Aula -A construção inicial da pesquisa (Metodologia e Técnicas de Pesquisa em...
1996 Dissertação de Mestrado Rasgando o Véu... Rasgando a Manta(1)
1. 1
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
MESTRADO DE SOCIOLOGIA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
RASGANDO O VÉU...RASGANDO A MANTA?
(ESTEREÓTIPOS E RUPTURAS DE GÊNERO
ENTRE MULHERES EM CÁRCERE:
ESTUDO DE CASO EM SALVADOR)
CLEIDE MAGÁLI DOS SANTOS
SALVADOR
- 1996 -
2. 2
CLEIDE MAGÁLI DOS SANTOS
RASGANDO O VÉU...RASGANDO A MANTA?
(ESTEREÓTIPOS E RUPTURAS DE GÊNERO
ENTRE MULHERES EM CÁRCERE:
ESTUDO DE CASO EM SALVADOR)
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia como
requisito parcial à obtenção do grau de
MESTRE EM SOCIOLOGIA
BANCA EXAMINADORA:
Profa. PHD. Mary Garcia Castro
Professora do Mestrado em Sociologia da Universidade Federal da Bahia
Profa. Dra. Iracema Brandão Guimarães
Coordenadora do Mestrado em Sociologia da Universidade Federal da Bahia
Profa. Dra. Lourdes Maria Bandeira
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Nacional de
Brasília
SALVADOR
- 1996 -
4. 4
CAPÍTULO IV
USOS (E ABUSOS) DE CORPOS .................................................... 13
IV. 1 Poderes: carceragem e corpos
IV. 2 Encontro Íntimo: poderes, corpos e negociações
CAPÍTULO V
RASGANDO O VÉU...RASGANDO A MANTA?................................. 13
V.3 Representações sobre maternidade e maternagem: seus
significados
CONCLUSÃO .................................................................................... 13
Ainda que comova?!...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................. 13
ANEXOS .......................................................................................... 106
Recortes: jornais locais e o tema maternidade em cárcere
Glossário: Linguagem usual na Penitenciária Feminina
Organograma: Penitenciária Feminina de Salvador
Roteiros
5. 5
Dedico esse trabalho,
às mulheres que em algum momento de suas vidas já estiveram em cárcere
ou...quem sabe?...à todas nós!...e todos nós!
6. 6
A nave – que é MÃE –
reage à tropeços
e caídas em barrancos
mas,
reage não pôr ser mãe,
nem pôr ter mãe.
A nave reage!
Por quê?
Há o que lhe assanhe: a vida e a morte
o amor e o ódio
o trabalho e o descanso
o sexo e o nexo
a dor...o prazer...há dor.
A nave-mãe...cansa
mas, não desiste
insiste, resiste
existe!
Cleide Magáli
7. 7
AGRADECIMENTOS
Gostaria de ressaltar a impossibilidade de agradecer à todos que ajudaram
durante o percurso árduo, mas gratificante, que constitui o desenvolvimento
da pesquisa científica. Desse modo, limitarei os agradecimentos àqueles
que atuaram de forma mais direta no desenvolvimento desse trabalho.
Em primeiro lugar, meu agradecimento dirige-se às internas da
Penitenciária Feminina de Salvador, que contribuíram de forma decisiva
com seus depoimentos. Expondo-se, permitiram à uma "estranha",
compartilhar assuntos referentes às suas vidas, por vezes tão difíceis de
serem abordados.
À Mary Garcia Castro, a quem devo a competência, a seriedade e o carinho
com os quais me orientou. Professora e amiga em todos os momentos.
Umas das principais pessoas, com as quais aprendi "ver além das
aparências" (apud Marx) - instrumento fundamental no exercício da
profissão de cientista social.
À professora Iracema Brandão Guimarães, que muito contribuiu com suas
reflexões e sugestões, como orientadora no início desse estudo ou mesmo,
como Coordenadora do Mestrado em Sociologia, quando emprestou sua
dedicação.
Às professoras Célia Maria Leal Braga e Alda Britto da Motta, tão
prestimosas quando à elas recorri nos momentos iniciais desse trabalho e
que muito contribuíram com suas reflexões e sugestões.
8. 8
Aos professores, que durante o decorrer do curso de mestrado,
contribuíram para o nosso amadurecimento.
À amiga e colega socióloga Cristina Luz, que não teve medo de apostar na
proposta de trabalho, empenhando-se para a minha entrada no universo a
ser pesquisado.
Aos funcionários da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
especialmente aqueles vinculados diretamente ao curso de mestrado, que
emprestaram sua dedicação e amizade, ultrapassando o que seriam os
limites da obrigação profissional.
Agradeço a todos os colegas de mestrado, em especial, à Martha Maria R.
R. dos Santos, com quem partilhei momentos de estudos; à Sandra Regina
Correia, com quem partilhei muitas angústias e alegrias nas descobertas e
finalmente à Acácia Batista Dias, que além de companheira de angústias
nos estudos sobre a mulher e relações de gênero, contribuiu com sua
energia e alegria contagiantes, principalmente nos momentos mais difíceis
do nosso percurso.
Por fim, à minha família, que durante muitos momentos soube compreender
a necessidade de solidão, a exigência do silêncio e as inevitáveis
ausências. Ao meu companheiro José Santos, com quem começo a
partilhar um novo momento - o de colega de profissão. Cauteloso, mas
sempre crítico em suas reflexões, contribuiu sempre.
9. 9
RESUMO
Inicialmente, a metáfora "Rasgando o Véu..." refere-se à discussão sobre a
possibilidade de ruptura de estereótipos por parte das mulheres em cárcere,
"...Rasgando a Manta" por sua vez, refere-se diretamente à maternidade e à
maternagem. A hipótese implícita era que não necessariamente rasgar o
véu (possibilidade de quebra de estereótipos) significaria rasgar a manta
(desistência de um projeto de vida reprodutiva).
Imediatamente podemos verificar que a visibilidade sobre o tema população
carcerária, fazia-se parcializada por gênero, considerando tão somente o
universo carcerário masculino. Assim, "Rasgar o Véu..." também passou a
significar a necessidade de dar visibilidade ao tema.
A pesquisa teve como objetivo compreender o universo de referências
subjetivas e objetivas das mulheres em cárcere, suas origens sociais, suas
práticas e representações no que se refere a gênero e mais precisamente,
buscou compreender o possível ou possíveis significados que poderiam ser
atribuídos à maternidade e à maternagem na situação de cárcere,
principalmente junto àquelas que durante o período em cárcere estavam
grávidas ou já haviam parido e estavam maternando ou não. Para tanto,
empiricamente a pesquisa foi organizada principalmente, via entrevistas,
recorrendo às histórias de vida e às representações das mulheres em
cárcere quanto à maternidade, maternagem, aborto, relações afetivas e
sexuais, violência, crime e punição, família e organização carcerária.
10. 10
À medida que avançávamos na coleta de depoimentos, ou à medida que se
ia “Rasgando o Véu...”, uma questão que não havíamos enfatizado em
nossas reflexões iniciais, se impôs: a necessidade de análise dos
significados do controle institucional sobre os corpos e de como as internas
vivenciam seus corpos. Essa questão, acabou por se constituir num
importante indicador para a compreensão dos possíveis significados
atribuídos à maternidade e a maternagem.
A investigação se constituiu assim, com um forte assento para uma
metodologia que ampliando seu enfoque, contemplam o olhar feminista na
qual o objeto é subjetivado, ouvido e interpretado no processo da
organização da pesquisa onde o pesquisador - uma mulher - no diálogo
com a mulher presa foi soltando o texto, reafirmando a pesquisa e por
respeito ao leitor ou leitora, a si mesmo e à mulher entrevistada, foi
"desvendando" erros, acertos e rearrumações, ou seja, dando â conhecer
os bastidores da pesquisa que são apresentados misturando-se no cenário
final. Por isso, essa dissertação também apresenta um caráter de denúncia
quando desvenda a existência de "prisões dentro da prisão", tais como: a
tentativa - frustada - de esterilização em massa, orientada por um famoso
médico baiano ou a obrigatoriedade do uso de contraceptivo até por
aquelas que já realizaram ligadura de trompas.
Desse modo, a utilização de determinados estereótipos, a
instrumentalização da maternidade, as negociações e os poderes,
compõem-se matéria dessa dissertação. Concluímos que de fato,
maternidade e maternagem sofrem redefinições pelas mulheres em cárcere
e ainda, que a própria instituição em certa medida, oferece os elementos
para essas redefinições.
11. 11
ABSTRACT
Firstly the metaphor. “Tearings the Veil” refers to a discuss about a possibility of
stereotype rupture on the part of women in prison; “Tearings the Blanket” on the
other hand, refers directly to motherhood and mothering. The tacit
hypothesis was not necessary to tear the veil out (possibility that broke down
some stereotypes), it could mean tear the blanket (act of project resisting in
the reproductive life).
At once, we can examine that the visibility about the subject opulation - in
prison - was compartimented by gender, taking in account the universe
male prison. Then "To Tear the Veil" start to demonstrate the possibility to
give visibility to the above subject.
The research had a main goal: to understand the subjective and objective
universe of references from these women, their social origin, their
practices and representations concerning to gender.
Its research was to understand the possible or possibles meanings that
could relate to motherhood and mothering in the prison situation, mainly to
those that during the period in prison were pregnants or had given birth and
were or not mothering.
For this reason, empirically, the research was organized to: through
interviews consider the life history and representations of women in prison
as for motherhood and mothering, contraception, abortion, affective and
12. 12
sexual relationships, violence, crime and punishment, family and prison
organization.
According as the progress in statement or according as things was going –
“Tearing the Veil” – one question not emphasized in the first reflections
appears, the necessity to analyse the meaning of institucional control over
the bodies and how the prisioners could feel their own bodies. This question
suddenly appear as one of the most important indicator to understand the
possibles meanings for motherhood and mothering.
The investigation was characterized with a strong inclination to define a
feminist methodology, where the object is subjectived, understood and
translated during research organization process where the researcher - a
woman - in dialoguing with the universe of women in prison, star to "unveil"
mistakes, rightness and rearranges or rather offering to be now the
embroidery frame of the research that will be shown in the final scenery.
That´s why this paper also presents a denunciation character when unveil
the existence of "prision inside the prison" as follow: the frustrated attempt of
group sterilization oriented by a famous doctor or the obligation to use
contraceptives even for those who had made sterilization surgeries.
Therefore, the use of specific stereotypes, the motherhood
instrumentalization, the transactions and powers, become subject of this
paper. Concluding it is right to say, in fact, that motherhood and mothering is
changing its definition by the women in prison, and that some help to these
changes are been given by the official institution.
13. 13
APRESENTAÇÃO
Meu interesse pelo estudo sobre mulher e relações de gênero, se
desenvolveu ao longo do curso de graduação em Ciências Sociais
especialmente o debate sobre mulher, relações de gênero e estereótipos.
No referido debate assenta-se boa parcela da discussão sobre maternidade
e maternagem.
Apesar de, amplamente discutidas, não é difícil perceber que o
conhecimento acumulado sobre maternidade e maternagem apresenta
visível lacuna no que se refere ao cotidiano das mulheres no universo
carcerário .
A condição de mestranda em Sociologia possibilitou-me propor um estudo
sobre estereótipos, maternidade e maternagem no cotidiano das reclusas
na Penitenciária Feminina de Salvador, buscando contribuir para a
construção de um conhecimento a respeito deste universo, bem como, para
além da voz institucional, possibilitar, voz às próprias reclusas.
Desse modo, a presente dissertação apresenta os resultado da pesquisa
que se constituiu requisito parcial para a conclusão do Curso de Mestrado
em Sociologia pela Universidade Federal da Bahia.
15. 15
Do empírico ao teórico, do teórico ao empírico...
