1. fl
O DIREITO A
DIFERENÇA
ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ
rr
o
C
"...aplauda-se o esforço do autor e dos editores em manter o texto da obra
atualizada. A despeito de a presente edição datar do ano de 2009, novos
precedentes judiciais e atos normativos editados nesse mesmo ano já são
noticiadas no decorrer do livro, o que demonstra a divida de honestidade
cientifica que são marcas registradas do escritor."
Sérgio
Armanelli Gibson
"O Prof. Alvaro Ricardo de Souza Cruz ê, sem duvida, uma das mais
proeminentes autoridades em Direito Público da atualidade, tendo como uma
de suas marcantes caracteristicas a preocupação em buscar, da melhor forma
possivei, aplicações práticas para as Teorias do Direito mais importantes que se
veem debatidas no ambiente académico contemporâneo."
Hudson Couto Ferreira de Freitas
MA% arraesedit res.com br
AS AÇÕES AFIRMATIVAS COMO MECANISMO DE
INCLUSÃO SOCIAL DE MULHERES, NEGROS, HOMOSSEXUAIS
E PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA.
3a EDIÇÃO
REVISTAAMPLIADA E ATUALIZADA
ARRAES
EDITORES
1
8 ,6
2. CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO ,
"•••..
Quando Mark Twain lançou o .romance As Aventuras de Huckleberty
Finn (1882), ele provocou um enorme reboliço na Sociedade Americana:
o protagonista da estória era um negro, numa época em que a questão da
escravatura ainda dividia a população, especialmente nos Estados do Sul.
Sociedades secretas, tais como a Ku Klux Klan, eram o braço armado da
resistência daqueles que se aferravam à tese da supremacia da raça branca.
A presença de um herói negro era inconcebível num país que se ensanguen-
tara há pouco mais de uma década na Guerra de Secessão.
Cento e vinte anos depois, já no século XXI, o mesmo romance con-
tinua sendo foco dê polêmica nos Estados Unidos. Agora, o debate está no
frequente ernprego da expressão nigerI. Ativistas americanos veem tal regis-
tro- como demonstração cabal de que essa obra deve ser enquadrada como
expressão artística do racismo.
Esse lapso de tempo provocou enorme modificação de nossa visão
de mundo. Presenciamos serisivel mutação da Sociedade, no Estado, nas
Constituições e no Direito de maneira geral. Essa evolução, evidenciada
especialmente no Constitucionalismo, certamente não foi fruto de um pla-
nejamento racional,; sim, a resultante de inúmeros conflitos que se suce-
deram nesse período.
Tradução do inglês: crioula
3. ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ INTRODUÇÃO
I 3
Na época do lançamento da obra de Twain, ora em referência, o Cons-
titucionalismo centrava suas atenções no princípio da liberdade humana.
Liberdade esta que rompia com uma tradição teocêntrica e absolutista de
legitimação do uso coativo da força e consequentemente do Direito. A tu-
tela, especialmente das liberdades de expressão, de locomoção e religião,
compunha uma visão antropocêntrica2 e individualista da Sociedade e do
Estado, entes distintos e distanciados. A Constituição era entendida como
expressão da Soberania Estatal e garantia da liberdade' do indivíduo contra
os abusos dos governantes.
Menos de cinquenta anos depois, o eixo deontológico do Constituciona-
lismo mudava para o princípio da igualdade, mas com um conteúdo absoluta-
mente distinto da noção de igualdade nos paradigmas4 medieval e liberal.
Paradigmas abrem perspectivas de interpretação por meio das quais é
possível inferir novos significados para os princípios do Estado de Direito,
essencialmente o princípio da igualdade. Eles lançam luz sobre as restri-
ções e as possibilidades para a realização de direitos fundamentais, os quais,
como princípios não saturados, necessitam de uma interpretação e de uma
estruturação ulterior.
Segundo Carvalho Nene?, o conceito de paradigma científico surge
através da contribuição de Thomas Kuhn. Sua noção permite esclarecer"os
aspectos centrais dos esquemas gerair e pré-compreensões e visões de mundo", condicio-
nando o agir humano e "a nossa percepção de nós mesmos e do mundo". 1
Nesse sentido, realça-se a importância da evolução da noção de igual-
dade e dos direitos fundamentais, que, de uma maneira geral, o estudo dos
2 "Que obra prima o homem! Corno é nobre a sua razão! Como são infinitas as suas
faculdades! Como são expressivas e admiráveis a sua forma e o seu movimento! Como
pelos seus atos se parece com um anjo! Como pela inteligência se parece com um deus!
É beleza do mundo! O tipo supremo dos seres criados!" (SHAKESPEARE, William.
Handet. Trad. Domingos Ramos. Porto: Lello, 1973, p.111).
3 "Uma ação é conforme ao direito quando permite ou cuja máxima permite a liberdade
do arbítrio de cada um coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal!'
(KANT, Immanuel La metafísica de ks cortmmbres. Trad. Mela Cortina Orts et Jestis Co-
nill Sandrado. Madrid: Tearos, 1989, p. 39).
Paradigmas são realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum
tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma.comunidade praticante de
uma ciência.
CARVALHO NETTO, Menelick de O requisito essencial da imparcialidade para a decisão
adequada de um raso concreto no paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito. Belo
Horizonte; Nova técnica, 1999.
paradigmas constitucionais permite realizar, em face do amadurecimento
da doutrina/jurisprudência, de um paradigma clássico/medieval até os dias
atuais, dentre os quais adotaremos, como marco teórico, o paradigma pro-
cedimentalista da obra de HABERMAS.
Com o paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito,
(...) a Constituição, para articular-se com uma visão procedimentalista
da política deliberativa e da democracia, deve ser compreendida, fun-
damentalmente, como a interpretação e a prefiguração de uma mistura
de direitos fundamentais, que apresenta as condições procedimentais de
institucionalização jurídica das formas de comunicaçá
:
o necessárias para
uma legislação política autônoma; ou seja, das.çpndições procedimentais
que configuram e garantem, em termos constitucionais, um processo
legislativo democrático.'
Mas, para que melhor se possa compreender a ideia de igualdade no
paradigma procedimentalista, é fundamental, mesmo que em síntese aper-
tada, examinar sua evolução a-partir dos paradigmas anteriores.
NO paradigma medieval, especialmente no primeiro milênio, a desa-
gregação do poder temporal romano, em razão das invasões bárbaras, im-
plicou á construção de um Direito Consuetudinário oriundo das tradições
de cada um dos povos. Os direitos e obrigações que regiam a vida dos
indivíduos eram determinados por sua condição social e esta última fixada
pelo nascimento. Sendo assim, aos filhos de um servo/vassalo e aos filhos
de um senhor/suserano passavam as relações estamentais vivenciadas pe-
las gerações anteriores. Cada um deles, igualmente, herdava os direitos de
seus pais'.
O primeiro tios sujeitos referidos acima, herdava o direito à se-
gurança e a obrigação de bem servir fielmente (o servo), enquanto o
segundo, o direito sobre a pessoa do servo (especialmente direitos tribu-
tários, como a corvéia, obrigação de trabalhar gratuitamente nas terras
6
HABERMAS, Direito e democracia) entre a factiddade e validade. Rio de Janeiro; Tempo Bra-
sileiro, 1997.
".A igualdade geométrica prevalecente no mundo antigo e medieval seria, da ótica mo-
derna, um critério de exclusão social (...). Aquilo que seria, por exemplo, um direito
para um ateniense, seria um crime para o escravo. (...) Os direitos, na prática, depen-
diam do status comunitário de cada indivíduo. Se fosse mais virtuoso (por sangue ou
por conquista própria), possuiria mais direitos. Se menos, possuiria também menos
direitos." (GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e cifirenfa. Estado democrático de direito
a partir do pensamento de Habermas, Belo Horizonte, Mandamentos: 2002, p. 48-49).
g
4. 4 ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ INTRODUÇÃO I s
senhoriais) e a obrigação de proteger seus vassalos de qualquer agressão
(o suserano). A noção de Direito Natural ligava-se à noção de Direito
de Nascença.
No período do Constitucionalismo Clássico, a igualdade era um
conceito meramente formal e abstrato. Resumia-se ao fim dos privilégios
feudais face ao Fisco e às Corporações de Ofício. Significava que todos
deviam igualmente arcar com os tributos e que cada indivíduo poderia
livremente acertar as condições do seu contrato de trabalho. Nenhuma
referência aos direitos da mulher em igualdade aos -do homem é concebi-
da nesse período.
