O documento discute a polidez linguística segundo o modelo de Brown e Levinson. O modelo analisa a noção de "face" e como certos atos de fala ("FTA") podem ameaçar a imagem positiva ou negativa do falante ou do ouvinte. A polidez é vista como forma de conciliar o desejo de preservação das "faces" com a realização dos atos de fala. A polidez negativa suaviza os FTAs e a polidez positiva envolve atos que valorizam as faces dos outros.
1. CAPÍTULO 8 - POLIDEZ: ASPECTOS TEÓRICOS
A polidez (porque é justamente disso que se trata neste exemplo) é um fenômeno linguisticamente pertinente: dessa tomada de
consciência, nasceu, por volta do final dos anos 1970, um novo domínio de investigação, graças a pesquisadores como R. Lakoff, G.
Leech, e, sobretudo, P. Brown e S. Levinson. O sistema elaborado por Brown e Levinson, que constitui, atualmente, em matéria de
polidez linguística, o quadro referencial mais sofisticado, produtivo e célebre, será o principal modelo ao qual faremos referência.
Observações:
• A noção de "polidez" é aqui entendida em sentido amplo, recobrindo todos os aspectos do discurso que são regidos por regras, cuja
função é preservar o caráter harmonioso da relação interpessoal. Veremos que a polidez assim concebida ultrapassa amplamente as
famosas "fórmulas" apreciadas pelos manuais de convivência e etiqueta.
• Esses manuais empenham-se em descrever as maneiras à mesa, ou os modos de vestir, do mesmo modo que a arte da conversação: a
polidez se aplica, com efeito, aos comportamentos não-verbais tanto quanto aos verbais, mas, aqui, trataremos exclusivamente da
polidez linguística.
B. O modelo de Brown e Levinson
A concepção da polidez que esses autores desenvolvem se articula com e se fundamenta sobre a noção de "face", noção emprestada
de E. Goffman, entre outros, mas ampliada, em função da incorporação do que se chama normalmente de o "território".
a. noção de "face"
Para Brown e Levinson, todo indivíduo possui duas faces:
- a face negativa, que corresponde grosso modo ao que Goffman descreve como os "territórios do eu" (território corporal,
espacial ou temporal, bens materiais ou saberes secretos ... );
- a face positiva, que corresponde grosso modo ao narcisismo e ao conjunto de imagens valorizantes que os interlocutores
constroem de si e que tentam impor na interação.
b. A noção de "FTA"
Em qualquer interação com dois participantes, quatro faces se encontram postas em presença. Por outro lado, ao longo do desenrolar
da interação, os interlocutores são levados a realizar um certo número de atos, verbais e não-verbais. Ora, a maioria desses atos - até
mesmo sua totalidade - constitui-se como ameaças potenciais para uma e/ou para outra dessas quatro faces: de onde decorre a
expressão Face Threatening Act proposta por Brown e Levinson para designar "atos que ameaçam as faces"; expressão popularizada
sob a forma de "FTA". Essa sigla atualmente faz parte do vocabulário básico de todo pesquisador das conversações.
Nessa perspectiva, os atos de fala se dividem em quatro categorias:
1. Atos que ameaçam a face negativa do emissor: é, por exemplo, o caso da oferta ou da promessa, pelas quais se propõe
ou se compromete a efetuar um ato suscetível de lesar seu próprio território, num futuro próximo ou distante.
2. Atos que ameaçam a face positiva do emissor: a confissão, a desculpa, a autocrítica e outros comportamentos
"autodegradantes".
3. Atos que ameaçam a face negativa do receptor: as violações territoriais de natureza não-verbal são numerosas (ofensas
proxêmicas, contatos corporais inadequados, agressões visuais, sonoras ou olfativas, infiltração por invasão nas "reservas" do outro
etc.). Mas as ameaças territoriais também podem ser de natureza verbal: é isso que ocorre nas chamadas perguntas "indiscretas"; e no
conjunto dos atos que são, em alguma medida, inoportunos ou "diretivos", como a ordem, a interpelação, a proibição ou o conselho.
4. Atos que ameaçam a face positiva do receptor: são todos aqueles que colocam em risco o narcisismo do outro, como a
crítica, a refutação, a reprovação, o insulto e a injúria, a chacota e o sarcasmo ...
As categorias 1 e 2 remetem aos atos "auto ameaçadores". Mais pertinentes, para a perspectiva com a qual nos ocupamos aqui, são as
categorias 3 e 4, visto que a polidez concerne, antes de tudo, à atitude do falante para com seu interlocutor.