Em 1993, algumas notícias veiculadas com grande destaque em jornais da
cidade de Salvador, nos davam conta de que a penitenciária feminina
instalada no Complexo Penitenciário da cidade abrigava cerca de 68
prisioneiras (95% mães) entre 19 e 83 anos, além de duas crianças
(meninas) com menos de um ano de idade.
Algumas outras informações nos chamavam especial atenção. A mesma
matéria intitulada "Ser mãe, no cárcere, pode ser um recomeço de vida",
trazia em seu conteúdo os seguintes trechos:
"A Lei de Execuções Penais prevê tratamento diferenciado para as
prisioneiras que venham dar à luz, enquanto a gravidez no interior de
um presídio parece inevitável, por uma questão de direito de foro
íntimo... De acordo com Sônia Santana (Diretora do Presídio
Feminino-SSA) as prisioneiras recebem tratamento preventivo
ginecológico e contraceptivos, a exemplo de Perlutam, que
geralmente é recusado pelas “pacientes”, por acreditarem prejudicar
as formas femininas. O controle da natalidade é considerado difícil,
mesmo porque, a maioria das internas preferem receber as
chamadas camisinhas que muitas vezes não usam e chegam a
argumentar: “A gente já vive nessa situação, e não é nada gostoso
chupar bala com o papel". Cria-se, então um impasse legal e ético."
(JORNAL A TARDE/BA, 19/09/93)
16. 16
Realizamos então, uma breve sistematização de informações e segundo as
quais podemos observar que em menos de um ano, a mesma penitenciária
já abrigava 96 prisioneiras (99% mães) e o número de crianças “residentes”
chegava a 6 (seis), ao mesmo tempo em que se esperava o nascimento de
pelo menos mais duas crianças.
Ao mesmo tempo, na mais conhecida prisão feminina do país, a Talavera
Bruce - uma das nove unidades do Complexo Penitenciário de Bangu, a 40
quilômetros do centro do Rio de Janeiro - já existia uma creche fundada em
1970 por iniciativa da Organização Mundial para a Educação Pré-Escolar
(OMEP), sendo a primeira creche do país e a segunda no mundo nessas
circunstâncias. Na referida creche, denominada Madre Tereza de Calcutá,
residiam até 1993, cerca de 30 crianças com menos de 7 anos e, num total
de 260 presas, cerca de 90% eram mães. Ao completarem sete anos, se
não houver alguém na família que fique com a criança, ela será
encaminhada às instituições de menores.
Diante da situação de cárcere descrita, dois tipos de comportamentos
diferentes podiam ser identificados: um, significando a assunção da
manutenção da vida reprodutiva - biologicamente falando - e outro, sua
desistência. Por esse quadro também, se podia perceber que para além do
número de gestações, a gravidez e a maternagem em cárcere poderia
significar algo mais que um acontecimento no cotidiano de uma prisão.
17. 17
Mas, qual o lugar social e o lugar teórico, que justificaria então, a assunção
do quadro descrito como um fenômeno a ser considerado para uma
investigação sociológica?
Para responder essa questão de forma breve, preferimos aqui nos deter em
pontos básicos que nos pareceu sugerir a relevância social e sociológica: o
crescente índice de mulheres em cárcere e mulheres em cárcere como seus
filhos e a pouca visibilidade que se tinha desse quadro. A promessa de
importância teórica também se fazia pela possibilidade de discussão de
todo um referencial sobre o tema maternidade e estereótipos.
Realizada a pesquisa, apresentamos agora a sistematização de
informações sobre seu processo de desenvolvimento e os principais
resultados. Assim, a presente dissertação compõe-se de dois blocos: no
primeiro, priorizamos a revisão do tema maternidade no âmbito da teoria
social, a construção da problemática referente ao fenômeno maternidade e
maternagem em cárcere; no segundo bloco, a discussão sobre os aspectos
metodológicos através da exposição dos caminhos seguidos na pesquisa e
a apresentação dos resultados da investigação empírica, informados por
análise reflexiva.
Considerando a ordenação por capítulos, abordamos especificamente: no
capítulo I, uma revisão da literatura sobre o tema maternidade na teoria
social, a construção da problemática da maternidade e maternagem em
cárcere; no capítulo II, além da descrição do processo de investigação,
18. 18
método e procedimentos técnicos adotados – expomos descobertas, erros e
acertos, assim como ansiedades e angústias. Este se mostra ou expor-se
não faz parte do acadêmico, contudo não declinamos a necessidade do ato,
se de perspectiva de gênero se trata, já que por tal perspectiva a
objetividade é “subjetivada” na comunhão, crítica sim, mas solidária – a
partir da mulher pesquisadora, considerando que uma simbiose se insinua,
na dúvida se na pesquisa, não são também experiências ou
questionamentos nossos por sermos mulheres. desse modo, o (a) leitor (a)
deve estar prevenido (a) para o peso concedido a narrativa das situações
de caráter contigente e inesperado que certamente também contribuíram no
processo de aprendizagem; no capítulo III, iniciaremos nossa análise sobre
o universo carcerário através de sua caracterização; no capítulo IV,
realizaremos a análise de alguns aspectos referentes ao controle
institucional sobre os corpos das reclusas e seu significado; no capítulo V,
realizaremos a análise sobre os principais aspectos das significações
atribuídas à maternidade e à maternagem no cotidiano da penitenciária.
A Conclusão é o espaço privilegiado para as reflexões finais sobre a
investigação. É um espaço aberto. Ressaltamos não termos a pretensão de
tecer conclusões definitivas sobre temas complexos como os relativos à
estereótipos e rupturas de gênero entre mulheres em cárcere ou à questão
de gênero e estrutura da situação penitenciária em Salvador.
20. 20
I.1 Maternidade: Um Tema na Teoria Social
Ao resgatarmos a discussão sobre mulher e maternidade na teoria social,
constatamos ter sido o tema inicialmente discutido a luz da relação entre
"natureza feminina" e procriação.
Essa discussão foi sistematizada com mais rigor a partir do inicio da década
de 70, quando a tese da subordinação universal da mulher, estava centrada
no argumento de que as atribuições femininas na produção estavam
subordinadas à suas atribuições na reprodução biológica. Por esse
argumento, portanto, a mulher havia ocupado uma posição histórica e
socialmente tão definida no espaço social da família, que a sua atuação em
outros campos refletia a marca dessa posição como se houvesse uma
natureza feminina.
Desse modo, falar em natureza feminina significava relacionar a atuação
social da mulher à atributos que lhe deram caráter de fragilidade em função
de um determinismo biológico e para muitas autoras, estava aí a
possibilidade de explicação para os longos anos de uma posição social
subalterna, no que se referia aos homens.
Destacamos como ilustrativa dessa abordagem, a obra de Sulamith
Firestone, The Dialetic of Sex: The Case for a Feminist Revolution (1970),
21. 21
que apontou a reprodução sócio-biológica como a chave para entender o
processo de subordinação social da mulher. Para a autora a libertação das
mulheres viria através das transformações na tecnologia reprodutiva, o que
poderia no futuro eliminar a necessidade do uso do corpo das mulheres
como agentes da reprodução da espécie.
Embora hoje, essa afirmação não pareça totalmente absurda,
principalmente se lembrarmos da engenharia genética, essa abordagem
baseava-se unicamente na diferença físico-biológica, para explicar a
subordinação feminina, delimitando-a.
Em contraposição, começaram a proliferar análises que levantavam
importantes questões sobre o significado cultural da maternidade. Adrienne
Rich (1976), Dorothy Dinnerstein (1977) e Nancy Chodorow (1978) foram
algumas dessas autoras.
Rich (1976) apresenta um dos primeiros estudos a trabalhar a relação até
então, aparentemente incompatível entre feminismo e a maternidade
biológica. Para tanto, a autora analisa a maternidade através de duas
dimensões: a experiência e a instituição. A maternidade além de
experiência real das mulheres, também se apresenta como uma
"identidade institucional forçada" uma vez que as relações entre homens e
mulheres fundam-se na situação da mulher enquanto propriedade do
homem ou de instituições por ele controladas. Assim, apontava a
22. 22
maternidade enquanto instituição política vinculada ao contrato
heterossexual, como o nervo central do problema.
Diferenciando a experiência real das mulheres desta "identidade
institucional forçada", clamava por uma análise da maternidade como
"única possibilidade e experiência profunda para as mulheres" no intuito
de despojá-lo da mística que envolve e na esperança de que as mulheres
e homens pudessem um dia experimentar formas de amor, sexo e
"parenthood", de identidade e comunidade que não estivessem
permeadas de "mentiras, segredos e silêncio".
Rich, acreditava que a mulher conserva uma maneira diferenciada de ver o
mundo sem dualismo ou polaridades. Assim, liberada de sua
institucionalização, a maternidade poderia vir a ser um instrumento de
transformação mais valioso do que qualquer revolução socialista, ao
recuperar o "milagre e paradoxo do corpo feminino e seus significados
espirituais e políticos". Desse modo, seria possível analisar as relações
entre reprodução e sexualidade, prazer e dor, alienação e envolvimento.
Dinnerstein (1977) e Chodorow (1978) têm em comum a ênfase na estrutura
psico-social em detrimento das bases biológicas em Firestone ou sócio-
políticas, argumento priorizado por Rich quanto a organização do gênero.
23. 23
Chodorow (1978) chama atenção sobre "destino" de gênero, com a
pergunta "Por quê são as mulheres que maternam?" - maternagem aqui
entendida como "assunção da responsabilidade inicial pelos cuidados da
criança". A autora rejeita as duas tradicionais respostas: (i) a teoria da
natureza, pela qual a mulher tem inclinação maternal nata e (ii) a teoria dos
papeis sociais que atribui a tendência materna à ideologia e às pressões
dos estereótipos de gênero (exercidas pela mídia, educação, religião,
cultura e organização familiar). Baseia-se então, na teoria objeto-relacional,
diagnosticando a tendência à maternidade e à heterossexualidade como
perpetuada principalmente pelo desenvolvimento de uma estrutura psíquica
e não apenas comportamental.
Apesar da influência desta abordagem, a crítica de Scott (990:10) alerta
para o seu reducionismo pois, "essa interpretação limita o conceito de
gênero à esfera da família e à experiência doméstica, e para o historiador
ela não deixa meios de ligar esse conceito (nem o indivíduo) com outros
sistemas sociais, econômicos, políticos ou de poder".
Na década de 80, várias autoras recorrem à história, na tentativa de
"desnaturalizar" os possíveis "destinos femininos".
É Elisabeth Badinter (1985) que apresenta uma das mais complexas obras
sobre maternidade, por uma pesquisa histórica. A autora discute a
passagem da total indiferença do século XVII - quando as mães entregavam
seus filhos as amas de leite que viviam no campo, longe dos pais, em
24. 24
péssimas condições materiais e afetivas - para a exaltação do amor
materno do século XIX.
Badinter discute como a religião, o discurso médico e o direito tiveram papel
fundamental nesta transformação. A autora propõe uma discussão a
respeito da injunção cultural no ideário social e no comportamento da mãe.
No final de seu livro, a autora, apresenta uma interessante conclusão:
"Ao se percorrer a história das atitudes maternas, nasce a
concepção de que o instinto materno é um mito. Não encontramos
nenhuma conduta universal e necessária da mãe. Ao contrário,
constatamos a extrema variabilidade de seus sentimentos, segundo
sua cultura, ambições ou frustrações. Como, então, não chegar a
conclusão, mesmo que ela pareça cruel, de que o amor materno é
apenas um sentimento e, como tal, essencialmente contigente?Esse
sentimento pode existir ou não existir; ser e desaparecer.Mostrar-se
forte ou frágil. Preferir um filho ou entregar-se a todos.(...) Tudo
depende da mãe, de sua história e a da História. Não, não há uma
lei universal nessa matéria, que escapa ao determinismo natural. É
‘adicional’. (BADINTER, 1985:367)
Poderíamos então, falar numa coexistência de multiplicidade de significados
da maternidade, relacionados há tempos e espaços sociais.