Kant, expoente do pensamento filosófico do paradigma liberal, é ex-
- presso no sentido de afastar a concepção geométrica da igualdade medieval
ao adotar uma visão aritmética dessa igualdade, conferindo formalmente
um tratamento igualitário a todos os componentes da Comunidade Política.
Veja:
Cada membro desse corpo deve poder chegar a todo o grau de uma con-
dição (que pode advir a um súdito) a que o possam levar o seu talento
-, a
sua atividade e a sua sorte, e é preciso que os seus co-súditos não surjam
como um obstáculo no seu caminho, em virtude de uma prerrogativa
hereditária (como privilegiados numa certa condição) para o manterem
eternamente a ele e à sua descendêricia numa categoria inferior a deles.
(...) Não pode haver nenhum privilégid inato de um membro do corpo
comum, enquanto co-súdito sobre os outros e ninguém pode transmitir
o privilégio do estado que ele possui no interior da comunidade aos seus
descendentes.°
Esse período foi marcado pela positivação constitucional que confi-
gura formidável marco da história da humantdade: consagra o reconhe-
cimento racional de aspectos básicos universalmente considerados ne-
cessários à realização do ser humana Pela primeira vez na história da
humanidade, a lógica das necessidades coletivas cedeu espaço às priori-
dades individuais. A relação coletivo/indivíduo, que sempre privilegiara o
grupo, inverte sua polaridade de maneira absolutamente espetacular em
favor do indivíduo.
A vida grupai e a sociedade humana são imperativos naturais de sobre-
vivência da nossa espécie. A divisão do trabalho por sexo e por idade é tão
KANT, ImmanueL Sobre a expressão comentr isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na
prática. In: A patperpétrea e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 77-78.
antiga quanto a própria humanidade. Em dado momento da história, todas
as normas sociais, sejam elas morais, religiosas ou jurídicas, passam a prio-
rizar o ser coletivo em detrimento da individualidade. E é justamente essa
inversão que propicia o que Habermas chama de passagem das sociedades
arcaicas da pré-modernidade para as sociedades diferenciadas da moderni-
dade. Esse processo é:
Caracterizado por uma dessacralização das imagens de mtmdo, pelo nas-
cimento da ciência moderna, pela autonomização das esferas normativas
(direito e moralidade), pela independência da arte e das demais manifes-
tações estéticas perante a religião e do mercado e pelo aparecimento do
conceito de indivíduo.'
O advento do paradigma liberal representou algo sem paralelo para a
humanidade. O conceito de coletividade é imanente ao ser humano. Tribos,
clãs, grupos de guerra e cidades-estado sempre colocaram o homem na
condição de sUdini face às necessidades coletivas. Somente a partir do mo-
mento em que o humanismolenascentista e o iluminismo francês adotaram
uma postura antropbcênnica, a Sociedade e o Estado veem subvertidos seu
fundamento de legitimidade. O respeito aos direitos humanos toma o lugar
dos imperativos de sobrevivência (pré-história) e dos direitos divinizatórios
dos monarcas (antiguidade) como substrato do poder político.
A era dos direitos é [...] o tema [...] do significado histórico - ou melhor,
filosófico-histórico - da inversão característica da formação do Esta-
do moderno, ocorrida na relação entre Estado e cidadãos: passou-se da
prioridade dos deveres dos súditos à prioridade dos direitos do cidadão,
emergindo um modo diferente de encarar a relação política, não mais
predominante do ângulo do soberano, e sim daquele do cidadão, em
correspondência com a afirmação da teoria individualista da sociedade
em contraposição à concepção organidsta tradicional."
Assiste razão a Georg Jellineck ao reconhecer a gênese de tal inversão
axiológica às chamadas guerras religiosas. A ascensão ao trono francês de
Francisco I e a de Carlos II aà trono espanhol consolidaram o absolutismo
como forma de governo no início do século XVI. Vigia, então, o princípio
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo de Oliveira. Tutelajrniulicional e Estado Democrático
de Direito; por uma compensação constitucionalmente adequada do mandado de imitação. Belo Ho-
rizonte; Dei Rey, 1998.
ao BOBBIO, Norberto. A nu dos direi/os. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 5 ed. Rio de Ja-
neiro; Campus,1990
5. 6 ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ
cujos regio dus religio, segundo o qual a religião de um país devia ser aquela do
soberano que o governa".
Todavia, a insatisfação popular com os abusos cometidos pela Igreja
Católica traz como consequência uma adesão de parcela significativa dos
europeus às 95 teses da reforma luterana afixadas na porta do Castelo de
Wittenberg em 31 de outubro de 1517. Martinho Lutero era um monge
alemão-que criticava a pompa e os desmandos da Igreja Católica do perío-
do. Mesmo sem ter sido o primeiro, haja visto os movimentos reformistas
do inglês John Wycliffe (séc. XIV) e do tcheco Jean Hus (séc. XV), sem
esquecer dos movimentos cátaros e waldenses na Alta Idade Média, Lutero
aproveitou o momento da venda maciça de indulgências realizada pelo Papa
Leão X — cujos recursos seriam aplicados na reconstrução da Basílica de
São Pedro, em Roma — para lançar suas ideias.
O movimento se difundiu com rapidez imensa, em razão tanto dos
interesses políticos de ducados alemães de se verem livres do jugo papal,
quanto em função de uma verdadeira revolução ocorrida. o aparecimento
da Imprensa. A confecção de um livro deixou de ser artesanal. Sua produ-
ção em massa e seu barateamento permitiram uma enorme circulação de
ideias. Em pouco tempo, os protestantes contavam com novos reforma-
dores e novas nuances religiosas das quais se destaca a de João Calvino. O
calvinismo e a teoria da predestinação ganham enorme adesão na Suíça,
na Escôpia e se difundem na França, por meio dos huguenotes. A reação,
porém, não tarda.
O Concilio de Trento (1545), a criação da Companhia de Jesus e os
trabalhos da Inquisição espanhola constituem os principais elementos da
Contra-Reforma Católica Também os soberanos reagem. A Igreja, impor-
tante como alicerce do Estado e da própria legititriidade dos monarcas, estava
ameaçada. Os séculos XVI e XVII testemunharam as guerras civis religiosas
na França e na Alemanha. Nesta, os príncipes protestantes impõem derrotas
consecutivas a Carlos V, rei católico da Espanha. Ao final, a paz selou defini-
tivamente a continuidade da religião reformada. Na França, todavia, a sorte
dos huguenotes foi mais dolorosa. Os massacres de Wassy (1562) e especial-
mente o massacre da noite de São Bartolomeu (1572), ordenado por Catarina
de Mediei, são exemplos da carnificina que tomaram conta daquele país du-
" Essa forma de governo se difundiu e alcançou seu esplendor nos reinos de Frederico,
o grande (Rússia), e Catarina, a grande (Rússia), bem como no reinado de Luis XIV, o
Rei Sol da França.
INTRODUÇÃO 7
rante mais de 30 anos. O Édito de Nantes significou, na prática, uma breve
trégua para a recuperação do poder absoluto dos reis franceses. A luta por
esse poder inexorável negava ao indivíduo sua vocação religiosa, sua liberda-
de de expressão. O cerco da cidade de La Rochelle pelo Cardeal Richelieu e,
posteriormente, o Édito de Fontainebleau acarretaram a emigração de 200
mil protestantes franceses nos reinados de Luís XIII e Luís XIV
A importância desses eventos foi fundamental para a compreensão das
ideias libertárias do Século XVIII. Pela primeira vez, o homem viu reconhe-
cidos os seus direitos individuais. A igualdade deixou definitivamente seu
aspecto geométrico, que distinguia os homens em castas, impondo privilé-
gios em razão do nascimento, e se estabeleceu na for.ma aritmética A partir
de então, todos seriam tratados igualmente pela lei'.
Não é possível esquecer a dimensão histórica da Carta Magna do rei
inglês João Sem Terra. Apesar da importância de sua releitura, culminando
na assinatura do Petitium of Right.? (1629) e nas revoluções de 1640 e 1688,
destacamos propositalmente a luta pela liberdade de expressão religiosa,
uma vez que a mesma tem sido negligenciada por grande parte dos consti-
tucionalistas modernos.
Contudo, a despeito dos ideais revolucionários do século XVIII, o fru-
to desse arquétipo constitucional ao longo do século XIX foi a consolida-
ção de um regime capitalista imperialista e uma exploração do homem pelo
homem nunca antes vista na história da humanidade.
