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Teoria e Metodologia da História: antigas e novas interdisciplinaridades
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José D Assunção Barros
Federal Rural University of Rio de Janeiro
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Teoria e Metodologia da História:
antigas e novas interdisciplinaridades 1
José D’Assunção Barros2
A tendência à Interdisciplinaridade tem sido possivelmente a característica mais
importante e saliente da História na sua gradual consolidação como saber científico, desde
que os historiadores passaram a encaminhar conscientemente a proposta de integrar a sua
prática ao circuito de saberes acadêmicos, a partir do século XIX. De alguma maneira,
podemos dizer que a História constitui o mais interdisciplinar dos saberes. Tal se dá por um
duplo movimento. Em uma primeira mão, porque, de modo incontornável, todas as disciplinas
são históricas, isto é, constituíram-se e constituem-se a partir de uma história, de um processo
que pode e deve ser compreendido pelos seus praticantes. Em uma segunda mão, porque a
História sempre extraiu muito da sua linguagem, dos seus métodos e abordagens, dos seus
temas de estudo, de cada uma das outras disciplinas que com ela estabelecem algum tipo de
interação. O nosso objetivo, nesta palestra, será refletir sobre esta relação da História com a
Interdisciplinaridade, entendendo esta última como uma das instâncias fundamentais que a
constituem.
Os conceitos fundamentais para compreender as relações entre disciplinas.
Antes de iniciarmos nossa reflexão sobre a Interdisciplinaridade, será importante
lembrar alguns outros conceitos que também se sintonizam com as propostas
interdisciplinares. Para melhor clarificar as diferenças que podem ser pensadas entre três
palavras que guardam alguma sintonia – interdisciplinaridade, transdisciplinaridade,
multidisciplinaridade (ou a sua coirmã, a pluridisciplinaridade) – devemos atentar para os
prefixos que, em cada caso, entram na sua composição. Podemos aproximar, sem maiores
problemas e sem perdas significativas, as noções de pluridisciplinaridade e
1
Palestra realizada na Universidade Nacional de Brasília (UNB), em 18 de novembro de 2013, para o I Simpósio
de Metodologia da História e para o IX Encontro Regional Centro-Oeste da Associação Brasileira de História
Oral: a polissemia das cidades.
2
Professor-Associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, nos cursos de Graduação e Pós-
Graduação em História. Professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense.
2
multidisciplinaridade. Elas incorporam radicais latinos que se referem a “muito” (multi) ou
“vários” (pluri).
A multidisciplinaridade, a entender por aqui, corresponde ao reconhecimento de uma
diversidade de disciplinas, ao empenho em oferecer boas condições para a sua convivência ou
cooperação. Por outro lado, a ideia de disciplinaridade está ligada ao reconhecimento de
fronteiras, à percepção das múltiplas realidades que coexistem em um campo maior e ajudam
a constituí-lo de maneira mais plena. Já o prefixo “trans” é primordialmente de origem grega,
embora depois tenha passado ao latim, e deve ser associado a ideias como “através de”,
“ultrapassagem de posições”, “mudança”1
. Podemos encontrar o movimento que pode ser
associado ao prefixo “trans” em palavras como “transbordar” (ultrapassar as bordas, ou ir
além das bordas). Na palavra “trânsito” podemos surpreender com bastante clareza essa
mesma ideia de “movimento”2
. Já na palavra “transformar” podemos apreender a ideia de
mudança, uma vez que aqui se tem em vista a ideia de mudança de forma ou de aspecto.
A alternativa entre o “multi” ou o “trans”, em vista da rápida discussão etimológica
acima registrada, permite pensarmos nas expressões que agregam estes prefixos em dois
caminhos distintos, que podem ou não ser complementares. O prefixo “multi” (ou o “pluri”),
implica no reconhecimento de fronteiras. O “trans”, entrementes, implica em um projeto de
“transbordamento de fronteiras”, ou na ideia de que é preciso ir além do simples
“reconhecimento de fronteiras” (ou do mero respeito pelas realidades diversas que coexistem
em um mesmo espaço), de modo a examinar também como as diversas realidades se
interpenetram, transformam-se mutuamente através de uma coexistência interativa, deixam-se
afetar uma pela outra.
MULTI
TRANS
INTER
Mediação; Reciprocidade
Muitos; Vários
Através de;
Transbordamento
Três Prefixos
para pensar a relação
entre Disciplinas
ou Campos de Saber
3
Com relação ao prefixo latino “inter”, por fim, este se relaciona ou à ideia de uma
posição intermediária (mediadora), ou à perspectiva de “reciprocidade”. No primeiro caso, o
prefixo tem o mesmo uso de “entre” (uma coisa que se coloca entre duas outras). Vamos
encontrá-lo em palavras como “intervir”3
, que se referem a uma mediação, ou mesmo em
palavras como “interpretar”, nas quais se tem o uso do prefixo com o sentido de “dentro”4
. No
segundo caso – o qual evoca a ideia de “reciprocidade” – aparecem palavras como
“internacional” (o espaço que se estabelece entre as nações nas suas relações recíprocas, ou o
universo maior que as abrange como um todo).
Com a palavra “interdisciplinaridade”, o que se tem é exatamente esta ideia de
reciprocidade. O espaço interdisciplinar é aquele que se forma a partir das diversas disciplinas
ou campos de saber que precisam se confrontar e dialogar (a interdisciplinaridade não se dá
“por dentro” de uma disciplina, mas sim entre duas disciplinas ou mais)5
. Este sentido mais
geral de interdisciplinaridade, entrementes, deixa algo no ar. Afinal, se a interdisciplinaridade
é o espaço de confronto e diálogo que se produz entre as diversas disciplinas, como se dá mais
especificamente esse diálogo (ou esse confronto)? Trata-se de um monólogo de mão única ou
de um diálogo de via dupla? Ou essa relação entre disciplinas se constitui, de modo bem
diverso, em uma espécie de entrelaçamento? Quanto às disciplinas que são levadas a
estabelecer uma relação recíproca, estas apenas se demarcam umas diante das outras, cada
qual vigiando o seu território, ou interagem de alguma maneira? Transformam-se ou se
deformam, de algum modo, neste processo? De onde parte, por fim, a relação interdisciplinar
– de uma disciplina para as outras, ou de todas elas em conjunto, a partir de práticas e aportes
que confluem para um mesmo ponto? Questões como essas, que não são resolvidas ao nível
etimológico, têm dado margem a muitas discussões conceituais.
Com base na etimologia que acabamos de discutir, entenderemos a esfera da
Multidisciplinaridade através do princípio mais elementar que define essa expressão: o
reconhecimento das diversas fronteiras e especificidades apresentadas pelos vários campos de
saber. Falamos aqui de “fronteiras”, e não de “limites”. Os limites são geralmente
impositivos. As fronteiras constituem o espaço natural ou político do diálogo.
O fato de haver mútuo reconhecimento de fronteiras entre os elementos pertencentes a
realidades distintas (nacionais, culturais, científicas ou quaisquer outras) não quer dizer que
não haja diálogo ou mobilidade entre elas. Quem habita em zonas de fronteira entre dois
países está muito familiarizado com esta idéia. O fato de que dois indivíduos pertençam a
realidades políticas diferenciadas, que estes se inscrevam em distintas nacionalidades ou
mesmo que falem línguas distintas, por mais afastadas que estas sejam entre si, não impede
4
que um diálogo se estabeleça. Eles podem se freqüentar mutuamente, alimentar-se da cultura
e do cardápio produzido na cultura vizinha, aprender com o outro, estabelecer relações
comerciais, diplomáticas, ou de quaisquer tipos. As fronteiras, literalmente, constituem
espaços de diálogo. Originalmente, a aplicação da noção de fronteiras à livre formação de
territórios, no sentido político, estava mais associada à ideia de “começo” do Estado (ou de
começo da nação) do que de “fim” do Estado ou do território político demarcado, o que já
remete ao conceito de “limite”. Desta maneira, há uma distinção muito singular entre as duas
perspectivas. As fronteiras assinalam zonas de expansão, linhas de diálogo, faixas de
sociabilidade e intercâmbio, pontos de transbordamento, dimensões de mobilidade. Os limites
indicam “fins”, áreas que não devem ser ultrapassadas, processos de territorialização que já se
encerraram, espacialidades que se inscrevem em um projeto de serem conservadas sem
alteração.
Dois países livres, que conservem boas relações – ou mesmo quando estão em guerra –
têm o seu território habitualmente entrecortado por fronteiras, no sentido pleno da palavra. Na
guerra, ou como decorrência da guerra, as fronteiras podem se mover. De todo modo, as
fronteiras começam a deixar de ser fronteiras e a se transformar em limites quando surgem
normas muito claras de interdição coibindo o diálogo. As duas Alemanhas do período da
guerra fria, ao menos no que concerne aos aspectos políticos e às coibições de ir e vir
livremente entre os dois países, apresentavam mais do que fronteiras entre si. O Muro de
Berlim constituía, de fato, um limite, e não uma fronteira.
A Multidisciplinaridade, ao reconhecer fronteiras, não deixa de reconhecer os diálogos,
a convivência entre os diversos campos de saber, a possibilidade de trabalharem em projetos
em comum – o que aliás também pode ser feito entre dois países com fronteiras bem
demarcadas entre si. Um Instituto Multidisciplinar, por exemplo, funda-se nessa ideia de
reconhecimento da pluralidade de campos de saber e no princípio de que a sua proximidade
em um mesmo espaço (físico ou institucional) é particularmente produtiva. Por outro lado,
existe um certo momento ou espaço de experiências no qual o Multidisciplinar começa a ser
complementado com o Transdisciplinar (pois podemos ter multidisciplinaridade com
transdisciplinaridade, ou não). Isso ocorre quando, além de reconhecer as fronteiras, e de
convivermos amistosa e produtivamente com elas, deixamos que os campos de saber se
afetem mutuamente. Ou, o que também é outra visão da questão, podemos dizer que a
transdisciplinaridade entre em cena quando percebemos como os diversos campos de saber se
afetam uns aos outros, quer queiram, quer não.
5
A passagem ou complementação do Multidisciplinar com o Transdisciplinar ocorre
quando vamos além da troca de informações entre dois campos de saber, ou quando
asseguramos uma feição realmente interativa entre os diversos tipos de especialistas que
integram um projeto pluridisciplinar. O projeto Transdisciplinar não envolve apenas uma
divisão de tarefas, ou a confluência dos esforços e talentos diversos para o alcance de
determinada meta ou produção de certo produto final. A perspectiva transdisciplinar supõe
que, no decorrer desse trabalho conjunto, um campo irá ajudar a transformar o outro.
A possibilidade de ser afetado por outros campos de saber também está presente na
Interdisciplinaridade – ou ao menos em alguns dos sentidos que são atribuídos a esta
expressão. Podemos pensar a Interdisciplinaridade, por outro lado, como um movimento que
ocorre a partir de uma disciplina específica, e que dela transborda. A Interdisciplinaridade, de
acordo com esse viés, seria um movimento que parte do interior de uma disciplina, muito
habitualmente como uma reação ao fato de que as “fronteiras” entre ela e outros campos estão
começando a ser tratadas como “limites” por uma parcela significativa dos praticantes do
campo em questão. Vista desta maneira, a Interdisciplinaridade e a Transdisciplinaridade
guardam certa sintonia. Propomos distingui-las entre si a partir da ênfase em que se estabelece
a saudável prática do transbordamento ou de estabelecimento de interações com outros
campos de saber. A Transdisciplinaridade surge geralmente como um projeto estabelecido
simultaneamente entre diversos campos de saber (ou entre grupos diversos constituídos por
cada campo de saber). A Interdisciplinaridade pode ser entendida a partir do anseio (ou
mesmo da necessidade) de uma disciplina em se renovar a partir da interação com outros
campos. Pode ocorrer também a convergência de dois movimentos interdisciplinares. Cada
campo inicia um movimento em direção ao outro pelos seus próprios motivos, e ambos
acabam se encontrando naturalmente, estabelecendo mútuas cooperações e possibilidades de
se enriquecerem reciprocamente. Posso dar o exemplo de diversos movimentos entre
historiadores e geógrafos surgidos nas últimas décadas. Os historiadores têm se dado conta
cada vez de que a História não pode ser apenas entendida como “ciência dos homens no
tempo”, pois ela é também uma “ciência dos homens no espaço (ou em um lugar)”, como a
Geografia. Esta, cada vez mais se apercebe que todo espaço é construído temporalmente,
historicamente. Deste modo, História e Geografia, através das percepções interdisciplinares
que emergiram em cada um desses campos, têm fortalecido ainda mais a sua fraternidade
epistemológica nas últimas décadas. Neste ensaio, assumiremos a opção pela compreensão do
conceito de “interdisciplinaridade” como uma orientação que parte do interior de uma
disciplina que deseja (precisa) renovar-se a partir de outras.
UMA
DISCIPLINA
INTERDISCIPLINARIDADE
SINGULARIDADE
INTERESSES
TEMÁTICOS
REDE
HUMANA
CAMPOS INTRA-
DISCIPLINARES
MÉTODO
INTERDITOS DISCURSO
OLHAR
SOBRE SI
TEORIA
7
O que é uma Disciplina
Comecemos por pensar em algumas questões fundamentais. O que constitui um campo
de saber como disciplina? Que história, ou que histórias, levam um determinado conjunto de
práticas, representações e modos de fazer – certo universo de perspectivas sobre a realidade e
de procedimentos para apreendê-la e trabalhar sobre ela, enfim – a se delimitar e a se definir
gradualmente, até que esse conjunto adquira finalmente uma identidade suficientemente forte
para que, a partir dele, passem a se nomear profissionalmente os praticantes da nova
disciplina? Que elementos mínimos, enfim, são necessários para que se constitua
efetivamente um campo disciplinar, e para que este se mantenha frente a outros saberes?6
Estas questões, e outras mais, podem e devem ser colocadas para cada um dos campos
de saber que merecem nos dias de hoje um assento universitário, e mesmo para outros que
ainda não adentraram o espaço acadêmico, mas cuja identidade acha-se suficientemente
fortalecida para ofertar aos seus praticantes o nome de uma disciplina e o sentimento de
pertença a um sistema de objetos e práticas em comum. Física, Biologia, Astronomia,
Economia, História, Geografia, Antropologia, Musicologia ... poderíamos estender, quase à
exaustão, o número de exemplos a serem dados para campos disciplinares.
Nosso objetivo nesta palestra será refletir mais sistematicamente sobre as categorias
essenciais que devem ser empregadas para todos e cada um dos diversos campos
disciplinares. Trata-se, neste momento, de definir os aspectos essenciais que contribuem para
definir um campo disciplinar, qualquer que seja ele. O que desenvolveremos neste capítulo,
portanto, é aplicável à reflexão de qualquer disciplina ou campo de saber, e não apenas à
História, mais especificamente. Por outro lado, também é oportuno considerar que sempre
emerge alguma “história” quando começamos a nos indagar sobre o que significa falar de um
certo conjunto de práticas, concepções e objetos de estudo como um campo específico de
conhecimento, ou como uma “disciplina” (no sentido científico). Todo ‘campo disciplinar’,
seja qual ele for, é em última instância histórico, no sentido de que vai surgindo ou começa a
ser percebido como um novo campo disciplinar em algum momento, e que depois disso não
cessa de se atualizar, de se transformar, de se redefinir, de ser percebido de novas maneiras,
de se afirmar com novas intensidades, de se reinserir no âmbito dos diversos campos de
produção de conhecimento ou de práticas específicas. Um campo disciplinar é histórico
mesmo no que se refere às suas regras, que podem ser redefinidas a partir de seus embates
internos, em alguns casos. “O campo é um jogo no qual as regras do jogo estão elas próprias
postas em jogo” (BOURDIEU, 2003, p.29)7
.
8
Vejamos agora que instâncias são partilhadas por todos e por cada um dos diversos
campos de saber (disciplinas). Estaremos em busca, nesta síntese, daquilo que todo campo
disciplinar necessariamente precisa desenvolver para se constituir. O ‘Quadro 1’ orientará a
nossa reflexão relativamente a esses diversos aspectos que envolvem ou estão envolvidos na
constituição, afirmação e transformações de um ‘campo disciplinar’ de saberes e práticas.
Começaremos por aquilo que é de certo modo um evidente lugar comum: toda disciplina é
constituída, antes de tudo, por certo ‘campo de interesses temáticos’ (1), o que inclui desde
um interesse mais amplo que define este campo como um todo, até um conjunto mais
privilegiado de objetos de estudo e de temáticas a serem percorridas pelos seus praticantes
(ou de desafios a serem enfrentados, para o caso dos campos disciplinares que, tal como a
Medicina, envolvem uma prática, mais ainda do que uma reflexão teórica e uma pesquisa).
Pode ocorrer que certas ciências ou disciplinas partilhem inclusive um determinado
interesse em comum (por exemplo, o interesse das chamadas ‘ciências humanas’ pelo estudo
daquilo que é humano), mas é também fato que a certo nível de profundidade surge sempre,
para que se possa falar em uma disciplina com identidade própria, algum tipo de
singularidade, o que nos levará ao próximo item.
Assim, a História, que tem em comum com a Antropologia, Sociologia ou Psicologia o
estudo do Homem – e que, portanto, partilha com estas ciências alguns de seus objetos de
estudo – a certa altura deverá ser definida como a ciência que coloca no centro de seu campo
de interesses “o estudo do homem no tempo”. Os objetos da história – isto é, o seu “campo de
interesses” – em que pese que pareçam coincidir em um primeiro momento com os objetos
possíveis das demais ciências sociais e humanas, serão sempre objetos “historicizados”,
“temporalizados”, marcados por uma atenção à mudança em alguns de seus níveis.
Pode se dar também que o centro de interesses de uma disciplina esteja situado em
uma confluência, em uma conexão de saberes, e este é certamente o caso da Astrofísica, da
Medicina Penal, da Filosofia da Ciência, ou de qualquer outra disciplina que, por vezes em
seu próprio nome, não deixa dúvidas com relação ao caráter híbrido de sua esfera mais direta
de interesses. A esta questão voltaremos oportunamente, e desde já cumpre observar que o
conjunto de interesses temáticos de uma Disciplina, particularmente no que se refere aos seus
desdobramentos e possibilidades de objetos de estudos, também está sujeito a transformações
no decorrer de sua própria história.
Seguindo além, uma conseqüência imediata do que se disse aponta para o fato de que
cada Disciplina possui a sua Singularidade (9), aqui entendida como o conjunto dos seus
parâmetros definidores, ou como aquilo que a torna realmente única, específica, e que
9
justifica a sua existência – em poucas palavras: aquilo que define a Disciplina em questão por
oposição ou contraste em relação a outros campos disciplinares8
. Em um pólo oposto, será
preciso entender o fenômeno inverso: embora cada campo de saber apresente certamente uma
singularidade que o faz único e lhe dá identidade, não existe na verdade um só campo
disciplinar que não seja construído e constantemente reconstruído por diálogos (e oposições)
interdisciplinares. Queiram ou não os seus praticantes, toda disciplina está mergulhada na
Interdisciplinaridade (0), questão que examinaremos em maior profundidade no decorrer
desta palestra.
Ademais, é preciso ainda ter em vista que, para se constituir no seio de uma rede já
existente de saberes, todo novo campo de saber deve enfrentar duras lutas com campos já
estabelecidos, nas quais frequentemente se verá inserido em uma verdadeira disputa
territorial, ou pelo menos em uma partilha interdisciplinar, além de enfrentar o desafio de
mostrar a capacidade e potencialidade para se posicionar com eficácia diante de antigos e
novos problemas que as disciplinas mais tradicionais também já vêm enfrentando com seus
próprios métodos e aportes teóricos. Desta maneira, pode-se dizer que o processo de
surgimento de um novo campo disciplinar adquire, por vezes, muito mais a aparência de uma
verdadeira luta que se dá no interior da arena científica do que a aparência de um parto. E
esta luta, bem como os laços de solidariedade que também se estabelecem entre os novos e
antigos campos de saber, dão-se todos no seio de uma intensa e necessária
interdisciplinaridade, diante da qual o que é novo tem de se apresentar diante do
conhecimento já estabelecido e por vezes institucionalmente já consolidado.
Para considerar mais um aspecto que se converte em dimensão integrante de qualquer
campo disciplinar, é preciso ressaltar que a história do conhecimento científico e da
modernidade tem sido tal que, ao desenvolver ou ultrapassar certo nível de complexidade,
cada campo de saber começa a gerar especializações e desdobramentos internos – campos
intradisciplinares (5), por assim dizer. Se um campo disciplinar não apresenta ainda suas
especializações – como a Física que se subdivide em Mecânica, Ótica, Termodinâmica,
Física Nuclear, e assim por diante – qualquer disciplina cedo começa a se partilhar ao menos
em possíveis ‘campos de aplicação’, ou qualquer outro tipo de organização interna que
corresponda mais ou menos a uma espécie de divisão do trabalho intelectual e prático.
No caso da História, é bastante evidente a vertiginosa multiplicação de ‘campos
históricos’ a partir do século XX, dando origem a inúmeras modalidades como a História
Econômica, a História Cultural, a Micro-História e tantas outras, ao lado de outras que já
existiam nos séculos anteriores como a ‘História Política’, a ‘História Militar’ ou a ‘História
10
da Igreja’. Essa tendência ao desdobramento interno e à crescente especialização – que se
apresenta como uma característica de praticamente todos os ‘campos disciplinares’ no período
contemporâneo – tem sido um aspecto inerente à história do conhecimento na civilização
ocidental, sobretudo a partir da modernidade, o que não impede que os efeitos mais criticáveis
do hiperespecialismo sejam constantemente compensados pelos movimentos
interdisciplinares e transdisciplinares, voltados para uma ‘religação dos saberes’ em um
mundo no qual os campos de produção de conhecimento vivem a constante ameaça do
isolamento.