Notemos que um mesmo ato pode se inscrever simultaneamente em diversas categorias (mas, geralmente, com um valor
dominante); por exemplo: ao mesmo tempo em que ameaçam a face negativa do destinatário, a ordem e a interpelação ameaçam a
face positiva do destinatário, no caso da ordem, e do falante, no caso da interpelação.
c. A noção de face want
Por um lado, portanto, os atos efetuados de ambas as partes ao longo da interação são potencialmente ameaçadores para os
interactantes. Mas, por outro lado, eles devem obedecer ao comando supremo:
Uns e outros, sejam cuidadosos,
porque a perda da face é uma falha simbólica que tentamos evitar, na medida do possível, a nós mesmos e aos outros. À noção de face
se sobrepõe não somente a noção de FTA, mas também a de face want ou o desejo de preservação das faces - sendo essas últimas, ao
2. mesmo tempo e contraditoriamente, o alvo de ameaças permanentes e o objeto de um desejo de preservação.
d. A noção de face work
Como os interactantes conseguem resolver essa contradição?
Para Goffman: realizando um trabalho de "figuração" (face work); esse termo designa "tudo o que uma pessoa empreende para que
suas ações não impliquem perda diante de ninguém (nem de si mesma)".
Para Brown e Levinson: utilizando diversas estratégias de polidez; nessa perspectiva, a polidez aparece como um meio de conciliar
o mútuo desejo de preservação das faces, com o fato de que a maioria dos atos de fala são potencialmente ameaçadores para uma
dessas faces.
A partir daí, para Brown e Levinson, trata-se de fazer o inventário e a descrição das diferentes estratégias que podem ser postas a
serviço da polidez; a escolha efetuada entre essas numerosas estratégias depende da função dos três seguintes fatores:
- o grau de gravidade do FTA;
- a "distância social" (D) entre os interlocutores (ou seja, nossa relação "horizontal");
- sua relação de ''poder'' (P) (relação "vertical");
a idéia é que a polidez de um enunciado deve, em princípio, crescer, ao mesmo tempo, que D, P e o "peso" do FI'A.
O modelo erigido por Brown e Levinson é, certamente, produtivo, conforme o testemunha a considerável massa de estudos que nele
se inspirou proveitosamente. Contudo, parece que algumas críticas lhe podem ser dirigidas, e, correlativamente, que alguns
aperfeiçoamentos lhe devem ser incorporados.
C. Aperfeiçoamentos do modelo
a. A noção de "anti-FTA" (ou "FFA'')
A esse modelo reprovou-se, sobretudo, uma concepção excessivamente pessimista, e até mesmo "paranoide", da interação -
representando os indivíduos em sociedade como seres vivos sob a ameaça permanente de FTAs de todo gênero, e passando seu tempo
a montar guarda em tomo de seu território e de sua face. Com efeito, é incontestável que Brown e Levinson reduzem demais a polidez
à sua forma "negativa": bastante revelado r desse aspecto é o fato de que, buscando reciclar a noção de ato de fala na perspectiva de
uma teoria da polidez linguística, eles apenas tenham focalizado os atos potencialmente ameaçadores para as faces, sem pensar que
alguns atos de fala também podem ser valorizantes para essas mesmas faces, como o elogio, o agradecimento ou os votos. Para
explicá-los, é indispensável introduzir no modelo teórico um termo suplementar para designar esses atos que são, em alguma medida,
o lado positivo dos FTAs: chamamos esses "anti-FTAs" de "FFAs" (Face Flattering Acts) - o conjunto de atos de fala se divide,
então, em duas grandes famílias, conforme produzam efeitos essencialmente negativos para as faces (como a ordem ou a crítica), ou
essencialmente positivos (como o elogio e o agradecimento).
b. Polidez negativa vs. positiva
A introdução dos FFAs permite, além disso, esclarecer as noções de "polidez negativa" e de "polidez positiva", que estão bastante
confusas em Brown e Levinson. Diremos que:
• A polidez negativa é de natureza abstencionista ou compensatória: ela consiste em evitar produzir um FTA, ou em
abrandar, por meio de algum procedimento, sua realização _ quer esse FTA se refira à face negativa (ex.: ordem) ou à face positiva
(ex.: crítica) do destinatário.