25. 25
Sobre a obra dessa autora, ainda gostaríamos de ressaltar que o uso do
conceito maternidade funde-se em muitos momentos com o de
maternagem, cunhado especialmente por uma linha mais psicanalítica.
Essa característica, em verdade é comum à esmagadora maioria da
produção literária sobre, o tema - nas obras revisadas não encontramos um
rigor na distinção desses conceitos.
Em nossa investigação, assumimos maternagem especialmente como os
cuidados com as crianças ou mais ainda como a experiência cotidiana da
maternidade (a institucionalização dessa experiência cotidiana) mas
possivelmente em alguns momentos, o rigor não se faça sentir, contudo
acreditamos que isso não foi prejudicial à investigação.
26. 26
I.2 Maternidade e Maternagem em cárcere: um (não) Tema em Teoria
Social. A construção de um problema de pesquisa
Em toda a revisão bibliográfica, porém, mesmo em se tratando da questão
dos direitos reprodutivo1
, nada se tem discutido sobre maternidade e
maternagem em cárcere.
A única referência ao tema maternidade, encontra-se em Soares (1993),
que ao tratar a questão da construção (ou desconstrução) de discursos
sobre a mulher criminosa aponta para o fato de que,
"Da mesma forma como ter um mando delinqüente ou vir de uma
família delinqüente não é mais motivo para que a delinqüência
feminina seja minimizada ou perca o seu fundamento de autonomia,
nas representações [dos discursos institucionais], a maternidade
tende a ser compreendida através dos mesmos procedimentos. E, na
nossa opinião, é nessa esfera que o deslocamento entre papeis
tradicionais femininos e o exercício da delinqüência assume a sua
manifestação limite pois desconstrói a grande temática que - apesar
de fundada na cultura – é compreendida como da própria natureza
(ou 'a própria natureza' da mulher): a procriação." (SOARES,
1993:35)
Além da inexistência da abordagem do tema maternidade e maternagem
em cárcere, os escassos estudos sobre o universo carcerário feminino têm
27. 27
como uma das suas fontes principais o discurso institucional – autores como
Pinatel e Lombroso (s/ data), Brito (1943), Caneppa (1951) – ou quando
primam por dar voz as mulheres – Braga (1981) e Zaluar (1993) – estão
especialmente enfatizando análises das carreiras de delinqüência em busca
da compreensão do fenômeno da criminalidade feminina ou quando muito,
têm como recorte a análise referente aos aspectos do caráter pedagógico
da instituição cárcere – como em Fornari (1994).
Uma das características comum a todos esses trabalhos, refere-se ao fato
de que suas discussões geralmente foram norteadas pela questão da
construção de estereótipos – imagens pré-estabelecidas sobre ou para
todos os indivíduos pertencentes à alguma categoria social, pautada na
atribuição de qualidades de caráter positivo ou negativo. Assim, a
identidade social dos gêneros – masculino e feminino – seria construída
através de maneiras de proceder, ordenadas por expectativas de
desempenho. Essa perspectiva, foi extremamente discutida, especialmente
por nela assentar-se a concepção sobre relações de gênero da tese do
patriarcado.
Diversas correntes dos movimentos feministas, bem como a reflexão
científica alinhada a outros conhecimentos a respeito da condição feminina,
trouxeram à discussão o fato de que a assunção de várias atribuições
sociais – em diferentes campos – não se dá de forma harmoniosa,
atentando para a possibilidade de resistência e de recusa. Tratam da
questão da dialética da acomodação e resistência.
28. 28
“Conquanto seja verdade que muitas mulheres aprendem o que é
socialmente aprovado e freqüentemente comportem-se de modo
esperado, argumentarem que a aceitação completa de atitudes e
comportamentos apropriados aos papeis sexuais (tanto quanto a
completa rejeição) é, de fato, bastante rara. Na verdade, nem
‘aceitação’ nem ‘rejeição’ descrevem suficientemente o ‘que ocorre’.
(ANYON, 1990:14)
o autor também sugere que a aceitação da feminilidade como atribuição
natural, pode significar um modo de obter segurança num universo público
ameaçador – a feminilidade torna-se um instrumento.
Nesse sentido, para alguns autores, o conceito de gênero tenta deslocar-
se da naturalização das atribuições sociais:
“Com o conceito de gênero desnaturaliza-se para alguns autores, a
categoria sexo, defendendo-se que relações de gênero são
relações sociais plasmadas na cultura por assimetrias de poder,
sustentadas por símbolos, por um muno sensível, e por razões, por
um mundo inteligível, racional.” (CASTRO, 1992:96)
Se tomarmos Joan Scott (1990) podemos identificar quatro elementos
integrantes das relações de gênero: (i) – os símbolos culturais colocados à
disposição das pessoas, símbolos estes que evocam múltiplas
representações; (ii) – os conceitos normativos que expressem
interpretações dos significados desses símbolos; (iii) – as organizações e
instituições sociais e (iv) – a identidade subjetiva.
29. 29
Assim, o debate atual sobre gênero, adverte sobre o caráter de processo
ou de construção político, cultural e social nas relações sociais e a
importância da prática em tal construção. Questionam-se os limites da
assunção de atribuições sociais estáticas, atemporais, universalizadas e
essencializadas. Admite-se em tal raciocínio, rupturas e variedades nos
estereótipos.
Nosso olhar sobre o tema maternidade e maternagem em cárcere, foi
orientado assim, pela necessidade de investigar a possibilidade de
coexistência de variados significados para a maternidade e para a
maternagem – como sugere Badinter (1985). Ou seja, na tentativa de
verificar a possibilidade de reapropriação da maternidade e da
maternagem admitindo significados variados na história, em espaços
institucionais diversos. Além disso, nosso olhar para a investigação dos
possíveis significados – atualizados ou não – que maternidade e
maternagem pudessem assumir, teve a intenção de se afastar das
perspectivas que reduzem as mulheres à vitimas passivas, de um trans-
histórico patriarcado.
Desse modo, resguardados os devidos limites das análises possíveis,
buscamos identificar através dos seus depoimentos, como as mulheres
em cárcere assimilam o modo de entender e exercer suas atribuições
sociais, re-elaborando determinados aspectos das suas experiências
existenciais e se em suas re-elaborações havia sinais de resistências ou
mesmo de rupturas com relação à eles. Pois, como adverte Madeira
30. 30
(1988), a representação “não é um fenômeno individual, porque leva a
marca daquilo que faz um segmento ser parte de uma totalidade, ainda
que na sua estrutura estejam presentes as particularidades de cada
sujeito”.
As representações, aqui, portanto, foram entendidas como em Brioschi e
Trigo (1989) como “elaborações subjetivas, mentais que fazem [os
indivíduos] sobre as suas condições materiais de existência”.
Para a pesquisa, as seguintes questões foram relacionadas:
(i) quando a mulher encarcerada engravida ou se torna mãe, estaria ela
tão somente buscando fazer jus à benefícios (tratamento diferenciado)
que lhe são concedidos nesse caso pela instituição penitenciária,
conforme prevê a Lei de Execuções Penais e como me informaram
agentes penitenciárias que entrevistei em trabalho preliminar de
reconhecimento do campo de pesquisa?
(ii) estariam buscando restaurar uma identidade feminina socialmente
construída e que representa um reajuste com a sociedade?
(iii) não estariam as mulheres em cárcere, tentando formar uma família,
ainda que não nos termos comuns de marido-mulher-filhos, mas de
companheiras de cela-funcionáris-mães-filhos?
31. 31
(iv) não buscariam essas mulheres realizar fantasias quanto à relação
com o seu corpo, como provar que são capazes de reproduzir e gerar vida
ou dar uma prova de amor ao outro, no caso o marido ou amante? – note-
se que na discussão sobre maternidade, a referência é a realização como
mulher ou a relação com o outro, o possível pai.
(v) estariam essas mulheres buscando alternativas às possíveis violências
dentro do próprio presídio desejando criar novas formas de
relacionamento?
(vi) estariam essas mulheres buscando através da gravidez, vivenciar um
ato de rebeldia?
Finalmente, se por outro lado, as mulheres desistem da manutenção de
uma vida reprodutiva, (vii) que influências pesam em suas decisões?
Seriam unicamente as condições adversas as gestações? ou seria
realmente uma ruptura com determinados estereótipos?
Em resumo, a pesquisa teve como objetivo geral investigar sobre o
possível ou possíveis significados atribuídos à maternidade e à
maternagem pelas mulheres em cárcere, à luz de um dos mais
interessantes debates da teoria social: a questão da construção,
assimilação ou ruptura de estereótipos.
32. 32
Além, de considerar o debate antes assinalado sobre gênero e
estereótipos, a investigação possibilitou a reflexão sobre uma parcela da
população que além dos enfrentamentos, já conhecidos por sua condição
de mulheres, lidam no seu cotidiano diretamente com as ações coercitivas
do Estado.
Através de seu discurso pedagógico – reeducação de indivíduos que
transgrediram normas socialmente aceitas como corretas – as prisões
além de produzirem um controle do “corpo social”, evidentemente
produzem uma ação direta sobre os corpos de seus e suas internas.
Goffman (1990) e Foucault (1991) fazem referência à como o corpo em
especial, sofre as conseqüências dos mecanismos disciplinadores,
“Muito freqüentemente verificamos que a equipe dirigente emprega
o que denominamos processos de admissão: obter uma história de
vida, tirar fotografia, pesar, tirar impressões digitais, atribuir
números, procurar e enumerar bens pessoais para que sejam
guardados, despir, dar banho, desinfetar, cortar os cabelos,
distribuir roupas da instituição, dar instruções quanto a regras,
designar um local para o internado...” (GOFFMAN, 1990: 25-6)
33. 33
Assim, a prisão “esse ‘reformatório integral’ segundo Focault, e ‘instituição
total’ para Goffman, prescreve uma recodificação da existência que vai
muito além da pura privação da liberdade”. (FORNARI:1994)
Em que pese a inegável contribuição dos dois autores, certamente em
suas obras não encontramos recortes de gêneros. Desse modo, a questão
do controle do corpo em nossa investigação apresentou um recorte mais
especifico no que se refere a gênero.
35. 35
II. 1 Caminhos, Trilhas e Ilhas
Ao iniciarmos esse capítulo, gostaríamos de ressaltar nossa compreensão
de pesquisa enquanto processo e, portanto, como tal, constituindo
especificidades em seu percurso.
Conforme anunciamos no momento introdutório desta dissertação, neste
capítulo nos deteremos no relato de casos e situações de caráter
contigente e inesperado que compuseram a pesquisa. Portanto enquanto
aprendizes que somos, no que se refere às análises possíveis do social, em
alguns momentos nos sentimos ansiosos e angustiados. Passíveis de erros
e acertos em nossas descobertas, não raras foram as vezes que
encontramos colegas que partilhavam angústias semelhantes e nos
sentimos em parte, confortados em compartilhar as mesmas dificuldades.
Esperamos, que esse relato seja de tanta contribuição, tanto quanto o
relato dos resultados da pesquisa, principalmente para aqueles que como
nós, são iniciantes no árduo, mas gratificante trabalho de estudo do social.
Nossa narrativa, obedece a certa cronologia com o intuito de oferecer aos
leitores uma descrição da sucessão de nossos passos. Para tanto,
falaremos em quatro grandes etapas.
36. 36
ETAPA 1.
Consideramos como etapa 1, a etapa na qual elaborei e discuti com
professores, colegas e especialistas, o que daria origem ao projeto de
pesquisa. Para tanto, algumas atividades foram de extrema importância tais
como: levantamento bibliográfico inicial e análise do material secundário
como teses, artigos, 'papers' e livros sobre maternidade e maternidade em
cárcere.
Neste período, pude constatar que tema - maternidade em cárcere - tratava-
se de investigação inédita para a nossa realidade. Tal descoberta, ou sua
ausência, ao mesmo tempo em que me deixava desamparada no que diz
respeito a referências bibliográficas, também me instigava à investigação.