Para além do que até aqui foi discutido, três aspectos fundamentais a serem
considerados quando se fala na constituição de um ‘campo disciplinar’ relacionam-se ao fato
de que nenhuma disciplina adquire sentido sem que desenvolvam ou ponham em movimento
certas teorias, metodologias e práticas discursivas (2 a 4). Mesmo que tome emprestados
conceitos e aportes teóricos originários de outros campos de saber, que incorpore métodos e
práticas já desenvolvidas por outras disciplinas, ou que se utilize de vocabulário já existente
para dar forma ao seu discurso, não existe disciplina que não combine de alguma maneira
Teoria, Método e Discurso. Bem entendido, um campo disciplinar não se desenvolve no
sentido de possuir apenas uma única orientação teórica ou metodológica, mas sim de
apresentar um certo repertório teórico-metodológico que é preciso considerar, e que se torna
conhecido pelos seus praticantes, gerando adesões e críticas várias. Da mesma maneira, o
desenvolvimento de um campo disciplinar acaba gerando uma linguagem comum através da
qual poderão se comunicar os seus expoentes, teóricos, praticantes e leitores. Há mesmo
campos disciplinares que acabam gerando certo repertório de jargões, facilmente
reconhecível como dialeto específico de determinado campo de saber, mesmo externamente.
Qualquer campo disciplinar, enfim, à medida que vai se constituindo, vai também se
inscrevendo em certa modalidade de Discurso, por vezes com dialetos internos. É por isso
que não é possível a ninguém se transformar em legítimo praticante de determinado campo
disciplinar, se o iniciante no novo campo de estudos não se avizinha de todo um vocabulário
que já existe previamente naquela Disciplina, e através do qual os seus pares se
intercomunicam9
.
Quanto à questão da Interdisciplinaridade (0), por se tratar do próprio objeto desta
palestra, esta não os requer maiores comentários neste momento, embora tenhamos aqui a
sétima instância importante que concorre para o delineamento de qualquer campo de estudos.
Por ora, chamamos atenção para o fato de que, ao se colocarem em contato interdisciplinar ou
transdisciplinar, dois campos de saber podem enriquecer sensivelmente um ao outro nos seus
11
próprios modos de ver as coisas e a si mesmos. A teoria, a metodologia e as práticas
discursivas que constituem qualquer campo de saber são diretamente afetadas pelos diálogos
interdisciplinares que o campo estabelece com outros.
Conforme já mencionamos, particularmente a História, no decorrer do século XX e
além, foi beneficiada por uma longa história de contribuições inspiradas em outros âmbitos de
saber. A Geografia, Antropologia, Psicologia, Lingüística, entre outras ciências humanas,
estiveram fornecendo frequentemente conceitos e metodologias aos historiadores, e certos
desenvolvimentos em âmbitos intradisciplinares da História como a História Cultural ou a
História das Mentalidades não teriam sido possíveis, certamente, sem os respectivos diálogos
interdisciplinares com a Antropologia e com a Psicologia. Também no âmbito das ciências
naturais não foi raro que o contato interdisciplinar contribuísse para modificar a própria
maneira de ver as coisas neste ou naquele campo científico. Diálogos entre a Física e a
Astronomia, ou entre a Química e a Física, nos oferecem alguns exemplos muito concretos de
renovação10
.
Por fim, não é possível pensar uma Disciplina sem admitir o seu lado de fora – uma
zona de interditos (6), ou aquilo que se coloca como proibido aos seus praticantes. O exterior
um de campo de saber é tão importante para uma disciplina como aquilo que ela inclui, como
as teorias e métodos que ela franqueia aos seus praticantes, como o discurso que ela torna
possível, como as escolhas interdisciplinares estimuladas ou permitidas11
. Ademais, o que se
interdita em uma disciplina, como tudo mais, também é histórico, sujeito a transformações, e
as temáticas e ações possíveis que um dia estiveram dentro de certo campo disciplinar podem
ser processualmente deslocadas para fora, como também algo do que estava fora pode vir
para dentro, para um espaço de inclusão legitimado pela rede de praticantes da disciplina12
.
Tecnicamente poderíamos interromper aí a enumeração dos principais aspectos a serem
considerados para compreender a constituição de um campo disciplinar qualquer, se não
faltasse o essencial, na verdade aquilo que perpassa todos os demais aspectos. Existe de fato
uma densa e complexa Rede Humana (7), constituída por todos aqueles que já praticaram ou
praticam a disciplina considerada e pelas suas realizações – obras, vivências, práticas
realizadas – e também isto é certamente tão inseparável da constituição de um campo
disciplinar, que poderíamos propor a hipótese de que a entrada de cada novo elemento
humano em certo campo disciplinar já o modifica em alguma medida, da mesma maneira que
cada obra produzida sobre um campo de saber ou no interior deste mesmo campo de saber já
o modifica em menor ou maior grau, às vezes indelevelmente, às vezes tão enfaticamente a
ponto de se tornar visível o surgimento de novas direções no interior deste campo disciplinar.
12
Perguntar-nos-emos, deste modo, até que ponto o surgimento de um novo historiador
ou de uma nova obra historiográfica, por mais banal que ela seja, não modifica de alguma
maneira a própria História enquanto campo disciplinar, ou até que ponto o Médico que
introduz uma nova abordagem ou uma nova prática em seu ofício já não termina por
modificar o próprio campo disciplinar da Medicina13
. Essas transformações, nem sempre
fáceis de visualizar – a não ser no âmbito das inovações mais notáveis ou das grandes obras –
constituem no seu conjunto uma grande obra coletiva, na qual os próprios praticantes de uma
disciplina contribuem cada qual à sua maneira para modificar o próprio campo disciplinar no
qual se inserem.
Ao se falar em uma ‘rede humana’ para cada campo disciplinar, também temos de ter
em vista, é claro, que estas redes encontram-se frequentemente interferidas por uma ‘rede
institucional’ (universidades, institutos de pesquisa, circuitos editoriais de revistas
científicas), e também por uma constelação de grupos de pesquisa e outras formas de
parcerias e associações dentro da qual esta vasta rede humana também se acomoda de uma
maneira ou de outra.A rede humana do campo disciplinar, desta forma, assume aqui a forma
de uma “comunidade científica”. Boa parte dos seus participantes ocupa lugares concretos na
imensa rede institucional e na constelação de grupos e parcerias científicas, e também lugares
simbólicos conforme a repercussão e recepção de suas obras e proposições.
Uma ideia pode ser recebida de maneira diferenciada conforme se fale deste lugar
institucional ou daquele lugar simbólico. Nem todos podem dizer tudo todo o tempo,
conforme Michel Foucault já fez notar com especial nitidez em seu ensaio A Ordem do
Discurso (1996, p.10), o que nos remete mais uma vez à questão dos ditos e interditos
permitidos e hierarquizados por um campo disciplinar. Uma “comunidade científica” – um
conceito que será particularmente importante quando abordarmos a questão dos
“paradigmas” – é articulada, enfim, a um sistema de poderes institucionais e prestígios
acadêmicos que redefine o lugar de cada um e de todos14
.
A “rede humana” que constitui uma das dimensões integrantes do campo disciplinar é
também, ela mesma, uma rede de textos e de realizações, em dinâmica interconexão. Isto
ocorre nos diversos campos de saber. Na Física e na Química, a rede de realizações produzida
pela “rede humana” é povoada não apenas dos textos científicos, mas de experiências, de
fórmulas, da construção de novos instrumentos de medição e tecnologias. Michel de Certeau
(1982: 72), que examinou os desdobramentos deste campo disciplinar que é a História em seu
já clássico texto A Operação Historiográfica (1974), procura mostrar como cada realização
13
empreendida por cada historiador co-participante da rede termina por enunciar “uma
operação que se situa em um conjunto de práticas”.
Dito de outra forma, está desde já inarredavelmente inscrito nesta complexa rede –
formada pelos historiadores e por suas realizações historiográficas – cada texto histórico,
“quer dizer, uma nova interpretação, o exercício de métodos novos, a elaboração de outras
pertinências, um deslocamento de definição e do uso do documento, um modo de organização
característico, etc” (CERTEAU, 1982: 72). Não há contribuição, por singela que seja, que não
repercuta de alguma maneira na rede historiográfica, ainda que indelevelmente. Podemos não
nos dar conta de cada contribuição atomizada, mas certamente a influência de cada um e de
todos em um campo de saber pode ser entrevista nas lentas ou súbitas mudanças de temáticas,
de preferências teóricas, de escolhas metodológicas. Um campo de saber, enfim, não se faz
apenas das suas obras magistrais, mas também das contribuições que se estabelecem na
média, das tendências que se afirmam ou se revertem em vista das ações da massa de
pesquisadores que constituem o campo disciplinar e dos leitores que completam o processo de
circulação do saber15
.
Reconhecer a ‘Rede Humana’ específica que constitui cada campo disciplinar
produzido pelo homem também leva à compreensão de um derradeiro aspecto, quase um
desdobramento da crescente consciência que a rede humana vai desenvolvendo sobre si
mesma e sobre o campo que constitui, à medida que avança na sua história. A certa altura de
seu amadurecimento como campo disciplinar, começam a ser produzidos, cada vez mais
freqüentemente no seio do próprio campo de saber em constituição, os “olhares sobre si”.
Começam a surgir, elaboradas pelos próprios praticantes da Disciplina, as ‘histórias do
campo’, aqui entendidas no sentido de narrativas e análises elaboradas pelos praticantes do
campo disciplinar acerca da própria rede de homens e saberes em que estão inseridos.
Compreender-se historicamente é o resultado mais visível deste “olhar sobre si” (8)16
.
Temos então dez dimensões importantes nesta caminhada para tentar compreender uma
Disciplina, qualquer que ela seja: o seu Campo de Interesses (1), os seus aportes teóricos (2),
o seu padrão discursivo (3), as suas metodologias (4), os seus campos Intradisciplinares (5),
os seus Interditos (6), bem como a extensa ‘rede humana’ (7) que, através de suas
realizações, empresta uma forma e dá concretização ao campo disciplinar, sem contar o
‘olhar sobre si’ (8) que esta mesma rede estabelece a certa altura de seu próprio
amadurecimento, e, enfim, a própria Singularidade da disciplina em questão (9). A isso tudo
se agregam os diálogos e confrontos estabelecidos através da Interdisciplinaridade (0). Se a
interdisciplinaridade não se situa propriamente no interior de cada disciplina, mas sim “entre”
14
as várias disciplinas, não há como negar que se trata de uma instância que, de alguma
maneira, ajuda a redefinir cada campo de conhecimento considerado.
Para encerrar esta sessão mais uma vez com a questão da história – isto é, com a
questão de que cada campo disciplinar tem a sua própria História e que, de preferência, esta
história (ou esta leitura de sua história) deve ser escrita pelos seus próprios praticantes de
modo a renovar constantemente os seus ‘olhares sobre si mesmos’ – torna-se importante
compreender adicionalmente que cada uma das dez dimensões atrás citadas, além de
interligada às demais, está mergulhada ela mesma, por inteiro, na própria história. Os padrões
interdisciplinares se alteram, os desdobramentos intradisciplinares se multiplicam ou se
restringem, as teorias se redefinem, as metodologias se recriam, o padrão discursivo se
renova, os interditos são rediscutidos, e mesmo algo da Singularidade que permite definir
uma ‘matriz disciplinar’ no interior da rede de saberes pode sofrer variações mais ou menos
significativas à medida que surgem novos paradigmas e contribuições teórico-metodológicas.
Para além de tudo isto, cada campo de saber está constantemente produzindo novos ‘olhares
sobre si mesmo’ de acordo com as transformações que se dão dentro e fora do campo – do
contexto histórico-social às transformações teóricas e tecnológicas. Tudo é histórico, enfim, e
essa máxima é também válida para todo o conjunto de elementos daquilo que vem a
constituir um determinado campo disciplinar.
Pontes interdisciplinares
Uma vez compreendido o que é uma Disciplina, podemos começar a nos acercar mais
profundamente do conceito de Interdisciplinaridade. Vimos na última sessão que, entre as
diversas instâncias que constituem uma disciplina, a Interdisciplinaridade é uma dimensão
incontornável. Já desde o momento em que surge ou se faz visível, qualquer campo de saber
não pode senão se situar em uma rede de disciplinas com as quais irá se confrontar, contrastar
e interagir. Ao mesmo tempo, vimos também que toda disciplina envolve certas instâncias que
são comuns a todos os campos de saber: Teoria, Metodologia, as especificidades de um
discurso, uma rede de praticantes do campo de saber em questão, as singularidades que a
definem, certo campo de interesses que podem se confrontar ou se interpenetrar com o de
outras disciplinas, e assim por diante. Ao mesmo tempo, uma Disciplina – à medida que se
torna mais complexa – cedo começa a conformar espaços internos ao seu próprio campo de
práticas e de estudos. Surgem então as diversas sub-especialidades ou âmbitos internos, ou o
que podemos também chamar de “campos intradisciplinares”.
15
A interdisciplinaridade entre um campo de saber e os demais que o cercam, e que com
ele se interpenetram, pode se dar através de cada uma dessas instâncias. Vamos chamar a
estas instâncias, a estas brechas a partir das quais os diálogos podem surgir, de “pontes
interdisciplinares”. Uma Disciplina pode dialogar com a outra através de seus aportes
teóricos; pode partilhar ou incorporar procedimentos metodológicos que são encontrados em
uma disciplina irmã; pode assimilar conceitos e fórmulas expressivas que também constituem
o discurso da outra. Diversos campos de saber, além disso, encontram caminhos
interdisciplinares através das suas temáticas de estudo – ou seja, através de certas
coincidências entre seus campos de interesses. As redes de profissionais que se referem a cada
campo de saber, por outro lado, podem se interpenetrar, e cooperações diversas podem ser
estabelecidas. Os pesquisadores de um campo e outro podem trabalhar juntos, inspirar-se
mutuamente, e há ainda os casos de dupla formação – aqueles que se referem a estudiosos que
se formaram em mais de um campo de saber e que, portanto, não podem ser enquadrados no
interior de um único campo disciplinar. Cada um destes âmbitos – a Teoria, a Metodologia, o
Discurso, o Tema, o campo de interesses, a comunidade de estudiosos, as subdivisões
intradisciplinares, pode se apresentar aos pesquisadores ligados a certo campo de saber como
importantes oportunidades interdisciplinares.
No caso da História, a relação com a interdisciplinaridade é visceral. Marc Bloch certa
vez utilizou uma metáfora que é muito citada nos livros de introdução ao conhecimento
histórico: “A História é como o ogro da lenda, tem fome de carne humana”. Gostaria de
acrescentar um complemento. A História tem sede de interdisciplinaridade. A sede
interdisciplinar da História é tão incontornável, que sempre que houve ameaças de suas
“fronteiras” serem convertidas em “limites”, nunca tardaram a surgir expressivos movimentos
interdisciplinaridade. Há muitos fatores que convergem para essa tendência da História
derrubar todos os muros que estes e aqueles praticantes sejam tentados a construir.
Um destes fatores é a própria linguagem da qual precisam se utilizar os historiadores. A
linguagem da História é múltipla e híbrida. Sua própria natureza multifacetada lhe veda o
direito de construir um castelo para abrigar um jargão secreto e único, a ser conhecido
somente pelos seus iniciados, tal como ocorre com o “economês” ou com o linguajar jurídico.
Jamais ouviremos falar do “historiês”, da mesma forma como ouvimos falar (coloquialmente)
do “economês”, ou então de um determinado jargão médico que se conserva bem guardado no
interior de um castelo disciplinar17
. Do ponto de vista discursivo, a História é como
Macunaíma, o “herói sem-caráter” inventado por Mário de Andrade (1928). Seu repertório
lingüístico, aberto à assimilação de todos os saberes, torna-se por isso mesmo o mais
16
complexo, ainda que também o linguajar simples da vida comum esteja incluído na sua
palheta de recursos discursivos.
A linguagem da História, de fato, traz singularidades adicionais, não encontráveis em
nenhum outro saber. Para já tocar em uma das questões que nos interessam – a da Escrita da
História – devemos lembrar que os historiadores desenvolvem o seu discurso a partir de uma
linguagem que combina a fala comum e o artifício literário, a isso acrescentando o uso de
conceitos mais bem elaborados, não raras vezes importados de outros campos de saber. Dito
de outra forma, o discurso historiográfico deve entremear com habilidade três registros de
comunicação: o da linguagem comum, o da elaboração artística, e o da sistematização
científica. Além disto, a História lida não apenas com a fala de sua própria época, mas
também com as falas das diversas outras épocas, estas com as quais os historiadores devem
trabalhar em função de suas fontes e objetos de estudo. Daí resulta que o discurso final dos
historiadores deverá ser, a um só tempo, cientificamente interdisciplinar, artisticamente
literário e experimentalmente multivocal.
Mais adiante, voltaremos aos desdobramentos da ideia de que a História, além de ser
um saber científico, produz como objeto final um texto literário, e mesmo artístico. Este
aspecto, o qual obriga a que os historiadores percorram freqüentemente a ponte
interdisciplinar que se relaciona ao Discurso, situa a História em franco diálogo com diversas
formas de expressão, entre as quais a Literatura e o Cinema.
Por outro lado, o fato de a História também introduz no seu discurso uma linguagem
científica, obriga os historiadores a percorrerem, na direção dos outros campos de saber, a
ponte interdisciplinar que se relaciona à Teoria. Isto porque os historiadores valem-se de uma
linguagem conceitual, sem que necessariamente precisem inventar cada conceito do qual irão
se utilizar. Com muita freqüência, os historiadores já encontram elaborados nas demais
ciências diversos dos conceitos dos quais precisam se utilizar. Pode se dar o caso de que o
historiador precise criar um conceito específico para nomear ou esboçar a compreensão de
alguma realidade histórica muito específica, mas não são nada raras as inúmeras
oportunidades que se apresentam aos historiadores para lançarem mão de conceitos que são
muito comuns no vocabulário antropológico, geográfico, sociológico, político, jurídico,
psicológico, econômico, literário, e mesmo em campos de saber ligados às ciências naturais e
às chamadas ciências duras. Desde a sua formação inicial, por isso mesmo, os historiadores
estão muito habituados a operar interdisciplinarmente através do discurso.
17
As mais antigas interdisciplinares: através da teoria, dos métodos e das temáticas de estudo.
As mais antigas interdisciplinares às quais se entregaram os historiadores, desde que
iniciaram a sua expansão no universo de saberes científicos, foram aquelas que se relacionam
às pontes interdisciplinares que podemos referir à Teoria, ao Método, e às escolhas temáticas.
Quero dar o exemplo inicial da Geografia, uma disciplina à qual os historiadores
dedicam talvez a mais antiga fraternidade epistemológica. Os entrelaçamentos
interdisciplinares entre geógrafos e historiadores dão-se sobretudo a partir de um duplo
movimento. De um lado, os historiadores – que essencialmente costumam pensar o seu campo
de saber como uma “ciência dos homens no tempo” – cada vez mais adquirem uma
consciência da espacialidade. A História, então, passa a ser definida como uma “ciência dos
homens no tempo e no espaço”. De outro lado, por um movimento inverso mas que conflui na
direção dos historiadores, os geógrafos adquirem cada vez mais a consciência de que o espaço
é construído no tempo. As últimas décadas têm assistido a um revigoramento importante
desse duplo movimento de historiadores e geógrafos que respectivamente têm intensificado as
suas consciências da espacialidade e da temporalidade. Por isso, cada vez são mais freqüentes
os congressos unindo simultaneamente historiadores e geógrafos.
Conceitos como o de “território” – fundamental para compreender a apropriação
política do espaço – ou como as noções de “paisagem”, “região”, têm estabelecido diálogos
importantes entre historiadores e geógrafos através desta ponte interdisciplinar que é a Teoria.
Os historiadores aprimoraram as suas maneiras de enxergar as sociedades históricas por eles
investigadas na medida em que puderam utilizar, de modo mais sistemático, certos conceitos
originariamente da Geografia. A noção de “fronteira” – ela mesma importante para
compreender as próprias relações entre as várias disciplinas – também pode ser mencionada.
Por outro lado, a metodologia também se apresenta como uma instância na qual historiadores
podem aprender com geógrafos. Basta lembrar o uso importante que os historiadores precisam
fazer da Cartografia – seja como método para traduzir visualmente a espacialidade apreendida
em relatos escritos ou na coleta de informações diversificadas presentes nos vários tipos de
fontes, seja na utilização de mapas antigos como fontes históricas produzidas pelas sociedades
examinadas como formas muito singulares de examinar o espaço e de dele se apropriar
territorialmente e imaginariamente.
As relações com a Antropologia, por outro lado, sempre foram tensas e produtivas. Se
em diversas ocasiões os antropólogos expressaram desconfianças ou inquietações em relação
às obsessões dos historiadores pelo tempo, eles também nos inspiraram diálogos vários
18
através de pontes teóricas e metodológicas. Com a Antropologia, aprendemos a pensar o outro
de maneira mais consistente. Com Braudel, surge a perspectiva de examinar a história
também na longa duração: repensar a longa permanência dos antropólogos como algo que
muda, mas muito lentamente, conformando uma longa duração que se incorpora aos demais
ritmos históricos. Aprendemos igualmente métodos. Com Carlo Ginzburg e outros micro-
historiadores direcionados para a história cultural, a “descrição densa” adentra o repertório de
procedimentos metodológicos, e também a possibilidade de analisar nas fronteiras e
interpenetrações de diversos discursos as “fontes dialógicas” – aqui entendidas como aquelas
que envolvem muitas vozes.
