1. revista da espm • ano 21 • edição 97 • nº2 • março/abril 2015 • R$ 28,00
Entrevistas
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Artigos
#RuimPraQuem?
A necessária reforma
tributária do Estado
Mastodôntico
Saia da mesa, arregace
as mangas e mãos à obra!
Por que convivemos
com tantas incertezas?
A inteligência emocional
pode dar a você uma
visão além do alcance!
O PES mostra o caminho!
O que é e como funciona
a Lógica Fuzzy
Abordagem sistêmica
no processo decisório
da empresa
A corrida da inovação:
uma prova que acontece
com ou sem crise!
Estratégias inovadoras
a partir de ambientes
disruptivos
Da iluminação à
inovação: as organizações
descobrem a mindfulness
As grandes pensam
grande!
Do Brasil para o
mundo: por que
investir no exterior?
Planejamento
metropolitano e
rede de cidades: o
futuro passa por aqui!
Quem ouve o trovão
não morre pelo raio
Luiz Carlos Mendonça de Barros
A hora de pedir conselhos
Daniel Kahneman
É na crise que testamos
nosso caráter
Raj Sisodia
O consumo é um gesto
de esperança
Washington Olivetto
em tempos de incerteza
tomada de decisão
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Porqueconvivemos
comtantasincertezas?
Nasempresas,astomadasdedecisõesparecemepisódiosdofamososeriadoStarTrek–
Jornadanasestrelas.Ofatoéqueoslíderesdevemaceitarquearacionalidadeélimitada,
ossentimentosestãopresentesnasaçõeseamelhoropçãoéagircomooCapitãoKirk.
Pensedeformacomplexaetransmitadeformasimples!
Por Roberto Camanho
shut
terstock
4. Estratégia
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O
império Inca é conhecido por sua evolu-
ção tecnológica e seu vasto território, que
englobavadesdeonortedoEquador,osulda
Colômbia,oPerueaBolívia,atéonoroeste
da Argentina e o norte do Chile. Evidências arqueológi-
cas publicadas pela revista Proceedings of the National
Academy of Sciences, em julho de 2013, comprovam que
há 500 anos, antes da chegada dos espanhóis, os incas
já praticavam as “Capacochas”, que no idioma quechua
representamascerimôniasdesacrifíciohumano.Esses
cerimoniais celebravam eventos solenes como a morte
doimperador,avitóriadeumagrandebatalhaeoseven-
tosbienaisdocalendárioinca.Ossacrifícioseramreali-
zadoscomacrençaeaexpectativadepararouprevenir
secas, terremotos, erupções vulcânicas e epidemias.
De forma semelhante aos rituais dos incas, as orga-
nizações realizam cerimoniais de planejamento com
base em crenças que geram resultados diferentes das
expectativas. As crenças e condições vigentes nos últi-
mos 20 anos não prevalecem mais, por isso hoje senti-
mos o mundo mais complexo e imprevisível.
Aconvergênciadenovasforçasatuantes(descontinui-
dade, volatilidade e hiperconectividade) está mudando
rapidamente a economia global com reflexos significa-
tivosnasorganizaçõesenaspessoas.Amaiorpartedas
crençasquenosserviramnopassadosetornairrelevante.
Estamosfrenteamudançascomimplicaçõesextraordi-
náriasparaoslíderesempresariais,comodetalhaoartigo
Management intuition for the next 50 years, publicado na
McKinseyQuarterly,emsetembrode2014.Nocenáriocon-
temporâneoarealidadenãoémaiscomoelacostumavaser.
Precisamos ter uma nova “caixa de ferramentas ana-
lítica”, conforme afirma o sociólogo polonês Zygmunt
Bauman,professordaLondonSchoolofEconomics.Para
qualificar o mundo em que vivemos, Bauman cunhou
o termo “modernidade líquida”. Em entrevista ao Portal
Ciência & Vida, ele justifica que o uso da palavra “liqui-
dez”comosendo“aincapacidadederetersuaformapor
muito tempo e sua propensão a mudar de forma sob a
influência de mínimas, fracas e ligeiras pressões é ape-
nas o traço mais óbvio e também a característica mais
consequente de nossa atual condição sociocultural”.