A partir dessas atividades, foi possível sistematizar as hipóteses correntes
na literatura sobre cada um dos campos de interessa empírico. Também
foram possíveis algumas definições quanto ao modo de investigação e a
escolha de técnicas de coleta de dados.
Optamos pelo estudo de caso, visando reunir o máximo de informações,
com vistas à empreender uma análise intensiva sobre uma situação definida
em tempo e espaço delimitados:
37. 37
"As experiências humanas são descritas em sua dimensão temporal
e permitem alcançar os mecanismos de funcionamento da estrutura
social que as contêm. Isto é, em um momento decisivo da análise, o
discurso do ator – com sua individualidade e especificidade – é
decomposto, reagrupado e interpretado, e pode ainda diluir-se na
trama social que integra o conjunto de atores. Muitas vezes esses
discursos são interpretados segundo a posição funcional ou de
classe que cada ator ocupa no interior da estrutura social."
(CAMARGO et. al., 1983:12) [grifo nosso]-
Tomando por base questões preliminares, interessava-me o estudo das
representações presentes nas histórias de vida das mulheres em cárcere,
enfocando suas atribuições sociais, em particular vivências e significados
atribuídos à maternidade e à maternagem - no propósito implícito de
identificar a existência ou não de rupturas de estereótipos sociais.
Não nos deteremos aqui, ao tratamento do conceito de representações
sociais na sociologia clássica como fez Minayo (1995), e nem mesmo
proceder a uma vasta discussão a seu respeito, em meio da sociologia
contemporânea.
De fato, pretendo apenas, esclarecer de que modo nos apropriamos deste
conceito em nosso estudo.
38. 38
A discussão sobre a aproximação dos conceitos mostra como
gradativamente a teoria contemporânea vem buscando "sair" da
problemática da relação sujeito-objeto, recorrendo a tipos de conhecimento
em que o sujeito e o objeto estejam "diluídos" um no outro e de como isto,
seria um conhecimento possível.
Hoje é possível assumir que:
“Nem são as estruturas as responsáveis pela manutenção da
sociedade nem são as ações sociais que a movem. São as duas -
estruturas e ações - que tomam a sociedade possível e que fazem a
modelagem do seu caráter ora na direção da permanência, ora na
direção da mudança (...) Ações conservadoras, progressistas ou
revolucionárias, mas são elas que ligam as micro e as
macroestruturas. (HAGUETTE, 1987:152)
Dessa forma já não se faz mais necessário pensar num grande paradigma,
uma grande teoria ou uma Epistemologia.
A teoria social hoje se constitui em uma grande Epistemologia tópica que
não é meramente uma departamentalização distorcida, havendo pois, uma
recorrência a interdisciplinariedade.
As grandes teorias perderam o domínio paradigmático e foram surgindo
novas teorias sócio-antropológicas dentre elas, aquela que muitos (as)
39. 39
denominam teoria feminista, que lida hoje com uma amplidão de conjunção
de teorias.
Assim, é nesta atmosfera que o conceito de representações sociais foi
utilizado em nossa pesquisa, como "um termo filosófico que significa a
reprodução de uma percepção retida na lembrança ou do conteúdo do
pensamento... [enquanto que nas Ciências Sociais] o termo se refere a
categorias de pensamento através das quais determinada sociedade
elabora e expressa sua realidade” (MINAYO,1994:89)
Em termos metodológicos, a apreensão das representações efetiva-se
objetivamente através de alguns fenômenos sociais tais como crenças,
regras (morais e do direito) e das conversações.
"...quando nós falamos em representações sociais, a analise
desloca-se para um outro nível [que não a sua equação na atividade
representacional per se]; ela já não se centra no sujeito individual.
mas nos fenômenos produzidos pelas construções particulares da
realidade social." (JOVCHELOVITCH, 1995:79) [grifo nosso]
Por outro lado, ao optarmos por história de vidas, sabíamos de sua
complexidade limites - conforme alerta a literatura especializada (Bertaux,
1981; Camargo et al, 1984; Denzin, 1984; Pereira de Queiroz, 1983), mas
entediamos ser este o procedimento mais adequado uma vez que.
40. 40
"...obter sucessivo fatos sobre o sujeito (ou sujeitos) e sua
experiências para a compreensão não apenas do ator social em si
mesmo, mas também das unidades ou processos sociais que são
mais amplos do que os indivíduos." (CAMARGO et al, 1983:13) [
grifo nosso ]
41. 41
ETAPA 2.
Consideramos a etapa 2, aquela onde além das continuidades dos
trabalhos de construção teórica da problemática, iniciamos o denominado
"trabalho de campo, atendo como principal atividade a coleta dos
depoimentos.
Desse modo, foram realizadas as primeiras incursões ao Departamento de
Assuntos Penais (DAP) com o intuito de obter autorização para o
desenvolvimento da pesquisa. Bem como, foram realizadas as primeiras
visitas a Penitenciária.
Tal momento da pesquisa merece especial destaque, desse modo, faremos
um breve resumo sobre esse momento.
ENTRANDO NA PENITENCIÁRIA:
O CAMPO: impressões de um caderno
O primeiro passo, muito delicado, foi justamente o de conseguirmos
conquistar autoridades a fim de obter autorização para início de trabalho já
dentro da própria penitenciária.
Para estabelecer o primeiro contato, recorremos ao expediente da utilização
de intervenção de amigos que tinham algum vínculo de amizade com
42. 42
funcionários da Secretária de Justiça do Estado. Marcado o primeiro
encontro com alguém influente no Departamento de Assuntos Penais
(DAP), fomos recebidos como muita polidez e cautela. Em uma sala
estávamos, eu, meu contato pessoal e um assessor desse Departamento.
Em princípio depois de ouvir sob o teor da pesquisa, ficou sinalizada a
possibilidade de acesso às internas. No entanto, alguns aspectos foram
chamados à atenção.
Foi recomendado que, se pretendíamos entrevistar as internas, deveríamos
ter muito cuidado, pois elas "têm um discurso dúbio, querem emocionar!".
Ressaltamos que pretendíamos também ouvir a Diretoria da Instituição e
aqueles que trabalhavam diretamente com as internas. Tal afirmação
causou novo motivo para aconselhamento: "seria necessária certa cautela
pois as presas são superprotegidas pela direção da penitenciária -
verdadeira mãe para elas".
Tais aconselhamentos, nos chamam especial atenção, pois já ali nos
deparávamos com uma representação significativa no que se referia à um
conceito de maternidade, indicando proteção, tutelagem, autoridade, sem
referência a vínculos consangüíneos. Aprofundando um pouco mais a
conversa, apontou-se o fato de que essa superproteção a que as internas
estariam sujeitas por parte da diretoria se referia à proteção contra
situações e pessoas que pudessem explorar a imagem das internas. E que
inclusive no âmbito das internas para as políticas de atuação para a
instituição, a diretora seria uma defensora das internas. Mas, não
43. 43
conseguimos maiores dados que nos permitisse aprofundamento dessa
elaboração.
Ainda nessa conversa, fomos alertados sobre outro aspecto do discurso
das internas: a confusão entre o papel da instituição – que é apenas de
‘guarda’ – com o da Justiça, com sua morosidade em seus trâmites. As
internas tendem a atribuir à instituição uma determinada culpa, acreditando
se tratar de má vontade da instituição, não intervindo com agilidade em
seus processos.
Uma semana após esse contato, recebemos autorização - por telefone -
para nos dirigirmos à penitenciária para um contato inicial com a Diretoria.
Ficou claro que caberia à direção da penitenciária dar a palavra final para a
realização da coleta de depoimentos.
Após várias tentativas frustadas, desistimos de recorrer à Diretora e só
então, conseguimos um breve contato por telefone com a vice-diretora da
instituição. Marcamos um encontro para dali a dois dias.
Ao chegarmos, trazíamos algumas pré-noções a respeito de prisões que
nos sugeriam um ambiente constrangedor.
44. 44
Depois das devidas explicações e identificação na guarita do Complexo
Penitenciário, recebemos um crachá para visitantes, no que fomos
informados qual era o respectivo prédio da penitenciária.
Neste breve momento, um detalhe nos chamou especial atenção: a
inexistência de telefone, interfone ou rádio entre a guarita principal com os
prédios que fazem parte do Complexo (duas penitenciárias, um centro de
observação penal e a casa de detenção).
Este primeiro contato, nos mostrou certa flexibilidade de acesso, pois nosso
nome não se encontrava em nenhuma lista bem como valemo-nos apenas
de nossa palavra. Este fato, contribuiu, em certa medida para dissipar,
nossa expectativa sobre algum constrangimento, ao qual tivéssemos de nos
submeter, como por exemplo a uma revista, que acreditávamos, comuns
nessa situação.
Na recepção, o clima era tranqüilo e não muito formal. Num balcão uma
agente nos recebeu, fazendo o devido registro em livro de entradas e
saídas. Não nos revistou, também nada nos foi perguntado sobre quaisquer
materiais que trazíamos em nossa grande bolsa.
Observamos que detentas (4 pelo menos) transitavam ali por baixo, na
entrada principal. Enquanto, uma das internas varria o local, as outras
conversavam com as agentes. Acompanhados por uma agente, subimos as
escadas que dão acesso às salas da administração e um funcionário nos
45. 45
abordou perguntando em tom brusco do que se tratava. Quando explicado
tornou-se mais gentil e pediu que aguardássemos.
A vice-diretora nos atendeu. Explicado o motivo da pesquisa - no que
fizemos questão, enquanto estratégia, salientar ser a maternidade nosso
grande tema - nos foi confirmada a autorização. Assim, estávamos
recorrendo instrumentalmente, ao prestígio social da maternidade como
tema, para realizar a pesquisa. Fomos então, apresentadas às assistentes
sociais que deveriam nos auxiliar durante nossas visitas.
Na sala das assistentes sociais (duas), tivemos nosso primeiro contato com
dramas constituintes do mundo da penitenciária. Duas internas choravam e
reclamavam por nunca terem conseguido exercer o direito de saída para
passar um fim de semana em casa. A assistente social nos informou que o
início empecilho era o fato delas não terem dinheiro para dar entrada no
pedido. Comentando que este era um fato corriqueiro e que muitas vezes a
diretora e os funcionários cotizavam para o pagamento - quantias que
variavam de R$ 3,00 a R$ 30,00 ou mais, dependendo do tipo de solicitação
e da situação da interna.
Uma dessas internas entrevistamos posteriormente, na qualidade de mãe
com filha na penitenciária.
Nosso primeiro trabalho com as assistentes sociais foi a definição de uma
possível amostra.
46. 46
Definindo a amostragem:
Neste momento da pesquisa, já possuíamos várias informações que nos
auxiliaram na consideração de alguns critérios para a definição da amostra.
A seguir a descrição das mais importantes decisões desse momento.
Além do nosso grupo básico - as mulheres que engravidaram e maternaram
ou estavam maternando em cárcere - optamos por ouvir um grupo que para
a pesquisa seria considerado um grupo de controle.
Atentamos ainda, para o fato de que existiam diferentes situações entre
nossas informantes, a saber: as já sentenciadas, ou seja, aquelas que já
tinham uma situação definida; as que tinham o processo de julgamento em
curso e as já tinham sido julgadas, mas entraram com recurso e
aguardavam a definição.
A exceção do primeiro grupo - que representou número total de casos
existentes e as diversas situações estiveram presentes por circunstância -
no segundo grupo (de controle), contamos com o auxílio das Assistentes
Sociais para a definição dos nomes para as entrevistas, também
procuramos respeitar a heterogeneidade das situações.
47. 47
Por fim, nossa amostra também apresentou uma heterogeneidade no que
se refere aos tipos de delitos cometidos. Nela, haviam mulheres acuadas
de furto, assalto, homicídio, seqüestro e tráfico de drogas.