Assim como ocorre nos entrelaçamentos da História com a Antropologia, os diálogos
entre a História e a Lingüística, e as ciências da comunicação de modo geral, estão repletos de
contribuições metodológicas. Os historiadores, a partir destes diálogos, aprenderam a
sofisticar os seus modos de análise de discursos. No limite, estas possibilidades de analisar o
discurso das fontes voltaram-se para os próprios textos historiográficos, no esforço de
conhecer melhor a feitura dos próprios discursos por ele produzidos.
Novas interdisciplinaridades relacionadas ao Discurso.
A mais recente série de interdisciplinares que vem beneficiar a História, e que
possivelmente ainda aguarda os seus principais desenvolvimentos, também se refere ao
Discurso – palavra com a qual estou sintetizando os aspectos relacionados às formas e
estratégias expressivas, ou ao fato de que todo campo de saber, em última instância, precisa
apresentar os resultados de suas pesquisas e reflexões através de textos ou outras formas de
exposição. A História, particularmente, é uma disciplina intensamente ligada aos textos que
produz, ao discurso através do qual expressa os resultados de sua pesquisa. Em uma três
palavras, “a história se escreve”18
.
Reconhecer que “a História se escreve” – e que essa instância tem particularmente um
peso muito significativo na delimitação da História como campo de saber – leva-nos à
possibilidade de considerar que a História não corresponde apenas a um campo científico de
pesquisas: ela é também uma Arte. O que é cientificamente pesquisado pelos historiadores, tal
como disse acima, precisa ser apresentado em forma de texto (ou de outros recursos
expressivos) por estes mesmos historiadores. Por isso estes mesmos historiadores que
precisam seguir determinados procedimentos científicos, e que se amparam nas suas normas
19
de pesquisa, têm ainda exigências estéticas a cumprir. Além de pesquisadores hábeis, e de
formuladores de problemas historiográficos, os historiadores, enfim, precisam escrever19
.
Para iniciar a abordagem deste aspecto, partirei da percepção de um sintoma
importante. Nas últimas décadas, temos assistido a um fenômeno editorial que tem perturbado
de alguma maneira os meios historiográficos. Obras de História têm sido elaboradas por
escritores que não são historiadores de formação, e muitas delas têm alcançado sucesso
editorial impressionante em termos de vendagem de livros. Não tem sido rara, por exemplo, a
afirmação editorial da figura do jornalista que se faz historiador, e que conquista um amplo
público para suas realizações na área de história. Enquanto isso, as obras de história
elaboradas por historiadores profissionais, com todo o rigor científico, por vezes despertam
pouca ou menor atenção do grande público. No Brasil essa tendência tem se mostrado
particularmente saliente. Qual é a raiz deste problema? Como pode este desafio ser enfrentado
pelos historiadores?
Um primeiro aspecto a ser considerado é que todo texto precisa ser pensado em
relação aos leitores que dele poderão se beneficiar. Se a História, no âmbito da pesquisa, é
elaborada por especialistas, no âmbito da produção de texto ela deve se voltar para públicos
diversificados. O historiador não escreve apenas para a Academia. E, mesmo quando faz isso,
também pode buscar trazer ao seu leitor acadêmico uma leitura prazerosa, criativa, inovadora.
Há duas questões aí envolvidas. A escrita da História pode ser mais agradável, e
também pode ser mais criativa. Acredito que essas duas questões nos coloquem diretamente
no cerne de novas interdisciplinaridades, as quais se referem ao que nomeei como ‘quarta
ponte interdisciplinar’. Os modos de lidar com o discurso histórico, com a elaboração do
texto, com as exigências estéticas que se fazem ao historiador, levam-nos a pensar a
interdisciplinaridade com a Literatura, com o Cinema, ou mesmo com a Música.
O último século assistiu a experiências importantes no âmbito da criação literária,
particularmente no que se refere à escrita imaginativa. Os autores de romances, por exemplo,
têm experimentado as mais inovadoras formas de entretecerem suas narrativas. O Tempo, por
exemplo, é tratado pelos escritores de ficção de maneira criativa, permitindo idas-e-vindas,
abrindo-se para a exploração do tempo psicológico, para o entretecer de ritmos temporais
diversos. Na História, Fernando Braudel deu-nos, há muitas décadas (1949), o exemplo de um
uso mais criativo do tempo na narrativa histórica, ao articular durações diversas sujeitas a
diferentes ritmos temporais. De modo geral, contudo, é possível dizer que a escrita dos
historiadores tem apresentado soluções relativamente modestas para o tratamento do tempo
20
narrativo: de modo geral, trata-se de um tempo tratado linear e progressivamente, com um
encaminhamento facilmente previsível.
O mesmo se pode dizer com relação à exploração dos múltiplos pontos de vista e de
enunciação de uma narrativa. Enquanto os romancistas têm explorado com imensa
criatividade as potencialidades polifônicas de um texto – e poderíamos aproveitar essa
passagem para lembrar José Saramago, falecido recentemente – a narrativa limitada pelo
ponto de vista narrativo único ainda reina soberana, assim como os formatos tradicionais das
teses e dissertações frequentemente parecem desautorizar a invenção literária como um
atributo que precisaria ser cultivado pelos historiadores. Existem, é claro, inúmeras
experiências recentes, e são elas que prenunciam os diálogos interdisciplinares que começam
a ser estabelecidos entre a História e a Literatura.
Os micro-historiadores, por exemplo, têm colocado a questão da escrita final do texto
como uma questão crucial, a qual pode afetar inclusive o que pode ser passado ao leitor acerca
da pesquisa realizada pelo historiador. A escolha de um ou outro caminho narrativo, ou a
opção por certa forma dada ao texto, também tem as suas implicações, inclusive para a
própria dimensão da pesquisa histórica – um aspecto que não tem escapado aos historiadores
recentes. A Micro-História, para seguirmos com este exemplo, tem se esmerado em avivar as
implicações da forma literária em relação às instâncias da pesquisa historiográfica. Esforços
como os dos micro-historiadores, e também de historiadores ligados a outras correntes
historiográficas, têm chamado a atenção para o fato de que Pesquisa e Escrita não são
instâncias que se desenvolvem necessariamente em separado20
.
De todo modo, hoje como ontem, a massa de historiadores profissionais produziu
grandes escritores, no sentido de produção do artefato literário da história. Os séculos XIX e
XX foram pródigos em grandes historiadores com exímia capacidade literária, e, hoje em dia,
ainda é assim. No nível mais mediano constituído pela grande massa dos historiadores,
contudo, penso que ainda se discute pouco a questão da escrita, do fazer literário implicado
pela História. Quero sustentar a convicção de que os historiadores em formação precisam
aprender técnicas literárias. O historiador precisa também se formar como Escritor. Isso me
parece imprescindível. Pergunto se tem sido dado espaço importante, no currículo das
graduações em História, à elaboração do texto. Se os historiadores profissionais não puderem
se transformar em exímios escritores, estarão sempre ameaçados de perderem seu lugar, junto
ao público leitor, para profissionais de outras áreas que têm publicado trabalhos de História.
Em uma palavra, é preciso que o historiador habitue-se a enxergar a sua prática não apenas
como uma Ciência, mas também como uma Arte.
21
A História é Polifônica: interdisciplinaridades com a Música e com a Literatura
Quero iniciar essa sessão chamando atenção para uma característica essencial do
discurso histórico e do texto historiográfico. Temos aqui um tipo de texto que é entretecido a
partir de diversas vozes. Ainda que o historiador possa disfarçar a multiplicação de vozes que
invade o seu texto – a partir da multiplicidade de pontos de vista que lhe chegam através de
suas fontes, a partir dos diversos agentes históricos que se confrontam no interior de sua
narrativa – a verdade é que os historiadores precisam enfrentar essa riqueza de vozes cuja
harmonização apresenta-se como uma das tarefas da historiografia. Em uma palavra: “a
História é Polifônica”. Este aforismo que tem um certo ar bakhtiniano traz importantes
implicações para a Escrita da História e para a operação historiográfica como um todo21
.
Perceber a possibilidade de uma escrita polifônica da história é trabalhar com a ideia de sua
emissão simultânea por diversas vozes, mesmo que antagônicas, e também pensar a
possibilidade de uma história que é narrada em ritmos diversos de tempo.
Afirma-se aqui não apenas a já mencionada interdisciplinaridade com a Literatura,
como também os possíveis diálogos interdisciplinares com a Música. Vamos lembrar aqui que
a “polifonia” – isto é, a presença de diversas vozes em uma mesma ação expressiva – é um
conceito originário da Música, o qual, a seu tempo, foi devidamente incorporado pela
Literatura. A Polifonia corresponde àquele tipo de textura musical no qual diversas linhas
melódicas caminham juntas, contrapontando-se ou confrontando-se, e no qual, a partir deste
entremeado simultâneo de sons, produz-se um discurso musical mais complexo. Exemplos de
polifonia podem ser encontrados tanto na chamada música erudita – como as composições de
Bach, por exemplo – como na música popular, como nas realizações instrumentais do
Chorinho.
Sobre a possibilidade de pensar a simultaneidade de vozes na produção da História,
há pelo menos duas maneiras de reconhecer que “a História é Polifônica”22
. Podemos, de um
lado, reconhecer que cada voz social tem o direito de contar a sua história, isto é, de expor em
linguagem historiográfica o seu ponto de vista. Haveria uma História a ser narrada por cada
grupo social, por cada minoria, por cada gênero. No conjunto de trabalhos produzidos,
chegaríamos a uma razoável “Polifonia de Histórias”. Mas existe ainda outra possibilidade:
seria possível, a um mesmo historiador, ao escrever um mesmo trabalho, ter sucesso em expor
a história sob diversos pontos de vista? Pergunta-se, portanto, se, ao admitirmos e reconhecer
a polifonia de vozes que precisam produzir textos historiográficos, podemos entrever
alternativas para além da mera soma de fragmentos que apenas realiza a possibilidade
22
polifônica ao nível do conjunto da Comunidade de Historiadores23
. Vale perguntar: pode a
polifonia ser trazida, através de recursos da escrita, para o interior de uma mesma obra
historiográfica, produzida por um só historiador, por exemplo?
Enfrentar os limites tradicionais da narrativa tem sido um dos desafios dos
historiadores nos dias de hoje. Os historiadores da historiografia e os teóricos da história, nos
últimos tempos, tem se ocupado, com especial atenção, deste problema que se refere
especificamente à Escrita da História. Habitualmente, o modelo de narração que tem sido
abraçado pelos historiadores é o do ponto de vista unidirecional. Estejamos diante de uma
“história narrativa” no sentido tradicional, ou de uma história que lide com análises de dados
e quantificações, o que se vê no modelo praticado mais habitualmente pelos historiadores é
aquele em que a voz do historiador – única e unidirecional – ergue-se acima de todos os
personagens da trama impondo-lhe um único direcionamento. Já se argumentou que este era o
grande modelo narrativo do romance do século XIX.
Curiosamente, se o âmbito da Pesquisa Histórica multidiversificou-se a partir do
século XX, acompanhando a intensa disponibilização de diálogos interdisciplinares e também
as novas disponibilidades tecnológicas, o âmbito da Narrativa Histórica não parece ainda ter
conquistado o seu salto quântico. Embora a Literatura Moderna tenha sido pródiga em
experimentos textuais durante todo o século XX, inclusive incorporando o modelo da
simultaneidade de vozes inspirada na Música, salta a vista o quão pouco experimental tem
sido a Narrativa Histórica neste mesmo período. Seria permitido a um historiador moderno
escrever como José Saramago ou Guimarães Rosa? O quanto poderiam os historiadores ainda
aprender com a escrita polifônica de Dostoiévski, tão bem analisada por Mikhail Bakhtin?
Poderíamos ainda nos perguntar: a Academia abre possibilidades para que os historiadores
mobilizem recursos poéticos na escrita de seus textos? Como lidar com o Tempo, para além
das possibilidades unidirecionais que habitualmente são escolhidas e administradas pelos
historiadores profissionais? Como lidar criativamente com a parte de “artefato literário” que é
inerente à história, coadunando-a à dimensão de cientificidade que lhe é trazida pela
Pesquisa?24
.
Lidando com o Tempo: interdisciplinaridades com o Cinema e com a Literatura
Um campo de experimentação para o tratamento do tempo, além da própria Literatura,
tem sido oferecido no último século pelo Cinema. Desde seus primórdios, o Cinema enfrentou
23
criativamente as possibilidades de introduzir o tempo nas suas narrativas fílmicas. Com o
Cinema, dois tempos podem ser enunciados simultaneamente, através da montagem. Além
disso, a narrativa fílmica introduz habitualmente, no seu fluxo, várias idas e vindas no tempo,
quebrando a linearidade que fiz um ponto inicial e daí avança para o futuro em um mesmo
ritmo. A narrativa fílmica comporta, além das idas e vindas, variações de ritmo: acelerações e
retardos do tempo. Há ainda o confronto entre o tempo real e outras instâncias temporais: o
tempo psicológico, o tempo do sonho, o tempo da memória. O recurso em confrontar distintas
densidades de tempo através do contraste entre cenas a cor e cenas em preto e branco é apenas
um dos muitos exemplos de invenções narrativas introduzidas pelos cineastas.
No texto histórico, ao contrário, podemos dizer que reside na própria linearidade dos
modos narrativos habituais alguns dos entraves que mais costumam se contrapor às
possibilidades de atrás mencionada ‘escrita polifônica da História’25
. Pode-se perceber, de
todo modo, que a partir dos anos 1980 começam a aparecer algumas ousadias criadoras
relacionadas a novas formas de tratar o tempo. Escrever polifonicamente é também superpor e
imbricar temporalidades, invertê-las, entrecruzá-las, trabalhar com distintos ritmos de tempo.
Nas últimas décadas, alguns historiadores têm assumido a missão de serem pioneiros na
incorporação de técnicas narrativas introduzidas pela literatura e pelo cinema moderno, e
ousaram retomar a narrativa historiográfica – acompanhando o grande movimento de
revalorização explícita da narrativa na história26
– mas cuidando particularmente de assegurar a
libertação em relação a uma determinada imagem de tempo mais linear ou mais fatalmente
progressiva na apresentação de suas histórias (ou seja, na elaboração final dos seus textos).
Uma tentativa, citada por Peter Burke em artigo que examina precisamente os novos
modelos de elaboração de narrativas27
, é a de Norman Davies em Heart of Europe. Nesta obra, o
autor focaliza uma História da Polônia encadeada da frente para trás em capítulos que começam
no período posterior à Segunda Guerra Mundial e recuam até chegar ao período situado entre
1795 e 1918 (DAVIES, 1984)28
. Trata-se, enfim, não apenas de uma história investigada às
avessas, como também de uma história representada às avessas. Outras tentativas são recolhidas
por Peter Burke neste excelente apanhado de novas experiências de elaborar uma narrativa ou
descrição historiográfica. As experiências vão desde as histórias que se movimentam para frente
e para trás e que oscilam entre os tempos público e privado29
, até as experiências de captação do
fluxo mental dos agentes históricos ou da expressão de uma “multivocalidade” que estabelece
um diálogo entre os vários pontos de vista30
, sejam os oriundos dos vários agentes históricos, dos
vários grupos sociais, ou mesmo de culturas distintas.
24
Todas estas experiências narrativas pressupõem formas criativas de visualizar o tempo,
ancoradas em percepções várias como as de que o tempo psicológico difere do tempo
cronológico convencional, de que o tempo é uma experiência subjetiva (que varia de agente a
agente), de que o tempo do próprio narrador externo diferencia-se dos tempos implícitos nos
conteúdos narrativos31
, e de que mesmo o aspecto progressivo do tempo é apenas uma imagem a
que estamos acorrentados enquanto passageiros da concretude cotidiana, mas que pode ser
rompida pelo historiador no ato de construção e representação de suas histórias. Esta ousadia de
inovar na representação do tempo, de transcender a linearidade habitual a partir da qual o
vemos, pode ser também aprendida por aquele que adentra o mundo da formação histórica, e
o papel da interdisciplinaridade com a Literatura mostra-se indispensável para completar a
aquisição de mais esta competência necessária ao historiador profissional, o que nos leva mais
uma vez às relações entre escrita da História e Ensino de História em nível de graduação.
A apreensão polifônica do mundo histórico: novas interdisciplinaridades com a Música
Para além da possibilidade de percorrer o tempo de novas maneiras, é igualmente
importante a experimentação voltada para a apreensão polifônica do mundo histórico. Não
basta ao historiador reconhecer no mundo histórico os seus diversos personagens, portadores
de posições ideológicas independentes, se, ao final da construção narrativa do historiador,
estes personagens terminam por expressar, no seu conjunto de interações contraditórias,
apenas uma única ideologia dominante. Na verdade, tal como ressalta Mikhail Bakhtin, todo
texto é “dialógico”, no sentido de que se organiza no interior de uma rede de
intertextualidades e de que “resulta do embate de muitas vozes sociais”32
. Contudo, tal como
observa Diana Luz Pessoa de Barros (1994, p.6), ainda que irredutivelmente dialógicos, os
textos podem produzir “efeitos de polifonia”, “se algumas dessas vozes se deixam escutar”; e
podem, ao contrário, seguir produzindo um efeito de monofonia, “quando o diálogo é
mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir”. Os historiadores, ainda que acostumados a
administrar nos seus textos as diversas vozes sociais, nem sempre se empenham em
transcender a escrita monódica. Para que possa se realizar, a escrita polifônica, por um lado,
precisa ser desejada (já que nem todos estão dispostos a abrir mão de um pensamento único).
Por outro lado, o escrever polifônico também precisa ser aprendido. Podemos nos perguntar,
neste momento, se a formação básica do historiador tem lhe proporcionado este aprendizado.
25
Esta questão, particularmente importante, leva-nos a um novo eixo de discussões.
Como fornecer ao historiador em formação, através do Ensino de Graduação em História, as
competências que o habilitarão a também ser um experimentador de novos modos de narrar a
história, ou de expor os problemas historiográficos? Não será importante para o historiador
em formação o estudo da Literatura, não apenas como fonte histórica, mas também como
campo de recursos para serem incorporados ao metier historiográfico de construção textual?
O hábito de ler obras de Literatura imaginativa, neste sentido, não poderia ser um elemento
importante para a formação do historiador? O currículo de Graduação em História não deveria
contemplar – e agora como crédito obrigatório – pelo menos uma disciplina que trabalhasse
com invenção literária, com os recursos diversificados da narrativa e da arte da descrição que
têm sido mobilizados na Literatura?
Os aprendizados relacionados a novas formas de escrever a narrativa histórica, e
mesmo as ousadias mais surpreendentes, podem ser desenvolvidos pelo historiador em
formação não apenas a partir do exemplo dos literatos ligados à ficção, mas também dos
próprios historiadores que trabalharam com a experimentação narrativa. É o caso, apenas para
citar um exemplo, de Richard Price, autor de um interessante livro sobre os Saramakas do
Suriname (1990) – uma obra apodada de pós-modernista por Hobsbawm em uma resenha
intitulada “Pós-Modernismo na Floresta” (1990)33
. O interessante na obra Alibi’s World, de
Richard Price (1990), é a originalíssima experimentação em torno de um novo padrão de
análise das fontes, e de exposição dos resultados, que aqui poderemos entender como uma
experiência de “Polifonia”.
Conforme disse antes, a escrita polifônica, tal como a entendeu Bakhtin em seus
estudos sobre o romance moderno, pressupõe que o narrador se coloque em posição dialógica
em relação aos sujeitos narrativos que a sua escrita busca administrar. O autor dialógico seria
aquele que, em alguma medida, não refreia a autonomia dos seus personagens, deixando que
seus discursos se manifestem sem que se tornem meros anexos de seu próprio discurso de
narrador-onisciente, e sem que todos estes discursos apenas confirmem, monodicamente, a
direção única que o autor pretende trazer para a sua narrativa. Um texto dialógico – e, mais do
que dialógico, “polifônico” – deve ser habitado por uma “multiplicidade de vozes e de
consciências independentes” (BAKHTIN, 1981, p.2). Que experiências têm feito os
historiadores para avançar em um modo polifônico de escrever a história?
Voltando ao livro de Richard Price sobre os Saramakas do Suriname (1990), busca-
se aqui examinar as sociedades quilombolas do Suriname nos séculos XVIII e XIX. Para
compreender a história dos saramakas – que é como no Suriname eram chamados os
26
quilombolas que construíram sociedades às margens do sistema escravista – Richard Price
procura apreender estas sociedades através da vida e contexto de um chefe quilombola
chamado Alabi (1740-1820). Mas o que importa é o método proposto. Price procura construir
a sua polifonia de vozes trazendo, para além da sua própria voz de autor, as vozes dos vários
atores sociais que são entrevistos nas fontes. Cada uma destas vozes é identificada no texto
escrito por Richard Price com uma fonte tipográfica distinta, sendo este o singular recurso
visual disponibilizado para o leitor, de modo a que este não se perca naquilo a que Eric
Hobsbawm parece entrever como uma espécie de “floresta de vozes” construída por este
audacioso ensaio que foi objeto de considerações da parte de Hobsbawm na resenha intitulada
“Pós Modernismo na Floresta” (1990). A experiência polifônica de Richard Price, embora
criticada na sua realização final por Hobsbawm, é certamente material de extremo interesse
para se pensar as futuras possibilidades da História no que se refere a novos modos de lidar
com as fontes e a novos modos de expor o texto. Para além da própria referência a esta
contribuição à experimentação na escrita historiográfica, agregamos aqui uma questão: onde
encontramos lugar, nos currículos de graduação de História, para o aprendizado da
experimentação literária na História?
