1. DIREITO E LITERATURA: ULISSES E O CANTO DAS SEREIAS: SOBRE O
ATIVISMO JUDICIAL (ELEITORAL) E A (IN) EXISTÊNCIA DE AMARRAS
À INTERPRETAÇÃO-APLICAÇÃO DO DIREITO:
A questão-chave deste breve artigo é: num universo em que, advindos do
campo da política, da moral e da economia, os discursos predatórios da autonomia do
direito buscam incessantemente enfraquecê-la, cada vez mais se torna crucial discutir
as condições de possibilidade da validade do direito (STRECK). Com efeito, o direito
deve ser resguardado naquilo que é a sua principal conquista, isto é, o seu profundo
grau de autonomia. Logo, considerando que uma das principais características do
constitucionalismo contemporâneo é a relevância (que não se confunde com
supremacia) dispensada ao Poder Judiciário, e que, cada vez mais, matérias que
anteriormente quedavam-se alheias à esfera da jurisdição transmudam-se em
demandas/litígios judiciais, aumentando a respectiva interferência na arena democrática,
é indispensável que haja um rigoroso controle das decisões judiciais, uma espécie de
accountability, de modo que a principiologia constitucional, a força normativa da
Constituição e a tradição jurídica não venham a ser vilipendiadas por eventuais posições
descompromissadas. Dito de outro modo, se a judicialização da política tem sido
recorrente, e se, com ela, a interferência do judiciário vem aumentando (em muito no
âmbito dos processos eleitorais), maior deverá ser o controle das respectivas decisões e
o comprometimento dos órgãos judicantes com a higidez do sistema jurídico, afinal,
isso é uma questão de democracia. E é bom que assim o seja, até porque um dos
pressupostos centrais do regime democrático é justamente o controle do poder
constituído, incluindo-se aí, evidentemente, não só o Legislativo e o Executivo, mas,
também, sobretudo nos dias hodiernos, o Poder Judiciário.
Nesse cenário, indaga-se, desde já: o que a Odisseia de Homero tem a ver
com tudo isso, eis a questão? Diretamente, absolutamente nada. Porém, aproximando
Direito e Literatura, é possível traçar um estreito paralelo entre a realidade de Ulisses
(ou Odisseu), o canto das sereias e o ativismo judicial (eleitoral) em terras brasileiras.
Em verdade, o problema do ativismo judicial eleitoral, tal e qual a tônica a ser atribuída
pela nossa proposta, pode ser perfeitamente compreendido a partir desta alegoria. E eu
passo a justificar:
2. Na Odisseia, Homero narra à travessia de Ulisses e de sua tripulação de
Troia a Ítaca, na Grécia. Tão logo finda a epopeica guerra entre gregos e troianos,
Ulisses resolve retornar para o seu reino (Ítaca), ciente, porém, de que passaria por todo
tipo de obstáculos mar adentro. Fora da rota ordinária, certo dia a nau de Ulisses
aproximou-se da ilha de Capri, uma ilha rochosa conhecida como a região das sereias.
Estes seres, conhecidos pela beleza, carregavam o poder de hipnotizar os homens
através dos seus cantos. E o encanto advindo dos citados cantos acabaria por conduzir
as embarcações aos rochedos da morte, de onde dificilmente poderiam escapar. Sabedor
dos efeitos arrebatadores do cantar das sereias, contudo, Ulisses acabou por ordenar aos
seus marinheiros que o amarrassem ao mastro do barco, e que, em qualquer hipótese,
viessem a soltá-lo futuramente, não importando quaisquer ordens vindouras que ele
próprio viesse a emitir em sentido oposto. A ordem era clara: ele só poderia vir a ser
desatado quando tivessem concluído a passagem pela ilha. Resistir era quase
impossível. Ciente dessa realidade, no fim das contas, Ulisses criou uma autorrestrição,
evitando que viesse a sucumbir. E, desse modo, o rei de Ítaca pôde vencer o canto e o
encanto das sereias.
Daí que, da mesma maneira, “[...] as Constituições funcionam como as
correntes de Ulisses, através das quais o corpo político estabelece algumas restrições
para não sucumbir ao despotismo das futuras maiorias (parlamentares ou monocráticas).
Isso é de fundamental importância. Algo que os gregos ainda podem nos ensinar com a
autoridade daqueles que forjaram o discurso democrático: entre eles as decisões mais
importantes acerca dos destinos da pólis só poderiam ser levadas a efeito no diálogo que
se estabelecia na ágora”.1 Mesmo nos momentos de desespero coletivo – como ocorre
em casos de Guerra, o que aparece claramente no texto de Homero – era necessário
obedecer à razão e não às paixões temporárias ou aos interesses derivados das
preferências pessoais de cada um dos indivíduos. E, como Ulisses e suas correntes,
“também a democracia construída pelos gregos passava pelo desenvolvimento de
mecanismos que limitavam o exercício do poder e o racionalizavam. Enfim,
mecanismos de pré-compromissos, ou de autorrestrição”.2
1 STRECK, Lenio Luiz; BARRETO, Vicente de Paulo; TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. Ulisses e o
Canto das Sereias: ativismos judiciais e o perigo da instauração de um “terceiro turno da Constituinte”.
Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD) 1(2): 75-83 julho-
dezembro 2009, p. 76.
2 Ibid. p. 76.
3. Na alegoria presente na Odisseia de Homero, o canto das sereias é um
símbolo da sedução à qual o Homem está submetido. E as amarras ou correntes de
Ulisses, o mecanismo hábil a suspendê-las. Ulisses é amarrado ao mastro do seu barco.
E, mesmo ciente do poderoso cantarolar das sereias, se mantém firme e resistente aos
seus efeitos. Ao ordenar aos subordinados que o amarrassem ao mastro, ele reconhece
as fragilidades enquanto ser humano, e que ele, mesmo ele, também poderia cair no
“canto das sereias”. Ciente e consciente desse estado de vulnerabilidade, Ulisses se
utiliza de um mecanismo externo para resistir, assim evitando cair na cilada do cantar
das sereias da ilha de Capri. Este mecanismo, por sua vez, representou justamente as
amarras/correntes de Ulisses, o que acabou por possibilitar a limitação do poder das
sereias com os seus trinados, bem assim a própria autorrestrição do Rei. Enfim, o
respeito aos mencionados pré-compromissos. Ao ser amarrado, Ulisses contém-se,
suspende os seus desejos, a sua vontade, enfim, o seu arbítrio, e, imune ao canto das
sereias, se mantém fiel aos pré-compromissos pactuados, seguindo, incorruptível ao
soar dos cantos, o curso em direção ao seu recanto.
Logo, neste contexto, especificamente quanto ao mundo da vida envolto ao
Direito Eleitoral, enquanto o “canto das sereias” resta materializado pelos incessantes
apegos ao protagonismo judicial, de onde exsurgem verdadeiras louvações a posturas
axiologistas, pragmati(ci)stas, voluntaristas, realistas, decisionistas, teleológicas, bem
assim pelos clamores populares (e parlamentares, não raramente) pelo combate à
corrupção custe o que custar e pela moralização das campanhas eleitorais e instituições
a qualquer preço, as amarras de Ulisses representam a Constituição Federal, os seus
princípios e as regras (ambos normas) jurídicas legitimadas pela principiologia
constitucional. Isto é, as regras - e princípios - do jogo democrático.
É evidente que a política brasileira apresenta problemas. Não menos
evidente o é que, no curso das campanhas, poderá haver eventuais ilegalidades. Porém,
o busílis da problemática é: em nome do direito e da democracia, não poderemos
fragilizar o direito, tampouco a democracia. Seria um paradoxo, não? Mesmo que o
estado atual das coisas não seja dos melhores, e que haja verdadeiro descontrole no seio
da população, há que se lembrar das amarras de Ulisses, e compreender que a
Constituição da República é uma e se volta a tudo e a todos (a igualdade é um princípio
constitucional, pois), não se podendo, conseguintemente, contorná-la de maneira (e com
fins) ad hoc. Deve-se decidir por princípios! Não pela moral, tampouco pela política.
4. Decidir por princípios, enfim, significa não ser consequencialista nos moldes da análise
moralista do Direito (STRECK). Casuísmos morais e políticos, definitivamente, não
representam algo que se desenvolva na arena (da jurisdição) democrática.
Nas dicções de STRECK, TOMAZ DE OLIVEIRA e BARRETO, temos
uma Constituição “que é o Alfa e o Ômega da ordem jurídica democrática. Uma
Constituição dirigente e compromissória. Viver em uma democracia tem seus custos”3.
Em suma: propugnando sempre pela preservação do grau de autonomia atingido pelo
direito na democracia, pensamos que melhor mesmo é confiar na Constituição e na
forma que ela mesma impõe para a sua alteração e à formulação de leis. Afinal,
duzentos anos de constitucionalismo deveriam nos ensinar o preço da regra
contramajoritária. Ulisses, no comando do seu barco, sabia do perigo do canto das
sereias...!4 E, numa palavra final: quando a Constituição não diz o que a gente quer, não
podemos “alterá-la” ou “esticá-la” a partir de princípios construídos ad hoc. Não se
altera a Constituição por intermédio de ativismos judiciais5. Não se suprime (e
barganha) direitos e garantias fundamentais através de ativismos judiciais. E, através de
posturas ad hoc (de moral, por exemplo), não se dribla a normativa constitucional. Eis
as amarras: o pacto democrático. Ulisses era um sábio. Lembremo-nos de Ulisses!
3 STRECK, Lenio Luiz; et. Al. Ulisses e o Canto das Sereias: ativismos judiciais e o perigo da instauração
de um “terceiro turno da Constituinte”. Op., cit., p. 83
4 Ibid., p. 83.
5 Ibid., p. 83.