A lógica implícita em tais seleções é que o tipo de delito poderia intervir na
modelagem dos casos quanto a relação entre presa e representações e uso
da maternidade.
Os Recursos:
Paralelo ao trabalho de definição de amostra, foram elaborados roteiros que
nos auxiliariam na coleta dos depoimentos e que foram constituídos de
tópicos que possibilitaram identificar a presença de estereótipos referidos à
condição de mulher e a criminalidade e principalmente, o lugar que ocupam
as representações vivenciadas na condição de encarceradas – seus
significados. Contudo, no que se refere aos roteiros, logo nos primeiros
depoimentos ficou evidente sua inadequação aos nossos objetivos.
Percebemos que a partir do momento em que elegíamos determinados
temas para serem discutidos, poderíamos estar lhes impondo determinados
pesos. Optamos por esperar que eles fossem abordados pela entrevistada,
isto não significa dizer que quando estes não surgissem, não fossem
estimulados. Desse modo, deveríamos buscar nas histórias de vida, dados
sobre: a realidade sócio-econômica dos pais e/ou de seu grupo familiar de
origem; os momentos marcantes em sua história com relação a categoria
trabalho; os momentos marcantes quanto a sua sexualidade e à
reprodução; a conjuntura de ingresso no crime; suas representações quanto
48. 48
à ambiência criminal, o cotidiano na prisão e aqui, a questão da
maternidade em cárcere. Com tal estratégia, procuramos identificar -
resguardados os limites da memória - o peso que nas narrativas de cada
entrevistadas, cada tema assumia.
Optamos pela utilização do gravador para os depoimentos, contudo
respeitamos o direito de não gravação, quando a informante assim o
decidia. Esse fato ocorreu apenas uma vez, quando a interna solicitou a
não gravação de seu depoimento, alegando ter sido alvo de excessiva
publicidade por parte da imprensa, o que havia prejudicado seu
julgamento.
Os Depoimentos:
No nosso grupo básico, foram consideradas informantes representativas
as mulheres que entraram grávidas ou que engravidaram durante sua
permanência na penitenciária, já haviam parido e que estavam
maternando, portanto estavam com seus filhos no cárcere. Cobrimos o
universo, sendo entrevistadas todas que se encontravam nesta situação:
seis mulheres.
Esperávamos entrevistar as mulheres que estavam grávidas. No entanto, no
período em que foram realizadas as entrevistas, havia apenas uma mulher
nessa situação. Não a entrevistamos por ser estrangeira, e não ter fluência
em nossa língua - teríamos de recorrer a uma funcionária da penitenciária
49. 49
como interprete, o que julgamos ser prejudicial para a comunicação na
entrevista.
Ao finalizarmos todas as entrevistas, mais duas internas grávidas haviam
chegado à penitenciária, optamos por não entrevistá-las face à nossa
limitação de tempo para o trabalho de campo.
No chamado grupo de controle, foram ouvidas, cinco mulheres mães, que
não engravidaram durante sua passagem pela penitenciária e que tinham
seus filhos em casa de parentes ou seja, que também eram mães.
Foram ouvidas também, três mulheres que nunca engravidaram.
No total, foram realizadas quatorze entrevistas com as internas. Ouvimos
também duas assistentes sociais, a vice-diretora e um assessor do
Secretário de Justiça em exercício na época. Valemo-nos ainda de
informações preciosas, que obtínhamos através de conversas informais
com funcionárias - geralmente, nos intervalos de espera das internas.
Outro aspecto interessante a ser ressaltado, refere-se a privacidade
necessária para a realização das entrevistas. Dessas, cerca de 98%
realizadas como a presença apenas da pesquisadora e da entrevistada.
Dois casos diferenciaram-se: no primeiro caso, concluímos como motivo
principal, o fato de ser a primeira entrevista, portanto, cercada ainda de
50. 50
certa desconfiança por parte do corpo administrativo da penitenciária. As
entradas e saídas de funcionárias da sala durante todo o decorrer do
depoimento, nos revelou a necessidade de um certo controle de informação
acerca do caráter (mesmo) da pesquisa, algo já esperado - e não significou
grande prejuízo, pois a informante já tinha publicada sua história em vários
jornais da cidade. O segundo caso, representou o único no qual a questão
de segurança foi argumento para a realização da entrevista na sala da
assistência social, segundo informações, a interna apresentava alta
periculosidade, sendo inclusive reincidente que havia tido sucesso em fuga,
além de ser portadora do vírus HIV. Em ambos os casos, houveram alguns
momentos de privacidade, e percebemos que isto não alterou de caráter
significativo, o teor dos discursas das internas.
As entrevistas possibilitaram examinar as origens sociais e as experiências
anteriores, assim como as representações das internas sobre questões
determinadas. O objetivo da utilização dessa técnica foi capturar
significados dos conceitos de maternidade, maternagem, aborto, relações
afetivas e sexuais, violência, crime e punição, família e organização
carcerária, buscando uma identidade de gênero, entendido aqui como
quadro ideológico ou como a mulher se percebe na sociedade.
A cada ida à penitenciária descobríamos aspectos novos de sua
cotidianidade, mas isto nos era limitado pela própria instituição, como por
exemplo a negativa no que se referiu à consulta das fichas das internas com
seus históricos, a limitação de trânsito na própria instituição quando
alegando como motivo a segurança, realizamos nossas entrevistas na área
51. 51
administrativa. O que era contraditório, pois ficávamos absolutamente
sozinhas (pesquisadora e a interna) na pequena sala destinada a conversas
com advogados - interessante notar que nunca esteve ocupada - no final do
corredor, pouco transitado.
O máximo que conseguimos foi o acesso a uma pasta de recortes de jornais
sobre temas como: festas, indultos, cursos oferecidos etc.
Contudo, o controle sobre as informações não parecia tão forte no que se
referia às conversas que mantínhamos com assistentes sociais e outros
funcionários pois sempre ofereciam informações preciosas, que
provavelmente se tivesse de passar pelo crivo da instituição, não nos
seriam dadas.
Nesta etapa 2 da pesquisa além dessas, outras atividades foram realizadas
como: início das transcrições das fitas e revisão das mesmas, - bem como o
início do estabelecimento de categorias que norteariam as análises dos
depoimentos.
ETAPA 3.
Essa etapa teve como atividades principais à finalização do trabalho de
revisão das transcrições de entrevistas; o fechamento de material que
52. 52
poderíamos chamar livro de codificação de categorias para análise das
representações; a análise e tratamento de dados.
ETAPA 4.
Constitui-se basicamente a revisão do relatório em sua versão final.
54. 54
Tomada da entrada do Complexo Penitenciário de Salvador, local onde está
instalada a Penitenciária Feminina (Jornal A Tarde 17/7/95)
55. 55
III. 1 A Construção Institucional de Gênero
A existência de uma penitenciária exclusivamente feminina no Estado, data
de período muito recente, 1990. Até esta data, existia um espaço para as
mulheres na Casa de Detenção do Estado - que em sua concepção original
era destinada apenas à reclusão de homens.
Até 1976, a Casa de Detenção do Estado funcionava no Forte de Santo
Antônio, nele as mulheres dividiam o espaço com os homens. Em 21 de
outubro de 1976, efetivou-se a transferência da população carcerária para a
nova Casa de Detenção localizada no bairro de Mata Escura. Assim, as
mulheres ainda dividiam o espaço com os homens, sendo-lhes reservado,
apenas a Ala Esquerda Superior do Pátio I no qual estavam confinados os
presos considerados menos periculosos. Eram 10 celas com capacidade
para 8 pessoas. Nessa época a população feminina encarcerada chegava
em média a 36 mulheres.
Em 1990, foi construído o edifício onde ora funciona hoje, a Penitenciária
Feminina de Salvador, tornando-se então, parte integrante do Complexo
56. 56
Penitenciário da cidade que engloba além da Penitenciária Feminina, a
Casa de Detenção, o Centro de Observação Penal (COP), a Penitenciária
Lemos de Brito e o Albergue Estadual.
O edifício construído em 1990, é dividido em dois pavilhões com 8 galerias,
de 8 celas cada - num total de 64 celas.
As galerias são denominadas por letras de A a H, sendo que de A a D,
deveriam estar somente as processadas, enquanto que de E a H, só as já
sentenciadas (condenadas). Contudo, segundo as informações, hoje já não
é possível tal separação, principalmente pelo número de internas.
Isto, também se reflete na questão das celas. Sendo projetadas como celas
individuais, hoje com uma população média de 90 a 98 internas. Com raras
exceções, a interna ocupa sozinha uma cela - como nos casos de internas
com filho (a).
Existem ainda, dois pátios, um em cada pavilhão, onde as mulheres ficam a
maior parte do tempo, supomos assim, que ali se desenrolam alguns dos
principais aspectos da cotidianidade na prisão.
57. 57
No ano de sua implantação, a equipe técnica se constituía de 18
funcionárias que se dividiam entre as seções de segurança, registro e
controle, orientação educacional, apoio administrativo, serviço social e
assessoria jurídica. Em que pese não termos acesso a esses dados para a
atualidade, não foi difícil constatar que a equipe não se compõe apenas de
mulheres havendo hoje alguns homens chefiando equipes de mulheres,
como por exemplo à seção de segurança, considerada de fundamental
importância.
Caracterizando a população:
A população carcerária da penitenciária feminina de Salvador no momento
que iniciamos nossa coleta de depoimentos, estava constituída de 96
internas. Segundo informações da própria instituição, esse número
representa o maior índice já registrado e representa que para cada cem
homens presos na penitenciária masculina, há quatro mulheres na feminina.
Contudo, também fomos alertados da existência de uma alta rotatividade na
entrada e saída das mulheres, que parece ser maior do que no caso dos
homens.
Quanto a tipologia dos crimes e delitos, o tráfico de entorpecentes aparece
como a maior causa das prisões de mulheres, seguido pelos furtos, roubos,
lesões corporais, infanticídios e os homicídios. Em abril de 1995, os dados
58. 58
oficiais divulgados em jornal local, sobre uma população de 93 internas
(50% acusadas de tráfico), informavam que 45 delas, já estavam
condenadas enquanto, 48 estavam sendo processadas, aguardando
julgamento e sentença.
Em se tratando de um trabalho a ser realizado com uma amostra, tivemos o
cuidado de verificar junto a instituição, de aquela, apresentava similaridade
à população total no que se refere ao total da população - a situação quanto
a processo, tipo de crime e estado familiar (se mãe ou não), além de outras
que trataremos melhor na próxima seção - no que fomos informados da
representatividade da amostra neste sentido.
O Perfil da Amostra:
A nossa amostra contemplou as diversas situações existentes na
penitenciária a saber:
• estar processada
• ser condenada
• ser mãe com filhos na penitenciária
• ser mãe sem filhos na penitenciária
• nunca ter sido mãe
59. 59
• ter encontros íntimos
• não ter encontros íntimos
• ser a 1ª passagem pela penitenciária
• ter outras passagens pela penitenciária
Além disso, atendendo as características gerais para tipologia dos crimes e
delitos da população total, em nossa amostra estavam acusadas ou
condenadas por: roubo (como falsa doméstica), latrocínio (roubo seguido de
morte), seqüestro, homicídio, assalto a mão armada e ligação com tráfico de
entorpecentes (seja como traficante ou mesmo como intermediária, no caso
como "avião/mula").
Quanto a procedência geográfica, 50% provém do interior do Estado da
Bahia, enquanto os outros 50% estão divididas entre soteropolitanas e
mulheres oriundas de outros Estados. Todas, são acusadas de crimes e
delitos cometidos no Estado da Bahia, principalmente na capital.
Do total das entrevistadas, apenas uma já apresentava algumas passagens
no Juizado de Menores, sendo inclusive, reincidente também na
Penitenciária.
Apenas aquelas envolvidas com tráfico de entorpecentes já tinha sofrido
alguma espécie de prisão anterior.