Experimentações literárias na História
É verdade, por outro lado, que a experimentação narrativa ou textual pode ser
aprendida também a partir da leitura da obra dos grandes historiadores. Por motivos diversos,
a Micro-História tem oferecido à comunidade acadêmica exemplos importantes de
experimentação textual na historiografia. Entre outras coisas, a preocupação dos micro-
historiadores em evitar generalizações simplificadoras os leva muito habitualmente a investir
em novos modos de estruturação do texto, que nem sempre coincidem com os que têm sido
empregados pela historiografia tradicional. Com relação a isto, não é raro que os micro-
historiadores experimentem efetivamente novos modos de exposição textual.
A Micro-História tende a trabalhar com a ideia de que expor o texto de uma
determinada maneira é favorecer certa maneira de ver, e por isto alguns dos principais
expoentes deste novo modo de abordar a História costumam dar tanta importância aos
aspectos mais propriamente literários de suas narrativas ou sínteses históricas. Se suas fontes
são inquéritos judiciais, ver-se-ão tentados a experimentar o modelo do inquérito na própria
elaboração de seu trabalho final: deixarão que o leitor vivencie simultaneamente a experiência
27
de inquisidor e inquirido, de investigador criminal e réu suspeito, por que isto favorecerá a
percepção do dialogismo contido nas suas fontes, do entrechoque das muitas versões
contrapostas e da possibilidade de tirar partido precisamente destas contradições. Se sua
investigação examina as vozes dos vários atores sociais que intervém em determinada
configuração histórica a ser examinada, talvez se sintam à vontade para explorar a
possibilidade de escrever um texto mais propriamente polifônico, no qual, como já se disse, o
ponto de vista vai se deslocando ao invés de ser apresentado como um ponto de vista
unificado por um narrador exterior que seria o historiador. Se estão trabalhando com certo
regime de Imaginário, não hesitarão em explorar as próprias imagens que aparecem neste
regime como núcleos motivadores para seus capítulos. Natalie Davis, autora da polêmica obra
O retorno de Martim Guerre (1983) 34
, não se sentiu constrangida em dar um tom novelesco à
sua narrativa sobre um pequeno mas curioso acontecimento que abalara uma pequena aldeia
italiana do século XVI. Em Indagações sobre Piero, Carlo Ginzburg adota propositalmente a
forma do inquérito policial (Ginzburg, 1989). As experiências estão abertas.
Assim, pode-se dizer que existe uma tendência em alguns micro-historiadores a
incorporar ao seu modo de enunciar – ou de registrar, em texto, o conhecimento histórico
produzido – as idiossincrasias ou mesmo as limitações da documentação com a qual trabalha,
e também os procedimentos da pesquisa propriamente dita, e até mesmo as suas hesitações e
tateamentos (que a macro-história tradicional costuma afastar da vista do leitor, como se
empurrasse uma poeira incômoda, que não pôde ser varrida, para debaixo do tapete). Dito de
outra forma, o micro-historiador costuma trazer a nu tanto as contradições e imprecisões de
suas fontes, como as limitações de sua prática interpretativa, não se preocupando em ocultar
as técnicas de persuasão que está utilizando e até mesmo declarando os pontos em que se está
valendo de raciocínios conjecturais. Ele deixa claro, poderíamos dizer, o que há de
construtivo nas suas construções interpretativas. Enquanto isto, o modo de narrar da macro-
história tradicional tende a apresentar as suas interpretações sob a forma de uma verdade que
é enunciada objetivamente e de fora, ou pelo menos esta tem sido uma crítica muito presente
entre os micro-historiadores ao modelo tradicional. Estas experiências ao nível de construção
final do texto micro-historiográfico não constituem uma regra, repetimos, mas apenas uma
tendência – e por isso mesmo talvez fosse o caso de introduzir nos currículos de graduação
disciplinas que favorecessem a experimentação literária na escrita historiográfica. De igual
maneira, as já mencionadas possibilidades de desenvolver uma escrita polifônica, e de
produzir uma história dialógica, também precisam ser trazidas para a formação histórica em
nível de Graduação.
28
Interdisciplinaridades com os campos midiáticos.
A ideia de que a História é também uma Arte, e de que o historiador precisa
preocupar-se com os modos de apresentação do seu trabalho, leva-nos a um último conjunto
de reflexões, para além do espírito experimentador que poderá contribuir para renovar a
escrita propriamente dita. Perguntar-nos-emos agora se estará a História inevitavelmente
atrelada ao modelo de apresentação em forma escrita, ou se poderão os historiadores se
utilizar de outros modos de apresentar o seu trabalho. Como poderá o historiador se valer do
Cinema, da Fotografia, dos meios Midiáticos?
Quando atentamos para o rápido desenvolvimento da tecnologia e dos modos de
expressão, começamos a pensar se não seria interessante refletir sobre as potencialidades da
História relativamente aos tipos de suporte que estariam à disposição dos historiadores no
futuro. Uma vez que o historiador já se tem familiarizado com fontes ligadas a outros suportes
que não o textual, não será possível ele mesmo, na produção de seu próprio texto, incorporar
esta linguagem que a ele se torna familiar através da Pesquisa e da própria elaboração de seu
produto historiográfico? Será o formato livro o único destino de um bom trabalho
historiográfico? Não será possível trazer novos suportes para a História, para além do
“escrito”, como a Visualidade – incluindo a Fotografia e o Cinema – a Materialidade,
convocando uma maior parceria entre historiadores, museólogos, arquitetos, ou como a
Virtualidade, chamando mais intensamente à História os recursos da Informática?
Assistiremos nas próximas décadas à possibilidade de teses de História apresentadas em
formato de Vídeo ou DVD, ao invés do tradicional formato-livro? Ao lado disso, como os
currículos de graduação poderão contribuir para que os historiadores em formação tenham
possibilidade de desenvolver estas novas competências que lhes serão exigidas pela sua
profissão?
Com base nestas expectativas, imagino a possibilidade de surgimento ou
fortalecimento de novas modalidades historiográficas que seriam definidas por novos tipos de
suporte e novas possibilidades expressivas. Três propostas para o novo milênio, para além da
História Escrita, seriam a História Visual, a História Material e a História Virtual.
Quando me refiro a uma História Visual, não estou pensando em uma História da
Visualidade – que trabalhe com fontes históricas ligadas à visualidade, ou mesmo com fontes
de outros tipos mas que permitam apreender a instância visual de uma sociedade. Estes
campos de possibilidades, tal como já mencionamos na primeira parte desta conferência, já
começou a ser bem percorrido pelos historiadores nas últimas décadas do século passado, na
29
mesma em medida em que ocorreu uma expansão das suas fontes e objetos de estudo. Deste
modo, uma História da Visualidade definida nestes termos não seria mais uma novidade,
ainda que muitos caminhos ainda precisem ser percorridos pelos historiadores para ultrapassar
um estágio ainda rudimentar seja de utilização de fontes históricas visuais, seja de apreensão
da instância visual de uma sociedade em todas as suas implicações35
. Tampouco referimo-nos
aqui ao uso, já bem mais freqüente, que os historiadores têm feito da imagem como fonte
histórica, isto é, esta apropriação pela historiografia das fontes imagéticas – sejam elas
pinturas, fotografias, ou quaisquer outras – como meios para apreender questões diversas da
história social36
. Neste momento, estou me referindo mesmo a uma ‘História Visual’, ou
Áudio-Visual, que incorpore a visualidade e possivelmente inclua a sonorização e a Música
como suportes mesmo, como meio principal para a transmissão dos resultados de uma
pesquisa histórica e como recursos para a produção do próprio discurso do historiador37
. O
visual, que já vem freqüentando a palheta dos historiadores como objeto e como fonte
histórica, poderia passar a ser incorporado também como meio de expressão, como recurso
através do qual se produz o próprio discurso historiográfico. Certamente que, para tal fim,
seriam necessários os já mencionados enriquecimentos no currículo das graduações de
História, e desta forma o historiador poderia pensar em adquirir conhecimentos mais sólidos
de fotografia, programação visual, cinema, ou mesmo música, para o caso mais específico da
incorporação da sonoridade38
.
Um aprendizado importante pode ser extraído do Cinema, do qual o historiador tem
até então se valido como objeto e como fonte histórica. Completar a relação Cinema-História
no sentido de que o historiador também se aproprie do Cinema como um “meio” pode vir a se
constituir em mais um passo na expansão de possibilidades historiográficas. É evidente, por
um lado, que os cineastas já se apropriaram com grande eficiência da História, e já contam
nas suas equipes técnicas com historiadores quando estão empenhados em produzir filmes
históricos, ou mesmo filmes de ficção que se projetem de alguma maneira no passado. Mas
não estaria aberta, neste novo milênio, a possibilidade para que não apenas os Cineastas se
apropriem da História, como também os Historiadores se apropriem do Cinema? Não
poderiam os Historiadores tomar a si o caráter diretivo de grandes trabalhos historiográficos
que tragam como suporte o Cinema, e, nesta perspectiva, não seria o caso de trazer o Cineasta
para a equipe técnica do historiador, e não o contrário?
O mesmo pode ser pensado com relação a outros recursos de visualidade, como a
Fotografia. Imagino, por exemplo, neste mundo no qual o meio ambiente sofre aceleradas
transformações, a interconexão possível entre História Visual e História Ambiental. Não
30
deveria o Historiador – trabalhando também em um registro para a produção da Memória –
comandar a produção sistemática de fotografias do meio ambiente, já escrevendo através da
visualidade a sua própria leitura histórica do meio ambiente nas suas mudanças através do
tempo, mas também disponibilizando fontes visuais importantes para gerações futuras de
historiadores?
Os recursos digitais e virtuais, por fim, que apenas mais recentemente começaram a
ser utilizados de maneira mais intensa e sistemática pelos historiadores, poderão também
contribuir para a renovação dos meios de expressão à disposição dos historiadores. De fato,
um desdobramento lógico da familiarização com as fontes virtuais e com os recursos
computacionais é o aprendizado prático que futuramente poderá levar o historiador a se
utilizar da virtualidade como meio para a produção de seu próprio discurso. Assim,
percebemos que ainda não cessou a expansão da história em termos de multiplicação de seus
campos históricos. Um último Campo Histórico que se abre como possibilidade
historiográfica para o futuro, relativamente aos processos de escritura da História, seria
precisamente o da História Virtual, ou o que também poderia ser chamado de História Digital.
Para o que nos interessa neste ensaio, entendo aqui que também haveria um conjunto
muito rico de alternativas para o desenvolvimento e fortalecimento de uma modalidade de
História Digital que poderia ser definida pelo seu recurso mais direto à informática e aos
meios virtuais, não apenas como ferramenta auxiliar, mas também como ambiente e meio para
a própria escritura da História39
. Estava imaginando, para dar um exemplo, uma possibilidade
que poderia ser tomada a cargo por historiadores. Trata-se de um Projeto que poderia se
encaixar dentro de uma espécie de História Virtual Multi-Autoral.
Conhecemos, nos dias de hoje, a chamada Wikipédia – que basicamente é um
conjunto de textos construídos a muitas mãos (ou muitas teclas), sem autoria e submetidos a
permanentes alterações que podem ser implementadas por qualquer participante da rede
mundial de computadores. No que tange ao conhecimento histórico, a Wikipédia apresenta
textos bem confiáveis, mas também um número ainda maior de textos que não tem utilidade
historiográfica porque nem sempre foram produzidos por historiadores profissionais ou
confiáveis, e tampouco dentro dos critérios aceitos pela historiografia profissional. A ideia é
que poderia ser construída uma Enciclopédia Historiográfica Virtual a que só tivessem acesso,
como autores, os historiadores que comprovassem sua formação ou conhecimento
historiográfico. Inseridos no sistema, uma multidão de historiadores poderia trabalhar a
elaboração espontânea de grandes textos virtuais, multi-autorais, sobre os diversos temas
pertinentes à historiografia dos vários períodos. Todos os textos desta Enciclopédia Virtual
31
Multi-Autoral – à qual teriam acesso todos os freqüentadores da Internet – seriam certamente
confiáveis face a suas condições de produção estritamente historiográficas, e poderiam ser
checados regularmente por equipes específicas de historiadores para verificar a precisão de
suas informações e a validade de suas análises.
Com essa ideia, estaríamos diante das possibilidades de criação de um Projeto que
abriria caminho no interior de uma nova modalidade historiográfica, que estaria relacionada
com a História Virtual, e que através da sua realização estaria questionando a obrigatoriedade
da fixidez textual e da autoria única como aspectos necessários da Escritura da História. Neste
caso, a própria multivocalidade de uma escrita polifônica, à qual nos referíamos atrás, poderia
ser trazida, através dos recursos visuais, para a questão da autoria historiográfica, e teríamos
de fato um texto construído a muitas mãos e incluidor de inúmeras vozes, concretizando a
possibilidade de uma verdadeira “polifonia historiográfica”. De fato, este empreendimento
estaria permitindo algo novo no que se refere a duas características que foram apresentadas
pela História até hoje, pelo menos o tipo de História que se escreveu na história da civilização
ocidental. A História, até os dias de hoje, parece ter mantido incólumes dois traços muito
fortes de identidade: a “autoria declarada e única” (um autor singular e específico que escreve
o texto) e a “fixidez textual” – ou seja, o fato de que aquilo que foi escrito fica imobilizado
para ser lido sempre da mesma maneira. Mas será necessário que sempre e em todos os
momentos seja assim?
Para além disto, outro recurso interessante proporcionado pela virtualidade, e que
pode vir a ser aproveitado para uma escrita histórica futura, é a possibilidade de criar links –
entradas para um labirinto que pode ser percorrido pelo leitor, ele mesmo tornando-se, desta
maneira, uma espécie de co-autor que produz a sua própria leitura criativa da obra
historiográfica que lhe foi apresentada como caminho. Há ainda possibilidades outras, como o
aproveitamento da estrutura de “chat” para a criação de textos dialógicos, que depois
poderiam ser transformados em livros (livros tradicionais ou livros digitais). Os progressos
em termos de simulação holográfica ou de projeção do usuário no interior de um ambiente
virtual, à maneira das possibilidades que foram bem ilustradas pelo filme Matrix e tantos
outros, pode também proporcionar um campo inesgotável de criação para os futuros
historiadores. O ambiente interativo proporcionado pelo computador, enfim, certamente ainda
reserva muitas surpresas para a Escrita da História, sem contar as possibilidades que já vão
sendo bem exploradas de utilização da informática e do computador como instrumentos
auxiliares importantes para a feitura da História.
32
Essas são apenas ideias – exercícios iniciais de uma imaginação historiográfica
projetada para o futuro. A intenção foi a de imaginar, diante da permanente reconfiguração
dos campos históricos nos tempos recentes e das novas interdisciplinaridades que têm se
afirmado, que também os currículos de graduação que são oferecidos aos historiadores em
formação precisam atentar para aspectos que se referem a uma reformulação de sua própria
linguagem. Que novas modalidades historiográficas ainda estão por ser geradas e
desenvolvidas pelos historiadores de agora e do futuro? Quais novas interdisciplinaridades se
fortalecerão no diálogo da História com outros campos de saber? Como o Ensino de
Graduação em História acompanhará esta expansão e essa multiplicação de diálogos
interdisciplinares que ainda não cessou de ocorrer, e que vem a encontrar no âmbito da
própria produção textual e midiática as últimas fronteiras a serem exploradas criativamente?
NOTAS
1
É o mesmo espírito que encontramos em outros prefixos gregos, como “tra”, “trás”, “ter”, e que podemos
encontrar em palavras como “traduzir”, “traspassar”, “tresloucado”.
2
Em Latim, transitus é o particípio passado de transire, que corresponde a “ir através, cruzar”.
3
Palavra derivada, a partir do latim, do verbo intervenire, e que significa “vir por dentro”, abarcando sentidos
como o de “interferir”, “intrometer-se”, “imiscuir-se”.
4
“Interpretar” significa “dar a conhecer por dentro”. A palavra é formada pela junção do prefixo inter com o
radical prat (“dar a conhecer”).
5
Para evocar divisões, partilhas e diálogos que se estabelecem no interior de uma mesma disciplina, utilizaremos
a palavra “intradisciplinaridade”, que corresponde à formação de modalidades internas a um mesmo campo de
saber. Assim, a Mecânica, Ótica, Astrofísica, Termodinâmica, ao lado de vários outros âmbitos de estudo,
correspondem ao espaço intradisciplinar da Física. Na História, podemos falar em História Econômica, História
Política, História Cultural, Micro-História, e assim por diante.
6
Uma sistematização mais aprofundada das questões aqui propostas pode ser encontrada em BARROS, José
D’Assunção. Teoria da História, volume 1 – Princípios e Conceitos Fundamentais. Petrópolis: Editora Vozes,
2011.
7
Pierre Bourdieu (1930-2002) acrescenta em sua “teoria dos campos” que “qualquer que seja o campo, ele é
objeto de luta tanto em sua representação quanto em sua realidade” (BOURDIEU, 2003: 29).
8
A ‘singularidade’, em que se considere sua ligação direta com o ‘campo de interesses’, deve ser referida aqui
aos parâmetros que definem irredutivelmente a Disciplina (no caso da História, a consideração do tempo, o uso
de fontes), e não aos ‘objetos de estudo’ privilegiados pelos seus praticantes, que já constituem mais
propriamente o ‘campo de interesses’ da Disciplina. Uma coisa, é claro, está ligada à outra; mas são itens
distintos. É possível abordar um determinado ‘campo de interesses’ a partir de certa ‘singularidade’ que é já
específica da Disciplina. Os grupos sociais (um mesmo objeto) podem ser examinados de modos distintos pela
História, pela Antropologia ou pela Sociologia.
33
9
Entre outros assuntos, os jargões das ‘comunidades linguísticas’ geradas por alguns campos são examinados
em uma coletânea organizada por Peter Burke e Roy Porter: Línguas e Jargões (BURKE e PORTER, 2007), na
qual se busca examinar nos seus diversos contextos sociais os dialetos e jargões criados e difundidos por
diversos grupos sociais e profissionais, entre os quais os médicos, advogados e professores, mas também as
sociedades secretas como a dos maçons, bem como grupos sociais marginalizados, tais como os dos ciganos e
dos mendigos.
10
Thomas Kuhn, em A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), traz o exemplo do atomismo químico
desenvolvido por Dalton, referindo-se aos “efeitos revolucionários resultantes da aplicação da química a um
conjunto de questões e conceitos anteriormente restritos à física e à meteorologia”. Prossegue Kuhn: “Foi isto
que Dalton fez; o resultado foi uma reorientação no modo de conceber a química, reorientação que ensinou aos
químicos como colocar novas questões e retirar conclusões novas de dados antigos” (2007, p.179).
11
Referência fundamental para a questão mais ampla dos interditos que afetam uma disciplina é A Ordem do
Discurso, de Michel Foucault (1970). Por outro lado, também Thomas Kuhn, em A Estrutura das Revoluções
Científicas (2007: 138), faz algumas observações importantes sobre as redefinições de ditos e interditos que se
podem dar quando um novo paradigma substitui um paradigma que até então fora dominante. Também iremos
encontrar em Usos Sociais da Ciência, de Pierre Bourdieu (1997), observações interessantes a respeito da
dinâmica que dita e interdita o que é possível, em cada momento, no âmbito de determinado campo disciplinar:
“Um campo não se orienta totalmente ao acaso. Nem tudo nele é igualmente possível e impossível a cada
momento” (BOURDIEU, 2003, p.27). Sobre os interditos da História, ver CERTEAU, 1982, p.76-77.
12
Sobre as permissões e interditos da Operação Historiográfica, dirá Michel De Certeau: “Antes de saber o que
a história diz de uma sociedade, é necessário saber como funciona dentro dela. Esta instituição se inscreve num
complexo que lhe permite apenas um tipo de produção e proíbe outros. Tal é a dupla função do lugar. Ele torna
possíveis certas pesquisas em função de conjunturas e problemáticas comuns. Mas torna outras impossíveis;
exclui do discurso aquilo que é sua condição num momento dado; representa o papel de uma censura com
relação aos postulados presentes (sociais, econômicos, políticos) na análise. Sem dúvida, esta combinação entre
permissão e interdição é o ponto cego da pesquisa histórica e a razão pela qual ela não é compatível com
qualquer coisa. É igualmente sobre esta combinação que age o trabalho destinado a modificá-la” (CERTEAU,
1982, p.76-77).
13
Ou pode se dar mesmo que este médico venha a constituir um novo campo disciplinar – produzindo portanto
uma sensível modificação no universo mais amplo dos campos disciplinares. Pode-se dar o exemplo do doutor
Freud, que por volta de 1890 terminou por fundar, através de uma nova abordagem clínica, a Psicanálise.
Também temos o caso do doutor Wilhelm Wundt (1832-1920), que em 1879 criou o primeiro laboratório
psicológico, contribuindo desta maneira para separar da Filosofia a Psicologia.
14
Sobre as “comunidades científicas”, ver HAGSTROM, 1965. Sobre a competição no interior das comunidades
científicas, ver HAGSTROM, 1974. A noção de uma “comunidade científica” também já foi tratada sobre o
prisma de um “Colégio Invisível”, e sobre isto podem ser consultadas as obras de PRICE e BEAVER (1966) e
de CRANE (1966). A expressão “colégio invisível”, que no século XVII tinha conotações que dialogavam com a
ideia de “sociedades secretas” de intelectuais e cientistas, é nos dias de hoje empregada para expressar a livre
transferência de informações, pensamentos e background técnico pela “comunidade científica” (isto à parte da
estrutura física e institucional dentro da qual esta mesma comunidade também se distribui).
15
Michel de Certeau acrescenta neste mesmo texto sobre A Operação Historiográfica: “Cada resultado
individual se inscreve numa rede cujos elementos dependem estritamente uns dos outros, e cuja combinação
dinâmica forma a história num momento dado” (CERTEAU, 1982, p.72).