O século XIX testemunhou um período sem igual na exploração do
homem pelo homem. Apesar do notável progresso tecnológico visto na
eclosão da Segunda Revolução Industrial, nunca se viu tamanha concentra-
ção de capitais nas Mãos de tão poucos.
Essa é a época da formação de grandes conglomerados econômicos
e financeiros. Cartéis, trustes e monopólios permitiram uma produção em
escala absolutamente fantástica. Contudo, "o exército industrial de reser-
va", na expressão de Marx, acumulou-se na periferia dos grandes centros
urbanos. Jornadas de trabalhá variando de 16 a 18 horas por dia, velhos,
crianças e mulheres em rodízio nos postos de trabalho, remunerações indig-
' `!Apenas à guisa de registro, é na Revolução Francesa que se formaliza a idéia jurídica de
igualdade, inserta no artigo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.
Posteriormente, com o movimento constitucionalista que grassou o mundo, o ideal de
igualdade tomou lugar cativo nas Constituições modernas." (LUCAS DA SILVA, Fernanda
Duarte Pd,:eipiaconstitudonal Si igualdade. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p. 33).
6. 8 1 ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ INTRODUÇÃO 1 9
nas levando milhões à faixa da miséria, repressão policial contra toda e qual-
quer organização de protestos, acidentes de trabalho encurtando a vida útil
de milhares, nada de descanso semanal remunerado e muito menos férias.
Um quadro digno da descrição do Inferno no clássico A Divina Comédia, de
Dante Alighieá, criado por uma sociedade e por um Estado moldados pelo
paradigma liberal.
Assim, o Constitucionalismo Social, consolidado pela Carta Alemã de
Weimar (1919), s
—
Urgiu como reação às injustiças mencionadas. A igualdade
sustenta-se, a partir daquele momento, na garantia dos direitos econômicos
e sociais, coletivos ou difusos. A intervenção estatal, rejeitada na visão libe-
ral, passou a ser reclamada com o fito de garantir e prover direitos trabalhis-
tas, previdenciátios, sanitários e assistenciais, dentre outros.
Nesse sentido, o indivíduo tornou-se credor de prestações positivas do
Estado que, por seu lado, transformou-se em provedor de tudo e de todos.
A preponderância do Legislativo, criador primacial da norma legal abstrata
e geral como manifestação ímpar da Soberania, cedeu, naquele momento,
espaço ao Poder Executivo, único capaz de fazer frente às necessidades da
população, tanto pela prestação de serviços públicos, quanto por sua agili-
dade na tomada de decisões legislativas".
É curioso dizer que esses ideais, quando consolidados no ordena-
mento jurídico, vieram semear o caminho das lutas sociais do século XIX,
construindo uma sociedade que levou4expressão maior da exploração do
13 No Brasil, ainda nos dias atuais e por incrível que possa parecer, o Supremo Tribunal
Federal mantém íntegra a noção de igualdade material/substantiva típica do paradigma
do Estado Social de Direito. Veja:
"O princípio da isonomia que se reveste de auto-aplicabilidade, não é — enquanto pos-
tulado fundamental de nossa ordem político-jurídica — suscetível dejegulamentação
ou de complementação normativa. Esse princípio — cuja observância vincula, incondi-
cionalmente, todas as manifestações do poder público — deve ser considerado, em sua
precípua função de obstar discriminações e de extinguir privilégios, sob duplo aspecto:
(a) o da igualdade na lei e (b) o da igualdade perante a lei. A igualdade na lei — que
opera numa fase de generalidade puramente abstrata — constitui exigência destinada
ao legislador que, no processo de sua formação, nela não poderá incluir fatores de
discriminação, responsáveis pela ruptura da ordem isonômica. A igualdade perante
a lei, contudo, pressupondo lei já elaborada, traduz imposição destinada aos demais
poderes estatais, que, na aplicação da norma legal, não poderão subordiná-la a critérios
que ensejem tratamento seletivo ou discriminatório. A eventual inobservância desse
postulado pelo legislador imporá ao ato estatal por ele elaborado e produzido a eiva de
inconstitucionalidade". (STF — Pleno MI f 58/DF — Rel. p/ acórdão lvfm. Celso de
Meio, Diário da Justiça, Seção I, 19 abr. 1991, p. 4580).
homem pelo homem. O Manifesto Comunista de Marx e Engels, a En-
cíclica Rerum Novarum do papa Leão XIII e a Declaração dos Direitos do
Homem Trabalhador e Explorado da Revolução Russa traduzem a luta de
mais de cem anos pelo direito de associação em sindicatos, por direitos
sociais, econômicos, pelo amparo Estatal relativo a prestações sanitárias e
previdenciátias.
Prevalecia, nesse momento, a aspiração à igualdade no seio da Decla-
ração Francesa. Do État Gendarme passa-se ao Welfare State. Os cidadãos tor-
nam-se clientes de prestações positivas do Estado. A Sociedade não deseja
mais o absenteísmo estatal e passa a cobrar essas prestações em favor da po-
pulação, na forma de direitos previdenciários, sanitiar
.ios, assistenciais, dentre
outros. A reação foi brutal e o aparato policial estatal reprimiu com violência
fisica os movimentos sociais". Mesmo no campo do Direito, a chamada teo-
ria das normas programáticas constitui reação à aplicação dos direitos sociais
e econômicos positivados nas Constituições do princípio do século XX.
As normas programáticas são aquelas às quais o Constitucionalismo
clássico, forte em concepções positivistas, negou reconhecer impositivida-
de, sob a alegação de dependerem de procedimentos legislativos superve-
nientes e dependentes da conveniência governamental'.
Não obstante tal reação, é inegável que os direitos sociais, trabalhistas
e coletivos ganharam densidade normativa com sua positivação, não ape-
nas na Constituição, mas também no ordenamento infraconstitucional. No
Brasil, apesar de todas as dificuldades, deu-se o nascimento de legislações
tipicamente sociais, tais como a Consolidação das Leis Trabalhistas e a Lei
Elói Chaves, origem do Direito Previdenciário nacional.
b' "Os direitos fundamentais conceberam-se, antes, nas idéias, nas lutas, nos movimentos
sociais, nos atos heróicos individuais, nas tensões políticas e sociais que antecedem as
mudanças, como o ar pesado que prevê a tempestade. Os direitos humanos foram,
primeiro, crimes dito políticos pelos quais muitas cabeças rolaram. Só depois vem o
Direito. Muito depois vem os direitos." (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Ação afirma-
tiva; O conteúdodemocrático
' do Ptitscipto Si Igualdade Jurídica. Revista Trimestral de Direito
Público. São Paulo, n.15/96. p. 43).
's SOARES descreve resistência doutrinária na Alemanha com os trabalhos de Cad Sch-
mitt e seu discípulo Forthofli
"Para ambos os autores, o princípio social inserido na conceituação de Estado So-
cial, de conteúdo indeterminado, devia funcionar como programa de atuação para o
legislador e os órgãos do Estado, não podendo ser objeto de aplicação imediata, mas
mediante normas que o concretizassem." (SOARES, Mario Lúcio Quintão. Direitos
Fundamentais e Mreitm ammnitário. Belo Horizonte; Del Rey, 2000. p.101/102).
ir
7. 10 I ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ INTRODUÇÃO 1 11
20
O paradigma social do Direito consolidou a perspectiva de tratamento
privilegiado do hipossuficiente econômica e socialmente, dando colorações
distintas ao princípio da igualdade, tal como concebido pelos revolucioná-
rios franceses. A igualdade deixa seu aspecto meramente formal, assumindo
uma concepção material" e inovadora, permitindo a consecução da máxi-
ma: "Tratar desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade"17.