60. 60
No que se refere à composição familiar, cerca de 90% são oriundas de
famílias extensas.
A maioria dessas mulheres são oriundas das classes mais baixas, mas
verificamos, que apesar da infância de dificuldades materiais, boa parceria
(60%) das entrevistadas falaram de uma infância feliz, principalmente
aquelas vindas do interior do Estado - relacionando a vida no campo a muito
trabalho, mas também a pobreza sem miséria.
No que se refere às relações no âmbito da família, 50% afirmam ter sido a
infância o melhor período de suas vidas. Todas falam da adolescência como
o período mais conturbado nas relações e para aquelas que hoje não
mantêm contato com familiares, este período foi determinante para o
afastamento, agravado em muitos casos, por sua entrada na penitenciária.
Todas foram unânimes em afirma a importância da família enquanto
instituição que poderia contribuir para a não inserção no mundo do crime,
falam do amor, da compreensão. Percebemos aí, uma idealização do papel
da família, com observância apenas a seu caráter de positividade.
Do universo das entrevistadas, 98% já haviam tido alguma experiência do
convívio ou casamento, contudo na maioria dos casos foram convivências
conflituosas que acabaram por levá-las à separação e à tentativa de novas
relações.
61. 61
Neste ponto, vale ressaltar que foram estes relacionamentos, uma das
causas - quando não, a principal - do envolvimento com o mundo do crime.
Contudo, percebemos em seus relatos, que mesmo sendo levadas para o
mundo do crime por seus companheiros (note-se que não houve nenhuma
relação homossexual declarada), o rompimento com os companheiros, não
implica no rompimento do relacionamento com pessoas ou situações do
mundo do crime. Parece, que as mulheres adquirem certa autonomia no
mundo do crime, o que as leva inclusive a novos relacionamentos ou
mesmo a assunção de uma "boca de fumo" por exemplo, como caso de
mulheres que assumem essas atividades - por ausência do parceiro por
prisão, morte ou separação ou por considerar tarde sair desta vida.
Do total das entrevistadas a grande maioria eram de mães. Observamos
porém, que não necessariamente isto implica em uma convivência com
seus filhos. A grande maioria dos filhos são criados por avós. A justificativa
principal é a falta de condições para oferecer conforto para as crianças.
Encontramos casos de mães que passam anos sem ver seus filhos -
situação agravada, quando das suas prisões.
Na amostra, verificamos uma população relativamente jovem, com faixa
etária entre 19 e 39 anos.
62. 62
No que se refere à escolaridade, observamos que 50% havia cursado
algumas séries do ginásio. Apenas uma havia cursado a primeira série do
2º grau. As demais eram semi ou totalmente analfabetas, alegando nunca
ter freqüentado uma escola - nem mesmo, haviam freqüentado o curso de
alfabetização que a instituição afirma oferecer, nos dando como justificativa
serem muitas velhas ou não gostarem do curso.
No que diz respeito às ocupações exercidas anteriormente, a grande
maioria em algum momento de sua vida, haviam trabalhado como
empregadas domésticas (cozinheira, babá, faxineira, copeira). Há também
alguns casos de vendedoras ambulantes (de roupa e bijuterias), manicures
e artesãs. Entre nossas entrevistadas, também encontramos uma auxiliar
de enfermagem, interessante notar que seu delito ironicamente refere-se a
atividade de "falsa doméstica" para realização de roubo.
Essas atividades lhe conferiam baixos rendimentos e algumas afirmaram
ser em alguns casos, a atividade criminosa complementar a sua renda -
principalmente as relacionadas ao tráfico. Houve quem afirmasse ser o
roubo sua única atividade durante toda sua vida.
Enfim, quando falavam sobre os motivos que as levaram ao mundo do
crime, além das questões de sobrevivência (ter que mandar dinheiro para
os filhos além de outras despesas como aluguel etc), acrescentam-se
questões como amor por um companheiro envolvido no mundo do crime ou
mesmo a coerção desse companheiro para sua participação. Algumas
63. 63
afirmam que "simplesmente" até hoje não entendem porque "só que quando
viram já estavam ali"... "no pesadelo".
Para a instituição, o estímulo do homem de suas relações afetivas, seria um
dos principais motivos para a entrada das mulheres no mundo do crime. Tal
racionalidade é usada principalmente quando a referência são mulheres
envolvidas com tóxicos:
"Numa pesquisa que a gente já fez, elas culpam os maridos, por que
elas acham que é mais fácil uma mulher ficar menos tempo na
cadeia que os homens. Elas acham que é muito mais fácil a mulher
conseguir os benefícios do que o próprio homem. Então, muitas e
muitas delas, vêm por causa do marido. A maioria, é por causa do
companheiro... Elas assumem, geralmente elas assumem, no caso:
um ponto de cocaína entro de casa. Ela assume que é dela, que ela
tá vendendo, que é dela, que não é do marido. Ela tira o marido da
culpa. Elas preferem assumir. Por que? Além de ter promessas dele
de que ele vai conseguir dinheiro prá tirar e é mais fácil a pena da
mulher, o pessoal acha né? E outras também que o marido tá preso
e obrigam elas a traficarem, a trazer maconha, tóxico. Muitas delas
atualmente estão vindo por causa disso...Elas contam que os
maridos batiam, que elas tinham que assumir, tinham que fazer isso".
(Assistente Social)
Para quem se afirma inocente, a explicação para esse momento em suas
vidas, a iniciação ao crime, torna-se ainda mais difícil de ser verbalizada.
64. 64
CAPÍTULO IV2
DOS USOS (E ABUSOS) DOS CORPOS
____________________
2
Ao iniciarmos esse capítulo, gostaríamos de ressaltar que respeitando a prerrogativa da
não identificação das depoentes, foram-lhe atribuídos nomes fictícios. Foram mantidas
apenas suas reais idades e situações referentes à maternidade, a saber: mães com filhos
no cárcere, mães sem filhos no cárcere e não mães. O mesmo acontecerá no capítulo
seguinte.
65. 65
Tomada do pátio interno da Penitenciária durante aula de ginástica,
segundo a instituição: educação física, atividade para auto-estima.
66. 66
IV. 1 Poderes, Carceragem e Corpos
O corpo, tem sido focalizado na literatura atual como uma das áreas mais
multidisciplinares. Também na reflexão feminista, o corpo tem destaque
quando se afirma que um conhecimento sobre gênero, segue o trânsito
entre natureza e cultura.
Contudo, quando o corpo é concebido como um lugar cultura de
significados de gênero, torna-se obscuro que aspectos desse corpo são só
naturais ou isentos de marca cultural.
Nossa reflexão a respeito de maternidade e maternagem em cárcere, seria
descorporificada sem a análise do quadro das representações da instituição
- esboçada em seus discursos e práticas - a respeito do corpo, ou seja,
seria preciso entender o que a instituição definia como corpo ou pelo menos
em que medida, o controle do corpo era importante para sua prática e só
então, realizarmos a análise das representações das internas sobre seus
corpos e a relação com as representações sobre maternidade e
maternagem.
Desse modo, quando reconstruímos o quadro da história dos procedimentos
comuns dentro da instituição para com as internas em nosso estudo de
caso, não foi difícil identificarmos momentos imprescindíveis para a
compreensão de como o corpo de forma particular, está sujeito a
mecanismos disciplinadores e mais como o "corpo de mulher" sofre de
forma diferenciada esses mecanismos.
67. 67
O primeiro desses momentos, se dá imediatamente após a chegada das
mulheres na penitenciária - como observa Goffman (1990), "o processo de
admissão pode ser caracterizado como a despedida e um começo" - assim
as mulheres são instaladas na "celinha". Como o próprio nome sugere, esta
é a menor cela da penitenciária, na qual, a mulher deverá ficar de 3 a 90
dias. Não conseguimos identificar quais os critérios que determinam a
quantidade de tempo dessa estada. Segundo a instituição tal prática
justifica-se pela necessidade de observação do comportamento da já
interna.
Para Foucault, (1991) "o isolamento assegura o encontro do detento a sós
com o poder que se exerce sobre ele".
Assim, nesse primeiro momento, impõe a instituição um mecanismo que
deve deixar claro para a interna, que sua vida agora, não mais lhe pertence
como antes e que deve se preparar para o futuro na instituição. No discurso
institucional, no momento da "celinha", a interna terá tempo de pensar na
vida, enquanto que, segundo as internas, esse é um grande momento de
ansiedade e em muitos casos, de desespero - pelo menos do
desconhecido. Corporifica-se o poder da instituição, impondo espaço,
silêncio, invisibilidade, disciplinando o corpo preso em um ritual de
dominação e controle.
A interna ali deverá ficar, preferencialmente sozinha, até o momento da
passagem para sua cela na galeria.
68. 68
Desse momento em diante, as mulheres em caráter estão sujeitas ao
controle sobre seus corpos, expresso principalmente, através do controle
da sexualidade, da reprodução e da mobilidade.
Goffman (1990), ao falar do controle dos corpos, através de um verdadeiro
processo de "mortificação" dos sujeitos, já citava aspectos interessantes
como,
"os exames médicos e de segurança muitas vezes expõem
fisicamente o internado, às vezes a pessoas de ambos os sexos... [e]
em algumas instituições totais o internado é obrigado a tomar
medicamentos orais ou intravenosos, desejados ou não..."
(Goffman, 1990:32-4)
Contudo, Goffman certamente, não podia imaginar como tais constatações
poderiam ser enfatizadas a partir da observação de corpos com gêneros.
Na nossa investigação observamos como se estabelece uma vigilância
sobre o ciclo menstrual que se concretiza com a obrigatoriedade da interna
informar acerca do 1º dia de sua menstruação. Deverá "mostrar" seu
sangramento e fará o chamado exame de toque. A partir de tais
informações - requisito importante para a concessão do "privilégio" dos
encontros íntimos - deverá fazer uso de um contraceptivo injetável, indicado
por um consultor para tais assuntos, que segundo informações, nunca as
69. 69
examinou, mas treinou as médicas e enfermeiras. Interessante observar,
que apenas um tipo de contraceptivo é utilizado para todas as mulheres
indiscriminadamente, desconsiderando as particularidades de cada uma.
"Por que a gente optou por injetável? Porque o outro
anticoncepcional em pílula, elas poderiam botar embaixo da língua e
não tomar e depois de sair do médico, jogar fora". (Assistente
Social)
Aqui talvez, já pudéssemos discutir a respeito do que representa o corpo
para a instituição.
A primeira observação é de como a instituição faz especial uso da noção de
sexo e gênero, pois tem formas próprias de controle sobre corpos de
mulheres. Apesar da indiscriminação de corpos individuais tanto para
homens como mulheres - o que em certa medida a instituição nada inova
quando comparada à sociedade em geral, que mesmo quando sugere a
afirmação de individualidade, nos coloca na corda bamba do "seja diferente:
use jeans" - seu poder sobre os corpos das mulheres atinge limites bastante
elásticos se comparados ao que acontece numa penitenciária masculina,
segundo a literatura especializada. Podemos perceber o abuso de controle
sobre a "natureza" desses corpos. "Natureza" essa, identificada a partir do
culturalmente construído para os sexos.
O corpo da mulher é visto pela instituição como uma "bomba", que pode
explodir em "gravidez".
70. 70
"a gente faz toque. No dia que ela ficou menstruada, ela tem que
avisar por que senão, ela não vai pro encontro íntimo, não tem como.
Ela tem que avisar o dia que menstruou prá gente vê o dia que ela
tem que tomar o Perlutam. E nesse dia, que ela disse que
menstruou, a gente que fazer toque, entendeu? Por que já houve
caso também de interna falar que tá menstruada, não estar e utilizar
o absorvente de outra interna. Prá você vê as estratégias que elas
utilizam. Então, além dela abaixar a roupa, mostrar que tá
menstruada, também tem que fazer toque prá realmente vê que ela
tá menstruada. Então, já houve caso disso, dela utilizar absorvente
de outra". (Assistente Social)
A vida reprodutiva sugere as observações, deve ser controlada a fim de
impedir a gravidez como conseqüência e para tanto há limites bastantes
elásticos e obscuros nesse controle, vejamos exemplos.