16
A História começa precisamente a se constituir em campo científico no momento em que começam a ser
produzidos mais recorrentemente os seus “olhares sobre si mesma”, as histórias da historiografia, os ensaios de
reflexão teórica, os manuais de metodologia.
17
Sobre a interessante temática dos jargões e das comunidades lingüísticas específicas, ver a coletânea
organizada por Peter Burke e Roy Porter (1997). Na qual se busca examinar nos seus diversos contextos sociais
os dialetos e jargões criados e difundidos por diversos grupos sociais e profissionais, entre os quais os médicos,
advogados e professores, mas também as sociedades secretas como a dos maçons, bem como grupos sociais
marginalizados, tais como os dos ciganos e dos mendigos.
18
Este é, aliás, o título de um dos capítulos do conjunto de ensaios publicados por Antoine Prost com o título
Doze Lições sobre a História (São Paulo: Autêntica, 2008).
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09.teoriae metodologiadahistria antigasenovasinterdisciplinaridades.braslia2013

  • 1. See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/321151485 Teoria e Metodologia da História: antigas e novas interdisciplinaridades Conference Paper · November 2013 CITATIONS 0 READS 291 2 authors, including: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: História da Historiografia: os Annales View project Historiografia e Imaginação Histórica: a Escrita da História e suas possibilidades de renovação a partir de novas interdisciplinaridades (Música, Cinema, Literatura, Novas Mídias) View project José D Assunção Barros Federal Rural University of Rio de Janeiro 239 PUBLICATIONS   107 CITATIONS    SEE PROFILE All content following this page was uploaded by José D Assunção Barros on 18 November 2017. The user has requested enhancement of the downloaded file.
  • 2. Teoria e Metodologia da História: antigas e novas interdisciplinaridades 1 José D’Assunção Barros2 A tendência à Interdisciplinaridade tem sido possivelmente a característica mais importante e saliente da História na sua gradual consolidação como saber científico, desde que os historiadores passaram a encaminhar conscientemente a proposta de integrar a sua prática ao circuito de saberes acadêmicos, a partir do século XIX. De alguma maneira, podemos dizer que a História constitui o mais interdisciplinar dos saberes. Tal se dá por um duplo movimento. Em uma primeira mão, porque, de modo incontornável, todas as disciplinas são históricas, isto é, constituíram-se e constituem-se a partir de uma história, de um processo que pode e deve ser compreendido pelos seus praticantes. Em uma segunda mão, porque a História sempre extraiu muito da sua linguagem, dos seus métodos e abordagens, dos seus temas de estudo, de cada uma das outras disciplinas que com ela estabelecem algum tipo de interação. O nosso objetivo, nesta palestra, será refletir sobre esta relação da História com a Interdisciplinaridade, entendendo esta última como uma das instâncias fundamentais que a constituem. Os conceitos fundamentais para compreender as relações entre disciplinas. Antes de iniciarmos nossa reflexão sobre a Interdisciplinaridade, será importante lembrar alguns outros conceitos que também se sintonizam com as propostas interdisciplinares. Para melhor clarificar as diferenças que podem ser pensadas entre três palavras que guardam alguma sintonia – interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, multidisciplinaridade (ou a sua coirmã, a pluridisciplinaridade) – devemos atentar para os prefixos que, em cada caso, entram na sua composição. Podemos aproximar, sem maiores problemas e sem perdas significativas, as noções de pluridisciplinaridade e 1 Palestra realizada na Universidade Nacional de Brasília (UNB), em 18 de novembro de 2013, para o I Simpósio de Metodologia da História e para o IX Encontro Regional Centro-Oeste da Associação Brasileira de História Oral: a polissemia das cidades. 2 Professor-Associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, nos cursos de Graduação e Pós- Graduação em História. Professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense.
  • 3. 2 multidisciplinaridade. Elas incorporam radicais latinos que se referem a “muito” (multi) ou “vários” (pluri). A multidisciplinaridade, a entender por aqui, corresponde ao reconhecimento de uma diversidade de disciplinas, ao empenho em oferecer boas condições para a sua convivência ou cooperação. Por outro lado, a ideia de disciplinaridade está ligada ao reconhecimento de fronteiras, à percepção das múltiplas realidades que coexistem em um campo maior e ajudam a constituí-lo de maneira mais plena. Já o prefixo “trans” é primordialmente de origem grega, embora depois tenha passado ao latim, e deve ser associado a ideias como “através de”, “ultrapassagem de posições”, “mudança”1 . Podemos encontrar o movimento que pode ser associado ao prefixo “trans” em palavras como “transbordar” (ultrapassar as bordas, ou ir além das bordas). Na palavra “trânsito” podemos surpreender com bastante clareza essa mesma ideia de “movimento”2 . Já na palavra “transformar” podemos apreender a ideia de mudança, uma vez que aqui se tem em vista a ideia de mudança de forma ou de aspecto. A alternativa entre o “multi” ou o “trans”, em vista da rápida discussão etimológica acima registrada, permite pensarmos nas expressões que agregam estes prefixos em dois caminhos distintos, que podem ou não ser complementares. O prefixo “multi” (ou o “pluri”), implica no reconhecimento de fronteiras. O “trans”, entrementes, implica em um projeto de “transbordamento de fronteiras”, ou na ideia de que é preciso ir além do simples “reconhecimento de fronteiras” (ou do mero respeito pelas realidades diversas que coexistem em um mesmo espaço), de modo a examinar também como as diversas realidades se interpenetram, transformam-se mutuamente através de uma coexistência interativa, deixam-se afetar uma pela outra. MULTI TRANS INTER Mediação; Reciprocidade Muitos; Vários Através de; Transbordamento Três Prefixos para pensar a relação entre Disciplinas ou Campos de Saber
  • 4. 3 Com relação ao prefixo latino “inter”, por fim, este se relaciona ou à ideia de uma posição intermediária (mediadora), ou à perspectiva de “reciprocidade”. No primeiro caso, o prefixo tem o mesmo uso de “entre” (uma coisa que se coloca entre duas outras). Vamos encontrá-lo em palavras como “intervir”3 , que se referem a uma mediação, ou mesmo em palavras como “interpretar”, nas quais se tem o uso do prefixo com o sentido de “dentro”4 . No segundo caso – o qual evoca a ideia de “reciprocidade” – aparecem palavras como “internacional” (o espaço que se estabelece entre as nações nas suas relações recíprocas, ou o universo maior que as abrange como um todo). Com a palavra “interdisciplinaridade”, o que se tem é exatamente esta ideia de reciprocidade. O espaço interdisciplinar é aquele que se forma a partir das diversas disciplinas ou campos de saber que precisam se confrontar e dialogar (a interdisciplinaridade não se dá “por dentro” de uma disciplina, mas sim entre duas disciplinas ou mais)5 . Este sentido mais geral de interdisciplinaridade, entrementes, deixa algo no ar. Afinal, se a interdisciplinaridade é o espaço de confronto e diálogo que se produz entre as diversas disciplinas, como se dá mais especificamente esse diálogo (ou esse confronto)? Trata-se de um monólogo de mão única ou de um diálogo de via dupla? Ou essa relação entre disciplinas se constitui, de modo bem diverso, em uma espécie de entrelaçamento? Quanto às disciplinas que são levadas a estabelecer uma relação recíproca, estas apenas se demarcam umas diante das outras, cada qual vigiando o seu território, ou interagem de alguma maneira? Transformam-se ou se deformam, de algum modo, neste processo? De onde parte, por fim, a relação interdisciplinar – de uma disciplina para as outras, ou de todas elas em conjunto, a partir de práticas e aportes que confluem para um mesmo ponto? Questões como essas, que não são resolvidas ao nível etimológico, têm dado margem a muitas discussões conceituais. Com base na etimologia que acabamos de discutir, entenderemos a esfera da Multidisciplinaridade através do princípio mais elementar que define essa expressão: o reconhecimento das diversas fronteiras e especificidades apresentadas pelos vários campos de saber. Falamos aqui de “fronteiras”, e não de “limites”. Os limites são geralmente impositivos. As fronteiras constituem o espaço natural ou político do diálogo. O fato de haver mútuo reconhecimento de fronteiras entre os elementos pertencentes a realidades distintas (nacionais, culturais, científicas ou quaisquer outras) não quer dizer que não haja diálogo ou mobilidade entre elas. Quem habita em zonas de fronteira entre dois países está muito familiarizado com esta idéia. O fato de que dois indivíduos pertençam a realidades políticas diferenciadas, que estes se inscrevam em distintas nacionalidades ou mesmo que falem línguas distintas, por mais afastadas que estas sejam entre si, não impede
  • 5. 4 que um diálogo se estabeleça. Eles podem se freqüentar mutuamente, alimentar-se da cultura e do cardápio produzido na cultura vizinha, aprender com o outro, estabelecer relações comerciais, diplomáticas, ou de quaisquer tipos. As fronteiras, literalmente, constituem espaços de diálogo. Originalmente, a aplicação da noção de fronteiras à livre formação de territórios, no sentido político, estava mais associada à ideia de “começo” do Estado (ou de começo da nação) do que de “fim” do Estado ou do território político demarcado, o que já remete ao conceito de “limite”. Desta maneira, há uma distinção muito singular entre as duas perspectivas. As fronteiras assinalam zonas de expansão, linhas de diálogo, faixas de sociabilidade e intercâmbio, pontos de transbordamento, dimensões de mobilidade. Os limites indicam “fins”, áreas que não devem ser ultrapassadas, processos de territorialização que já se encerraram, espacialidades que se inscrevem em um projeto de serem conservadas sem alteração. Dois países livres, que conservem boas relações – ou mesmo quando estão em guerra – têm o seu território habitualmente entrecortado por fronteiras, no sentido pleno da palavra. Na guerra, ou como decorrência da guerra, as fronteiras podem se mover. De todo modo, as fronteiras começam a deixar de ser fronteiras e a se transformar em limites quando surgem normas muito claras de interdição coibindo o diálogo. As duas Alemanhas do período da guerra fria, ao menos no que concerne aos aspectos políticos e às coibições de ir e vir livremente entre os dois países, apresentavam mais do que fronteiras entre si. O Muro de Berlim constituía, de fato, um limite, e não uma fronteira. A Multidisciplinaridade, ao reconhecer fronteiras, não deixa de reconhecer os diálogos, a convivência entre os diversos campos de saber, a possibilidade de trabalharem em projetos em comum – o que aliás também pode ser feito entre dois países com fronteiras bem demarcadas entre si. Um Instituto Multidisciplinar, por exemplo, funda-se nessa ideia de reconhecimento da pluralidade de campos de saber e no princípio de que a sua proximidade em um mesmo espaço (físico ou institucional) é particularmente produtiva. Por outro lado, existe um certo momento ou espaço de experiências no qual o Multidisciplinar começa a ser complementado com o Transdisciplinar (pois podemos ter multidisciplinaridade com transdisciplinaridade, ou não). Isso ocorre quando, além de reconhecer as fronteiras, e de convivermos amistosa e produtivamente com elas, deixamos que os campos de saber se afetem mutuamente. Ou, o que também é outra visão da questão, podemos dizer que a transdisciplinaridade entre em cena quando percebemos como os diversos campos de saber se afetam uns aos outros, quer queiram, quer não.
  • 6. 5 A passagem ou complementação do Multidisciplinar com o Transdisciplinar ocorre quando vamos além da troca de informações entre dois campos de saber, ou quando asseguramos uma feição realmente interativa entre os diversos tipos de especialistas que integram um projeto pluridisciplinar. O projeto Transdisciplinar não envolve apenas uma divisão de tarefas, ou a confluência dos esforços e talentos diversos para o alcance de determinada meta ou produção de certo produto final. A perspectiva transdisciplinar supõe que, no decorrer desse trabalho conjunto, um campo irá ajudar a transformar o outro. A possibilidade de ser afetado por outros campos de saber também está presente na Interdisciplinaridade – ou ao menos em alguns dos sentidos que são atribuídos a esta expressão. Podemos pensar a Interdisciplinaridade, por outro lado, como um movimento que ocorre a partir de uma disciplina específica, e que dela transborda. A Interdisciplinaridade, de acordo com esse viés, seria um movimento que parte do interior de uma disciplina, muito habitualmente como uma reação ao fato de que as “fronteiras” entre ela e outros campos estão começando a ser tratadas como “limites” por uma parcela significativa dos praticantes do campo em questão. Vista desta maneira, a Interdisciplinaridade e a Transdisciplinaridade guardam certa sintonia. Propomos distingui-las entre si a partir da ênfase em que se estabelece a saudável prática do transbordamento ou de estabelecimento de interações com outros campos de saber. A Transdisciplinaridade surge geralmente como um projeto estabelecido simultaneamente entre diversos campos de saber (ou entre grupos diversos constituídos por cada campo de saber). A Interdisciplinaridade pode ser entendida a partir do anseio (ou mesmo da necessidade) de uma disciplina em se renovar a partir da interação com outros campos. Pode ocorrer também a convergência de dois movimentos interdisciplinares. Cada campo inicia um movimento em direção ao outro pelos seus próprios motivos, e ambos acabam se encontrando naturalmente, estabelecendo mútuas cooperações e possibilidades de se enriquecerem reciprocamente. Posso dar o exemplo de diversos movimentos entre historiadores e geógrafos surgidos nas últimas décadas. Os historiadores têm se dado conta cada vez de que a História não pode ser apenas entendida como “ciência dos homens no tempo”, pois ela é também uma “ciência dos homens no espaço (ou em um lugar)”, como a Geografia. Esta, cada vez mais se apercebe que todo espaço é construído temporalmente, historicamente. Deste modo, História e Geografia, através das percepções interdisciplinares que emergiram em cada um desses campos, têm fortalecido ainda mais a sua fraternidade epistemológica nas últimas décadas. Neste ensaio, assumiremos a opção pela compreensão do conceito de “interdisciplinaridade” como uma orientação que parte do interior de uma disciplina que deseja (precisa) renovar-se a partir de outras.
  • 8. 7 O que é uma Disciplina Comecemos por pensar em algumas questões fundamentais. O que constitui um campo de saber como disciplina? Que história, ou que histórias, levam um determinado conjunto de práticas, representações e modos de fazer – certo universo de perspectivas sobre a realidade e de procedimentos para apreendê-la e trabalhar sobre ela, enfim – a se delimitar e a se definir gradualmente, até que esse conjunto adquira finalmente uma identidade suficientemente forte para que, a partir dele, passem a se nomear profissionalmente os praticantes da nova disciplina? Que elementos mínimos, enfim, são necessários para que se constitua efetivamente um campo disciplinar, e para que este se mantenha frente a outros saberes?6 Estas questões, e outras mais, podem e devem ser colocadas para cada um dos campos de saber que merecem nos dias de hoje um assento universitário, e mesmo para outros que ainda não adentraram o espaço acadêmico, mas cuja identidade acha-se suficientemente fortalecida para ofertar aos seus praticantes o nome de uma disciplina e o sentimento de pertença a um sistema de objetos e práticas em comum. Física, Biologia, Astronomia, Economia, História, Geografia, Antropologia, Musicologia ... poderíamos estender, quase à exaustão, o número de exemplos a serem dados para campos disciplinares. Nosso objetivo nesta palestra será refletir mais sistematicamente sobre as categorias essenciais que devem ser empregadas para todos e cada um dos diversos campos disciplinares. Trata-se, neste momento, de definir os aspectos essenciais que contribuem para definir um campo disciplinar, qualquer que seja ele. O que desenvolveremos neste capítulo, portanto, é aplicável à reflexão de qualquer disciplina ou campo de saber, e não apenas à História, mais especificamente. Por outro lado, também é oportuno considerar que sempre emerge alguma “história” quando começamos a nos indagar sobre o que significa falar de um certo conjunto de práticas, concepções e objetos de estudo como um campo específico de conhecimento, ou como uma “disciplina” (no sentido científico). Todo ‘campo disciplinar’, seja qual ele for, é em última instância histórico, no sentido de que vai surgindo ou começa a ser percebido como um novo campo disciplinar em algum momento, e que depois disso não cessa de se atualizar, de se transformar, de se redefinir, de ser percebido de novas maneiras, de se afirmar com novas intensidades, de se reinserir no âmbito dos diversos campos de produção de conhecimento ou de práticas específicas. Um campo disciplinar é histórico mesmo no que se refere às suas regras, que podem ser redefinidas a partir de seus embates internos, em alguns casos. “O campo é um jogo no qual as regras do jogo estão elas próprias postas em jogo” (BOURDIEU, 2003, p.29)7 .