É preciso deixar claro que os direitos da primeira geração, muito mais
ligados à expressão das liberdades individual e política, assumiram nova
configuração. A segunda geração" não apenas acrescentou novos direitos,
mas, como se verá mais adiante no estudo dos paradigmas constitucionais,
alterou as Matizes dos direitos anteriormente consagrados. Nesse sentido,
Carvalho Netto assevera que o paradigma do Estado Social
pressupõe a materialização dos direitos anteriormente formais. Não se
trata apenas do acréscimo dos chamados direitos de segunda geração (os
direitos coletivos e sociais), mas inclusive da redefinição dos de la (os
individuais); a liberdade não mais pode ser considerada como o direito
de se fazer tud-
o o que seja proibido por um mínimo de leis, mas agora
pressupõe precisamente toda uma plêiade de leis sociais e coletivas que
possibilitem, no mínimo, o reconhecimento das diferenças materiais e o
tratamento privilegiado do lado social ou economicamente mais fraco
'6 "A igualdade jurídica material-não consiste ein um tratamento sem distinção de todos
em todas as relações. Senão, só- aquilo que e igual deve ser tratado igualmente. O prin-
cipio da igualdade proíbe uma regulação desigual de fatos iguais; casos iguais devem
encontrar regra igual. A questão é, quais fatos são iguais e, por isso, não devem ser
regulados desigualmente." (HESSE, 'Contad. Elementos do direito constitucional da República
Federal da Alemanha. Porto Alegre; Sérgio ' Fabris 1998, p. 330)
17
"O Tribunal Constitucional alemão estabeleceu alguns princípios para detectar a de-
sigualdade: antes de 1950 aderira ao critério material, influenciado por Leibholz, afir-
mando que a regra de igualdade é ferida quando não se encontra um fundamento
racional, material ou derivado da natureza das coisas (Natur der Sache) para a dife-
renciação ou igualação da lei, ou, em síntese, quando a determinação seja arbitrária
(willkürlich); recentemente, na década de 80, desenvolveu a argumentação apelidada
de novo formalismo (Neue Formal), baseada em comparação intersubjetiva, dizendo
que a norma constitucional que prevê a igualdade de todos perante a lei é desrespeitada
'quando um grupo de destinatários da norma' (Eine gruppe vera norrnadressaten) em
comparação com outro grupo de destinatários seja tratado de modo diferente, apesar
de inexistir diferença de qualquer qualidade ou peso (vem sokher Art. Und solchen
gewicht), que justifique o tratamento desigual." (TORRES, Ricardo Lobo. Os direitos
humanos e a tnbutação.imunidades e isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p.263)
18
Nãose entrará, na presente obra,na pungente controvérsia doutrinaria sobre a incidên-
cia de "dimensões" e não de "gerações" de direitos fundamentais.
da relação, A propriedade privada, quando admitida, o é como um
mecanismo de incentivo à produtividade e operosidade sociais, não mais
em termos absolutos, mas condicionada ao seu uso, à sua função social:9
Avançando mais 50(cinquenta) anos, vamos nos deparar com um novo
Constitucionalismo, cuja síntese alterou sensivelmente o significado do prin-
cípio da igualdade, pois passou a centrar-se no princípio da dignidade huma-
na20. A passeia
-humana não pode mais ser vista de forma abstrata e distante,
tornando-se um ser concreto/palpável. O programa normativo densifica-se
nas múltiplas facetas e diferenciações da humanidade, particularizando-se na
defesa dos hipossuficientes, especialmente das minorias étnicas e sociais.
A noção de igualdade deixa de se centrar conteúdo (igualdade
material), ao voltar-se para o exame dos pressupostos procedimentais que
devem ser cumpridos no discurso de produção do Direito. Logo, o Cons-
titucionalismo Contemporâneo exige o direito de igual participação do
cidadão em todas as práticas estatais, sejam elas oriundas de quaisquer
Poderes Constituídos.
Portanto, o direito de participar de decisões políticas, sejam elas de
cunho legislativo (discurso de justificação de norma) ou administrativo/ju-
dicial (discurso de aplicação de normas)21, alterou qualitativamente a noção
de igualdade no paradigma do Estado Democrático de Direito.
É milito mais apropriado definir a igualdade como "tratar os indivíduos
como iguais" do que tratar os indivíduos igualmente. A diferença é que
Habermas radica a igualdade não no conteúdo da norma (que pode ou
não tratar indivíduos e situações igualmente), mas nos pressupostos que
devem ser verificados no discurso que produz a norma. Ou seja, os
CARVALHO NETTO, 1999:04.
"O direito foi criado para o homem, que é fim e não meio O principio da dignidade
humana, embora esteja consagrado na Constituição, é um valor suprapositivo, pois é
pressuposto do conceito de Direito e a fonte de todos os direitos, particularmente dos
direitos fundamentais. [...] A peásoa humana é o valor básico da Constittfição, o Uno do
qual provém os direitos fundamentais não por emanação metafisica, mas por desdobra-
mento histórico, ou seja, pela conquista direta do homem. Só podemos compreender os
direitos fundamentais mediante o retomo à ideia de dignidade da pessoa humana, pela
regressão à origem." (MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermes:Futica e Unidade
Axiológica da ConstiMipi . Belo Horizonte. Mandamentos, 2001, p. 228/229).
21 A respeito do tema, convidamos o leitor a ler nossa obra Hermenêutica Jurídica e(m) debate.
O constitucionalismo brasileiro entre a Teoria do discurso e a ontologia oristencial Belo Horizonte:
Editora Fórum, 2007.
EL,
8. 12 i ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ INTRODUÇÃO j 13
cidadãos não devem necessariamente ser iguais na forma em que são tra-
tados pelas normas, mas devem ser iguais nos direitos e na forma efetiva
em que participam do processo de elaboração da norma.11
A igualdade procedimental do período contemporâneo deve ser en-
tendida como uma igualdade aritmeticamente inclusiva para viabilizar que
um número crescente de cidadãos possa simetricamente participar da pro-
dução de políticas públicas do Estado e da Sociedadea.
Nesse sentido, só garantindo a igualdade é que uma sociedade pluralista
pode se compreender também como uma sociedade democrática. Con-
seqüentemente, só permitindo a inclusão de projetos de vida diversos
em uma sociedade pluralista é que ela pode se autocompreender como
uma sociedade democrática 1.4 mesmo que tais projetos alternativos
requeiram, em algumas situações, uma aplicação aritmeticamente desi-
gual do direito, ou seja, justificadas pela produção de mecanismos de
inclusão, como no caso das políticas de ação afirmativa?'
Por conseguinte, a preocupação atual volta-se para o respeito aos di-
reitos humanos em função das particularidades individuais e coletivas dós
diferentes grupamentos humanos, os quais se distinguem por fatores tais
como a origem, o sexo, a opção sexual, a raça, a idade, a sanidade'', a rea-
lização etc.
Sob essa perspectiva, o pluralismo-eleva-se à condição de princípio
indissociável da ideia de dignidade humana; exigindo do Estado e da So-
ciedade a proteção de todos os "outros", diferentes de nós pelos aspectos
acima mencionados.
GODOI, Marciano Seabra de. Justiça, igualdade e direita tributária. São Paulo: Dialética,
1999; p. 106.
" Para que uma minoria possa receber tratamento diferenciado é necessário que seja
considerada uma "classe suspeita", ou seja, carecedora de força dentro do processo
político. Assim, Dworkin sustenta dois mecanismos para a identificação de minorias
merecedoras de atuação especial pelo Poda Público: "Primeiro, a minoria deve ser
marginalizada economicamente, socialmente e politicamente, de modo a lhe faltarem
meios para atrair a atuação dos políticos c de outros eleitores para seus interesses [-I
Segundo, a minoria pode ser vítima de preconceitos, ódio ou estereótipos tão sérios
que a maioria quer vê-la limitada ou punida em razão do seu traço de diferenciação,
mesmo quando tal limitação/punição não atende a nenhum outro interesse, mais res-
peitável ou legítimo, dos outros grupos". (DWORICIN, Ronald. Souering Vidra. Cam-
bridge, Harvard University, 2000, p. 501). Tradução livre.
24 GALUPPO, 2002210.
" A pessoa portadora de deficiência.
Chegamos, então, ao ponto central de nossas preocupações. Como
diferenciar sem violentar? É possível discriminar sem ofender a noção de
dignidade humana? E as ações afirmativas'', elementos centrais na concep-
ção de discriminação reversa, compatibilizam-se com o Constitucionalismo
contemporâneo?
Para tanto, é preciso reconstruir, tal como fizemos, o conceito de direi-
to fundamental e, em especial, o direito à igualdade e seu irmão univitelino,
direito à diferença. Esta reconstrução se faz necessária para uma sodeda_
de mareada pela injustiça. Ademais, nosso foco central, numa perspectiva
de renovação da sociedade brasileira, centra-se nos operadores do Direito
que figuram como atores essenciais para efetivação-das renovadas preten-
sões das minorias.
O papel do Direito é ser instrumento de transformação social para
resgate de direitos ainda hoje não realizados. Cabe, pois, inevitaveirnen_
te, estabelecermos o caminho da reconstrução dos direitos fundamentais
traçado pelo paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito.