"Eu conversei com a assistente social, aí ela... ela ajeitou tudo prá
mim. Só que ela [disse:] - você tem que tomar uma injeção, a
Perlutam, prá você não ter mais nenê. Eu disse a ela - eu não tenho
mais filho! [fez ligadura de trompas há três anos]... - Não, mas você
tem que tomar porque a gente não confia, por causa de uma, todas
pagam, né?... Então eu tomo a injeção, mas não me faz mal não.
Agora, só que tem eu tô engordando demais, meus peitos, o seio tá
crescendo... chega dói!... já faz uns três anos". (Hebe, 39 anos,
dois filhos, mãe sem filhos no cárcere)
71. 71
Aqui já entramos noutra questão, os limites do controle dos corpos pela
instituição. Para essa discussão, faz-se necessário se precisar o papel do
encontro íntimo para o controle sobre os corpos e entendermos em que
medida, isto poderia nos sugerir a existência de um poder de barganha não
só da instituição, mas também das internas.
73. 73
IV.2 Encontro Íntimo: Poderes, Corpos e Negociações
"A visita íntima [ou encontro íntimo] é uma espécie de concessão dos
presídios, tendo como fundamento diminuir o nível de ansiedade dos
presos. Não é estabelecida por lei não se constituindo, pois num
direito assegurado na Lei de Execuções Penais, de maneira que há
estados no país em que não existe esta modalidade de visita".
De fato, na penitenciária estudada, o encontro íntimo (ou visita íntima) foi
adotado em 1990, quando da mudança para o prédio em que ora funciona.
Segundo as declarações da diretoria à imprensa naquela época, o encontro
íntimo representava uma conquista das internas que há muito solicitavam
sua permissão e que deveria auxiliar na "humanização e socialização" das
internas (V. A Tarde, 5/11/90).
Em verdade, hoje podemos observar, como a permissão para o encontro
íntimo significa também um eficaz instrumento de barganha no que se
refere ao controle do comportamento das internas.
Contudo, podemos observar também os limites desse poder da instituição,
quando ele esbarra com valores e padrões sociais que fogem a seu alcance
e controle.
74. 74
"...a casa exige, a diretora exige dá 'anticepcional', camisinha, mas a
senhora sabe, né? Elas [refere-se as outras internas] sempre dizem:
- Ah!usar bala... não! Chupar bala com papel não é bom!... só mesmo
no médico dando 'anticepcional'. Agora tem a Perlutam porque tava
indo de uma maneira... a senhora vê, quando eu cheguei aqui, só
tinha um menino, eu cheguei grávida e outra chegou grávida, de
repente foi 3 engravidando, 4, 5, 6... hoje, já tem 7 crianças... " (Rita,
35, mãe de duas filhas, uma em cárcere)
“Antigamente, até que a gente descia [para encontro íntimo] sabe?
sem tomar injeção, mas elas [as outras internas] não usaram a
camisinha, engravidaram e tudo. Aí, veio a injeção, veio essa injeção
e aí pronto! Veio a injeção direto. Mas, mesmo assim, a gente tem
que levar a camisinha prá... prá doenças, né? que são demais. Prá
dizer a verdade, eu pego camisinha mesmo por pegar, mas eu não
uso, que eu tenho certeza, né? que meu esposo não é assim...
galinha. Ele tá preso também, ele... ele não gosta! Ele não gosta! Ele
não gosta... e eu também não gosto! A primeira vez que eu levei, ele
disse: -Ah, ainda tem esse negócio?... Não! vai me desculpar, mas
eu não vou usar isso não, é triste!... Aí não teve jeito nenhum, ele
não gosta. Eu fico com vergonha quando eu trago as camisinhas lá
de baixo. Mas é assim: - Ah, você não usou a camisinha não é?!!...
Eu digo: - Ah, não! É que ele levou de lá mesmo". (Hebe, 39, dois
filhos, mãe sem filhos no cárcere)
Aqui, podemos observar uma forma de resistência e certamente, os limites
desse poder de controle são conhecidos pela instituição que utiliza outro
75. 75
mecanismo na tentativa de aplacar as conseqüências: o baculejo. Nesse
momento não há barganha e sim, o exercício pleno do controle dos corpos.
O baculejo, uma vistoria completa de corpos, roupas, colchões é algo assim
descrito pelas internas:
"Olha, é bom sabe? a pessoa tê assim um encontro com o marido da
gente, que a gente conversa, desabafa tudo. Mas, é ridículo! Por
causa que o baculejo de lá [do espaço reservado para o encontro] é
triste né?... de quinze em quinze, que a gente vamo... eu acho
ridículo, que a gente já tá presa e ainda passa por baculejo daquele
lá em baixo, nossa senhora!... Manda pulá, manda pulá prá cima,
‘vixe’ fica toda nua, pula, pula, pula [ri constrangida]. Manda a gente
abri as partes... hum! ridículo. Uma luz assim de frente prá elas olha,
é muito triste! Mas até que eu já me acostumei, eu não ligo mais!".
(Hebe, 39, dois filhos, mãe sem filho no cárcere)
"... tem um baculejo aí, você precisa vê. Sabe que a pessoa não usa
droga, sabe que a pessoas não anda errado. Aí, quando... rasgar
lençol, rasga colchão, se tem uma almofada esbagaça tudo. A
televisão joga no chão, esbagaça com tudo. Prá que isso?!... agora
até parou ultimamente, agora até que eles pararam mais com isso..."
(Gabriela, 29, 4 filhos, mãe sem filho no cárcere)
76. 76
Gostaríamos de ressaltar outro aspecto referente a este controle dos corpos
pela instituição:
"O crime é uma situação complexa, cujas ramificações são, muitas
vezes inimagináveis, principalmente se pudermos refletir sobre as
conseqüências que ele acarreta no seu entorno, são famílias da
vítima e do criminoso, as pessoas que vivem às custas do aparato
judiciário e penitenciário, são as políticas de Estado sobre
segurança, é, enfim um universo de desdobramentos a partir da ação
ilícita”.(Hassen. In: Fachel, 1995: 283)
De fato, observamos a extensão do controle também no que se refere aos
corpos de parentes e amigos das internas:
"Prá lhe ser sincera, eu não quero nem que as minhas [filhas]
venham. Vem porque eu sou mãe, tá entendendo? Dependo da visita
delas, mas a minha de onze anos não vem toda visita não! Porque
eu não quero. Eu não quero porque isso aí, é um trauma prá minha
filha, amanhã ou depois ficar... - tire a roupa! Uma menina de onze
anos, é onze anos, mas tá uma moça, é... - Tire a roupa... -
Arreganhe! E a criança ter que se arreganhar. Ela já disse mesmo: -
Minha mãe, eu tenho vergonha. Eu venho lhe vê porque eu gosto da
senhora, lhe amo, não vou deixar minha mãe, mas... [diz:] – Não
precisa você vim. Venha, você [nome dos filhos maiores]. Deixe
[nome da caçula] lá. Quando tiver com bastante saudade, você traz
ela prá me vê”! (Gabriela 29, 4 filhos, mãe sem filho em cárcere)
77. 77
“Eu tenho uma amiga sabe?... mas ela não vem aqui, ela fica sei lá..
ela é daqueles povo que tem vergonha assim do baculejo, sabe? Tïrá
roupa, esses negócio sabe? Ela tem vergonha, aí ela não vem me
vê". (Hebe, 39, dois filhos, mãe sem filho no cárcere).
Após todas essas observações, restava-nos tentar compreender por que a
gravidez era considerada como um fato que deveria ser evitado a tantos
custos. Precisávamos agora entender os significados que a maternidade e a
maternagem assumiam nesse cotidiano - a penitenciária feminina.
79. 79
Tomada da Festa do Dia das Crianças, realizadas na Penitenciária
Feminina de Salvador
80. 80
V.1 Representações sobre Maternidade e Maternagem: Seus
Significados
Para iniciarmos nossa análise, foi de fundamental importância conhecermos
como se dão as relações dentro da penitenciária. Evidentemente, o pouco
que estivemos ali, não nos daria a total riqueza de informações sobre esse
universo, mas certamente, as representações das internas através de seus
discursos nos permitiram reflexões iniciais.
Analisando suas histórias de vidas, observamos que para a grande maioria
delas, suas histórias de vida ocupacional sempre desenvolveram atividades
relacionadas ao mundo doméstico.
A entrada no mundo do crime, a exceção de uma das entrevistadas, se deu
através das relações travadas no âmbito do doméstico, via relações de
caráter afetivo; através do companheiro, namorado ou amiga.
Deste modo, se o mundo do crime está relacionado à noção de vivência no
público, por outro lado, também nele, encontramos um lado relacionado ao
espaço privado.
81. 81
Não sem motivos ouvimos em depoimentos, que os companheiros homens
considerados perigosos para este mundo, eram companheiros atenciosos,
pais dedicados.
Assim interessava-nos verificar se quando para a penitenciária, essas
mulheres conseguiam incorporar ao mundo do cárcere certos tipos de
relações trazidas de suas histórias de vidas, principalmente as relacionadas
com o mundo doméstico.
Estávamos principalmente interessados naquilo que se referia à dimensões
como companheirismo, amizade e afeto, uma vez que, as noções
construídas socialmente para este universo já carregam a idéia de que o
mundo do cárcere é um mundo de disputas, desentendimentos, de
violências, que mesmo tentando-se controlar, nem sempre se consegue.
Iniciaremos analisando o primeiro momento dessas mulheres na instituição.
Todos certamente têm pré-noções sobre o mundo do cárcere. Certamente,
a imprensa tem papel fundamental para a construção de tais pré-noçôes.
Todos os dias vemos cenas que nos chocam. Filmes sobre o tema não
fogem a regra. Também para as mulheres que estão prestes a conviver com
esta realidade, já trazem consigo pré-noções.
82. 82
Observamos que a primeira imagem que elas têm da penitenciária, é aquela
de um lugar inexplicavelmente pavoroso, mas esta imagem, num segundo
momento, é logo substituída por outra:
"Também aqui não é esse bicho de sete cabeça que dizem aí,
lá fora". (Flávia, 21, não mãe)
A noção de companheirismo existe expressa em uma certa solidariedade.
"A senhora veja, tinha uma menina aqui, que brigava aqui muito,
muito, muito. Hoje, ela anda com minha filha. Se eu deixar, ela anda
24 horas... brincando. As vezes, ela tá assim querendo discutir, eu
digo [nome da criança] vem. Olha ali, sua irmã. Eu digo assim,
porque no dia que [nome da criança] foi prá rua [visitar a avó], eu
tava com o peito cheio de leite, aí tirei o leite de copo e ela tomou
dois copos de leite. Então, hoje ela diz que (nome da criança] é irmã
dela... e ela era brigalhona essa menina". (Rita, 35, mãe de duas
filhas, uma em cárcere)
Contudo, verificamos não haver idéias românticas com relação as
possibilidade dessas relações:
"... muita cabeça diferente junta né? eu penso uma coisa fulana
pensa outra, sicrana pensa outra... ninguém se combina. Se você
83. 83
mostra que tem mais conhecimento, as pessoas já acha que você tá
desfazendo. Aí, você tem jogo de cintura prá lidar com tudo isso né?
falsidade aqui, falsidade ali, você vai fingindo que não escuta e vai
levando... a gente lá onde eu tô, a gente assim... tem falsidade, como
tem qualquer lugar né? mas, a gente tem assim uma certa união: a
gente faz comida junta, se uma não tem um lance, a outra pede prá
outra e tudo bem..."(Flávia, 21, não mãe)
E isto se concretiza quando percebemos que ao falar no futuro a grande
maioria expressa a decisão de romper os laços com as mulheres que ficam,
alegando inclusive ser necessário pra quem quer sair da vida do crime:
"Eu?!... não quero contato com ninguém daqui... que eu conhecia
aqui dentro... [nome de outra interna, que diz ser muita sua amiga]
ela é legal, é boa pessoa, mas... eu nunca vou esquecer dela, ela é
legal, legal, muito boa comigo mas, eu quando sair daqui, eu quero
mudar. Então eu não quero contato com essas pessoas porque elas,
elas tão... continuam naquela ilusão, nesse mundo marginal, nesse
mundo assim. Aí, não dá porque se a gente quer mudar, a gente tem
que mudar só. Tem que ficar só. Porque se a gente quer mudar e fica
com alguém torto, a gente acaba se entortando de vez ou se
concerta e concerta quem tá do lado... mas é melhor, ficar só".