  • 9. 8 Vejamos agora que instâncias são partilhadas por todos e por cada um dos diversos campos de saber (disciplinas). Estaremos em busca, nesta síntese, daquilo que todo campo disciplinar necessariamente precisa desenvolver para se constituir. O ‘Quadro 1’ orientará a nossa reflexão relativamente a esses diversos aspectos que envolvem ou estão envolvidos na constituição, afirmação e transformações de um ‘campo disciplinar’ de saberes e práticas. Começaremos por aquilo que é de certo modo um evidente lugar comum: toda disciplina é constituída, antes de tudo, por certo ‘campo de interesses temáticos’ (1), o que inclui desde um interesse mais amplo que define este campo como um todo, até um conjunto mais privilegiado de objetos de estudo e de temáticas a serem percorridas pelos seus praticantes (ou de desafios a serem enfrentados, para o caso dos campos disciplinares que, tal como a Medicina, envolvem uma prática, mais ainda do que uma reflexão teórica e uma pesquisa). Pode ocorrer que certas ciências ou disciplinas partilhem inclusive um determinado interesse em comum (por exemplo, o interesse das chamadas ‘ciências humanas’ pelo estudo daquilo que é humano), mas é também fato que a certo nível de profundidade surge sempre, para que se possa falar em uma disciplina com identidade própria, algum tipo de singularidade, o que nos levará ao próximo item. Assim, a História, que tem em comum com a Antropologia, Sociologia ou Psicologia o estudo do Homem – e que, portanto, partilha com estas ciências alguns de seus objetos de estudo – a certa altura deverá ser definida como a ciência que coloca no centro de seu campo de interesses “o estudo do homem no tempo”. Os objetos da história – isto é, o seu “campo de interesses” – em que pese que pareçam coincidir em um primeiro momento com os objetos possíveis das demais ciências sociais e humanas, serão sempre objetos “historicizados”, “temporalizados”, marcados por uma atenção à mudança em alguns de seus níveis. Pode se dar também que o centro de interesses de uma disciplina esteja situado em uma confluência, em uma conexão de saberes, e este é certamente o caso da Astrofísica, da Medicina Penal, da Filosofia da Ciência, ou de qualquer outra disciplina que, por vezes em seu próprio nome, não deixa dúvidas com relação ao caráter híbrido de sua esfera mais direta de interesses. A esta questão voltaremos oportunamente, e desde já cumpre observar que o conjunto de interesses temáticos de uma Disciplina, particularmente no que se refere aos seus desdobramentos e possibilidades de objetos de estudos, também está sujeito a transformações no decorrer de sua própria história. Seguindo além, uma conseqüência imediata do que se disse aponta para o fato de que cada Disciplina possui a sua Singularidade (9), aqui entendida como o conjunto dos seus parâmetros definidores, ou como aquilo que a torna realmente única, específica, e que
  • 10. 9 justifica a sua existência – em poucas palavras: aquilo que define a Disciplina em questão por oposição ou contraste em relação a outros campos disciplinares8 . Em um pólo oposto, será preciso entender o fenômeno inverso: embora cada campo de saber apresente certamente uma singularidade que o faz único e lhe dá identidade, não existe na verdade um só campo disciplinar que não seja construído e constantemente reconstruído por diálogos (e oposições) interdisciplinares. Queiram ou não os seus praticantes, toda disciplina está mergulhada na Interdisciplinaridade (0), questão que examinaremos em maior profundidade no decorrer desta palestra. Ademais, é preciso ainda ter em vista que, para se constituir no seio de uma rede já existente de saberes, todo novo campo de saber deve enfrentar duras lutas com campos já estabelecidos, nas quais frequentemente se verá inserido em uma verdadeira disputa territorial, ou pelo menos em uma partilha interdisciplinar, além de enfrentar o desafio de mostrar a capacidade e potencialidade para se posicionar com eficácia diante de antigos e novos problemas que as disciplinas mais tradicionais também já vêm enfrentando com seus próprios métodos e aportes teóricos. Desta maneira, pode-se dizer que o processo de surgimento de um novo campo disciplinar adquire, por vezes, muito mais a aparência de uma verdadeira luta que se dá no interior da arena científica do que a aparência de um parto. E esta luta, bem como os laços de solidariedade que também se estabelecem entre os novos e antigos campos de saber, dão-se todos no seio de uma intensa e necessária interdisciplinaridade, diante da qual o que é novo tem de se apresentar diante do conhecimento já estabelecido e por vezes institucionalmente já consolidado. Para considerar mais um aspecto que se converte em dimensão integrante de qualquer campo disciplinar, é preciso ressaltar que a história do conhecimento científico e da modernidade tem sido tal que, ao desenvolver ou ultrapassar certo nível de complexidade, cada campo de saber começa a gerar especializações e desdobramentos internos – campos intradisciplinares (5), por assim dizer. Se um campo disciplinar não apresenta ainda suas especializações – como a Física que se subdivide em Mecânica, Ótica, Termodinâmica, Física Nuclear, e assim por diante – qualquer disciplina cedo começa a se partilhar ao menos em possíveis ‘campos de aplicação’, ou qualquer outro tipo de organização interna que corresponda mais ou menos a uma espécie de divisão do trabalho intelectual e prático. No caso da História, é bastante evidente a vertiginosa multiplicação de ‘campos históricos’ a partir do século XX, dando origem a inúmeras modalidades como a História Econômica, a História Cultural, a Micro-História e tantas outras, ao lado de outras que já existiam nos séculos anteriores como a ‘História Política’, a ‘História Militar’ ou a ‘História
  • 11. 10 da Igreja’. Essa tendência ao desdobramento interno e à crescente especialização – que se apresenta como uma característica de praticamente todos os ‘campos disciplinares’ no período contemporâneo – tem sido um aspecto inerente à história do conhecimento na civilização ocidental, sobretudo a partir da modernidade, o que não impede que os efeitos mais criticáveis do hiperespecialismo sejam constantemente compensados pelos movimentos interdisciplinares e transdisciplinares, voltados para uma ‘religação dos saberes’ em um mundo no qual os campos de produção de conhecimento vivem a constante ameaça do isolamento. Para além do que até aqui foi discutido, três aspectos fundamentais a serem considerados quando se fala na constituição de um ‘campo disciplinar’ relacionam-se ao fato de que nenhuma disciplina adquire sentido sem que desenvolvam ou ponham em movimento certas teorias, metodologias e práticas discursivas (2 a 4). Mesmo que tome emprestados conceitos e aportes teóricos originários de outros campos de saber, que incorpore métodos e práticas já desenvolvidas por outras disciplinas, ou que se utilize de vocabulário já existente para dar forma ao seu discurso, não existe disciplina que não combine de alguma maneira Teoria, Método e Discurso. Bem entendido, um campo disciplinar não se desenvolve no sentido de possuir apenas uma única orientação teórica ou metodológica, mas sim de apresentar um certo repertório teórico-metodológico que é preciso considerar, e que se torna conhecido pelos seus praticantes, gerando adesões e críticas várias. Da mesma maneira, o desenvolvimento de um campo disciplinar acaba gerando uma linguagem comum através da qual poderão se comunicar os seus expoentes, teóricos, praticantes e leitores. Há mesmo campos disciplinares que acabam gerando certo repertório de jargões, facilmente reconhecível como dialeto específico de determinado campo de saber, mesmo externamente. Qualquer campo disciplinar, enfim, à medida que vai se constituindo, vai também se inscrevendo em certa modalidade de Discurso, por vezes com dialetos internos. É por isso que não é possível a ninguém se transformar em legítimo praticante de determinado campo disciplinar, se o iniciante no novo campo de estudos não se avizinha de todo um vocabulário que já existe previamente naquela Disciplina, e através do qual os seus pares se intercomunicam9 . Quanto à questão da Interdisciplinaridade (0), por se tratar do próprio objeto desta palestra, esta não os requer maiores comentários neste momento, embora tenhamos aqui a sétima instância importante que concorre para o delineamento de qualquer campo de estudos. Por ora, chamamos atenção para o fato de que, ao se colocarem em contato interdisciplinar ou transdisciplinar, dois campos de saber podem enriquecer sensivelmente um ao outro nos seus
  • 12. 11 próprios modos de ver as coisas e a si mesmos. A teoria, a metodologia e as práticas discursivas que constituem qualquer campo de saber são diretamente afetadas pelos diálogos interdisciplinares que o campo estabelece com outros. Conforme já mencionamos, particularmente a História, no decorrer do século XX e além, foi beneficiada por uma longa história de contribuições inspiradas em outros âmbitos de saber. A Geografia, Antropologia, Psicologia, Lingüística, entre outras ciências humanas, estiveram fornecendo frequentemente conceitos e metodologias aos historiadores, e certos desenvolvimentos em âmbitos intradisciplinares da História como a História Cultural ou a História das Mentalidades não teriam sido possíveis, certamente, sem os respectivos diálogos interdisciplinares com a Antropologia e com a Psicologia. Também no âmbito das ciências naturais não foi raro que o contato interdisciplinar contribuísse para modificar a própria maneira de ver as coisas neste ou naquele campo científico. Diálogos entre a Física e a Astronomia, ou entre a Química e a Física, nos oferecem alguns exemplos muito concretos de renovação10 . Por fim, não é possível pensar uma Disciplina sem admitir o seu lado de fora – uma zona de interditos (6), ou aquilo que se coloca como proibido aos seus praticantes. O exterior um de campo de saber é tão importante para uma disciplina como aquilo que ela inclui, como as teorias e métodos que ela franqueia aos seus praticantes, como o discurso que ela torna possível, como as escolhas interdisciplinares estimuladas ou permitidas11 . Ademais, o que se interdita em uma disciplina, como tudo mais, também é histórico, sujeito a transformações, e as temáticas e ações possíveis que um dia estiveram dentro de certo campo disciplinar podem ser processualmente deslocadas para fora, como também algo do que estava fora pode vir para dentro, para um espaço de inclusão legitimado pela rede de praticantes da disciplina12 . Tecnicamente poderíamos interromper aí a enumeração dos principais aspectos a serem considerados para compreender a constituição de um campo disciplinar qualquer, se não faltasse o essencial, na verdade aquilo que perpassa todos os demais aspectos. Existe de fato uma densa e complexa Rede Humana (7), constituída por todos aqueles que já praticaram ou praticam a disciplina considerada e pelas suas realizações – obras, vivências, práticas realizadas – e também isto é certamente tão inseparável da constituição de um campo disciplinar, que poderíamos propor a hipótese de que a entrada de cada novo elemento humano em certo campo disciplinar já o modifica em alguma medida, da mesma maneira que cada obra produzida sobre um campo de saber ou no interior deste mesmo campo de saber já o modifica em menor ou maior grau, às vezes indelevelmente, às vezes tão enfaticamente a ponto de se tornar visível o surgimento de novas direções no interior deste campo disciplinar.
  • 13. 12 Perguntar-nos-emos, deste modo, até que ponto o surgimento de um novo historiador ou de uma nova obra historiográfica, por mais banal que ela seja, não modifica de alguma maneira a própria História enquanto campo disciplinar, ou até que ponto o Médico que introduz uma nova abordagem ou uma nova prática em seu ofício já não termina por modificar o próprio campo disciplinar da Medicina13 . Essas transformações, nem sempre fáceis de visualizar – a não ser no âmbito das inovações mais notáveis ou das grandes obras – constituem no seu conjunto uma grande obra coletiva, na qual os próprios praticantes de uma disciplina contribuem cada qual à sua maneira para modificar o próprio campo disciplinar no qual se inserem. Ao se falar em uma ‘rede humana’ para cada campo disciplinar, também temos de ter em vista, é claro, que estas redes encontram-se frequentemente interferidas por uma ‘rede institucional’ (universidades, institutos de pesquisa, circuitos editoriais de revistas científicas), e também por uma constelação de grupos de pesquisa e outras formas de parcerias e associações dentro da qual esta vasta rede humana também se acomoda de uma maneira ou de outra.A rede humana do campo disciplinar, desta forma, assume aqui a forma de uma “comunidade científica”. Boa parte dos seus participantes ocupa lugares concretos na imensa rede institucional e na constelação de grupos e parcerias científicas, e também lugares simbólicos conforme a repercussão e recepção de suas obras e proposições. Uma ideia pode ser recebida de maneira diferenciada conforme se fale deste lugar institucional ou daquele lugar simbólico. Nem todos podem dizer tudo todo o tempo, conforme Michel Foucault já fez notar com especial nitidez em seu ensaio A Ordem do Discurso (1996, p.10), o que nos remete mais uma vez à questão dos ditos e interditos permitidos e hierarquizados por um campo disciplinar. Uma “comunidade científica” – um conceito que será particularmente importante quando abordarmos a questão dos “paradigmas” – é articulada, enfim, a um sistema de poderes institucionais e prestígios acadêmicos que redefine o lugar de cada um e de todos14 . A “rede humana” que constitui uma das dimensões integrantes do campo disciplinar é também, ela mesma, uma rede de textos e de realizações, em dinâmica interconexão. Isto ocorre nos diversos campos de saber. Na Física e na Química, a rede de realizações produzida pela “rede humana” é povoada não apenas dos textos científicos, mas de experiências, de fórmulas, da construção de novos instrumentos de medição e tecnologias. Michel de Certeau (1982: 72), que examinou os desdobramentos deste campo disciplinar que é a História em seu já clássico texto A Operação Historiográfica (1974), procura mostrar como cada realização
  • 14. 13 empreendida por cada historiador co-participante da rede termina por enunciar “uma operação que se situa em um conjunto de práticas”. Dito de outra forma, está desde já inarredavelmente inscrito nesta complexa rede – formada pelos historiadores e por suas realizações historiográficas – cada texto histórico, “quer dizer, uma nova interpretação, o exercício de métodos novos, a elaboração de outras pertinências, um deslocamento de definição e do uso do documento, um modo de organização característico, etc” (CERTEAU, 1982: 72). Não há contribuição, por singela que seja, que não repercuta de alguma maneira na rede historiográfica, ainda que indelevelmente. Podemos não nos dar conta de cada contribuição atomizada, mas certamente a influência de cada um e de todos em um campo de saber pode ser entrevista nas lentas ou súbitas mudanças de temáticas, de preferências teóricas, de escolhas metodológicas. Um campo de saber, enfim, não se faz apenas das suas obras magistrais, mas também das contribuições que se estabelecem na média, das tendências que se afirmam ou se revertem em vista das ações da massa de pesquisadores que constituem o campo disciplinar e dos leitores que completam o processo de circulação do saber15 . Reconhecer a ‘Rede Humana’ específica que constitui cada campo disciplinar produzido pelo homem também leva à compreensão de um derradeiro aspecto, quase um desdobramento da crescente consciência que a rede humana vai desenvolvendo sobre si mesma e sobre o campo que constitui, à medida que avança na sua história. A certa altura de seu amadurecimento como campo disciplinar, começam a ser produzidos, cada vez mais freqüentemente no seio do próprio campo de saber em constituição, os “olhares sobre si”. Começam a surgir, elaboradas pelos próprios praticantes da Disciplina, as ‘histórias do campo’, aqui entendidas no sentido de narrativas e análises elaboradas pelos praticantes do campo disciplinar acerca da própria rede de homens e saberes em que estão inseridos. Compreender-se historicamente é o resultado mais visível deste “olhar sobre si” (8)16 . Temos então dez dimensões importantes nesta caminhada para tentar compreender uma Disciplina, qualquer que ela seja: o seu Campo de Interesses (1), os seus aportes teóricos (2), o seu padrão discursivo (3), as suas metodologias (4), os seus campos Intradisciplinares (5), os seus Interditos (6), bem como a extensa ‘rede humana’ (7) que, através de suas realizações, empresta uma forma e dá concretização ao campo disciplinar, sem contar o ‘olhar sobre si’ (8) que esta mesma rede estabelece a certa altura de seu próprio amadurecimento, e, enfim, a própria Singularidade da disciplina em questão (9). A isso tudo se agregam os diálogos e confrontos estabelecidos através da Interdisciplinaridade (0). Se a interdisciplinaridade não se situa propriamente no interior de cada disciplina, mas sim “entre”
  • 15. 14 as várias disciplinas, não há como negar que se trata de uma instância que, de alguma maneira, ajuda a redefinir cada campo de conhecimento considerado. Para encerrar esta sessão mais uma vez com a questão da história – isto é, com a questão de que cada campo disciplinar tem a sua própria História e que, de preferência, esta história (ou esta leitura de sua história) deve ser escrita pelos seus próprios praticantes de modo a renovar constantemente os seus ‘olhares sobre si mesmos’ – torna-se importante compreender adicionalmente que cada uma das dez dimensões atrás citadas, além de interligada às demais, está mergulhada ela mesma, por inteiro, na própria história. Os padrões interdisciplinares se alteram, os desdobramentos intradisciplinares se multiplicam ou se restringem, as teorias se redefinem, as metodologias se recriam, o padrão discursivo se renova, os interditos são rediscutidos, e mesmo algo da Singularidade que permite definir uma ‘matriz disciplinar’ no interior da rede de saberes pode sofrer variações mais ou menos significativas à medida que surgem novos paradigmas e contribuições teórico-metodológicas. Para além de tudo isto, cada campo de saber está constantemente produzindo novos ‘olhares sobre si mesmo’ de acordo com as transformações que se dão dentro e fora do campo – do contexto histórico-social às transformações teóricas e tecnológicas. Tudo é histórico, enfim, e essa máxima é também válida para todo o conjunto de elementos daquilo que vem a constituir um determinado campo disciplinar. Pontes interdisciplinares Uma vez compreendido o que é uma Disciplina, podemos começar a nos acercar mais profundamente do conceito de Interdisciplinaridade. Vimos na última sessão que, entre as diversas instâncias que constituem uma disciplina, a Interdisciplinaridade é uma dimensão incontornável. Já desde o momento em que surge ou se faz visível, qualquer campo de saber não pode senão se situar em uma rede de disciplinas com as quais irá se confrontar, contrastar e interagir. Ao mesmo tempo, vimos também que toda disciplina envolve certas instâncias que são comuns a todos os campos de saber: Teoria, Metodologia, as especificidades de um discurso, uma rede de praticantes do campo de saber em questão, as singularidades que a definem, certo campo de interesses que podem se confrontar ou se interpenetrar com o de outras disciplinas, e assim por diante. Ao mesmo tempo, uma Disciplina – à medida que se torna mais complexa – cedo começa a conformar espaços internos ao seu próprio campo de práticas e de estudos. Surgem então as diversas sub-especialidades ou âmbitos internos, ou o que podemos também chamar de “campos intradisciplinares”.
  • 16. 15 A interdisciplinaridade entre um campo de saber e os demais que o cercam, e que com ele se interpenetram, pode se dar através de cada uma dessas instâncias. Vamos chamar a estas instâncias, a estas brechas a partir das quais os diálogos podem surgir, de “pontes interdisciplinares”. Uma Disciplina pode dialogar com a outra através de seus aportes teóricos; pode partilhar ou incorporar procedimentos metodológicos que são encontrados em uma disciplina irmã; pode assimilar conceitos e fórmulas expressivas que também constituem o discurso da outra. Diversos campos de saber, além disso, encontram caminhos interdisciplinares através das suas temáticas de estudo – ou seja, através de certas coincidências entre seus campos de interesses. As redes de profissionais que se referem a cada campo de saber, por outro lado, podem se interpenetrar, e cooperações diversas podem ser estabelecidas. Os pesquisadores de um campo e outro podem trabalhar juntos, inspirar-se mutuamente, e há ainda os casos de dupla formação – aqueles que se referem a estudiosos que se formaram em mais de um campo de saber e que, portanto, não podem ser enquadrados no interior de um único campo disciplinar. Cada um destes âmbitos – a Teoria, a Metodologia, o Discurso, o Tema, o campo de interesses, a comunidade de estudiosos, as subdivisões intradisciplinares, pode se apresentar aos pesquisadores ligados a certo campo de saber como importantes oportunidades interdisciplinares. No caso da História, a relação com a interdisciplinaridade é visceral. Marc Bloch certa vez utilizou uma metáfora que é muito citada nos livros de introdução ao conhecimento histórico: “A História é como o ogro da lenda, tem fome de carne humana”. Gostaria de acrescentar um complemento. A História tem sede de interdisciplinaridade. A sede interdisciplinar da História é tão incontornável, que sempre que houve ameaças de suas “fronteiras” serem convertidas em “limites”, nunca tardaram a surgir expressivos movimentos interdisciplinaridade. Há muitos fatores que convergem para essa tendência da História derrubar todos os muros que estes e aqueles praticantes sejam tentados a construir. Um destes fatores é a própria linguagem da qual precisam se utilizar os historiadores. A linguagem da História é múltipla e híbrida. Sua própria natureza multifacetada lhe veda o direito de construir um castelo para abrigar um jargão secreto e único, a ser conhecido somente pelos seus iniciados, tal como ocorre com o “economês” ou com o linguajar jurídico. Jamais ouviremos falar do “historiês”, da mesma forma como ouvimos falar (coloquialmente) do “economês”, ou então de um determinado jargão médico que se conserva bem guardado no interior de um castelo disciplinar17 . Do ponto de vista discursivo, a História é como Macunaíma, o “herói sem-caráter” inventado por Mário de Andrade (1928). Seu repertório lingüístico, aberto à assimilação de todos os saberes, torna-se por isso mesmo o mais
  • 17. 16 complexo, ainda que também o linguajar simples da vida comum esteja incluído na sua palheta de recursos discursivos. A linguagem da História, de fato, traz singularidades adicionais, não encontráveis em nenhum outro saber. Para já tocar em uma das questões que nos interessam – a da Escrita da História – devemos lembrar que os historiadores desenvolvem o seu discurso a partir de uma linguagem que combina a fala comum e o artifício literário, a isso acrescentando o uso de conceitos mais bem elaborados, não raras vezes importados de outros campos de saber. Dito de outra forma, o discurso historiográfico deve entremear com habilidade três registros de comunicação: o da linguagem comum, o da elaboração artística, e o da sistematização científica. Além disto, a História lida não apenas com a fala de sua própria época, mas também com as falas das diversas outras épocas, estas com as quais os historiadores devem trabalhar em função de suas fontes e objetos de estudo. Daí resulta que o discurso final dos historiadores deverá ser, a um só tempo, cientificamente interdisciplinar, artisticamente literário e experimentalmente multivocal. Mais adiante, voltaremos aos desdobramentos da ideia de que a História, além de ser um saber científico, produz como objeto final um texto literário, e mesmo artístico. Este aspecto, o qual obriga a que os historiadores percorram freqüentemente a ponte interdisciplinar que se relaciona ao Discurso, situa a História em franco diálogo com diversas formas de expressão, entre as quais a Literatura e o Cinema. Por outro lado, o fato de a História também introduz no seu discurso uma linguagem científica, obriga os historiadores a percorrerem, na direção dos outros campos de saber, a ponte interdisciplinar que se relaciona à Teoria. Isto porque os historiadores valem-se de uma linguagem conceitual, sem que necessariamente precisem inventar cada conceito do qual irão se utilizar. Com muita freqüência, os historiadores já encontram elaborados nas demais ciências diversos dos conceitos dos quais precisam se utilizar. Pode se dar o caso de que o historiador precise criar um conceito específico para nomear ou esboçar a compreensão de alguma realidade histórica muito específica, mas não são nada raras as inúmeras oportunidades que se apresentam aos historiadores para lançarem mão de conceitos que são muito comuns no vocabulário antropológico, geográfico, sociológico, político, jurídico, psicológico, econômico, literário, e mesmo em campos de saber ligados às ciências naturais e às chamadas ciências duras. Desde a sua formação inicial, por isso mesmo, os historiadores estão muito habituados a operar interdisciplinarmente através do discurso.