Isso porque, segundo Habermas
Os paradigmas do direito permitem diagnosticar a situação e servem de
guia para a ação. Eles iluminaram o horizonte de determinada sociedade,
tendo em vista a realização do sistema de direitos. Nesta medida, sua
função primordial consiste em abrir portas para o mundo. 27
Nesse sentido, o segundo capítulo destina-se a demonstrar a essen-
cialidade da discriminação dos diferentes como elemento indissociável da
democracia. Nele, ficará claro que, mais do que lícitas, algumas discrimina-
as
ções são legítimas e-justificáveis, seja nos juízos de universalização d nor-
mas, seja naqueles de adequabilidade das mesmas aos casos concretos para
tanto, utilizaremos algumas conquistas oriundas da filosofia da linguagem
como suporte para a discussão da legitimidade do ato de diferenças.
Em seguida, estabelecida a noção de discriminação lícita, passaremos
a discutir as origens psicológicas, sociais e econômicas da discriminação ilí-
cita. Estabeleceremos classificação da mesma, para facilitar sua
norte-
e a indicação de técnicas oriundas da experiência jurisprudencial
26
2's Medidas públicas e/ou privadas, coercitivas ou voluntárias implementadas com vistas
à promoção da inclusão social jurídica e econômica de indivíduos ou grupos sedais/
étnicos tradicionalmente discriminados por uma Sociedade.
" HABERMAS, 1997:181.
-ir
9. 14 ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ
americana aplicáveis ao contexto brasileiro, para a identificação de abusos
praticados contra as minorias.
Os capítulos quatro, cinco, seis e sete estudarão particularidades sobre as
discriminações mais comuns contra a mulher, o homossexual, o portador de
deficiência e o negro, ou seja, questões mais criticas no cotidiano brasileiro.
O capítulo oitavo é destinado ao exame da legitimidade/justificação
das ações afirmativas. Buscou-se, em inúmeras teorias, enquadrá-las como
discriminações lícitas. Assim, passaremos por teorias marxistas, neoliberais,
compensatórias, utilitárias, até finalmente chegarmos à perspectiva da teoria
discursiva do Direito.
O último capítulo, antes de nossas conclusões, detém-se num exame
crítico de políticas afirmativas empregadas no Brasil e nos Estados Unidos
em favor das minorias acima assinaladas.
Característica do Direito-Constitucional é a polissemia semântica dos
conceitos por ele trabalhados. Logo, torna-se, desde já, indispensável a con-
ceituação do termo discriminação.
Buscamos nosso conceito na sistematização das concepções constru-
ídas nas Convenções Internacionais sobre a eliminação das formas de dis-
criminação, especialmente contra a: Mulher, adotada pela Organização das
Nações Unidas (ONU) em 1979, mas entrando em vigor em 1981. Nesse
sentido, entendemos a discriminação como toda e qualquer forma, meio, ins-
trumento ou instituição de promoção da distinção, exclusão, restrição ou pre-
ferência baseada em critérios como a raça, cor da pele, descendência, origem
nacional ou étnica, gênero, opção sexual, idade, religião, deficiência física,
mental ou patogênica, que tenha o propósito ou efeito de anular ou prejudicar
o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos
e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou
em qualquer atividade no âmbito da autonomia pública ou privada.
Todavia, há que se deixar claro que é absurdo afirmar que toda discri-
minação é odiosa ou incompatível com os preceitos do Constitucionalis-
mo contemporâneo. Muitas vezes, estabelecei uma diferença, distinguir ou
separar' é necessário e indispensável para a garantia do próprio princípio
I FERREIRA, Aurelio Buarque de Holanda, Novo dicionárioArtrélio,12ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986, p. 596.
CAPÍTULO II
DISCRIMINAÇÃO LICITA
11
10. 16 I ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ DISCRIMINAÇÃO LÍCITA I 17
da isonomia, isto é, para que a noção de igualdade atenda as exigências do
princípio da dignidade humana e da produção discursiva (com argumentos
racionais de convencimento) do Direito.
A discriminação é compatível com a igualdade se não for, ela também,
fator de desigualdade injustificável racionalmente. E, mais que isso, a
discriminação é fator que pode contribuir para a produção da igualdade.'
Nesse sentido, Bandeira de Mello admite a existência de desequipa-
rações permitidas'. Da mesma maneira, Rosenfeld fala em discriminação
in banam parti. Para o primeiro', a discriminação seria possível desde que,
simultaneamente, preenchesse os seguintes requisitos:
1°) Não atinja de modo atual e absoluto os princípios da generalidade e
abstração da norma jurídica;
2°) Haja realmente nas situações, coisas ou pessoas com características
ou traços diferenciados;
3°) Exista correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a
distinção embelecida;
4°) A distinção embelecida tenha valor positivo, à luz do que predica a
Constituição'.
Na procura por discriminações lícitas/legítimas, o primeiro requisito
acima destacado não deve ser encarado como absoluto. Em verdade, a argu-
mentação racional no Direito não é produzida exclusivamente nos discur-
sos de justificação normativa (criação das normas jurídicas)7, mas, também
2 GALUPPO, 2002:216.
3 MELLO,CAso Antônio Baudeira de. PrincipioSibonomia de; desequOraçõesproibidas e dese-
quOaraçães permitidas, in Revista Trimestral de Direito Público, volume!, p.79/83,1993.
4 ROSENFELD, Michel — Constitucional SuWect. la Cardozo Law Review, 1995, p. 1-48.
MELLO, Celso Antônio Bandeira. O aceito jurídico do pincip ie Si igualdade, 2. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p. 53-54.
6 BOSON, Luís Felipe Lopes. A discriminação na jurisprudência, in VIANA, Márcio Ttilio
e RENAULT, Luiz Otávio Linhares (coordenadores). Discriminação: estados.São Paulo,
LTR, 2009, p. 256.
' Siqueira Castro, analisando formas de discriminação ilegítimas de provimentos legisla-
tivo; destaca aspectos hermenêuticos da incidência de normas que, por vezes, dizem
menos do que deveriam dizer, ou, de outro lado, que fixam elementos tipológicos além
dos limita do razoável. Quanto ao último aspecto, ele salienta: "Um exemplo de tal fenô-
meno estaria na norma que, partindo da premissa de que a invalidez dos pais pode tornar
dificil ou ineficiente a guarda e educação dos filhos, estabelecesse de modo genérico e
e necessariamente, nos discursos de aplicação do Direito (aplicação, pelo
Estado, dessas normas jurídicas a casos concretos)8.
A constatação de ambos os discursos é que permite o reconhecimento
de normas específicas/singulares que podem ser obtidas por qualquer dos
Poderes Estatais'.
Por conseguinte, os três últimos critérios são elementos significativos
para o trabalho proposto e devem ser examinados com as particularidades
do respectivo discurso, qual seja, de fundamentação ou de aplicação.
Nesse sentido, o exame da legitimidade do Direito e, mais precisamen-
te, das discriminações deve ser aferido também no âmbitO dos discursos da
aplicação do primeiro, o que torna essencial o excele das posturas e deci-
sões administrativas e judiciais. Habermas afirma que:
Os discursos de justificação (a legislação) não podem levar em conside-
ração ex-antetodas as possíveis constelações de casos futuros, a aplicação
das normas exige uma classificação argumentativa por direito próprio
categórico que, em caso de desquite, o cônjuge inaido ficaria excluído da guarda e pátrio
poder sobre os filhos menores. A discriminação aí residiria contra o cônjuge portador
de invalidez de pequeno grau e irrelevante para o exercido do pátrio poder, que seria,
assim, tratado da mesma maneira que os cônjuges absolutamente inválidos e incapazes de
desempenhar a guarda dos filhos" (SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto. O principio da
bonomia e a igualdade da mulher no direito constitucional Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 68).
8 "Não se pode haver discussão acerca do fato de que urna -norma não pode existir sem
fazer relação a situações, não importa quão suave essa referência possa ser. Toda norma
moral é 'impregnada de caso'. [.] Como Hare demonstrou, há dois níveis diferentes
em que se pode proceder na análise da generalidade de uma norma. Em um nível,
distinguimos as normas gerais das específicas, em outro, as universais das singulares.
