Auto da Barca do Inferno expõe vícios da sociedade portuguesa do século XVI
1. AUTO DA BARCA DO INFERNO
A expressão latina ridendo castigat mores traduz-se por “A rir castigam-se/ corrigem-se
os costumes” e está associada à obra de Gil Vicente, que, através de várias situações lúdicas e
cómicas, procura criticar e corrigir os vícios da sociedade do seu tempo, procurando moldá-la e
alterar os maus comportamentos.
Escrita em 1517, durante a transição entre Idade Média e Renascimento, o Auto da Barca
do Inferno é uma das obras mais representativas do teatro vicentino, onde prevalece a
temática religiosa como pretexto para a crítica de costumes. É considerada uma das peças
mais famosas do dramaturgo.
Gil Vicente, ao apresentar o Auto da Barca do Inferno, utiliza a expressão "auto de
moralidade", considerando necessário declarar o argumento utilizado para compor o
desenlace. As almas, após se libertarem dos seus corpos, em terra, dirigem-se a uma zona,
onde estão dois barcos: um conduzido pelo Anjo, que levará as almas para o Paraíso, e o outro
tripulado pelo Diabo, que dirigirá as almas até ao Inferno. As personagens do Auto da Barca do
Inferno são representantes das mais variadas classes sociais e de algumas atividades
diversas, além de quatro cavaleiros cruzados. Cada personagem é julgada e condenada ao seu
destino, embarcando na companhia do Diabo ou do Anjo.
Esta obra foi escrita em versos rimados, fundindo poesia e teatro, fazendo com que o texto,
cheio de ironia, trocadilhos, metáforas e ritmo, fluísse naturalmente.
TEMÁTICA
O Auto da Barca do Inferno retrata a sociedade portuguesa do século XVI, sendo clara
a intenção do autor em expor de forma satírica e despojada os grandes vícios humanos,
encontrados nas personagens, ou melhor, nas almas que se apresentam no porto em busca do
transporte para o outro lado, dentro da visão católica e platónica de céu e inferno. É um auto
onde o barqueiro do inferno e o do céu esperam os condenados e os honrados, que chegam e
são acusados pelo Diabo e pelo Anjo, tendo este último poder para absolvição.
Esta peça proporciona uma amostra do que era a sociedade lisboeta das décadas
iniciais do século XVI, embora alguns dos assuntos passados sejam pertinentes à atualidade.
2. ESTILO
A obra está escrita em versos heptassílabos, de forma coloquial e com intenção
marcadamente doutrinária, envolvendo o português, o latim e o espanhol. Cada personagem
apresenta, através da fala, traços que denunciam sua condição social.
ESTRUTURA
A peça tem a finalidade de divertir e instruir, considerando temas como religiosos ou
profanos, sérios ou cómicos, que devem guardar um profundo sentimento moralizador. O Auto
da Barca do Inferno não tem uma estrutura definida, ou seja, não está dividido em atos ou
cenas. É apenas uma peça teatral apresentada num único ato, subdividido em cenas marcadas
pelos diálogos entre o Anjo ou o Diabo e as personagens.
CENÁRIO
A peça é apresentada num porto, no qual estão atracadas duas barcas, pelas quais,
todos os mortos terão de passar para serem julgados e condenados à barca da Glória ou à
barca do Inferno. A peça inicia-se quando as almas chegam ao porto imaginário.
PERSONAGENS
1. Diabo e Anjo: condutores das almas ao Inferno e ao Paraíso, respetivamente.
Conhecem muito bem cada personagem. O Diabo é troçador, irónico e bom
argumentador. Gil Vicente não pinta estas personagens como responsáveis pelos
fracassos e males humanos, considerando-os juízes, que entram na consciência de
cada alma, revelando o que cada uma delas procura esconder.
2. Fidalgo: representa a nobreza. Chega acompanhado de um pajem e vem vestido com
uma roupa exagerada e uma cadeira: elementos característicos do seu estatuto social.
O diabo alega que o Fidalgo o acompanhará por ter tido uma vida de luxúria e de
pecados, sendo portanto condenado pela vida pecaminosa, em que a luxúria, a tirania e
a falta de modéstia pesam como graves defeitos. Ao Fidalgo, de nada valem as
misericórdias ou orações encomendadas. A sua figura arrogante e orgulhosa permite a
crítica vicentina à nobreza, estando centrada nos dois principais defeitos humanos: o
orgulho e a prática da tirania.
3. 3. Onzeneiro: é a segunda alma a ser inquirida. Ao chegar à barca do Diabo, percebe que
deixou o seu dinheiro em terra. Utiliza este pretexto para convencer o Diabo a deixá-lo
regressar à terra, demonstrando apreço pelas coisas mundanas. O Diabo não aceita e
condena-o ao Inferno.
4. Parvo: um dos poucos a não ser condenado ao Inferno. Chega desprovido de tudo,
carregado de simplicidade e sem malícia. Consegue enganar o Diabo e até mesmo
injuriá-lo. É uma alma pura, cujos valores são legítimos e sinceros. Ao passar pela
barca do Anjo, diz ser ninguém. E é pela sua humildade e pelos seus verdadeiros
valores que é conduzido ao Paraíso. Em vários momentos da peça, o Parvo ironiza a
reivindicação das outras personagens, que se querem passar por "inocentes" diante do
Diabo.
5. Sapateiro: representante dos mestres de ofício, chega à embarcação do Diabo
acompanhado do seu instrumento de trabalho: o avental e as formas. É desonesto
considerado um explorador do povo. Habituado a enganar os homens, procura também
enganar o Diabo, que, espertamente, não se deixa influenciar pelas suas artimanhas e
condena-o.