  • 18. 17 As mais antigas interdisciplinares: através da teoria, dos métodos e das temáticas de estudo. As mais antigas interdisciplinares às quais se entregaram os historiadores, desde que iniciaram a sua expansão no universo de saberes científicos, foram aquelas que se relacionam às pontes interdisciplinares que podemos referir à Teoria, ao Método, e às escolhas temáticas. Quero dar o exemplo inicial da Geografia, uma disciplina à qual os historiadores dedicam talvez a mais antiga fraternidade epistemológica. Os entrelaçamentos interdisciplinares entre geógrafos e historiadores dão-se sobretudo a partir de um duplo movimento. De um lado, os historiadores – que essencialmente costumam pensar o seu campo de saber como uma “ciência dos homens no tempo” – cada vez mais adquirem uma consciência da espacialidade. A História, então, passa a ser definida como uma “ciência dos homens no tempo e no espaço”. De outro lado, por um movimento inverso mas que conflui na direção dos historiadores, os geógrafos adquirem cada vez mais a consciência de que o espaço é construído no tempo. As últimas décadas têm assistido a um revigoramento importante desse duplo movimento de historiadores e geógrafos que respectivamente têm intensificado as suas consciências da espacialidade e da temporalidade. Por isso, cada vez são mais freqüentes os congressos unindo simultaneamente historiadores e geógrafos. Conceitos como o de “território” – fundamental para compreender a apropriação política do espaço – ou como as noções de “paisagem”, “região”, têm estabelecido diálogos importantes entre historiadores e geógrafos através desta ponte interdisciplinar que é a Teoria. Os historiadores aprimoraram as suas maneiras de enxergar as sociedades históricas por eles investigadas na medida em que puderam utilizar, de modo mais sistemático, certos conceitos originariamente da Geografia. A noção de “fronteira” – ela mesma importante para compreender as próprias relações entre as várias disciplinas – também pode ser mencionada. Por outro lado, a metodologia também se apresenta como uma instância na qual historiadores podem aprender com geógrafos. Basta lembrar o uso importante que os historiadores precisam fazer da Cartografia – seja como método para traduzir visualmente a espacialidade apreendida em relatos escritos ou na coleta de informações diversificadas presentes nos vários tipos de fontes, seja na utilização de mapas antigos como fontes históricas produzidas pelas sociedades examinadas como formas muito singulares de examinar o espaço e de dele se apropriar territorialmente e imaginariamente. As relações com a Antropologia, por outro lado, sempre foram tensas e produtivas. Se em diversas ocasiões os antropólogos expressaram desconfianças ou inquietações em relação às obsessões dos historiadores pelo tempo, eles também nos inspiraram diálogos vários
  • 19. 18 através de pontes teóricas e metodológicas. Com a Antropologia, aprendemos a pensar o outro de maneira mais consistente. Com Braudel, surge a perspectiva de examinar a história também na longa duração: repensar a longa permanência dos antropólogos como algo que muda, mas muito lentamente, conformando uma longa duração que se incorpora aos demais ritmos históricos. Aprendemos igualmente métodos. Com Carlo Ginzburg e outros micro- historiadores direcionados para a história cultural, a “descrição densa” adentra o repertório de procedimentos metodológicos, e também a possibilidade de analisar nas fronteiras e interpenetrações de diversos discursos as “fontes dialógicas” – aqui entendidas como aquelas que envolvem muitas vozes. Assim como ocorre nos entrelaçamentos da História com a Antropologia, os diálogos entre a História e a Lingüística, e as ciências da comunicação de modo geral, estão repletos de contribuições metodológicas. Os historiadores, a partir destes diálogos, aprenderam a sofisticar os seus modos de análise de discursos. No limite, estas possibilidades de analisar o discurso das fontes voltaram-se para os próprios textos historiográficos, no esforço de conhecer melhor a feitura dos próprios discursos por ele produzidos. Novas interdisciplinaridades relacionadas ao Discurso. A mais recente série de interdisciplinares que vem beneficiar a História, e que possivelmente ainda aguarda os seus principais desenvolvimentos, também se refere ao Discurso – palavra com a qual estou sintetizando os aspectos relacionados às formas e estratégias expressivas, ou ao fato de que todo campo de saber, em última instância, precisa apresentar os resultados de suas pesquisas e reflexões através de textos ou outras formas de exposição. A História, particularmente, é uma disciplina intensamente ligada aos textos que produz, ao discurso através do qual expressa os resultados de sua pesquisa. Em uma três palavras, “a história se escreve”18 . Reconhecer que “a História se escreve” – e que essa instância tem particularmente um peso muito significativo na delimitação da História como campo de saber – leva-nos à possibilidade de considerar que a História não corresponde apenas a um campo científico de pesquisas: ela é também uma Arte. O que é cientificamente pesquisado pelos historiadores, tal como disse acima, precisa ser apresentado em forma de texto (ou de outros recursos expressivos) por estes mesmos historiadores. Por isso estes mesmos historiadores que precisam seguir determinados procedimentos científicos, e que se amparam nas suas normas
  • 20. 19 de pesquisa, têm ainda exigências estéticas a cumprir. Além de pesquisadores hábeis, e de formuladores de problemas historiográficos, os historiadores, enfim, precisam escrever19 . Para iniciar a abordagem deste aspecto, partirei da percepção de um sintoma importante. Nas últimas décadas, temos assistido a um fenômeno editorial que tem perturbado de alguma maneira os meios historiográficos. Obras de História têm sido elaboradas por escritores que não são historiadores de formação, e muitas delas têm alcançado sucesso editorial impressionante em termos de vendagem de livros. Não tem sido rara, por exemplo, a afirmação editorial da figura do jornalista que se faz historiador, e que conquista um amplo público para suas realizações na área de história. Enquanto isso, as obras de história elaboradas por historiadores profissionais, com todo o rigor científico, por vezes despertam pouca ou menor atenção do grande público. No Brasil essa tendência tem se mostrado particularmente saliente. Qual é a raiz deste problema? Como pode este desafio ser enfrentado pelos historiadores? Um primeiro aspecto a ser considerado é que todo texto precisa ser pensado em relação aos leitores que dele poderão se beneficiar. Se a História, no âmbito da pesquisa, é elaborada por especialistas, no âmbito da produção de texto ela deve se voltar para públicos diversificados. O historiador não escreve apenas para a Academia. E, mesmo quando faz isso, também pode buscar trazer ao seu leitor acadêmico uma leitura prazerosa, criativa, inovadora. Há duas questões aí envolvidas. A escrita da História pode ser mais agradável, e também pode ser mais criativa. Acredito que essas duas questões nos coloquem diretamente no cerne de novas interdisciplinaridades, as quais se referem ao que nomeei como ‘quarta ponte interdisciplinar’. Os modos de lidar com o discurso histórico, com a elaboração do texto, com as exigências estéticas que se fazem ao historiador, levam-nos a pensar a interdisciplinaridade com a Literatura, com o Cinema, ou mesmo com a Música. O último século assistiu a experiências importantes no âmbito da criação literária, particularmente no que se refere à escrita imaginativa. Os autores de romances, por exemplo, têm experimentado as mais inovadoras formas de entretecerem suas narrativas. O Tempo, por exemplo, é tratado pelos escritores de ficção de maneira criativa, permitindo idas-e-vindas, abrindo-se para a exploração do tempo psicológico, para o entretecer de ritmos temporais diversos. Na História, Fernando Braudel deu-nos, há muitas décadas (1949), o exemplo de um uso mais criativo do tempo na narrativa histórica, ao articular durações diversas sujeitas a diferentes ritmos temporais. De modo geral, contudo, é possível dizer que a escrita dos historiadores tem apresentado soluções relativamente modestas para o tratamento do tempo
  • 21. 20 narrativo: de modo geral, trata-se de um tempo tratado linear e progressivamente, com um encaminhamento facilmente previsível. O mesmo se pode dizer com relação à exploração dos múltiplos pontos de vista e de enunciação de uma narrativa. Enquanto os romancistas têm explorado com imensa criatividade as potencialidades polifônicas de um texto – e poderíamos aproveitar essa passagem para lembrar José Saramago, falecido recentemente – a narrativa limitada pelo ponto de vista narrativo único ainda reina soberana, assim como os formatos tradicionais das teses e dissertações frequentemente parecem desautorizar a invenção literária como um atributo que precisaria ser cultivado pelos historiadores. Existem, é claro, inúmeras experiências recentes, e são elas que prenunciam os diálogos interdisciplinares que começam a ser estabelecidos entre a História e a Literatura. Os micro-historiadores, por exemplo, têm colocado a questão da escrita final do texto como uma questão crucial, a qual pode afetar inclusive o que pode ser passado ao leitor acerca da pesquisa realizada pelo historiador. A escolha de um ou outro caminho narrativo, ou a opção por certa forma dada ao texto, também tem as suas implicações, inclusive para a própria dimensão da pesquisa histórica – um aspecto que não tem escapado aos historiadores recentes. A Micro-História, para seguirmos com este exemplo, tem se esmerado em avivar as implicações da forma literária em relação às instâncias da pesquisa historiográfica. Esforços como os dos micro-historiadores, e também de historiadores ligados a outras correntes historiográficas, têm chamado a atenção para o fato de que Pesquisa e Escrita não são instâncias que se desenvolvem necessariamente em separado20 . De todo modo, hoje como ontem, a massa de historiadores profissionais produziu grandes escritores, no sentido de produção do artefato literário da história. Os séculos XIX e XX foram pródigos em grandes historiadores com exímia capacidade literária, e, hoje em dia, ainda é assim. No nível mais mediano constituído pela grande massa dos historiadores, contudo, penso que ainda se discute pouco a questão da escrita, do fazer literário implicado pela História. Quero sustentar a convicção de que os historiadores em formação precisam aprender técnicas literárias. O historiador precisa também se formar como Escritor. Isso me parece imprescindível. Pergunto se tem sido dado espaço importante, no currículo das graduações em História, à elaboração do texto. Se os historiadores profissionais não puderem se transformar em exímios escritores, estarão sempre ameaçados de perderem seu lugar, junto ao público leitor, para profissionais de outras áreas que têm publicado trabalhos de História. Em uma palavra, é preciso que o historiador habitue-se a enxergar a sua prática não apenas como uma Ciência, mas também como uma Arte.
  • 22. 21 A História é Polifônica: interdisciplinaridades com a Música e com a Literatura Quero iniciar essa sessão chamando atenção para uma característica essencial do discurso histórico e do texto historiográfico. Temos aqui um tipo de texto que é entretecido a partir de diversas vozes. Ainda que o historiador possa disfarçar a multiplicação de vozes que invade o seu texto – a partir da multiplicidade de pontos de vista que lhe chegam através de suas fontes, a partir dos diversos agentes históricos que se confrontam no interior de sua narrativa – a verdade é que os historiadores precisam enfrentar essa riqueza de vozes cuja harmonização apresenta-se como uma das tarefas da historiografia. Em uma palavra: “a História é Polifônica”. Este aforismo que tem um certo ar bakhtiniano traz importantes implicações para a Escrita da História e para a operação historiográfica como um todo21 . Perceber a possibilidade de uma escrita polifônica da história é trabalhar com a ideia de sua emissão simultânea por diversas vozes, mesmo que antagônicas, e também pensar a possibilidade de uma história que é narrada em ritmos diversos de tempo. Afirma-se aqui não apenas a já mencionada interdisciplinaridade com a Literatura, como também os possíveis diálogos interdisciplinares com a Música. Vamos lembrar aqui que a “polifonia” – isto é, a presença de diversas vozes em uma mesma ação expressiva – é um conceito originário da Música, o qual, a seu tempo, foi devidamente incorporado pela Literatura. A Polifonia corresponde àquele tipo de textura musical no qual diversas linhas melódicas caminham juntas, contrapontando-se ou confrontando-se, e no qual, a partir deste entremeado simultâneo de sons, produz-se um discurso musical mais complexo. Exemplos de polifonia podem ser encontrados tanto na chamada música erudita – como as composições de Bach, por exemplo – como na música popular, como nas realizações instrumentais do Chorinho. Sobre a possibilidade de pensar a simultaneidade de vozes na produção da História, há pelo menos duas maneiras de reconhecer que “a História é Polifônica”22 . Podemos, de um lado, reconhecer que cada voz social tem o direito de contar a sua história, isto é, de expor em linguagem historiográfica o seu ponto de vista. Haveria uma História a ser narrada por cada grupo social, por cada minoria, por cada gênero. No conjunto de trabalhos produzidos, chegaríamos a uma razoável “Polifonia de Histórias”. Mas existe ainda outra possibilidade: seria possível, a um mesmo historiador, ao escrever um mesmo trabalho, ter sucesso em expor a história sob diversos pontos de vista? Pergunta-se, portanto, se, ao admitirmos e reconhecer a polifonia de vozes que precisam produzir textos historiográficos, podemos entrever alternativas para além da mera soma de fragmentos que apenas realiza a possibilidade
  • 23. 22 polifônica ao nível do conjunto da Comunidade de Historiadores23 . Vale perguntar: pode a polifonia ser trazida, através de recursos da escrita, para o interior de uma mesma obra historiográfica, produzida por um só historiador, por exemplo? Enfrentar os limites tradicionais da narrativa tem sido um dos desafios dos historiadores nos dias de hoje. Os historiadores da historiografia e os teóricos da história, nos últimos tempos, tem se ocupado, com especial atenção, deste problema que se refere especificamente à Escrita da História. Habitualmente, o modelo de narração que tem sido abraçado pelos historiadores é o do ponto de vista unidirecional. Estejamos diante de uma “história narrativa” no sentido tradicional, ou de uma história que lide com análises de dados e quantificações, o que se vê no modelo praticado mais habitualmente pelos historiadores é aquele em que a voz do historiador – única e unidirecional – ergue-se acima de todos os personagens da trama impondo-lhe um único direcionamento. Já se argumentou que este era o grande modelo narrativo do romance do século XIX. Curiosamente, se o âmbito da Pesquisa Histórica multidiversificou-se a partir do século XX, acompanhando a intensa disponibilização de diálogos interdisciplinares e também as novas disponibilidades tecnológicas, o âmbito da Narrativa Histórica não parece ainda ter conquistado o seu salto quântico. Embora a Literatura Moderna tenha sido pródiga em experimentos textuais durante todo o século XX, inclusive incorporando o modelo da simultaneidade de vozes inspirada na Música, salta a vista o quão pouco experimental tem sido a Narrativa Histórica neste mesmo período. Seria permitido a um historiador moderno escrever como José Saramago ou Guimarães Rosa? O quanto poderiam os historiadores ainda aprender com a escrita polifônica de Dostoiévski, tão bem analisada por Mikhail Bakhtin? Poderíamos ainda nos perguntar: a Academia abre possibilidades para que os historiadores mobilizem recursos poéticos na escrita de seus textos? Como lidar com o Tempo, para além das possibilidades unidirecionais que habitualmente são escolhidas e administradas pelos historiadores profissionais? Como lidar criativamente com a parte de “artefato literário” que é inerente à história, coadunando-a à dimensão de cientificidade que lhe é trazida pela Pesquisa?24 . Lidando com o Tempo: interdisciplinaridades com o Cinema e com a Literatura Um campo de experimentação para o tratamento do tempo, além da própria Literatura, tem sido oferecido no último século pelo Cinema. Desde seus primórdios, o Cinema enfrentou
  • 24. 23 criativamente as possibilidades de introduzir o tempo nas suas narrativas fílmicas. Com o Cinema, dois tempos podem ser enunciados simultaneamente, através da montagem. Além disso, a narrativa fílmica introduz habitualmente, no seu fluxo, várias idas e vindas no tempo, quebrando a linearidade que fiz um ponto inicial e daí avança para o futuro em um mesmo ritmo. A narrativa fílmica comporta, além das idas e vindas, variações de ritmo: acelerações e retardos do tempo. Há ainda o confronto entre o tempo real e outras instâncias temporais: o tempo psicológico, o tempo do sonho, o tempo da memória. O recurso em confrontar distintas densidades de tempo através do contraste entre cenas a cor e cenas em preto e branco é apenas um dos muitos exemplos de invenções narrativas introduzidas pelos cineastas. No texto histórico, ao contrário, podemos dizer que reside na própria linearidade dos modos narrativos habituais alguns dos entraves que mais costumam se contrapor às possibilidades de atrás mencionada ‘escrita polifônica da História’25 . Pode-se perceber, de todo modo, que a partir dos anos 1980 começam a aparecer algumas ousadias criadoras relacionadas a novas formas de tratar o tempo. Escrever polifonicamente é também superpor e imbricar temporalidades, invertê-las, entrecruzá-las, trabalhar com distintos ritmos de tempo. Nas últimas décadas, alguns historiadores têm assumido a missão de serem pioneiros na incorporação de técnicas narrativas introduzidas pela literatura e pelo cinema moderno, e ousaram retomar a narrativa historiográfica – acompanhando o grande movimento de revalorização explícita da narrativa na história26 – mas cuidando particularmente de assegurar a libertação em relação a uma determinada imagem de tempo mais linear ou mais fatalmente progressiva na apresentação de suas histórias (ou seja, na elaboração final dos seus textos). Uma tentativa, citada por Peter Burke em artigo que examina precisamente os novos modelos de elaboração de narrativas27 , é a de Norman Davies em Heart of Europe. Nesta obra, o autor focaliza uma História da Polônia encadeada da frente para trás em capítulos que começam no período posterior à Segunda Guerra Mundial e recuam até chegar ao período situado entre 1795 e 1918 (DAVIES, 1984)28 . Trata-se, enfim, não apenas de uma história investigada às avessas, como também de uma história representada às avessas. Outras tentativas são recolhidas por Peter Burke neste excelente apanhado de novas experiências de elaborar uma narrativa ou descrição historiográfica. As experiências vão desde as histórias que se movimentam para frente e para trás e que oscilam entre os tempos público e privado29 , até as experiências de captação do fluxo mental dos agentes históricos ou da expressão de uma “multivocalidade” que estabelece um diálogo entre os vários pontos de vista30 , sejam os oriundos dos vários agentes históricos, dos vários grupos sociais, ou mesmo de culturas distintas.
  • 25. 24 Todas estas experiências narrativas pressupõem formas criativas de visualizar o tempo, ancoradas em percepções várias como as de que o tempo psicológico difere do tempo cronológico convencional, de que o tempo é uma experiência subjetiva (que varia de agente a agente), de que o tempo do próprio narrador externo diferencia-se dos tempos implícitos nos conteúdos narrativos31 , e de que mesmo o aspecto progressivo do tempo é apenas uma imagem a que estamos acorrentados enquanto passageiros da concretude cotidiana, mas que pode ser rompida pelo historiador no ato de construção e representação de suas histórias. Esta ousadia de inovar na representação do tempo, de transcender a linearidade habitual a partir da qual o vemos, pode ser também aprendida por aquele que adentra o mundo da formação histórica, e o papel da interdisciplinaridade com a Literatura mostra-se indispensável para completar a aquisição de mais esta competência necessária ao historiador profissional, o que nos leva mais uma vez às relações entre escrita da História e Ensino de História em nível de graduação. A apreensão polifônica do mundo histórico: novas interdisciplinaridades com a Música Para além da possibilidade de percorrer o tempo de novas maneiras, é igualmente importante a experimentação voltada para a apreensão polifônica do mundo histórico. Não basta ao historiador reconhecer no mundo histórico os seus diversos personagens, portadores de posições ideológicas independentes, se, ao final da construção narrativa do historiador, estes personagens terminam por expressar, no seu conjunto de interações contraditórias, apenas uma única ideologia dominante. Na verdade, tal como ressalta Mikhail Bakhtin, todo texto é “dialógico”, no sentido de que se organiza no interior de uma rede de intertextualidades e de que “resulta do embate de muitas vozes sociais”32 . Contudo, tal como observa Diana Luz Pessoa de Barros (1994, p.6), ainda que irredutivelmente dialógicos, os textos podem produzir “efeitos de polifonia”, “se algumas dessas vozes se deixam escutar”; e podem, ao contrário, seguir produzindo um efeito de monofonia, “quando o diálogo é mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir”. Os historiadores, ainda que acostumados a administrar nos seus textos as diversas vozes sociais, nem sempre se empenham em transcender a escrita monódica. Para que possa se realizar, a escrita polifônica, por um lado, precisa ser desejada (já que nem todos estão dispostos a abrir mão de um pensamento único). Por outro lado, o escrever polifônico também precisa ser aprendido. Podemos nos perguntar, neste momento, se a formação básica do historiador tem lhe proporcionado este aprendizado.
  • 26. 25 Esta questão, particularmente importante, leva-nos a um novo eixo de discussões. Como fornecer ao historiador em formação, através do Ensino de Graduação em História, as competências que o habilitarão a também ser um experimentador de novos modos de narrar a história, ou de expor os problemas historiográficos? Não será importante para o historiador em formação o estudo da Literatura, não apenas como fonte histórica, mas também como campo de recursos para serem incorporados ao metier historiográfico de construção textual? O hábito de ler obras de Literatura imaginativa, neste sentido, não poderia ser um elemento importante para a formação do historiador? O currículo de Graduação em História não deveria contemplar – e agora como crédito obrigatório – pelo menos uma disciplina que trabalhasse com invenção literária, com os recursos diversificados da narrativa e da arte da descrição que têm sido mobilizados na Literatura? Os aprendizados relacionados a novas formas de escrever a narrativa histórica, e mesmo as ousadias mais surpreendentes, podem ser desenvolvidos pelo historiador em formação não apenas a partir do exemplo dos literatos ligados à ficção, mas também dos próprios historiadores que trabalharam com a experimentação narrativa. É o caso, apenas para citar um exemplo, de Richard Price, autor de um interessante livro sobre os Saramakas do Suriname (1990) – uma obra apodada de pós-modernista por Hobsbawm em uma resenha intitulada “Pós-Modernismo na Floresta” (1990)33 . O interessante na obra Alibi’s World, de Richard Price (1990), é a originalíssima experimentação em torno de um novo padrão de análise das fontes, e de exposição dos resultados, que aqui poderemos entender como uma experiência de “Polifonia”. Conforme disse antes, a escrita polifônica, tal como a entendeu Bakhtin em seus estudos sobre o romance moderno, pressupõe que o narrador se coloque em posição dialógica em relação aos sujeitos narrativos que a sua escrita busca administrar. O autor dialógico seria aquele que, em alguma medida, não refreia a autonomia dos seus personagens, deixando que seus discursos se manifestem sem que se tornem meros anexos de seu próprio discurso de narrador-onisciente, e sem que todos estes discursos apenas confirmem, monodicamente, a direção única que o autor pretende trazer para a sua narrativa. Um texto dialógico – e, mais do que dialógico, “polifônico” – deve ser habitado por uma “multiplicidade de vozes e de consciências independentes” (BAKHTIN, 1981, p.2). Que experiências têm feito os historiadores para avançar em um modo polifônico de escrever a história? Voltando ao livro de Richard Price sobre os Saramakas do Suriname (1990), busca- se aqui examinar as sociedades quilombolas do Suriname nos séculos XVIII e XIX. Para compreender a história dos saramakas – que é como no Suriname eram chamados os
  • 27. 26 quilombolas que construíram sociedades às margens do sistema escravista – Richard Price procura apreender estas sociedades através da vida e contexto de um chefe quilombola chamado Alabi (1740-1820). Mas o que importa é o método proposto. Price procura construir a sua polifonia de vozes trazendo, para além da sua própria voz de autor, as vozes dos vários atores sociais que são entrevistos nas fontes. Cada uma destas vozes é identificada no texto escrito por Richard Price com uma fonte tipográfica distinta, sendo este o singular recurso visual disponibilizado para o leitor, de modo a que este não se perca naquilo a que Eric Hobsbawm parece entrever como uma espécie de “floresta de vozes” construída por este audacioso ensaio que foi objeto de considerações da parte de Hobsbawm na resenha intitulada “Pós Modernismo na Floresta” (1990). A experiência polifônica de Richard Price, embora criticada na sua realização final por Hobsbawm, é certamente material de extremo interesse para se pensar as futuras possibilidades da História no que se refere a novos modos de lidar com as fontes e a novos modos de expor o texto. Para além da própria referência a esta contribuição à experimentação na escrita historiográfica, agregamos aqui uma questão: onde encontramos lugar, nos currículos de graduação de História, para o aprendizado da experimentação literária na História? Experimentações literárias na História É verdade, por outro lado, que a experimentação narrativa ou textual pode ser aprendida também a partir da leitura da obra dos grandes historiadores. Por motivos diversos, a Micro-História tem oferecido à comunidade acadêmica exemplos importantes de experimentação textual na historiografia. Entre outras coisas, a preocupação dos micro- historiadores em evitar generalizações simplificadoras os leva muito habitualmente a investir em novos modos de estruturação do texto, que nem sempre coincidem com os que têm sido empregados pela historiografia tradicional. Com relação a isto, não é raro que os micro- historiadores experimentem efetivamente novos modos de exposição textual. A Micro-História tende a trabalhar com a ideia de que expor o texto de uma determinada maneira é favorecer certa maneira de ver, e por isto alguns dos principais expoentes deste novo modo de abordar a História costumam dar tanta importância aos aspectos mais propriamente literários de suas narrativas ou sínteses históricas. Se suas fontes são inquéritos judiciais, ver-se-ão tentados a experimentar o modelo do inquérito na própria elaboração de seu trabalho final: deixarão que o leitor vivencie simultaneamente a experiência
  • 28. 27 de inquisidor e inquirido, de investigador criminal e réu suspeito, por que isto favorecerá a percepção do dialogismo contido nas suas fontes, do entrechoque das muitas versões contrapostas e da possibilidade de tirar partido precisamente destas contradições. Se sua investigação examina as vozes dos vários atores sociais que intervém em determinada configuração histórica a ser examinada, talvez se sintam à vontade para explorar a possibilidade de escrever um texto mais propriamente polifônico, no qual, como já se disse, o ponto de vista vai se deslocando ao invés de ser apresentado como um ponto de vista unificado por um narrador exterior que seria o historiador. Se estão trabalhando com certo regime de Imaginário, não hesitarão em explorar as próprias imagens que aparecem neste regime como núcleos motivadores para seus capítulos. Natalie Davis, autora da polêmica obra O retorno de Martim Guerre (1983) 34 , não se sentiu constrangida em dar um tom novelesco à sua narrativa sobre um pequeno mas curioso acontecimento que abalara uma pequena aldeia italiana do século XVI. Em Indagações sobre Piero, Carlo Ginzburg adota propositalmente a forma do inquérito policial (Ginzburg, 1989). As experiências estão abertas. Assim, pode-se dizer que existe uma tendência em alguns micro-historiadores a incorporar ao seu modo de enunciar – ou de registrar, em texto, o conhecimento histórico produzido – as idiossincrasias ou mesmo as limitações da documentação com a qual trabalha, e também os procedimentos da pesquisa propriamente dita, e até mesmo as suas hesitações e tateamentos (que a macro-história tradicional costuma afastar da vista do leitor, como se empurrasse uma poeira incômoda, que não pôde ser varrida, para debaixo do tapete). Dito de outra forma, o micro-historiador costuma trazer a nu tanto as contradições e imprecisões de suas fontes, como as limitações de sua prática interpretativa, não se preocupando em ocultar as técnicas de persuasão que está utilizando e até mesmo declarando os pontos em que se está valendo de raciocínios conjecturais. Ele deixa claro, poderíamos dizer, o que há de construtivo nas suas construções interpretativas. Enquanto isto, o modo de narrar da macro- história tradicional tende a apresentar as suas interpretações sob a forma de uma verdade que é enunciada objetivamente e de fora, ou pelo menos esta tem sido uma crítica muito presente entre os micro-historiadores ao modelo tradicional. Estas experiências ao nível de construção final do texto micro-historiográfico não constituem uma regra, repetimos, mas apenas uma tendência – e por isso mesmo talvez fosse o caso de introduzir nos currículos de graduação disciplinas que favorecessem a experimentação literária na escrita historiográfica. De igual maneira, as já mencionadas possibilidades de desenvolver uma escrita polifônica, e de produzir uma história dialógica, também precisam ser trazidas para a formação histórica em nível de Graduação.