Apenas a primeiridistinção se relaciona com o problema da determinação de normas,
que aqui discutimos. O conteúdo semântico de uma norma pode ser ou não, em dis-
tintos graus, específicos à. situação, dependendo do nível de detalhamento empregado
pelos termos usados na norma, ao descrever as possíveis características situationais A
diferença entre uma norma geral e uma específica é, portanto, apenas uma diferença de
grau." (GONTHER, 1993:28). Tradução livre.
9 "O princípio da universalizaçãó (U) deve ser reinterpretado no âmbito dos discursos
jurídicos, levando em conta a faticidade envolvida pelo direito. Como, ao contrário das
argumentações morais, nas quais são possíveis discursos abstrata e teoricamente ilimita-
dos, os discursos jurídicos e os argumentos que podem ser legitimamente levantados e
criticados no seu seio são limitados pelas normas jurídicas, o princípio da universalização
encontra, de imediato, uma versão fraca (u) para as argumentações jurídicas dos discursos
de justificação das normas jurídicas. (...) Nessa versão fraca do princípio da universali-
zação, nós abandonamos a pretensão de saber precisa e previamente, e relativamente a
toda situação a qual a norma é aplicável, que aspectos da situação são relevantes para os
interesses de todos os envolvidos?' (GÜNTHER, 199335 in GALLUPO, 2002: 143)
11. DISCRIMINAÇÃO LICITA I 19
18 ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ
(auseigenem Rabi). Em tais discursos de aplicação, a imparcialidade de
julgamento é alcançada, por outro lado, não através do uso do princípio
da universalização (universatuie noks-grundsat?), mas através do principio
da adequabilidade (prinzip der angemessenhei)'°
A adequação de normas válidas ao caso concreto" é absolutamente
indispensável para a aferição da legitimidade de medidas ou ações de cunho
discriminatório. Portanto, o presente trabalho exigirá um constante exame
da contribuição de decisões, especialmente judiciais, para que seja possível
uma visão mais clara da distinção entre discriminações lícitas e ilícitas, e,
mais tarde, da legitimidade ou não das ações afirmativas.
Logo, não se pretende, com a presente obra, fazer-se uma apologia
a priori das ações afirmativas. Ver-se-á que o exame criterioso das mesmas
contribuirá para separas o "joio do trigo", ou seja, as medidas relevantes e
constitucionais das ações irracionais e inconstitucionais.
Nos Estados Unidos, no afa' de adequar a legislação ao caso concreto,
a jurisprudência demonstra que a Suprema Corte é muito rigorosa no exa-
me da correlação lógicatentre os fatores diferenciais existentes e a distinção
imposta, sob pena de taxá-los como discriminatórios.
Nesse sentido, a Suprema Corte Americana sujeita a um exame rigo-
roso qualquer critério de diferenciação tal como a raça, o sexo etc. Nes-
se campo, Siqueira Castro destaca que. _o leading case é o feito Slcinner v.
Oklahoma, 313 U. S. 535 (1942):
No qual a Suprema Corte dos Estados Unidos invalidou lei estadual de
odiosa inspiração lombrosiana' que estabelecia a esterilização compul-
sória dos condenados reincidentes por crimes apenados com reclusão
e que envolvessem torpeza moral (fehnies involving moral turpitude). Ao
declarar a inconstitucMnalidade de tal estatuto o órgão máximo do Ju-
diciário americano entendeu que o direito de procriar configura uma
liberdade individual insubtraível e que, portanto, qualquer interferência
legislativa em seu domínio somente pode justificar-se por motivos supe-
riores e imperiosos, o que, à evidência não ocorria na espécie.'
HABERMAS, Jürgen. Struggfis for recognition ia the &moerás state. In: GUTMAN, Amy.
Multicukumlimm examining the politics of reeognifion. New Jersey; Priceton University Press,
1994. p. 200/201.
'A norma (Nx) é apropriadamente aplicável em (Sx) se é compatível com todas as outras
normas (NFL) aplicáveis em (Sx) que pertençam a uma forma de vida (FLX) e que possam
ser justificadas em um discurso de justificação" (GüNTHER, 1993:247). Tradução livre
32 SIQUEIRA CASTRO, Carlos Roberto. O pineis da irommia e a igualdade da mulher no
direito constitucional. Rio de Janeiro; Forense,1983. p.75.
Outro exemplo da necessidade de adequar a lei ao caso concreto pode
ser encontrado na Convenção n" 111 da Organização Internacional do Tra-
balho ao falar da chamada business necessip, ou seja, de:
"Situações em que a discriminação se reveste do caráter de inevitabili-
dade, seja em razão das exigências especiais do tipo de atividade, que
exclui por princípio e com boa dose de razoabilidade certas categorias
de pessoas, seja em função de características pessoais das pessoas envol-
vidas."."
Tratando exatamente do alcance da chamada business necessip,, a Corte
considerou a exigência de aposentadoria aos 50 (cinquenta) anos para pi-
lotos de avião uma discriminação ilegítima por ide [37estern Airlines
v. Criswell, 472 U.S. 400 (1985)]. Da mesma forma, a Corte rechaçou a
alegação de administrativo conveniente de uma Companhia aérea, segundo a
qual as aeromoças magras poderiam melhor se desincumbir das funções de
Comissariado de bordo (Gerdan v. Continental Airlines —46013. S. 1074
— 1983). Assim também a Corte negou a ideia de business necesripr sob o fun-
damento de customer preferena, quando o dono de uma pizzaria recusou-se a
dar emprego de entregador de pizza a pessoas que usassem barba (Bradley
v. Pizzaco of Nebraska 7f3d 395 8'circ. 1983). Da mesma maneira,
a exigência de experiência prévia pode ser tida por discriminatória, desde
que fique provado o impacto desproporcional sobre minorias e quando o
empregador não conseguir provar de maneira cabal que a exigência seria
absolutamente indispensável para a atividade (Davis v. Ricbmond, Tre-
dericksburg 803 E ed. 1322 4' circ. 1989)".
13 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa e princípio constitucional da kualdade: o direito
como instrumento de trandgmação social A experiência dos EUA. Rio de Janeiro, Renovar,
.2001, p. 21.
'4 O Supremo Tribunal Federal vem considerando ilegítimas as exigências indevidas de
experiência prévia em certames licitatórios que restringem indevidamente o universo
de concorrentes. Da mesma maneira, vem considerando ilegítimas algumas exigências
de idade mínima em concursos Públicos de cargos e empregos públicos quando não
detecta correlação lógica entre a especificidade da atividade e a diferenciação exigida
em casos de idade, habilitação legal, exame psicotécnio e provas de títulos e capacita-
ção moral. "O cargo de secretário de escola não pressupõe qualquer situação peculiar
que necessite impor-se um limite máximo de idade para o seu exercício; a não ser
aquela estabelecida pelo texto constitucional, para o ingresso no serviço pública" (AI
n. 171909-5 (Ag. Reg)- Min. Rel. Maurício Corrêa — Informativo STF n. 56).
"A estipulação de limite de idade para a inscrição em concurso público só se legitima
em face do art. 7", XXX da CF quando tal limite possa ser justificado pela natureza das
12. DISCRIMINAÇÃO LÍCITA I 21
20 ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ
Todavia, a discriminação seria legítima caso negasse emprego de pilo-
to de avião a um portador de deficiência visual. Da mesma maneira, se se
vedasse acesso à guarda de honra presidencial a homens de baixa estatura".
A Suprema Corte americana considerou legítima a exigência de sexo mas-
culino para o exercício de guarda de presídio masculino no caso Dothard
v. Rawlinson, 433 U.S. 321 (1977).
Ao lado do business necessipl, é possível a identificação de outras formas
legítimas de discriminação, como, por exemplo, a proteção que a ordem
econômica e financeira na Constituição procura trazer para indivíduos ou
grupos jurídico, econômico e socialmente desfavorecidos (hipossuficien-
tes), tais como os trabalhadores, os consumidores, as pequenas e microem-
presas, as sociedades cooperativas, os acionistas minoritários, por exemplo.
Da mesma maneira, são legítimas as discriminações Por idade que pro-
íbem uma criança menor de 14 (quatorze) anos dscontrair relação de em-
prego (art. 227, § 3°) ou um adolescente menor de 16 (dezes
-seis) anos de
votar (art. 14, inciso II, alínea "c").
Em todos esses casos, o Poder Constituinte Originário impõe uma
discriminação que se legitima em favor de argumentos comunitários favo-
ráveis à proteção das crianças, no processo democrático. É de se notar que,
nos casos acima elencados, a discriminação determina uma preferência em
favor de alguém.