• A polidez positiva é, ao contrário, de natureza produtiva: ela consiste em efetuar algum FTA para a face negativa (ex.:
presente) ou positiva (ex.: elogio) do destinatário.
E acrescentaremos que a polidez positiva ocupa, de direito, no sistema global, um lugar tão importante quanto a polidez
negativa: mostrar-se polido na interação é produzir FFAs tanto quanto abrandar a expressão dos FTAs - e até mais que isso: nas
representações prototípicas, a lisonja passa como sendo "ainda mais polida" que a atenuação de uma crítica.
É a partir dessas noções básicas: - face negativa e face positiva;
- FTA e FFA;
- polidez negativa e polidez positiva,
que iremos ver quais são as diferentes realizações da polidez linguística, abordando, sucessivamente, os procedimentos da polidez
negativa e os da polidez positiva.
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3. CAPITULO 9: AS MANIFESTAÇÕES LINGUÍSTICAS DA POLIDEZ
A. Polidez negativa
Relembremos, já de início, que a melhor maneira de ser (negativamente) polido é evitar cometer um ato que, aparecendo na interação,
correria o risco de ser ameaçador para o destinatário (crítica, recusa etc.).
Mas essa estratégia de evasão evidentemente não é generalizáve1. Suponhamos, então, que o falante realize o ato projetado: a polidez
impõe que ele seja suavizado, recorrendo a um ou outro desses procedimentos que Brown e Levinson chamam de suavizadores (em
inglês: softeners).
Como todos os signos manipulados na interação, esses suavizadores podem ser de natureza para-verbal ou não-verbal: voz mansa,
sorriso ou inclinação lateral da cabeça (que acompanha frequentemente a formulação das interpelações ou das refutações). Quanto aos
suavizadores de natureza verbal, nós os dividiremos em procedimentos substitutivos vs. acompanhantes.
a. Procedimentos substitutivos
Eles consistem em substituir a formulação mais direta por uma outra mais "suave".
1º A formulação indireta do ato de fala
Tomemos o caso da ordem: ocorre que a língua portuguesa põe à nossa disposição uma forma, o modo imperativo, reservada
exclusivamente para expressar esse ato ilocutório. Ora, os falantes recorrem, de fato, muito raramente a essa forma modal, preferindo
meios mais indiretos - em vez de "Feche a porta!", diríamos de modo mais natural: "Você pode fechar a porta?", "Você poderia fechar
a porta?", "Eu gostaria que você fechasse a porta", ou até mesmo "Tem uma corrente de ar aqui, né?". Comportamento que pode
parecer paradoxal; mas o paradoxo se resolve se nos lembrarmos que a ordem é um ato particularmente ameaçador para as faces
daquele a quem o ato se destina. Nós o substituímos, então, por esse ato aparentemente menos coercitivo que é a pergunta (ou,
eventualmente, por uma asserção apropriada), e a estratégia está posta: a ameaça se encontra, por via de consequência, suavizada.
Assim, o recurso à formulação indireta se inscreve geralmente numa preocupação com a polidez, e, inversamente, é pelo viés da
formulação indireta que se exerce, inicialmente, a polidez negativa.
Outros exemplos:
- pergunta que equivale a uma reprovação ("Você não lavou a louça?", "Você colocou todo esse sal na sopa?") ou a uma
refutação ("Você acha mesmo que ... ?", "Nós não poderíamos dizer,
disso, que....?")
- a confissão de incompreensão ("Eu não entendo isso muito bem") que equivale a uma crítica ("Você não se expressa
claramente"); o falante assume, por polidez e por sua conta, o problema comunicativo que, na verdade, atribui a seu parceiro.
2. Outros procedimentos substitutivos
• Também podemos suavizar um FTA, recorrendo a diversos desatualizadores modais, temporais ou pessoais, cuja função comum é
a de distanciar a realização do ato problemático. São, essencialmente, os seguintes:
- o condicional: "Você poderia fechar a porta?" (há aqui o acúmulo desse procedimento com o anterior), "Eu precisaria que você fosse
embora" etc.;
- o "passado de polidez": "Eu queria te pedir que ... ", o desatualizador temporal sendo acumulável com o desatualizador modal ("Eu
teria gostado de saber se ... ");
- quanto aos desatualizadores pessoais: o apagamento da referência direta aos interlocutores por meio do emprego da voz passiva, do
impessoal ou do indefinido ("O problema não foi resolvido corretamente", "Não se fuma aqui" etc.).