(Gilcélia, 25, mãe de uma filha em cárcere)
No que diz respeito às relações entre internas e funcionárias, não
obtemos muitas informações das entrevistadas, a não ser daquelas que
84. 84
repetidas vezes diziam "não ter queixas, pois as funcionárias estão ali
para isto mesmo" mas "a maioria, são boazinhas".
Enfim nossa questão de pesquisa sobre a possibilidade das mulheres
tentarem formar uma família, ainda que não nos termos comuns de marido-
mulher-filhos, mas de companheiras de cela-funcionárias-mães-filhos não
se confirma, pois através dos depoimentos, o que se percebe em certa
medida, é que, mesmo no caso daquelas que passam pela gravidez no
cárcere, parece se confirmar o fato de que ninguém quer se sentir parte do
grupo:
“... aqui eu só ficava chorando, me sentia muito só. A noite então! na
hora de me trancar era horrível, mas eu comecei a pensar assim... e
me animar com a gravidez, quer dizer, pensava assim: se não
tirarem ela de mim vai ser uma companhia. Se ela fica comigo aqui,
não será tão ruim assim, porque ela vai tá aqui do meu lado... já tinha
as duas que tava longe. Eu fiquei com aquele negócio de esconder a
gravidez, mas quando não deu mais prá esconder, fui fala com a
médica...". (Gilcélia, 25, mãe de uma filha em cárcere)
"... tava me sentindo tão só, ela veio e encheu mais meu vazio,
minha solidão né? eu me divirto com ela, eu brinco... ah!... ela bole
tudo, dessaruma tudo. Então isso me ajudou muito. Preenche. Se.
tirasse?!... eu ficava pensando em me matá e essa barriga veio logo
assim". (Gilcélia, 25, mãe de três filhos, uma em cárcere)
85. 85
"Eu sabia que minha filha seria uma companhia aqui dentro!" (Ana,
19, mãe de uma filha em cárcere)
"... ia ser uma vida diferente, uma vida desocupada... minha filha aqui
comigo tá preenchendo o meu vazio". (Rita, 35, mãe de duas
filhas, uma em cárcere)
Desse modo, estávamos diante de um primeiro sentido emprestado a
gravidez e a futura maternagem: uma alternativa à solidão e uma quebra da
rotina.
O nascimento da criança representa um fator de novidade e
reconhecidamente, de alegria para o grupo. Contudo, é a mãe que viverá
isto intensamente.
A rotina da prisão é considerada nociva tanto pela instituição, quanto pelas
próprias internas, portanto, o nascimento de uma criança, é significativo
para a quebra da rotina.
As mães parecem descobrir um novo passatempo - coisa rara no cárcere -
e poucas partilharam os momentos das mães como as crianças e em
momentos específicos: ausência da mãe para ir a administração, ao médico
etc.
86. 86
"Antes, quando eu tava grávida, não fazia nada só arrumava minha
ala, lavava roupa de cama, ficava o dia todo arrumando a cela, lendo
revista... Eu passava o dia todo lendo revista e dormia. Depois que
eu tive [nome da filha] já não dava mais prá dormi e ela só mamava.
Lavava as fralda dela, deixava com [nome de outra interna] e ia pró
curso era de meia hora. Aí eu voltava, almoçava, lavava a
quentinha... dava mama a [nome da filha] e ia dormir. O resto da
tarde eu ficada ali na galeria brincando, aí pronto! "(Julieta, 28anos,
4filhos, mãe com uma filha no cárcere)
Interessante observar que esta interna só fez cursos depois do nascimento
da criança, perguntada por que, disse não saber responder.
Ainda sobre a rotina:
"Ela acorda cedo, é 4 hora, é 5 hora. As vezes acorda 5 e dorme e
fica até 6 hora da manhã ou acorda 7. Aí quando ela acorda mais
cedo, eu acordo mais cedo... De manhã, quando eu acordo eu dou
banho nela e dou comida. Aí bota ela prá brincar, aí vou lavar as
fralda dela e bota a roupa de molho, depois vou esfrego, enxaguo e
boto prá enxugar. Aí dou outro banho dela e boto prá dormir". (Edite,
20, duas filhas, uma no cárcere)
87. 87
Acreditamos que para muitas das mães, essa parece ser uma tentativa de
reconstruir uma rotina mais próxima de uma vida doméstica.
"Então aqui eu procuro... a senhora vê, eu não digo à [nome
dacriança]... quando a gente entra, eu digo: Mãe, a gente vai entrar
no apartamento, viu linda? Eu não digo prá ela grade, não falo cadeia
porque ela já entende né? Aí eu não falo essas coisas prá ela... As
roupas que as meninas fala: Ih! [nome da criança} tem coleção de
roupa. Eu digo é; Bota a roupa no guarda-roupa. Que a gente não
tem guarda roupa, mas tem as caixas. Aí agora tirou as caixas, mas
eu mandei vim os cabide. Aí coloco assim uma corda de varal e
coloco os cabide e as roupa dela. Para não dizer assim: cabide ou tá
na corda". (Rita, 35, mãe de duas filhas, uma no cárcere)
No entanto, não poderíamos afirmar que isso expresse uma tentativa de
formação de um tipo de família, pois, por mais que a permanência da
criança influencie o grupo, de fato, apenas a rotina da mãe é
sensivelmente alterada. Buscamos então, a verificação de outra
possibilidade: estariam estas mulheres através da gravidez tentando
realizar fantasias quanto à relação com seu corpo, como provar que são
capazes de reproduzir e gerar vida ou dar uma prova de amor ao outro,
no caso o marido ou amante?
88. 88
A primeira parte da questão referente as fantasias sobre seu próprio
corpo, nos parece bastante difícil de concluirmos. O que podemos
observar, pelas histórias de vidas dessas mulheres.
Com relação a dar uma prova de amor ao outro, acreditamos não ser
válido para a grande maioria, sendo válido apenas para aquelas que
tiveram períodos estáveis de boa convivência com seus companheiros -
o que significa uma parcela muito pequena. Essas já entraram grávidas
na penitenciária. As outras, que entraram grávidas, afirmam ter sido a
gravidez um descuido não e manifestam não haver alguma possibilidade
futura para esses relacionamentos. Isto parece regra também para
aquelas que engravidaram na penitenciária.
A manifestação mais contundente neste sentido, expressa-se segundo
elas, pelo fato de optarem por registrar a criança apenas com seus
nomes, inclusive escondendo o fato daqueles pais, ou mesmos deixar a
criança ser registrada por um antigo companheiro. Contudo, o que
percebemos também é que em alguma medida, há a recusa de registrar
seu filho com o nome de um "marginal".
Chamou especial atenção o fato de que as que engravidaram na
penitenciária – duas, num total de seis mães – conheceram os pais das
crianças na penitenciária masculina. São internos que se conhecem,
através das mulheres que já têm encontros regulares na penitenciária.
Ressaltamos também, que o período de namoro foi muito pequeno até a
89. 89
gravidez e agora segundo os depoimentos, não há mais relacionamento -
apenas, levam as crianças para esses pais as verem.
Desse modo, não acreditamos ser a realização de fantasias com relação a
seus corpos ou aos seus amantes um dos fatores importantes para a
existência do fenômeno da maternidade em cárcere.
Durante alguns depoimentos, nos foi acenado outro aspecto interessante: o
comportamento da mãe diante do grupo muda, assim como muda a forma
como o grupo a vê.
Principalmente as não mães, falaram de certa valentia adquirida pelas
mulheres por conta da gravidez. Assim estávamos diante de uma outra
possibilidade: estariam essas mulheres buscando alternativas às possíveis
violências dentro do próprio presídio desejando criar novas formas de
relacionamento?
De fato, alguns depoimentos revelam que a gravidez ao invés de
representar uma certa fragilidade, ao contrário, significa um ganho de um
poder inusitado que auxilia a mulher em cárcere nos enfrentamentos
cotidianos.
Notamos, que o discurso institucional aponta para o fato de que a existência
de crianças na penitenciária tem diminuído o grau de violência. Esse
discurso é compartilhado por algumas internas:
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“Depois que as crianças nasceram, passou a ser uma paz, que
todo mundo respeita, é Passou a ter uma paz... Mudou
completamente". (Rita, 35, mãe de duas filhas, uma em
cárcere)
Contudo, nos deparamos com algumas situações de violência, não rara:
"Ela [outras interna presa como sua cúmplice] me deu um chute na
aninha barriga. Essa hora minha filha fava morta dentro da minha
barriga. Eu saí de baixo senão é uma presa?!... eu saí de baixo e
quebrei um cabo de vassoura todinho nela..." (Rute, 33 quatro
filhos, mãe com uma filha em cárcere)
"Tive. Tive problema sim. Eu briguei com uma aqui uma vez. Eu tava
com 7 meses de barriga, quer dizer eu não briguei com ela. Ela me
agrediu, não sei o quê ela tava sentindo, o problema que ela tinha,
qual o problema dela. Eu desci prá fila onde a gente pega a refeição,
as quatro e meia fica trancada as cinco. Aí eu fui prá fila nesse dia e
ela começou a fala que... grávida apanha na cara. Ficou na baixaria
mesmo sabe? Começou a me agredir com palavras, eu também só
esquentada... se eu não fiz nada a você eu não quero que você me
ofenda. Eu não tinha feito nada, se eu tivesse feito... eu assumo a
minha responsabilidade, que eu fiz. Mas se eu não fíz, eu fiquei
zangada com ela - Porque você tá falando isso? que vai dá tapa na
minha cara? O que foi que eu fiz a você prá você dizer que vai dá na
minha cara? Que eu sô o que?... Por que tem aqui algumas, que
quando a pessoa é novata, quando a pessoa é nova aqui, elas tem
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mania de... ser superior, tá entendendo? E comigo não cola! Por que
eu só novata, mas eu ando no meu caminho, não mexo com
ninguém, não maltrato ninguém prá poder não mexer comigo. Aí,
quase que eu vô aos tapas com ela. Aí a funcionária veio e tirou".
(Gilcélia, 25, mãe de uma filha em cárcere)
Assim, se gravidez, a maternidade ou a maternagem, não as mantém fora
dos conflitos cotidianos, pelo menos pode expressar uma alternativa a elas
uma vez que, criando novas rotinas, ocupando mais seu tempo, as mães
estariam, mais resguardadas.
Aqui, tocamos num ponto muito interessante: a questão dos poderes entre
as internas.
"Tem umas assim que acha que manda, mas não manda!... tem
umas querendo ser assim, mas não é assim entendeu? na realidade
não é assim! Querem ser assim por ter visto também um filme e tudo,
[por] saber que no Rio de Janeiro é assim, São Paulo é assim, aí
acha que aqui tem que ser assim, mas não dá prá ser assim...
Porque chega uma época de festa, todo mundo se une, neguinho tá
qui faz uma comida leva prá fulano, e tudo!... aí vai se abrindo mais.
O tempo vai passando, vai convivendo mais com a pessoa, vai vendo
o outro lado da pessoa. Aí vai aceitando, depois cê vê que não existe
isso aí dentro!" (Flávia, 21, não mãe)