Todavia, as discriminações legítimas podem se dar também por vias
excludentes. É o caso do artigo 93, inciso V, que impõe aposentadoria com-
pulsória a um magistrado que alcance a idade de 70 (setenta) anos. A "vio-
lência" contra a liberdade individual de trabalho justifica-se por argumentos
ligados à ideia da necessária renovação/oxigenação dos quadros estatais,
permitindo que as novas gerações possam também dar sua contribuição na
vida pública.
Assim, são !cgf
' timas as normas constitucionais que determinem distin-
ções de gênero, impondo beneficioApreferência que se estabelece em prol da
mulher no tocante à licença maternidade e tempo de contribuição para apo-
sentadoria, implicando em sentido reverso, uma restrição para o homem.
atribuições do cargo a ser preenchido. Na falta de justificação razoável, a lei ou o edital
que adota esse critério para restringir o universo de concorrentes será inconstitucio-
nal." (Informativo STF n. 49)
"A habilitação legal para o exercício do cargo deve ser exigida no momento da posse. 4—
No caso, a recorrente aprovada em primeiro lugar no concurso público, somente não
possuía plena habilitação, no momento do encerramento das inscrições, tendo em vista
a situação de fato ocorrida no âmbito da Universidade. Habilitação plena obtida, entre-
tanto, no correr do concurso: diploma e registro no Conselho Regional. Atendimento,
destarte, do requisito inscrito em lei, no caso, CF, art, 37, I?' (RE n" 184425-RS. Rel.
Min. Carlos Velloso — DJU de 12.06,98) (Informativo STF n. 114).
"Dando provimento a recurso extraordinário interposto pelo—Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios, a Turma reformou decisão do TJ-DF que denegara segu-
rança impetraria por candidatos inscritos em concurso público pára o cargo de Agente
da Polícia Civil do Distrito Federal contra a sua eliminação em exame psicotécnico, ao
fundamento de que o Judiciário não teria competência para, a pretexto de exercer o
controle dos atos administrativos, aprOvar candidatos reprovados es» concurso públi-
co. A Turma entendeu que o questionado exame, pela forma como realizado não aten-
de aos requisitos de objetividade na^apuração do resultado e de publicidade exigidos
pelos incisos Te lido art. 37 da CF'. (RE n. 201575-DF, Rel. Min. Octavio Gallotti, de
19.11.96) (Informativo do STF n. 54).
15 Nesse caso, o critério diferenciador é meramente estético. A guarda há de provocar
impressão, o que certamente homens de estatura mediana/alta provocam de maneira
majoritária na Sociedade-
"Não é desarrazoada a exigência de altura mínima de 1,60 m para o preenchimento
de cargo de delegado de polida do Estado do Mato Grosso do Sul, prevista na Lei
Corimlementar 38/89, do mesmo Estada A Turma entendeu que, no caso, a exigência
mostrou-se própria à função a ser exercida não ofendendo, portanto, o princípio da
igualdade. Vencido o Min. Marco Aurélio relator, por considerar que a referida exigên-
cia seria incompatível com o cargo de delegado de polícia, já que este quase sempre
exerce funções de natureza interna, não se fazendo necessário o porte intitnidador. RE
140889-MS, reL orig. Min. Marco Aurélio, red. P/ o acórdão Mn Maurício Corrêa.
30.05.00" (Informativo STF n. 191).
"CONCURSO PÚBLICO. PROVA DE TÍTULOS. CARÁTER ELIMINATÓRIO
— DIVERSIDADE DE TRATAMENTO ENTRE ELES.
Embora reconhecendo que a prova de títulos pode ter caráter eliminatório, a Turma,
por maioria, deu provimento ao recurso para conceder a segurança, sob outros fim-
damentos, qual seja, de que ofenda o princípio da isonornia a pontuação, no edital do
concurso, de 12 pontos para aqueles candidatos que tinham exercido cargo privativo
de bacharel em direito, em órgãos da administração pública, sem que se adotasse a
mesma pontuação para o igual exercício na iniciativa privada. Vencido o Ministro Néri
da Silveira, que não conhecia do recurso 20 fundamento de que não é dado ao Poder
Judiciário substituir-se à banca' examinadora na definição dos critérios de seleção, sob
pena de prejudicar os candidatos que foram julgados de acordo com o edital de con-
curso. (RE 221966-DE ReL Min. Marco Aurelio. 25-05-99) (Informativo STF n. 15).
"Iniciado o julgamento de recurso extraordinário interposto contra acórdão do TJRS
que, reformando sentença monocrática, restabelecera decisão administrativa quere-
provou o recorrente na prova de capacitação moral para o ingresso no curso de for-
mação para o cargo de Escrivão e de Inspetor de Polida, em virtude de condenação
criminal pelo delito do art. 299 do CP, cuja pena já fora atingida pela prescrição." (RE
212198-RS, reL Mm. Marco Aurélio de Mello. 15-08-00) (Informativo STF n. 198).
13. o
22 I ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ
É de fundamental importância lembrar que a concretização do tex-
to constitucional impõe o emprego, pelo hermeneuta, de sofisticadas
técnicas linguisticas, num processo semântico e pragmático da dialética
constitucional. Rosenfeld16, em trabalho inovador, indica as figuras de lin-
guagem da negação, da metáfora e da metonímia como instrumentais úteis
à identificação de discriminações legítimas/ilegítimas.
Para esse autor, a negação envolve funções de repúdio, de exclusão e
de renúncia indispensáveis à garantia do pluralismo constitucional". Roseli-
feld afirma que, num primeiro estágio, uma Sociedade Plural se forma e se
consolida através de uma postura essencialmente negativa, ao rejeitar todas
as demais concepções concorrentes do bem comum, tais como a oligarquia,
a plutocracia, a autocracia, a tirania etc. Nesse sentido, perfeitamente legí-
tima g discriminação contra partidos politicos que sustentem organizações
paramilitares de caráter intitnidatório (art. 17, § 40 da CF/88), tais como as
chamadas SS e as SA do partido nazista alemão ou, como já vivenciamos
no Brasil, as brigadas integralistas de Plínio Salgado, ambas presentes na
década de 193018.
Lícito também a rejeição a religiões intolerantes ou que pretendam o
monopólio da verdade pela exclusão física de todos aqueles que não a abra-
IS A ideia de exclusão/negação é trabalhada por Rosenfeld como elemento indispensável
ao discurso constitucional que procure se sustentar numa Sociedade Pluralista. Junto
a essa figura de linguagem, ele irá também trabalhar a metáfora e a metonímia, como
instrumentos poderosos de identificação de discriminações legítimas e ilegítimas. "A
negação é crucial na medida em que o sujeito constitucional só pode emergir como
(um `eu) distinto através da exclusão e da renúncia. A metáfora ou condensação, por
outro lado, que atua mediante o procedimento de se destacar as semelhanças em de-
trimento das diferenças, exerce um papel unificaor-chave; ao produzir identidades
parciais em torno das quais a identidade constitucional possa transitar. A metonímia ou
deslocamento, finalmente, com a sua ênfase na contigüidade no contexto, é essencial
para evitar que o sujeito constitucional se fixe em identidades que permaneçam tão
condensadas e abstratas ao ponto de aplainar as diferenças que devem ser levadas em
conta se a identidade constitucional deve verdadeiramente envolver tanto o eu' (self)
quanto o outro." (ROSENFELD, 1995/17)
17 "Em outro nível, o pluralismo constitucional requer que um grupo se constitua em um
'eu' (self) coletivo reconheça grupos similarmente posicionados com outros (selves),
e/ou que cada eu individual (Individual self) trate os demais indivíduos como outros
'eu', como outras pessoas (selvr_s)." (ROSENFELD, 1995/07)
" Esse mesmo artigo 17, no seu capa, prescreve que os Partidos Políticos Brasileiros
devem obrigatoriamente abraçar as ideias do regime democrático, do pluripartidarismo
e do respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.
DISCRIMINAÇÃO LÍCITA 23
çam Ou mesmo, A de uma religião que impusesse violação ao direito à vida
pelo exercício de sacrifícios humanos.
A metáfora é outra figura de linguagem utilíssima, pois, ao organi-
zar e combinar elementos individuais e instituições em termos de noções
de similaridade, permite uma melhor identificação da legitimidade de uma
conduta discriminatória", bem como reforça a retórica judicial pelo estabe-
lecimento de analogias e similaridades.