• No que se refere aos pronomes pessoais, relembremos o célebre exemplo do "'senhor(a)" (no qual, podemos ver, ao mesmo tempo,
uma atenuação da brutalidade do tratamento e uma ênfase no valor de deferência; o procedimento consiste, de algum modo, em
exprimir a qualidade pela quantidade); e assinalemos também alguns usos polidos do "nós" e de sua variante oral "a gente" que
consistem em utilizar essas formas coletivas com valor de solidariedade;
- seja substituindo um "você", se o enunciado tem um conteúdo negativo ("Você perdeu" por "A gente perdeu");
- seja substituindo um "eu", se o enunciado tem um conteúdo positivo ("Eu ganhei" por "A gente ganhou").
• Mencionemos, enfim, alguns procedimentos retóricos como a lítotes ou o eufemismo: podemos observar que a grande maioria das
lítotes que encontramos nas trocas cotidianas se aplica a críticas ou a reprovações ("Não é muito simpático/inteligente/ esperto o que
você acaba de fazer", "Não dá pra arrumar isso", "Não dá mais -tempo", "Eu gostaria tanto [ = eu preferiria indiscutivelmente] que
você não fumasse" etc.); bem como o tropo comunicacional, abordado no capítulo 3, e que consiste em fingir dirigir um enunciado
ameaçador a um outro que não é aquele a quem esse enunciado, verdadeiramente, se destina.
4. b. Procedimentos subsidiários
Podemos suavizar a formulação de um FTA, fazendo-o ser acompanhado de uma fórmula especializada, tal como "por favor" ou "se
for possível". Mas, podemos também recorrer a muitos outros procedimentos que são como luvas de pelica que vestimos para bater
nas faces delicadas de nosso parceiro de interação.
• O primeiro meio de abrandar um ato ameaçador é anunciá-lo, valendo-se de um enunciado "preliminar", ou, conforme o termo
consagrado pela literatura, um pré-. Desse modo, podemos prefigurar:
_ as interpelações: "Você pode me fazer um favor?", "Você tem um momento?", "Tá vendo esse cinzeiro aí?", "Você tem dinheiro
aí?"; - as perguntas: "Posso te perguntar uma coisa?" / te fazer uma pergunta indiscreta?";
- as críticas ou objeções: "Eu posso te dar uma opinião?/fazer uma observação?/uma pequena crítica?";
- os convites: "Você está livre esta noite?" etc.
• Outros procedimentos de suavização dos FTAs: as "reparações" que consistem no pedido de desculpas e na justificação.
• E ainda:
- os minimizadores, cuja função é parecer reduzir, por meio da maneira pela qual se apresenta o FIA, a ameaça que ele constitui: "Eu
queria simplesmente te pedir .. .! É só pra saber se .. .! Você poderia arrumar um pouquinho estas coisas? / Eu posso te dar um
conselhinho? / Você pode me dar uma ajudinha? / Eu tenho uma perguntinha pra te fazer/ Me dá um cigarrinho/ trocado para o
ônibus, por favor"; o sufixo diminutivo "inho(a)" é, como podemos ver, o minimizador preferido pelos falantes;
- os modalizadores que, ao acompanharem uma asserção, instauram uma certa distância entre o sujeito da enunciação e o conteúdo
do enunciado, e, no mesmo gesto, lhe dá ares menos peremptórios, logo, mais polidos: "eu penso/creio/acho/tenho a impressão que ...
", "me parece que ... ", "talvez/possivelmente/ provavelmente", "para mim", "na minha opinião (pelo menos)" etc.;
- os desarmadores, pelos quais se antecipa uma possível reação negativa do destinatário do ato, e se tenta neutralizá-la: "Não queria
te importunar, mas ", "Fico embaraçado por te incomodar, mas ", "Espero que você não me interprete mal, mas ... ", "Sei que você não
gosta de emprestar seus discos, mas ... ";
- os moderadores, enfim, são um tipo de "suavizantes" que visam fazer engolir a pílula do FIA; pílula que sem eles seria muito
amarga: "Me traz alguma coisa pra beber, meu chuchu", "Por gentileza, me passe o sal", "Feche a porte, meu anjo", "Você que sabe
das coisas, me diz então ... ", "Você que sempre toma notas tão bem, poderia me passar essas suas aí?" etc.