  • 29. 28 Interdisciplinaridades com os campos midiáticos. A ideia de que a História é também uma Arte, e de que o historiador precisa preocupar-se com os modos de apresentação do seu trabalho, leva-nos a um último conjunto de reflexões, para além do espírito experimentador que poderá contribuir para renovar a escrita propriamente dita. Perguntar-nos-emos agora se estará a História inevitavelmente atrelada ao modelo de apresentação em forma escrita, ou se poderão os historiadores se utilizar de outros modos de apresentar o seu trabalho. Como poderá o historiador se valer do Cinema, da Fotografia, dos meios Midiáticos? Quando atentamos para o rápido desenvolvimento da tecnologia e dos modos de expressão, começamos a pensar se não seria interessante refletir sobre as potencialidades da História relativamente aos tipos de suporte que estariam à disposição dos historiadores no futuro. Uma vez que o historiador já se tem familiarizado com fontes ligadas a outros suportes que não o textual, não será possível ele mesmo, na produção de seu próprio texto, incorporar esta linguagem que a ele se torna familiar através da Pesquisa e da própria elaboração de seu produto historiográfico? Será o formato livro o único destino de um bom trabalho historiográfico? Não será possível trazer novos suportes para a História, para além do “escrito”, como a Visualidade – incluindo a Fotografia e o Cinema – a Materialidade, convocando uma maior parceria entre historiadores, museólogos, arquitetos, ou como a Virtualidade, chamando mais intensamente à História os recursos da Informática? Assistiremos nas próximas décadas à possibilidade de teses de História apresentadas em formato de Vídeo ou DVD, ao invés do tradicional formato-livro? Ao lado disso, como os currículos de graduação poderão contribuir para que os historiadores em formação tenham possibilidade de desenvolver estas novas competências que lhes serão exigidas pela sua profissão? Com base nestas expectativas, imagino a possibilidade de surgimento ou fortalecimento de novas modalidades historiográficas que seriam definidas por novos tipos de suporte e novas possibilidades expressivas. Três propostas para o novo milênio, para além da História Escrita, seriam a História Visual, a História Material e a História Virtual. Quando me refiro a uma História Visual, não estou pensando em uma História da Visualidade – que trabalhe com fontes históricas ligadas à visualidade, ou mesmo com fontes de outros tipos mas que permitam apreender a instância visual de uma sociedade. Estes campos de possibilidades, tal como já mencionamos na primeira parte desta conferência, já começou a ser bem percorrido pelos historiadores nas últimas décadas do século passado, na
  • 30. 29 mesma em medida em que ocorreu uma expansão das suas fontes e objetos de estudo. Deste modo, uma História da Visualidade definida nestes termos não seria mais uma novidade, ainda que muitos caminhos ainda precisem ser percorridos pelos historiadores para ultrapassar um estágio ainda rudimentar seja de utilização de fontes históricas visuais, seja de apreensão da instância visual de uma sociedade em todas as suas implicações35 . Tampouco referimo-nos aqui ao uso, já bem mais freqüente, que os historiadores têm feito da imagem como fonte histórica, isto é, esta apropriação pela historiografia das fontes imagéticas – sejam elas pinturas, fotografias, ou quaisquer outras – como meios para apreender questões diversas da história social36 . Neste momento, estou me referindo mesmo a uma ‘História Visual’, ou Áudio-Visual, que incorpore a visualidade e possivelmente inclua a sonorização e a Música como suportes mesmo, como meio principal para a transmissão dos resultados de uma pesquisa histórica e como recursos para a produção do próprio discurso do historiador37 . O visual, que já vem freqüentando a palheta dos historiadores como objeto e como fonte histórica, poderia passar a ser incorporado também como meio de expressão, como recurso através do qual se produz o próprio discurso historiográfico. Certamente que, para tal fim, seriam necessários os já mencionados enriquecimentos no currículo das graduações de História, e desta forma o historiador poderia pensar em adquirir conhecimentos mais sólidos de fotografia, programação visual, cinema, ou mesmo música, para o caso mais específico da incorporação da sonoridade38 . Um aprendizado importante pode ser extraído do Cinema, do qual o historiador tem até então se valido como objeto e como fonte histórica. Completar a relação Cinema-História no sentido de que o historiador também se aproprie do Cinema como um “meio” pode vir a se constituir em mais um passo na expansão de possibilidades historiográficas. É evidente, por um lado, que os cineastas já se apropriaram com grande eficiência da História, e já contam nas suas equipes técnicas com historiadores quando estão empenhados em produzir filmes históricos, ou mesmo filmes de ficção que se projetem de alguma maneira no passado. Mas não estaria aberta, neste novo milênio, a possibilidade para que não apenas os Cineastas se apropriem da História, como também os Historiadores se apropriem do Cinema? Não poderiam os Historiadores tomar a si o caráter diretivo de grandes trabalhos historiográficos que tragam como suporte o Cinema, e, nesta perspectiva, não seria o caso de trazer o Cineasta para a equipe técnica do historiador, e não o contrário? O mesmo pode ser pensado com relação a outros recursos de visualidade, como a Fotografia. Imagino, por exemplo, neste mundo no qual o meio ambiente sofre aceleradas transformações, a interconexão possível entre História Visual e História Ambiental. Não
  • 31. 30 deveria o Historiador – trabalhando também em um registro para a produção da Memória – comandar a produção sistemática de fotografias do meio ambiente, já escrevendo através da visualidade a sua própria leitura histórica do meio ambiente nas suas mudanças através do tempo, mas também disponibilizando fontes visuais importantes para gerações futuras de historiadores? Os recursos digitais e virtuais, por fim, que apenas mais recentemente começaram a ser utilizados de maneira mais intensa e sistemática pelos historiadores, poderão também contribuir para a renovação dos meios de expressão à disposição dos historiadores. De fato, um desdobramento lógico da familiarização com as fontes virtuais e com os recursos computacionais é o aprendizado prático que futuramente poderá levar o historiador a se utilizar da virtualidade como meio para a produção de seu próprio discurso. Assim, percebemos que ainda não cessou a expansão da história em termos de multiplicação de seus campos históricos. Um último Campo Histórico que se abre como possibilidade historiográfica para o futuro, relativamente aos processos de escritura da História, seria precisamente o da História Virtual, ou o que também poderia ser chamado de História Digital. Para o que nos interessa neste ensaio, entendo aqui que também haveria um conjunto muito rico de alternativas para o desenvolvimento e fortalecimento de uma modalidade de História Digital que poderia ser definida pelo seu recurso mais direto à informática e aos meios virtuais, não apenas como ferramenta auxiliar, mas também como ambiente e meio para a própria escritura da História39 . Estava imaginando, para dar um exemplo, uma possibilidade que poderia ser tomada a cargo por historiadores. Trata-se de um Projeto que poderia se encaixar dentro de uma espécie de História Virtual Multi-Autoral. Conhecemos, nos dias de hoje, a chamada Wikipédia – que basicamente é um conjunto de textos construídos a muitas mãos (ou muitas teclas), sem autoria e submetidos a permanentes alterações que podem ser implementadas por qualquer participante da rede mundial de computadores. No que tange ao conhecimento histórico, a Wikipédia apresenta textos bem confiáveis, mas também um número ainda maior de textos que não tem utilidade historiográfica porque nem sempre foram produzidos por historiadores profissionais ou confiáveis, e tampouco dentro dos critérios aceitos pela historiografia profissional. A ideia é que poderia ser construída uma Enciclopédia Historiográfica Virtual a que só tivessem acesso, como autores, os historiadores que comprovassem sua formação ou conhecimento historiográfico. Inseridos no sistema, uma multidão de historiadores poderia trabalhar a elaboração espontânea de grandes textos virtuais, multi-autorais, sobre os diversos temas pertinentes à historiografia dos vários períodos. Todos os textos desta Enciclopédia Virtual
  • 32. 31 Multi-Autoral – à qual teriam acesso todos os freqüentadores da Internet – seriam certamente confiáveis face a suas condições de produção estritamente historiográficas, e poderiam ser checados regularmente por equipes específicas de historiadores para verificar a precisão de suas informações e a validade de suas análises. Com essa ideia, estaríamos diante das possibilidades de criação de um Projeto que abriria caminho no interior de uma nova modalidade historiográfica, que estaria relacionada com a História Virtual, e que através da sua realização estaria questionando a obrigatoriedade da fixidez textual e da autoria única como aspectos necessários da Escritura da História. Neste caso, a própria multivocalidade de uma escrita polifônica, à qual nos referíamos atrás, poderia ser trazida, através dos recursos visuais, para a questão da autoria historiográfica, e teríamos de fato um texto construído a muitas mãos e incluidor de inúmeras vozes, concretizando a possibilidade de uma verdadeira “polifonia historiográfica”. De fato, este empreendimento estaria permitindo algo novo no que se refere a duas características que foram apresentadas pela História até hoje, pelo menos o tipo de História que se escreveu na história da civilização ocidental. A História, até os dias de hoje, parece ter mantido incólumes dois traços muito fortes de identidade: a “autoria declarada e única” (um autor singular e específico que escreve o texto) e a “fixidez textual” – ou seja, o fato de que aquilo que foi escrito fica imobilizado para ser lido sempre da mesma maneira. Mas será necessário que sempre e em todos os momentos seja assim? Para além disto, outro recurso interessante proporcionado pela virtualidade, e que pode vir a ser aproveitado para uma escrita histórica futura, é a possibilidade de criar links – entradas para um labirinto que pode ser percorrido pelo leitor, ele mesmo tornando-se, desta maneira, uma espécie de co-autor que produz a sua própria leitura criativa da obra historiográfica que lhe foi apresentada como caminho. Há ainda possibilidades outras, como o aproveitamento da estrutura de “chat” para a criação de textos dialógicos, que depois poderiam ser transformados em livros (livros tradicionais ou livros digitais). Os progressos em termos de simulação holográfica ou de projeção do usuário no interior de um ambiente virtual, à maneira das possibilidades que foram bem ilustradas pelo filme Matrix e tantos outros, pode também proporcionar um campo inesgotável de criação para os futuros historiadores. O ambiente interativo proporcionado pelo computador, enfim, certamente ainda reserva muitas surpresas para a Escrita da História, sem contar as possibilidades que já vão sendo bem exploradas de utilização da informática e do computador como instrumentos auxiliares importantes para a feitura da História.
  • 33. 32 Essas são apenas ideias – exercícios iniciais de uma imaginação historiográfica projetada para o futuro. A intenção foi a de imaginar, diante da permanente reconfiguração dos campos históricos nos tempos recentes e das novas interdisciplinaridades que têm se afirmado, que também os currículos de graduação que são oferecidos aos historiadores em formação precisam atentar para aspectos que se referem a uma reformulação de sua própria linguagem. Que novas modalidades historiográficas ainda estão por ser geradas e desenvolvidas pelos historiadores de agora e do futuro? Quais novas interdisciplinaridades se fortalecerão no diálogo da História com outros campos de saber? Como o Ensino de Graduação em História acompanhará esta expansão e essa multiplicação de diálogos interdisciplinares que ainda não cessou de ocorrer, e que vem a encontrar no âmbito da própria produção textual e midiática as últimas fronteiras a serem exploradas criativamente? NOTAS 1 É o mesmo espírito que encontramos em outros prefixos gregos, como “tra”, “trás”, “ter”, e que podemos encontrar em palavras como “traduzir”, “traspassar”, “tresloucado”. 2 Em Latim, transitus é o particípio passado de transire, que corresponde a “ir através, cruzar”. 3 Palavra derivada, a partir do latim, do verbo intervenire, e que significa “vir por dentro”, abarcando sentidos como o de “interferir”, “intrometer-se”, “imiscuir-se”. 4 “Interpretar” significa “dar a conhecer por dentro”. A palavra é formada pela junção do prefixo inter com o radical prat (“dar a conhecer”). 5 Para evocar divisões, partilhas e diálogos que se estabelecem no interior de uma mesma disciplina, utilizaremos a palavra “intradisciplinaridade”, que corresponde à formação de modalidades internas a um mesmo campo de saber. Assim, a Mecânica, Ótica, Astrofísica, Termodinâmica, ao lado de vários outros âmbitos de estudo, correspondem ao espaço intradisciplinar da Física. Na História, podemos falar em História Econômica, História Política, História Cultural, Micro-História, e assim por diante. 6 Uma sistematização mais aprofundada das questões aqui propostas pode ser encontrada em BARROS, José D’Assunção. Teoria da História, volume 1 – Princípios e Conceitos Fundamentais. Petrópolis: Editora Vozes, 2011. 7 Pierre Bourdieu (1930-2002) acrescenta em sua “teoria dos campos” que “qualquer que seja o campo, ele é objeto de luta tanto em sua representação quanto em sua realidade” (BOURDIEU, 2003: 29). 8 A ‘singularidade’, em que se considere sua ligação direta com o ‘campo de interesses’, deve ser referida aqui aos parâmetros que definem irredutivelmente a Disciplina (no caso da História, a consideração do tempo, o uso de fontes), e não aos ‘objetos de estudo’ privilegiados pelos seus praticantes, que já constituem mais propriamente o ‘campo de interesses’ da Disciplina. Uma coisa, é claro, está ligada à outra; mas são itens distintos. É possível abordar um determinado ‘campo de interesses’ a partir de certa ‘singularidade’ que é já específica da Disciplina. Os grupos sociais (um mesmo objeto) podem ser examinados de modos distintos pela História, pela Antropologia ou pela Sociologia.
  • 34. 33 9 Entre outros assuntos, os jargões das ‘comunidades linguísticas’ geradas por alguns campos são examinados em uma coletânea organizada por Peter Burke e Roy Porter: Línguas e Jargões (BURKE e PORTER, 2007), na qual se busca examinar nos seus diversos contextos sociais os dialetos e jargões criados e difundidos por diversos grupos sociais e profissionais, entre os quais os médicos, advogados e professores, mas também as sociedades secretas como a dos maçons, bem como grupos sociais marginalizados, tais como os dos ciganos e dos mendigos. 10 Thomas Kuhn, em A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), traz o exemplo do atomismo químico desenvolvido por Dalton, referindo-se aos “efeitos revolucionários resultantes da aplicação da química a um conjunto de questões e conceitos anteriormente restritos à física e à meteorologia”. Prossegue Kuhn: “Foi isto que Dalton fez; o resultado foi uma reorientação no modo de conceber a química, reorientação que ensinou aos químicos como colocar novas questões e retirar conclusões novas de dados antigos” (2007, p.179). 11 Referência fundamental para a questão mais ampla dos interditos que afetam uma disciplina é A Ordem do Discurso, de Michel Foucault (1970). Por outro lado, também Thomas Kuhn, em A Estrutura das Revoluções Científicas (2007: 138), faz algumas observações importantes sobre as redefinições de ditos e interditos que se podem dar quando um novo paradigma substitui um paradigma que até então fora dominante. Também iremos encontrar em Usos Sociais da Ciência, de Pierre Bourdieu (1997), observações interessantes a respeito da dinâmica que dita e interdita o que é possível, em cada momento, no âmbito de determinado campo disciplinar: “Um campo não se orienta totalmente ao acaso. Nem tudo nele é igualmente possível e impossível a cada momento” (BOURDIEU, 2003, p.27). Sobre os interditos da História, ver CERTEAU, 1982, p.76-77. 12 Sobre as permissões e interditos da Operação Historiográfica, dirá Michel De Certeau: “Antes de saber o que a história diz de uma sociedade, é necessário saber como funciona dentro dela. Esta instituição se inscreve num complexo que lhe permite apenas um tipo de produção e proíbe outros. Tal é a dupla função do lugar. Ele torna possíveis certas pesquisas em função de conjunturas e problemáticas comuns. Mas torna outras impossíveis; exclui do discurso aquilo que é sua condição num momento dado; representa o papel de uma censura com relação aos postulados presentes (sociais, econômicos, políticos) na análise. Sem dúvida, esta combinação entre permissão e interdição é o ponto cego da pesquisa histórica e a razão pela qual ela não é compatível com qualquer coisa. É igualmente sobre esta combinação que age o trabalho destinado a modificá-la” (CERTEAU, 1982, p.76-77). 13 Ou pode se dar mesmo que este médico venha a constituir um novo campo disciplinar – produzindo portanto uma sensível modificação no universo mais amplo dos campos disciplinares. Pode-se dar o exemplo do doutor Freud, que por volta de 1890 terminou por fundar, através de uma nova abordagem clínica, a Psicanálise. Também temos o caso do doutor Wilhelm Wundt (1832-1920), que em 1879 criou o primeiro laboratório psicológico, contribuindo desta maneira para separar da Filosofia a Psicologia. 14 Sobre as “comunidades científicas”, ver HAGSTROM, 1965. Sobre a competição no interior das comunidades científicas, ver HAGSTROM, 1974. A noção de uma “comunidade científica” também já foi tratada sobre o prisma de um “Colégio Invisível”, e sobre isto podem ser consultadas as obras de PRICE e BEAVER (1966) e de CRANE (1966). A expressão “colégio invisível”, que no século XVII tinha conotações que dialogavam com a ideia de “sociedades secretas” de intelectuais e cientistas, é nos dias de hoje empregada para expressar a livre transferência de informações, pensamentos e background técnico pela “comunidade científica” (isto à parte da estrutura física e institucional dentro da qual esta mesma comunidade também se distribui). 15 Michel de Certeau acrescenta neste mesmo texto sobre A Operação Historiográfica: “Cada resultado individual se inscreve numa rede cujos elementos dependem estritamente uns dos outros, e cuja combinação dinâmica forma a história num momento dado” (CERTEAU, 1982, p.72). 16 A História começa precisamente a se constituir em campo científico no momento em que começam a ser produzidos mais recorrentemente os seus “olhares sobre si mesma”, as histórias da historiografia, os ensaios de reflexão teórica, os manuais de metodologia. 17 Sobre a interessante temática dos jargões e das comunidades lingüísticas específicas, ver a coletânea organizada por Peter Burke e Roy Porter (1997). Na qual se busca examinar nos seus diversos contextos sociais os dialetos e jargões criados e difundidos por diversos grupos sociais e profissionais, entre os quais os médicos, advogados e professores, mas também as sociedades secretas como a dos maçons, bem como grupos sociais marginalizados, tais como os dos ciganos e dos mendigos. 18 Este é, aliás, o título de um dos capítulos do conjunto de ensaios publicados por Antoine Prost com o título Doze Lições sobre a História (São Paulo: Autêntica, 2008).