Para o sociólogo alemão Ulrich Beck, professor da
UniversidadedeMuniqueedaLondonSchoolofEcono-
mics, vivemos em uma “sociedade de risco”, na qual a
produção social de riquezas é acompanhada sistemati-
camente pela produção social de riscos. Esse cenário é
apresentadonoartigo“Sentidosdorisco:interpretações
teóricas”,publicadonaRevista Bibliográfica de Geografía
YCienciasSociales,emmaiode2008. Otextomostraque
há“umanovaformadecapitalismo,umanovaformade
economia, uma nova forma de ordem global, uma nova
forma de sociedade e uma nova forma de vida pessoal”.
Até meados do século 20, o objetivo do pensamento
científicodaracionalidadeclássicaeraadescobertadas
leisuniversaisdanaturezacomumaabordagemreducio-
nista, ou seja, estudando as partes, entendia-se o todo.
Opensamentocomplexoquerepresentamelhorareali-
dadeatualsurgiunosanosde1970eestáemcursodeela-
boração.Nele,aspartesintegramotodo,masnãoperdem
suas características individuais, conforme exemplifica a
metáforadeEdgarMorin:osfioscompõemotapete.Estesó
étapeteporcausadosfios,masoqueoconstituiéarelação
entreosfiosdesuacontexturaeoconjuntodatapeçaria.
Aceitar que convivemos com a incerteza e a
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complexidade é um bom ponto de partida para reduzir
a imprevisibilidade e calibrar as expectativas.
Masporquepersistimosemmanterascrençasantigas?
Como não há regras e métodos estruturados para se ade-
quaraomundodoaquieagora,quesãoasformascomas
quaisnósfomoscapacitadosparagerirmosasempresase
asnossasvidas,temosdificuldadeparainiciaramudança.
O julgamento e a intuição
Quandoreconhecemosumapalavra,nóstambémtemos
acesso às informações na nossa memória sobre o signifi-
cadodaspalavraseoutrasinformaçõesassociadas.Então,
“nossa habilidade em falar e entender a linguagem tem o
mesmosabordeintuiçãooujulgamentoqueahabilidade
deummestreenxadristaparajogarxadrezrapidamente”,
comoressaltaHerbertA.Simon,queem1978ganhouoPrê-
mio Nobel de Economia, por pesquisas pioneiras no pro-
cessodetomadadedecisõesnasorganizações.
“Aintuiçãodosespecialistasnosparecemágica,mas
não é”, completa Daniel Kahneman, que em 2002 rece-
beu o Prêmio Nobel de Economia, ao defender a tese da
teoria da perspectiva. “Intuições válidas são desenvol-
vidas quando os especialistas aprendem a reconhecer
elementos familiares em uma nova situação e agem de
uma forma apropriada para isso.”
“Um gestor experiente, como um mestre enxadrista,
tem em sua memória uma bagagem de conhecimento
adquirido por treinamentos, experiências organiza-
das em termos de reconhecimento de padrões e infor-
mações associadas”, salientou Simon em 1987, quando
concluiusuapesquisasobremestresenxadristas.“Asitu-
ação provê um palpite ou sugestão. Essa sugestão provê
o especialista de acesso à informação armazenada em
sua memória, e a informação fornece a resposta. Intui-
çãonadamaiséquereconhecimento.”Intuiçõesválidas
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De forma semelhante aos rituais dos incas, as
organizações realizam cerimoniais de planejamento
com base em crenças que geram resultados
diferentes das expectativas
6. Estratégia
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Fonte:Tomadadedecisãonasorganizações:umavisãomultidisciplinar,coordenaçãodeAbrahamSinOihYu
(EditoraSaraiva,2011).Figuraadaptadapeloautor.
Tomada de decisão nas organizações
Gestoresdevemtomardecisõeseconomicamente
viáveiscomaltograudecerteza
Gestoressãoincapazesdetomardecisões
totalmenteracionaisaindaquequeiram
• Problemas bem definidos
• Objetivos conhecidos e acordados
• Alternativas maximizam o
retorno econômico
• Metas vagas e conflitantes
• Sem consenso entre os gestores
• Escassez de tempo e de recursos
Racionalidadeilimitadaesoluçõesótimas Racionalidadelimitadaesoluçõessatisfatórias
teoria clássica racionalidade limitada
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7. março/abril de 2015|RevistadaESPM 47
são desenvolvidas quando os especialistas aprendem a
reconhecerelementosfamiliaresemumanovasituação
e agem de uma forma apropriada para isso.
Quando somos confrontados com um problema, a
máquinadopensamentointuitivofazomelhorquepode.