c. Conclusão sobre a polidez negativa
• Vemos que são muitos os meios que a língua põe à disposição dos falantes para edulcorar a realização dos FTAs produzidos durante
a interação: a panóplia de suavizantes é rica e variada -
podendo ser cada vez mais rica e variada, à medida que esses diferentes procedimentos forem cumuláveis ad libitum; exemplos:
- refutação: "Me desculpe, talvez eu vá chocá-lo, mas o que você acabou de dizer não está totalmente exato " (desculpa + desarmador
+ modalizador + lítotes);
- interpelação: "Eu queria saber se você se incomodaria de me dar uma carona se você for na direção de onde eu moro; eu acabo de
perder o ônibus e o próximo é só daqui a uma meia hora" (formulação indireta + imperfeito de polidez + minimizador + justificação
detalhada);
- pedido de entrevista: "Me desculpe por incomodar o senhor; o senhor tem um minutinho? Eu queria falar com o senhor, mas vai ser
rapidinho" (desculpa + pré + minimizador).
• Os suavizadores têm seu lado negativo: os agravantes, cuja função é a de reforçar o ato de fala, em vez de abrandá-lo, e de
aumentar o impacto, em vez de atenuá-lo. Vejamos essa passagem de O avarento, na qual Harpagon maltratava La F1eche, do
seguinte modo:
Fora daqui agora mesmo, e não me responda! Vamos! saia da minha casa, desgraçado mestre dos ladrões, sua grande besta
desonesta!
[ ... ]; saia daqui rápido, antes que eu o mate.
Essa passagem nos oferece um exemplo representativo e bastante completo desses "agravantes": injunção formulada da maneira mais
brutal possível; reiterada e plena de diversos advérbios reforçadores, de uma cláusula de "não-opcionalidade", de uma ameaça e de
uma série de injúrias, de uma metáfora animal, logo, degradante, e de uma despersonalização desprezadora do interlocutor (reduzido a
um "nada").
A panóplia de agravantes parece, portanto, tão vasta quanto a dos suavizantes. Mas sua utilização é muito diferente: fora do caso
particular de trocas com caráter fortemente conflituoso, os agravantes são muito mais raros e "marcados" que os suavizadores,
pelo menos, quando acompanham um FTA; porque, ao contrário, são muitos os que acompanham a formulação dos FFAs.
B. Polidez positiva
A polidez positiva consiste exatamente em produzir algum ato que tenha um caráter essencialmente "antiameaçador" para seu
destinatário: manifestação de acordo, oferta, convite, elogio, agradecimento, fórmula votiva ou de boas-vindas etc. Seu funcionamento
é, portanto, muito mais simples que o da polidez negativa. Nós nos contentaremos em assinalar a esse respeito que se os FTAs têm,
geralmente, a tendência de ser minimizados na sua verbalização, os FFAs se prestam, ao contrário e de bom grado, à formulação
intensiva. Assim, o agradecimento se exprime frequentemente sob o modo de um superlativo:
5. "Muito obrigado/Mil vezes obrigado/Obrigado infinitamente", enquanto se poderia considerar como agramatical a sequência
"pouco obrigado".
São muitas as provas da existência de um princípio de vontade que, de modo geral, conduz os falantes a suavizar a formulação dos
atos ameaçadores e a reforçar a dos atos valorizantes; a litotizar os enunciados impolidos e hiperbolizar os enunciados polidos - isso
quer dizer, por exemplo, que à mesa formulamos geralmente nossa apreciação, conforme o seguinte esquema:
_ apreciação positiva: "Está absolutamente delicioso!";
_ apreciação negativa (aliás, muito mais rara): "Está um pouquinho salgado pro meu gosto", se nos encontramos na presença de quem
fez o prato em questão, porque é no "face a face" que se exercem as leis da polidez.
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CAPÍTULO 10 - A POLIDEZ: BALANÇO
As considerações anteriores demonstram que no sistema da língua estão inscritos numerosos fatos, cuja existência só se justifica se os
concebemos em relação ao sistema de faces; somente desse modo eles podem ser interpretados. São fatos aparentemente muito
heterogêneos e que a linguística, até uma data recente, havia tratado de maneira dispersa (no quadro da retórica clássica ou da
pragmática contemporânea); mas que, de repente, se colocam, se os relacionamos aos princípios da polidez, sob a forma de um
sistema, ao mesmo tempo em que desvelamos sua profunda unidade funcional: permitir uma gestão harmoniosa da relação
interpessoal. O que prova, ao mesmo tempo:
- que o nível da "relação", sobretudo nas interações que se desenvolvem face a face, é tão importante quanto o do
"conteúdo", visto que boa parte do material com o qual os enunciados são produzidos não tem pertinência a não ser nesse nível;
- que as regras da polidez, embora não sendo propriamente de natureza linguística, merecem ser incorporadas à caixa de
ferramentas dos linguistas, porque permitem explicar eficazmente aspectos importantes do funcionamento das línguas e dos discursos.