6. Frade: como todos os representantes do clero, evidenciados por Gil Vicente, o Frade é
alegre, cantante, bom dançarino e dissimulado. Chega acompanhado da sua amante, e
acredita que, por ter rezado e estar a serviço da fé, deveria ser perdoado. Dá uma lição
de esgrima ao Diabo (que finge não saber manobrar uma arma), o que prova a culpa do
provocador, já que frades não lidam com armas. É então condenado ao fogo do inferno.
Gil Vicente crítica o clero e julga-o incapaz de pregar as três coisas mais simples: a
paz, a verdade e a fé.
7. Alcoviteira (Brísida Vaz): agenciadora de prostitutas, misto de alcoviteira e feiticeira. É
condenada por falta de escrúpulos e corrupção. É conhecida de outras personagens,
que utilizaram, em vida, os seus serviços. Traiçoeira e cheia de astúcias, não consegue
fugir à condenação.
4. 8. Judeu: entra acompanhado de seu bode. Detestado por todos, até mesmo pelo Diabo,
que quase se recusa a levá-lo, é igualmente condenado, inclusive por não seguir os
preceitos religiosos da fé cristã. Será importante referir que, durante o reinado de D.
Manuel, houve uma perseguição aos judeus originando a sua expulsão do território
português: alguns saíram carregados de grandes fortunas e outros converteram-se ao
cristianismo, considerados como cristãos novos.
9. Corregedor e o Procurador: ambos representantes da justiça: juiz e advogado.
Deveriam ser exemplos de bom comportamento, mas acabaram condenados
justamente por manipularem a justiça de acordo com as propinas recebidas, pois
faziam da lei uma fonte de recursos ilícitos e de manipulação de sentenças. O carácter
moralizador do teatro vicentino fica bem mais explícito com esta condenação,
envolvendo a Justiça humana na figura dos representantes do Direito.
10. Enforcado: chega ao porto a acreditar que tem o perdão garantido, por ter já cumprido,
em terra, o julgamento e posterior condenação à morte, mas é condenado ao Inferno.
11. Quatro Cavaleiros: finalmente chegam à barca quatro cavaleiros cruzados, que
lutaram pelo triunfo da fé cristã e morreram em poder dos mouros. Obviamente, com
uma ficha impecável, serão todos julgados, perdoados e conduzidos à Barca do Anjo.
O destaque deve ser feito à figura do Diabo, personagem vigorosa que conhece a arte de
persuadir. É ágil no ataque, troça, responde, argumenta e entra nas consciências humanas. Ao
Diabo cabe denunciar os vícios e as fraquezas, sendo a personagem mais importante na crítica
que Gil Vicente liga à sua época.
Surgem ao longo do Auto três tipos de cómico: caráter, situação e linguagem.
Cómico de caráter - aquele que é demonstrado pela personalidade da personagem
Parvo, que devido à sua pobreza de espírito não mede as palavras, não podendo ser
responsabilizado pelos seus erros.
Cómico de situação - o Fidalgo, cujo orgulho é ridicularizado pelo Diabo.
Cómico de linguagem - aquele que é proferido por exemplo nas falas do Diabo.
5. Personagem
Símbolos
cénicos
Linguagem Acusações Indícios textuais Observações
Fidalgo
Pajem, cadeira
de espaldas,
manto
Altiva e
insolente
Vaidade,
presunção,
soberba e
tirania
“Sou fidalgo de
solar”; “Para
senhor de tal
marca, não há
aqui mais
cortesia?”;
“Cuidando na
tirania do pobre
povo queixoso”;
“desprezastes os
mais pequenos”
O Diabo
identifica-o
como D.
Anrique; o
pajem não
entra na barca
Onzeneiro Bolsão Vulgar
Avareza e
usura
“Na safra do
apanhar”; “Lá me
fica de roldão,
minha fazenda e
alhea”
Parvo Desbocada
Simplicidade e
ingenuidade
“Per malícia nom
erraste”
De nome Joane
Sapateiro
Avental e
formas
Vulgar, com
alguns termos
técnicos
Roubo
“Tu roubaste bem
trint’anos o povo
com teu mester”
Ele próprio se
identifica como
João Antão
Frade
Moça, broquel,
espada, casco
sobre o capelo
Exuberante
Libertinagem
(mundano,
dançarino e
esgrimista)
“Um padre tão
namorado”; “dê
Vossa Revença
lição d’esgrima,
que é cousa boa!”
É referido mais
à frente como
Frei Gabriel; a
Moça
acompanha-o
na barca
6. Judeu Bode Indecorosa Profanação
“E ele mijou nos
finados n’ergueja
de São Gião”; “E
comia a carne da
panela no dia de
Nosso Senhor”
Identifica-se
como Jema
Fará e
representa o
carácter errante
dos judeus
Corregedor
Processos e
livros
Técnica e latim
macarrónico
Corrupção e
parcialidade
“Quando éreis
ouvidor nonne
acceptistis rapina?”;
“E as peitas que
vossa mulher
levava?
Procurador Livros Vulgar
Atrevimento e
convencimento
“Bacharel som…
Dou-me ó Demo!
Não cuidei que era
extremo, nem de
morte minha dor”
Completa a
figura do
Corregedor
Enforcado Baraço Coloquial
Ignorância e
credulidade
“Que fui
bem-aventurado
em morrer
dependurado”; “E
era santo meu
baraço”
Não se conhece
o motivo pelo
qual foi
enforcado
Quatro
Cavaleiros
Cruz de Cristo,
espada e
escudo
Categórica
“Morremos nas
partes d’Além, e
não quereis saber
mais”; “Quem
morre em tal peleja
merece paz eternal”
Entram
directamente
para a Barca da
Glória