Seumapessoatemexperiênciarelevante,elareconhecea
situação,easoluçãointuitivaquevemàsuamenteparece
seracorreta.Masnemsempreaintuiçãosurgedaverda-
deira experiência e não reconhecemos as próprias heu-
rísticasnasdecisões.Quandoaquestãoédifícileasolu-
ção prática não está disponível, a intuição ainda corta o
caminho,eumarespostapodeviràmenterapidamente
– mas essa não é a resposta da questão original. “Esta é a
essência da heurística intuitiva: quando confrontados
comumaquestãodifícil,nósfrequentementeresponde-
moscomumaquestãomaisfácilnolugar,habitualmente
sem perceber a substituição”, explica Kahneman.
Anossaformaçãoprofissional–oubagagemdeconhe-
cimento adquirido por treinamentos – foi construída
combasenateoriaclássicadomodelodaRacionalidade
Ilimitada, que é essencialmente normativa, ou seja, ela
ditaregrasetemporabordagemalógica,queporsuavez
tem por base a racionalidade do indivíduo. Além disso,
tem como pano de fundo um contexto em que a certeza
predomina. Com esse enfoque surge a crença de que “a
ordem só pode ser estabelecida na Terra à força e não
por meio da persuasão, por seres humanos armados de
razão”, como aponta o sociólogo polonês Zygmunt Bau-
man, no Portal Ciência & Vida. A ideia que prevalece é
“aquilo que não é medido, não é controlado”.
Com o passar do tempo, os pesquisadores começaram
a se aproximar da realidade das organizações com uma
abordagem mais descritiva. Por exemplo, no livro Rápido
e devagar: duas formas de pensar (Editora Objetiva, 2012),
Kahneman comenta: “Eu costumo me encolher todo
quando dizem que meu trabalho demonstra que as esco-
lhas humanas são irracionais, quando na verdade nossa
pesquisa apenas mostrou que os humanos não são bem
descritos pelo método do agente racional”. Já Herbert A.
SimoncriouoconceitodaRacionalidade limitada,noqual
afirma que somos incapazes de termos uma abordagem
Abuscadoslídereséserextremamenteracionalpara
decidircombaseemanálisesigualmenteracionais.
DaísurgeasíndromedoDr.Spock,opersonagemque
personificaoraciocíniológico,semmanifestaremoções
OcérebrodoCapitãoKirkéumamáquinadesobrevivência
egarantequeelesintaprimeiroepensedepois.Entrefatos
esentimentos,osentimentocarregaumpesomaior,como
afirmamosestudiososdacognição
Oslíderesdevemaceitarquea
racionalidadeélimitadaeossentimentos
estãopresentesnasdecisões.Nãodá
paraagirsemprecomooDr.Spock
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8. Estratégia
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completadetodasasvariáveisrepresentativasdasituação
analisada.Paraentenderadiferençadessasduasaborda-
gensquegeramdiferentesmodelosmentais,vejaoquadro
“Tomadadedecisãonasorganizações”,napáginaanterior.
Nosmomentosdeincertezas,anossaintuiçãonoslevaa
pensardeformaextremamenteracionalnabuscadeobter
ocontroledetodasasvariáveisdasituaçãovivenciada.Essa
visão não contempla o pensamento complexo, e surge a
nossadificuldadedeentenderarealidadeemquevivemos.
Além das mudanças e das incertezas, há também
uma maior aversão ao risco. A busca dos líderes é ser
extremamente racional para decidir com base em aná-
lises igualmente racionais. Daí surge a síndrome do Dr.
Spock! Simplesmente porque o personagem do seriado
Star trek (Jornada nas estrelas) personifica o raciocínio
lógico próprio, sem manifestar emoções.
Para aliviar as tensões geradas pela síndrome do Dr.
Spock, vale lembrar que não é possível, para um ser
humano,levantartodasasinformaçõeseanalisartodas
asvariáveisqueenvolvemumproblema.Sim,aexperiên-
ciaeacompetênciadealgunsprofissionaisajudampara
que tenham bom nível de assertividade. Por outro lado,
aprenderamaselecionaroqueérelevante,masnãotêm
todas as informações referentes ao problema.