O sistema da polidez que apresentamos nos diz ainda:
- que a polidez é um conjunto de procedimentos que o falante utiliza para poupar ou valorizar seu parceiro de
interação;
- que a polidez é a norma, visto que, por exemplo, os FTAs são mais frequentemente suavizados que reforçados,
contrariamente ao que ocorre com os FFAs.
A. A polidez como norma
Há, evidentemente, muitas situações em que o exercício das regras de polidez se encontra suspenso (em caso de urgência, por
exemplo, ou de interação intensamente agonística, ou, ainda, de comunicação de caráter lúdico - em todas as sociedades existem
formas, por vezes, ritualizadas, de transgressão humorística dos rituais de polidez). Mas, de maneira geral, e as análises de corpus
confirmam abundantemente a afirmação desse princípio, podemos dizer que os comportamentos impolidos são "marcados" em
relação aos comportamentos polidos.
Idéia corroborada ainda pelas observações sobre o que chamamos de organização preferencial das trocas. Esse princípio afirma
que, no paradigma dos encadeamentos possíveis a um dado ato de fala, os diferentes tipos de reação não têm o mesmo estatuto nem o
mesmo grau de probabilidade: alguns são "preferidos" (ou não marcados) e outros "preteridos" (ou marcados); reconhecemos os
encadeamentos não preferidos pelo fato de que eles são produzidos com um certo prazo (a duração do gap que antecede o
encadeamento cresce proporcionalmente ao caráter marcado desse encadeamento), são frequentemente precedidos por marcadores de
hesitação e formulados de uma maneira mais elaborada que os encadeamentos preferidos (realização indireta, precauções rituais como
o pedido de desculpas e a justificação etc.). Por outro lado, mostramos que, de modo geral, as reações de tipo positivo apresentam
todas as características dos encadeamentos preferidos, enquanto as reações de tipo negativo - desacordo, rejeição de uma oferta,
recusa em responder a uma interpelação etc. - apresentam as características dos encadeamentos preteridos (assim, a justificação é
utilizada em caso de desacordo, enquanto se torna supérflua em caso de acordo). Ora, ainda de modo geral, os encadeamentos
positivos são mais polidos que os encadeamentos negativos. Os encadeamentos polidos são, portanto, "preteridos" e os
encadeamentos impolidos, "não preferidos".
B. A lei de modéstia
Já assinalamos o poder explicativo dos princípios de polidez, no que diz respeito particularmente à formulação indireta dos atos de
fala. De modo mais geral, a maioria das expressões que utilizamos comumente nas trocas cotidianas seria inutilmente confusa e
obscura, se seu "custo cognitivo" (tanto para o codificador quanto para o decodificador) não fosse amplamente compensado pelo
benefício psicológico de que podem usufruir os interlocutores.
A polidez permite igualmente explicar o tabu que pesa sobre o autoelogio. Com efeito, em nossas sociedades (e ainda mais, conforme
o veremos, em outras), é mal visto "vangloriar-se" (mesmo merecidamente), e isso em virtude de um princípio, ao qual chamaremos
de "princípio de modéstia":
- deve-se evitar, ao máximo possível, "rasgar seda para si mesmo", produzir autoelogios;
- ou se, porventura, somos conduzidos a fazer nosso próprio elogio, devemos absolutamente incorporar a ele algum procedimento
6. minimizador ou reparador:
Não tá ruim esse meu bolo! (lítotes)."
Talvez, seja isso que torna nosso livro interessante" (modalizador). Conforme nós o demonstramos ... conforme cremos tê-lo
demonstrado em nossa tese (autocorreção modalizante).
Nós temos uma escrita, eu creio, um pouco inventada (modalizador + minimizador).
Perdão, pela defesa pro domo (desculpa).
Sinceramente não tenho o hábito de fazer propaganda dos meus livros, mas aqui eu sou obrigado a assinalar que [ ... )
(desarmador).
