção de elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra
forma de restrição posterior; devem ter conhecimento suficiente do assunto em estudo
para tomarem uma decisão. Esse último aspecto exige que sejam explicados às
pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os
quais será conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a
saúde ou sobre a pessoa do participante, que eventualmente possam ocorrer, devido à
sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de garantir a qualidade
do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento
ou se compromete nele. São deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser
delegados a outrem impunemente.
• O experimento deve ser tal que produza resultados vantajosos para a sociedade, que
não possam ser buscados por outros métodos de estudo, mas não podem ser feitos de
maneira casuística ou desnecessariamente.
• O experimento deve ser baseado em resultados de experimentação em animais e no
conhecimento da evolução da doença ou outros problemas em estudo; dessa maneira,
os resultados já conhecidos justificam a condição do experimento.
• O experimento deve ser conduzido de maneira a evitar todo sofrimento e danos
desnecessários, quer físicos, quer materiais.
• Não deve ser conduzido qualquer experimento quando existirem razões para acreditar
que pode ocorrer morte ou invalidez permanente; exceto, talvez, quando o próprio
médico pesquisador se submeter ao experimento.
• O grau de risco aceitável deve ser limitado pela importância do problema que o
pesquisador se propõe a resolver.
• Devem ser tomados cuidados especiais para proteger o participante do experimento de
qualquer possibilidade de dano, invalidez ou morte, mesmo que remota.
• O experimento deve ser conduzido apenas por pessoas cientificamente qualificadas. 9.
O participante do experimento deve ter a liberdade de se retirar no decorrer do
experimento.
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• O pesquisador deve estar preparado para suspender os procedimentos experimentais
em qualquer estágio, se ele tiver motivos razoáveis para acreditar que a continuação
do experimento provavelmente causará dano, invalidez ou morte para os participantes.
O que se pode observar a partir da declaração de Nurembergue é que toda prática
realizada em Auschwitz se contrapõe a essas orientações, haja vista que os campos de
concentração serviram de “base experimental” para médicos e outros cientistas que usaram
seres humanos sem considerar esses como portadores de dignidade e de direitos, apenas
afirmavam serem as mortes frutos da eutanásia. Isto, quando davam alguma explicação, já que
na maioria dos casos a prática era ocultada, as informações que vazaram cumpriram o papel
de agentes de denúncia. Assim, podemos observar o hiato que se criou entre os direitos
humanos e a prática científica com seres humanos, de modo, que nosso mundo
contemporâneo, a partir de tal fato histórico, não pôde mais conviver com essas posturas sem
considerar um ethos que iluminasse tais práticas e promovesse a reflexão acerca dos direitos
do ser humano enquanto um ser portador de direitos, considerando como foco sua ação, isto é,
como estabelecemos relações e como fundamos mundo. Em outras palavras, como criamos
um espaço público de respeito ao outro. É nesse contexto que emerge a discussão em torno da
bioética.
Cabe então, dado o exposto até o momento uma definição de bioética que
compreendemos ser, segundo Hottois “uma disciplina ética que se formou em torno de
pesquisas, práticas e teorias que visam interpretar os problemas levantados pela
biotecnociência e pela biomedicina. Por isso, a bioética é necessariamente interdisciplinar e
de identidade instável”. Assim, concluímos que a bioética não é uma filosofia sistemática,
nem uma ética geral e menos ainda uma ciência, tendo a mesma um trânsito no saber
tecnocientífico, de modo especial o biológico, percorrendo ainda o campo das ciências
humanas, como a sociologia, a política, a ética e a teologia. O que marca seu caráter
interdisciplinar.
Embora interdisciplinar a bioética não pode se furtar da sua matriz filosófica. É,
portanto, fundamental que a bioética mantenha sua identidade filosófica quando discute
pressupostos éticos, esclarece conceitos e valores, e toma decisões sobre situações concretas,
como pronunciar-se pró ou contra o congelamento de embriões excedentes. Caso a bioética se
afaste dessa posição, poderá tornar-se casuística, pragmática, sem raízes éticas, guiando-se
apenas por espécie de jurisprudência, que toma decisões semelhantes em casos semelhantes.
Isto não significa que a bioética deva distanciar-se das situações cotidianas. Mas, se ela
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abandonar o juízo ético-prático sobre casos concretos, suscitados pela biotecnociência, perde-
se em abstrações e concepções universais, sem força para decidir eticamente sobre os
problemas da biomedicina.9
Conclusão
Ao nos propormos relacionar bioética e direitos humanos estamos nos propondo
investigar situações fundamentais da existência humana contemporânea. O século 20 ficou
marcado pelo totalitarismo e suas práticas desastrosas de afronta a dignidade humana e, aos
direitos fundamentais do ser humano, como a vida.
O totalitarismo, muitas vezes, usou do expediente científico para legitimar suas
práticas de horror colocando em xeque a dimensão ética da ciência sua utilização pelo poder
político. Entendemos pois, que passado os horrores do Nazifascismo, não estamos isentos de
cairmos novamente no égide de governos totalitários, além do que todo avanço tecnológico
sempre implica pesquisas de todas as ordens com vegetais, animais irracionais e , seres
humanos. Esta situação deve nos por em alerta no tocante, a uma reflexão contínua sobre
essas dimensões.
Assim, entendemos que as abordagens da bioética e dos direitos humanos estabelecem
uma estrita relação conceitual e teleológica, haja vista suas implicações em defesa da vida, da
promoção do bem e do espaço, seja físico ou natural, no qual a vida deva perpetuar-se.
Trazemos, pois, a reflexão Arendtiana para o centro da problemática, por compreendermos
que suas categorias de liberdade, ação, mundo comum e espaço público fundamentam essa
defesa da vida proposta pela bioética de modo contemporâneo, sem perder de vista a ação dos
homens na história.
Por fim, concluímos que a reflexão a respeito da promoção da vida é que cada vez
mais pertinente, e entendemos que a bioética e os direitos humanos cumprem um papel
central nessa reflexão, haja vista o enfoque que ambas as abordagens destinam aos princípios
da autonomia, da beneficência e da promoção da justiça. Sendo assim, entendemos que
discutir os temas atuais de pertinência social e cientifica, como uso de células tronco,
eutanásia, aborto, além de temas como aquecimento global, a fome e a violência, integram o
escopo teórico da defesa da vida e do direito a ter direitos.
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PEGORATO. Olinto. Ética e Bioética, da subsistência a existência.Rio de Janeiro: Vozes. 2002, p. 76.
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