É possível entender, então, que mudanças rápidas do
mercado geraram o desaparecimento de verdadeiros
gigantes, como a Xerox, Compaq, Kodak, que com cer-
teza tinham excelentes executivos, mas estes não sou-
beram reconhecer a tempo que o que era relevante para
elesdeixoudeserparaomercado.Porexemplo:aKodak
chegoualançarmáquinasdigitais.Porémasreceitasdos
filmes e suas revelações reduziram com a populariza-
ção da fotografia digital, e a companhia não adequou os
custos e o modelo de negócio à nova realidade.
Ao tomar decisões, normalmente nos contentamos
com um conjunto suficiente de condições e não um con-
juntoeficientedecondições.Simoncunhouotermosatis-
ficing,ouseja,“satisficiência”,combinaçãoentreosverbos
tosatisfy(satisfazer)e to suffice(bastar).Apalavradesigna
exatamenteessemodelodedecisãonoqualasatisfaçãode
umdeterminadocritériojáéporsisósuficienteparaque
adecisãosejaconsideradaeficiente,deacordocomolivro
Como as decisões realmente acontecem,deJamesG.March
(LeopardoEditora,2010).
AsíndromedeseroDr.Spockénatural.Afinal,durante
aformaçãoacadêmica,“osteóricosepesquisadoresnão
acabam por reforçar e confirmar a prática alimentada
pela crença de que é mais importante e produtivo coi-
sificar e quantificar do que singularizar e humanizar?”,
Mudançasdemercadojágeraramodesaparecimentode
gigantes,comoaXerox,quetinhaexcelentesexecutivos,
masnãosoubereconhecer,atempo,queoqueerarelevante
paraeladeixoudeserparaosseusclientes
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9. março/abril de 2015|RevistadaESPM 49
questionaaprofessoraSylviaConstantVergara,daFGV-
-Ebape, no artigo “Desafios relacionais nas práticas de
gestão e de organização”, publicado na RAE – Revista de
Administração de Empresas, em 2005.
Por outro lado, reconhecido por suas características
deliderança,ocomandantedanaveEnterprise,Capitão
Kirk,éumcontrapontodeSpock,nomesmoseriado.Por
ser humano, o cérebro de Kirk é uma máquina de sobre-
vivênciaegarantequeelesintaprimeiroepensedepois.
Entrefatosesentimentos,osentimentocarregaumpeso
maior, como afirmam os estudiosos da cognição.
É por isso que, para Kirk, nem sempre são viáveis as
recomendações do Dr. Spock. As dificuldades para exe-
cutá-lassurgemquandoocapitãoanalisaasconsequên-
ciasdasdecisõespuramenteracionaisdooutro.Kirksabe
que, devido à necessidade que temos de viver em grupo,
a dependência do convívio em sociedade é estabelecida
maisporaliançasdoqueporconquistas,segundoafirma
osociólogoPeterBerger,nolivroPerspectivassociológicas:
uma visão humanística (Editora Vozes, 2014).
Os líderes devem aceitar que a racionalidade é limi-
tadaeossentimentosestãopresentesnasdecisões.Não
dá para agir como Dr. Spock. Eles devem saber que será
possível agir somente como o Capitão Kirk.
Então, como agir?
Oslíderescontemporâneosdevemterodesejodesucesso
porumacausamaiorqueelesmesmos,conformeressalta
ShimonPeresnoartigoManagement intuition for the next
50 years, publicado pela McKinsey Quarterly.
Asrecomendaçõesparaoslíderesdescritasnomesmo
artigosãoasseguintes:emmomentodeextremavolatili-
dade,aexperiênciapassadaéumguiapoucoconfiávelpara
osresultadosfuturos;crieaculturadoceticismoconstru-
tivoesecerquedepessoasqueapresentemmúltiplaspers-
pectivasenãotenhammedodedesafiarochefe;aprendaa
decidirnãosomentecomavisãofinanceira;lembre-sede
comopensaoCapitãoKirkeconsidereadimensãosocial
e política; e procure agir com calma em meio ao caos.
Umtemafinal:pratiquenovasformasdecomunicar a
estratégiacommensagenssimpleseclarasqueressoem
através das culturas. Pense de forma complexa e trans-
mita de forma simples!
Roberto Camanho
Engenheiro mecânico pela FEI/SBC e mestre em
inovação pela FEI/SP, consultor, professor de análise das
decisões e estratégia empresarial na ESPM/SP e pesquisador
em processos decisórios do Núcleo Decide da FEA/USP
AKodakchegoualançarmáquinasdigitais.Porémasreceitas
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