De modo análogo, recomenda-se o elogio ora pela expressão de um desacordo, ora por um acordo, em alguma medida, "abrandado":
F1 - Delicioso seu frango!
F2 - Ah, que nada; tá muito seco.
- Tá, mas é a primeira vez que eu não o estrago ...
- É verdade, não tá ruim não, mas também ele é tão fácil de fazer.
Vemos aqui que o encadeamento negativo, ou positivo mitigado, é "preferido", enquanto o encadeamento abertamente positivo ("Ah,
sim; eu adoro!") é, ao contrário, marcado; exceção que confirma a regra, visto que é ainda por polidez que o falante reage desse modo.
Com efeito, desvalorizando-se, ele evita exibir, entre outras coisas, sua superioridade sobre seu parceiro: realçando-se a si mesmo,
arrisca-se, por extensão, a rebaixar indiretamente o outro; exaltando a própria face, arrisca-se a atentar contra a do outro - cf.
Dumarsais: "As lisonjas que nos fazemos sempre ferem o amor-próprio daqueles com quem falamos".
A "lei de modéstia" é apenas o corolário do princípio geral, segundo o qual, para ser polido, convém elogiar a face do outro,
sacrificando, se necessário, a própria. Se a polidez stricto sensu consiste num conjunto de princípios e regras que governam os
comportamentos que o falante deve adotar diante de seu parceiro de interação, ela atinge, consequentemente, as atitudes que o
falante deve adotar diante de si mesmo, e isso de maneira absolutamente imperativa: qualquer infração patente à lei de modéstia é
impiedosamente sancionada (pelo riso das testemunhas ou por alguma observação sarcástica), acarretando, no caso de uma eventual
repetição, a estigmatização do culpado (decretado imodesto, vaidoso, e até megalomaníaco ... ).
C. A noção de "dupla coerção"
No entanto, pode parecer muito natural que, por vezes, tenhamos vontade de nos vangloriar na conversação, sobretudo, se estimamos
que o mérito alegado seja real. Mas não se pode ceder a essa vontade: as regras do saber-conversar nos proíbem expressá-la (trata-se,
aqui, de um tipo de tabu).
Assim, a obrigação de ser polido, ou seja, de preservar as faces dos outros, pode contrariar outros desejos do sujeito falante: nessa
perspectiva, a interação aparece como o lugar onde se enfrentam os sujeitos cujos interesses não apenas se opõem frequentemente,
mas também estão submetidos a pulsões contraditórias e a ordens antagônicas - o que é mais marcante nessa questão é que pode
haver conflito no interior do mesmo sistema de polidez entre uma e outra regra constitutivas desse sistema.
a. Exemplos
• A polidez nos diz que, na interação, é preciso, ao mesmo tempo:
- respeitar o território do outro;
- e manifestar por ele um certo interesse,
enaltecer sua face positiva; ou seja, fazer-lhe ofertas e elogios, pôr-se à sua disposição, lhe devotar demonstrações de atenção, na
forma de perguntas sobre sua saúde ou sobre a situação de seus negócios ...
Ora, há certamente contradição entre essas duas exigências, já que a primeira implica a não-ingerência nos assuntos dos outros e a
segunda, ao contrário, a ingerência e a assistência: quanto mais valorizamos a face positiva de nosso parceiro, mais ameaçamos
correlativamente sua face negativa, e inversamente.
• Vejamos ainda o exemplo do elogio e da melhor maneira como se deve reagir diante dele: o princípio da "preferência pelo acordo"
convida a aceitar naturalmente essa espécie de presente verbal, ao passo que a "lei de modéstia" convida, ao contrário, a rejeitá-lo ...
b. Interação e duplo vínculo
Retomando, aqui, por nossa conta, uma noção desenvolvida num contexto relativamente diferente por G. Bateson e pela Escola de
Palo Alto, diremos que nesses casos, os sujeitos são submetidos a uma espécie de duplo vínculo (em inglês, double bind) , visto
que eles são aparentemente orientados a respeitar, ao mesmo tempo, dois princípios, de modo que se obedecerem a um desses
princípios, desobedecem ao outro, e vice-versa.
Princípios, felizmente, flexíveis o suficiente para que possamos nos adaptar à contradição, adotando uma solução de compromisso:
expressão indireta ou mitigada, no caso da oferta, acordo "abrandado", no caso da reação ao elogio ... Compreendemos, então, que
nossas formulações possuem frequentemente uma aparência embaraçada, confusa, "afetada": esses contorções verbais nos são, de
fato, impostos pelo sistema de regras interacionais, entre as quais é preciso que nos equilibremos, se quisermos garantir honrosamente
7. nosso papel em sociedade.
