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O CORTEJO
Finados é excelente data. As pessoas lembram-se dos mortos e ficam mais generosas
com os vivos. Aliás, alguns meio mortos-vivos.
José fica postado num ponto estratégico: na entrada do portão principal.
Um entra e sai o dia inteiro.
Ganha de tudo: santinho, terço, vela, espada-de-são-jorge e, dinheiro. Não sabe bem ao
certo se o seu entusiasmo vem do ganho inédito ou do movimento das pessoas e da
correria das crianças. Apesar da data, para ele é festa. Chega a faturar no dia o que
ganha em dois meses.
Seu ponto é ali há dez anos. Nem se lembra direito o motivo que o levou àquele lugar.
O que para muitos representa morte, para ele é vida presente.
Sente que ali as pessoas tratam-no diferente. A reverência aos antepassados desarma os
espíritos. Olham-no com benevolência.
Havia tentado praça, mas “quem namora não vê desgraça”, costuma dizer.
Ao final do dia José conta a féria.
Finados é fumo, cachaça, doce-de-abóbora, café e pão-doce. Uma fungadinha na “Casa
da Dindinha”. Pagando consumação e tudo. José volta para o barraco já de madrugada.
Finados é madrugada adentro.
Está no terreno desde a invasão. Pauleira. Novo governo, vida nova para os pobres, os
descamisados. Pegou o embalo e foi. Um terreno particular. Parece que é de um homem
rico. “Capitalista ladrão, terreno pra invasão”, gritavam alguns líderes. José nunca se
importara com o nome do “ladrão”, um tal de doutor Venceslau.
Para o barraco 4x4 José arrumou umas tábuas com um vereador que andava por lá.
Levantou o barraco com a ajuda de outros: mutirão, comunidade, luta, participação,
trabalhador, eram as palavras mais ouvidas.
4x4. Tabuinhas até que novas. “Dá bem. Melhor que pagar aluguel em favela”.
Era conhecido na invasão como Zé Coveiro por causa do ponto que fazia no cemitério
pra esmolar, ou Zé da Vela, pois juntava e as distribuía na “comunidade”. Finados, a
invasão era uma luz só.
Estava mais triste naquele dia. Apesar de saber que haveria um grande cortejo fúnebre.
Possibilidades de ganhos melhores. Morreu gente importante: a administração do
cemitério estava agitada. Um grande mausoléu estava sendo pintado e decorado com
flores, fitas lilás e castiçais dourados. A entrada principal do mausoléu é ladeada por
duas pilastras em estilo grego. “Só alguém muito importante para ser merecedor”.
Acima da entrada, em grandes letras prateadas: FAMÍLIA MELO E SILVA.
Vendedores de flores comentavam que será o maior cortejo que já houve na cidade.
Mais movimentado que finados. Milhares de pessoas para reverenciar apenas um morto.
Grande acontecimento.
Vai dar fumo de novo, cachaça, pão-doce e “Dindinha”.
Nem isso alegrava Zé Coveiro. Tinha ficado sem o barraco dias antes. A polícia chegou
batendo e derrubando tudo. O “ladrão capitalista” conseguiu reintegração de posse do
terreno e mandou desocupar. Tinha gente até com casinha de material já. Trator por
cima. Tinha vereadores tentando negociar. Zé não viu o das tabuinhas do seu 4x4.
Passou novamente à noite ali no ponto. Era o lugar que conhecia melhor na vida. Cada
centímetro, cada buraquinho que no muro aumentava lhe indicava que o tempo ia
passando. O caminho das formigas, pra lá e pra cá. Sabia os túmulos que elas visitavam.
Mas, sabia que era a vida se renovando: “morte é vida para alguns”, pensava.
Já não tinha para onde ir. Os olhos fixos. As formigas, as formigas...
Ficou de prontidão esperando o grande acontecimento do dia seguinte.
A fila de carros era interminável. Na frente do cortejo fúnebre, um grande carro preto.
Zé jamais havia visto algo parecido. Dentro, reluzindo, em contraste com a negritude do
automóvel, um caixão dourado.
Ouro. Ouro. Zé ficou atordoado com tanto movimento. As pessoas eufóricas para
acompanhar o caixão ate o mausoléu, tocar naquele material lindo, maravilhoso.
Mulheres deslumbrantes, de vestidos longos, saltos altos, marcavam a cadência
funesta:...toc...titoc...toc...
Como enxergarem Zé? Nem um olhar, de desprezo que fosse. Nada, nada desviava o
olhar e a reverência daquela gente àquele morto e ao seu caixão dourado. Hipnose
metálica. O cantinho do Zé e das formigas tornaram-se lugar público. A multidão
ocupava todos os poros, as entranhas daquele cemitério.