Esses duplos vínculos podem tomar formas variadas e não será exagero dizer que eles estão constantemente na comunicação cotidiana
- o mais bem atestado desses conflitos é, sem dúvida, o que opõe sinceridade e cortesia (franqueza e tato). Porque as exigências do
falar a verdade e as exigências do discurso polido nem sempre formam um conjunto harmonioso, conforme o enuncia eloquentemente
Filinto, no início do Misantropo, durante o grande debate sobre essa questão em que ele se opõe a Alceste; e conforme nós
cotidianamente o experimentamos, preferindo geralmente, a exemplo de Filinto, a "piedosa mentira", em detrimento da sinceridade
ofensiva.
D. As funções da polidez
a. Necessidade social da polidez
Esse conflito entre sinceridade e polidez (a fidelidade a si mesmo e o respeito pelo outro) é apenas uma das facetas de um conflito
mais geral e fundamental: aquele que opõe essas duas unidades primitivas e primitivamente antagônicas que são o ego e o alter.
Conflito, portanto, entre o egoísmo e o altruísmo, que, entretanto, não estão no mesmo plano: podemos considerar o egoísmo como
uma disposição "natural" e o altruísmo como um valor secundário que visa contrabalançar as pulsões egocêntricas e neutralizar seus
efeitos potencialmente devastadores para a interação (cf. Schopenhauer: "O egoísmo inspira tamanho horror que inventamos a polidez
para escondê-lo"). Se o egoísmo é natural, a polidez é "contra a natureza", conforme se observa em todos os níveis do
funcionamento da interação - desde o nível do sistema de alternância dos turnos de fala, visto que a polidez exige que, em certos
momentos, cedamos a palavra, quando, frequentemente preferiríamos conservá-la.
A grande questão para os interactantes é, portanto, a seguinte: como conciliar a preservação de si e o respeito pelo outro? Como
fazer para ser polido sem se sacrificar demasiadamente? É a essa conciliação, por vezes, acrobática, dos interesses do falante e do
interlocutor que visa o exercício da polidez, de acordo com a definição dada por R. Barthes:
Um estado de equilíbrio muito sutil e muito fino para se proteger sem ferir o outro.
E é sobre esse "equilíbrio sutil" que repousa o funcionamento harmonioso da interação. Reduzir ao máximo possível os antagonismos
potenciais entre interactantes, desarticular, ao menos, parcialmente, os conflitos que ameaçam surgir a qualquer instante do
desenvolvimento da interação: essa é a finalidade profunda da polidez, a qual podemos definir como uma violência feita à violência.
Conforme a etimologia da palavra, a polidez tem a função de arredondar os ângulos e "polir" as engrenagens da máquina
conversacional, a fim de preservar seus usuários de graves lesões.
b. Universalidade da polidez
Respeitar as regras da polidez é dar condições para que a interação funcione adequadamente. Ora, geralmente, todos os participantes
da interação têm interesse em que ela funcione nas melhores condições ... Sem polidez, ao contrário, a vida é "impossível" (conforme
dizemos das crianças); sem civilidade, o que se tem é a guerra civil: basta observar a si mesmo e constatar as pequenas frustrações e
as grandes cóleras desencadeadas por qualquer desrespeito às regras "elementares" da polidez ("Ele poderia ter dito, pelo menos,
obrigado", "Ela nem sequer se desculpou") para averiguar "esse formidável poder destruidor da impolidez sistematizada", evocado
por Goffman, e como seria inviável um mundo sem "boas maneiras".
O respeito às regras de polidez deriva, portanto, mais do princípio de racionalidade (é mais razoável favorecer a viabilidade da troca
que se empenhar na precipitação de sua morte) que de uma ética fundamentalmente altruísta: se nos mostramos altruístas na interação,
é, certamente e antes de tudo, por interesse pessoal.
E é também por isso que a polidez é um fenômeno universal, como é universal a importância atribuída ao território e à face, nas
relações interpessoais como nas relações entre os países - os grandes conflitos internacionais não se instauram sempre em torno de
questões de poder e de glória?
Mas esse fenômeno universal apresenta aspectos bastante diferentes, segundo as culturas e as sociedades, conforme veremos a seguir.