Zé abaixou-se, abaixou-se. Como um garoto embaixo da mesa percorrendo a possível
sensualidade das titias, via uma infinidade de pernas entrecruzarem-se, como uma dança
sem melodia, descompassada..
Parecia a mata onde costumava caçar com seu pai. Árvores compondo uma harmoniosa
barreira de troncos. Mas hoje é essa coisa intransponível. Milhares de corpos fundindo-
se num só, impenetrável.
Como um menino embaixo da mesa, após o intento de ver a cor da calcinha da tia,
estremecendo, exausto pela façanha que exigiu dele todas as energias para executar seu
plano, adormece. Quando volta a si tudo é silêncio. De sobressalto levanta e percebe
que tudo está vazio. Olha ao redor e percebe as formigas no caminho rotineiro. Sonho e
realidade se confundem. Zé lembra-se que não tem para onde ir. Sonho, realidade.
Nenhum... Nenhum centavo na bandejinha de esmolar. Como? Aquela multidão.
Atordoado pelo hiato do tempo resolve aproximar-se do grande mausoléu; alguma pista,
algum resquício do real.
Olha-o demoradamente. Contorna-o nos mínimos detalhes como faz quando acompanha
formigas. Uma grande porta com cadeado bloqueia a entrada principal. Mas sente uma
brecha ao nível do chão exalando um ar familiar. Respiradouro dos mortos. O suficiente
para um homem como Zé: esguio como as velas que junta para a comunidade.
Ajoelha-se, coloca a cabeça para dentro e sente aquele ar ao mesmo tempo perfumado e
mórbido. Vai esgueirando-se até cair numa sala ampla, rodeada por gavetas funerárias.
Na parede a sua frente, acima, uma grande inscrição: FAMÍLIA MELO E SILVA.
Uma lápide reluzente à sua esquerda lhe chama a atenção. Nem sinal de poeira. Um
feixe de luz desprende-se do teto - em forma de abóbada celeste com vitrais franceses.
Aproxima-se como que magnetizado pela lápide dourada. Na penumbra, mal consegue
ler o nome do defunto: doutor Venceslau...
Zé pensou ser o nome do “morto felizardo” do grande cortejo. Realidade ou não, Zé não
tinha mais para onde ir. Dormiu ali mesmo, na última vigília.
Raimundo Fúzio

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A última vigília de Zé Coveiro

  • 1. O CORTEJO Finados é excelente data. As pessoas lembram-se dos mortos e ficam mais generosas com os vivos. Aliás, alguns meio mortos-vivos. José fica postado num ponto estratégico: na entrada do portão principal. Um entra e sai o dia inteiro. Ganha de tudo: santinho, terço, vela, espada-de-são-jorge e, dinheiro. Não sabe bem ao certo se o seu entusiasmo vem do ganho inédito ou do movimento das pessoas e da correria das crianças. Apesar da data, para ele é festa. Chega a faturar no dia o que ganha em dois meses. Seu ponto é ali há dez anos. Nem se lembra direito o motivo que o levou àquele lugar. O que para muitos representa morte, para ele é vida presente. Sente que ali as pessoas tratam-no diferente. A reverência aos antepassados desarma os espíritos. Olham-no com benevolência. Havia tentado praça, mas “quem namora não vê desgraça”, costuma dizer. Ao final do dia José conta a féria. Finados é fumo, cachaça, doce-de-abóbora, café e pão-doce. Uma fungadinha na “Casa da Dindinha”. Pagando consumação e tudo. José volta para o barraco já de madrugada. Finados é madrugada adentro. Está no terreno desde a invasão. Pauleira. Novo governo, vida nova para os pobres, os descamisados. Pegou o embalo e foi. Um terreno particular. Parece que é de um homem rico. “Capitalista ladrão, terreno pra invasão”, gritavam alguns líderes. José nunca se importara com o nome do “ladrão”, um tal de doutor Venceslau. Para o barraco 4x4 José arrumou umas tábuas com um vereador que andava por lá. Levantou o barraco com a ajuda de outros: mutirão, comunidade, luta, participação, trabalhador, eram as palavras mais ouvidas. 4x4. Tabuinhas até que novas. “Dá bem. Melhor que pagar aluguel em favela”. Era conhecido na invasão como Zé Coveiro por causa do ponto que fazia no cemitério pra esmolar, ou Zé da Vela, pois juntava e as distribuía na “comunidade”. Finados, a invasão era uma luz só. Estava mais triste naquele dia. Apesar de saber que haveria um grande cortejo fúnebre. Possibilidades de ganhos melhores. Morreu gente importante: a administração do cemitério estava agitada. Um grande mausoléu estava sendo pintado e decorado com flores, fitas lilás e castiçais dourados. A entrada principal do mausoléu é ladeada por duas pilastras em estilo grego. “Só alguém muito importante para ser merecedor”. Acima da entrada, em grandes letras prateadas: FAMÍLIA MELO E SILVA. Vendedores de flores comentavam que será o maior cortejo que já houve na cidade. Mais movimentado que finados. Milhares de pessoas para reverenciar apenas um morto. Grande acontecimento. Vai dar fumo de novo, cachaça, pão-doce e “Dindinha”. Nem isso alegrava Zé Coveiro. Tinha ficado sem o barraco dias antes. A polícia chegou batendo e derrubando tudo. O “ladrão capitalista” conseguiu reintegração de posse do terreno e mandou desocupar. Tinha gente até com casinha de material já. Trator por cima. Tinha vereadores tentando negociar. Zé não viu o das tabuinhas do seu 4x4. Passou novamente à noite ali no ponto. Era o lugar que conhecia melhor na vida. Cada centímetro, cada buraquinho que no muro aumentava lhe indicava que o tempo ia passando. O caminho das formigas, pra lá e pra cá. Sabia os túmulos que elas visitavam. Mas, sabia que era a vida se renovando: “morte é vida para alguns”, pensava. Já não tinha para onde ir. Os olhos fixos. As formigas, as formigas...
  • 2. Ficou de prontidão esperando o grande acontecimento do dia seguinte. A fila de carros era interminável. Na frente do cortejo fúnebre, um grande carro preto. Zé jamais havia visto algo parecido. Dentro, reluzindo, em contraste com a negritude do automóvel, um caixão dourado. Ouro. Ouro. Zé ficou atordoado com tanto movimento. As pessoas eufóricas para acompanhar o caixão ate o mausoléu, tocar naquele material lindo, maravilhoso. Mulheres deslumbrantes, de vestidos longos, saltos altos, marcavam a cadência funesta:...toc...titoc...toc... Como enxergarem Zé? Nem um olhar, de desprezo que fosse. Nada, nada desviava o olhar e a reverência daquela gente àquele morto e ao seu caixão dourado. Hipnose metálica. O cantinho do Zé e das formigas tornaram-se lugar público. A multidão ocupava todos os poros, as entranhas daquele cemitério. Zé abaixou-se, abaixou-se. Como um garoto embaixo da mesa percorrendo a possível sensualidade das titias, via uma infinidade de pernas entrecruzarem-se, como uma dança sem melodia, descompassada.. Parecia a mata onde costumava caçar com seu pai. Árvores compondo uma harmoniosa barreira de troncos. Mas hoje é essa coisa intransponível. Milhares de corpos fundindo- se num só, impenetrável. Como um menino embaixo da mesa, após o intento de ver a cor da calcinha da tia, estremecendo, exausto pela façanha que exigiu dele todas as energias para executar seu plano, adormece. Quando volta a si tudo é silêncio. De sobressalto levanta e percebe que tudo está vazio. Olha ao redor e percebe as formigas no caminho rotineiro. Sonho e realidade se confundem. Zé lembra-se que não tem para onde ir. Sonho, realidade. Nenhum... Nenhum centavo na bandejinha de esmolar. Como? Aquela multidão. Atordoado pelo hiato do tempo resolve aproximar-se do grande mausoléu; alguma pista, algum resquício do real. Olha-o demoradamente. Contorna-o nos mínimos detalhes como faz quando acompanha formigas. Uma grande porta com cadeado bloqueia a entrada principal. Mas sente uma brecha ao nível do chão exalando um ar familiar. Respiradouro dos mortos. O suficiente para um homem como Zé: esguio como as velas que junta para a comunidade. Ajoelha-se, coloca a cabeça para dentro e sente aquele ar ao mesmo tempo perfumado e mórbido. Vai esgueirando-se até cair numa sala ampla, rodeada por gavetas funerárias. Na parede a sua frente, acima, uma grande inscrição: FAMÍLIA MELO E SILVA. Uma lápide reluzente à sua esquerda lhe chama a atenção. Nem sinal de poeira. Um feixe de luz desprende-se do teto - em forma de abóbada celeste com vitrais franceses. Aproxima-se como que magnetizado pela lápide dourada. Na penumbra, mal consegue ler o nome do defunto: doutor Venceslau... Zé pensou ser o nome do “morto felizardo” do grande cortejo. Realidade ou não, Zé não tinha mais para onde ir. Dormiu ali mesmo, na última vigília. Raimundo Fúzio