Nesse sentido, interessante se faz a leitura do artigo 5°, Caput, da Carta
Atual, que predica, inverbis:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, ga-
rantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade,
nos termos seguintes.' (Grifos nossos)
Está claro que a Constituição vigente não pretende negar tais direitos a
turistas estrangeiros que venham visitar nossa terra. Obviamente, o texto cons-
titucional disse menos do que deietia, não havendo justificativa para qualquer
discriminação entre o estrangeiro residente e o estrangeiro não residente.
Por fim, a metonímia", que promove um sentido de contiguidade/
sucessividade, ao contrário da metáfora, que estabelece elementos de sin-
cronia semântica. Assim, a referência a um elemento do objeto pode repto-
19 "A metáfora também comparece no famoso dito norte-americano `the Constitution is
colorblind' (a Constituição é cega à cor das pessoas). Se se concentra nas qualidades
metafóricas desse dito revela-se que ele resulta da ênfase dada às similaridades entre as
raças, ou seja, aquilo que elas compartilham em detrimento das diferenças entre elas
associado ao desprezo pelas diferenças raciais e pelo que deveria estimar alcançar como
uma conseqüência dessas diferenças. Em outros termos, através da combinação e da
-substituição, a metáfora da cegueira à cor (color blindness) coloca entre parênteses as
diferenças raciais e as associadas à raça. Essa metáfora, sobretudo, legitima a doutrina
constitucional que volta as distinções e classificações fundadas na raça e promove a
identidade constitucional que se eleva acima da desunião, da divisibilidade, da política
social." (ROSENFELD, 1995/24)
20
"A teor do disposto na cabeça do artigo 5" da Constituição Federal, os estrangeiros resi-
dentes no País têm jus aos direitos e garantias fundamentais?' (STF — HC n° 74.051-1 —
ReL Mn. Marco Aurélio — Informativo STF N. 45). No mesmo sentido: R•Ii 164/193.
21
"Figura retórica que consiste no uso de uma palavra fora do seu contexto semântico
normal, por ter uma significação que tenha relação objetiva, de contigüidade, material
ou conceituai, com o conteúdo ou o referente ocasionalmente pensado." (HOUAISS,
Antônio; VILLAR, Mauro SaRes e MELLO FRANCO, Francisco Manoel de. Dicionário
Houaicr da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p 1911)
14. 24 ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ
duzir toda sua inteireza ou até mesmo uma significação semântica suces-
siva. Como exemplo, extraímos trecho do poema "Perfume Exótico", do
poeta romântico francês do século XIX, Baudelaire:
"Guidépar fon odeur vers de cbarmants climats
Je vais un port rempli de voiles et de mats..."(Grifos nossos)
A expressão "velas e mastros" ("voiles et de máts) remete a elementos
que são componentes de um barco. E um barco, por sua vez, permite-nos
associar os vasos à ideia de viagem, especialmente em direção a países
tropicais, de -climas quentes. A metonímia usada pelo autor é dupla e conca-
tenada, dando a ambos os versos a ideia de sucessividade.
A metonímia Permite-nos constatar que uma ordem constitucional
não consegue ser neutra, por exemplo, em face da diversidade de posturas
religiosas. O simples fato de o preâmbulo de nossa Carta mencionar a ex-
pressão "sob aproteção de Deus" é indicativo de que a maioria da Assembleia
Constituinte de 1988 professava a fé, sendo esta uma fé baseada num Deus
único. Ateus e agnósticos, bem como crentes em uma religião com multi-
plicidade de divindades, foram certamente esquecidos ali.
Também assim o disposto no artigo 7°, inciso XV, fixando o domingo
como dia de repouso semanal remunerado. Ora, o domingo é o dia sagrado
de descanso dos cristãos, o que impliciuma discriminação contra judeus e
mulçumanos, que têm, respectivamente, como dias sagrados, o sábado e a
sexta-feira. Tudo leva a crer que o Brasil, no seu âmago, endossa um tipo es-
pecífico de religião (cristã) em detrimento das demais (mainstream religion).
Mas, a ptioti, numa versão fraca do princípio da universalização da le-
gislação, essa discriminação é legítima, posto gue fruto de limitação cultural
do Poder Constituinte Originário. Qualquer povo possui tradições das-quais
não é possível unia abstração completa. Sem razão aqueles que sustentam
haver aqui uma violação ao princípio da separação total do Estado e da
Igreja nos termos do artigo 19,1, da Constituição Federal, isso porque ape-
nas se reconhece, através da figura da metonímia, uma preferência majoritá-
ria do povo por uma fé. Contudo, as consequências dessa opção no campo
da aplicação normativa devem se sujeitar ao principio da adequabilidade.
A configuração do Estado Democrático de Direito impede qualquer ação
estatal contrária ao livre desenvolvimento das demais religiões. Uma visão
22 Obviamente desde que não sejam religiões intolerantes com as demais, tal como se viu
anteriormente.
DISCRIMINAÇÃO LICITA 25
sistêmica concede ao operador do Direito uma direção correta no sentido
de se evitar uma discriminação ilegítima.
Um bom exemplo diz respeito às limitações do poder de tributar. Por
elas, está claro que nenhum ente federativo poderá instituir impostos sobre
templos de qualquer culto'', de maneira a se evitarem preferências em favor
da Igreja Católica.
Reconhecera legitimidade do texto constitucional não significa descu-
rar-se do constante e necessário esforço de respeito mútuo entre diferentes
indivíduos e diferentes coletividades. Assim é que o Estado deverá ter igual
parcimônia com o nível de ruído produzido pelos cântic
- os dos fiéis das
Igrejas Protestantes, quanto para com os sinos das-antigas matrizes católi-
cas interioranas de nosso País, especialmente em face de normas municipais
aferidoras da poluição sonora.
Da mesma maneira, o uso de ervas medicinais utilizadas em práticas
religiosas de nossos indígenas. Algumas dessas herbáceas difundidas em
grandes centros como o "Surto Daime" não podem ser mecanicamente
tipificadas-como drogas/tóxicos, de maneira a:
que, em o fazendo, venha-se
a imputar criminalmente os adeptos daquela fé. Exige-se a incidência do
princípio da adequabilidade em casos tais. -
O respeito à diferença só pode ser fruto de um esforço contínuo, uma
vez que a maioria, não reconhecendo como cidadão o integrante de outro
grupo, geralmente rejeita-o. É uma tendência etnocêntrica, que se registra
pelos antropólogos em todos os grupamentos humanos. Logo, uma discrimi-
nação legítima pode facilmente se desvirtuar, pela imposição às coletividades
minoritárias de condutas violentadoras de sua cultura e tradição. A jurispru-
dência da Suprema Corte Americana é bastante ilustrativa nesta questão.
13 .'Templo, do latim ternphi, é o lugar destinado ao culto. Em Roma era lugar aberto,
descoberto e elevado, consagrado pelos augures, sacerdotes da adivinhação, a perscru-
tar a vontade dos deuses, nessa tentativa de todas as religiões de realizar o homem e a
sua finitude ao absoluto, a Deus. Hoje, os templos de todas as religiões são comumente
edificios. Nada impede, porém, como lembrado por Baleeiro, que o templo ande sobre
barcos, caminhões e vagonetes, ou seja, um terreno não edificado. [...1 O templo, dada
a isonotnia de todas as religiões, não é só a catedral católica, mas a sinagoga, a casa
espirita kardedsta, o terreiro de candomblé ou de umbanda, a igreja protestante, shin-
toista ou budista e a mesquita maometana. Pouco importa tenha a seita poucos adep-
tos. Desde que uns na sociedade possuam fé comum e se reúnam em lugar dedicado,
exclusivamente, ao culto de sua predileção, este lugar há de ser um templo e gozará de
imunidade tributbia". (COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentarias à Corutituição de
1988: sistema tribufrfrio. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 352/353).
•
15. DISCRIMINAÇÃO LÍCITA 27
26 ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ
Em 1988, no caso Lyng v. Northwest Indian, 485 U. S. 439, a Corte
violentou a liberdade de expressão religiosa de numerosos grupos indíge-
nas, dentre eles, os Yurok, Karok, Talowa e Hoepa.
No norte da Califórnia, junto ao Estado do Oregon, na Floresta Na-
cional dos Seis Rios, essas comunidades realizam, há centenas de anos, ce-
rimônia religiosa de purificação. Esta se configura por danças e rituais em
favor de espíritos. Quando o sainço florestal americano quis construir uma
autoestrada para escoamento de madeira por tais lugares santos, os índios
ajuizaram ação na Corte de São Francisco, com supotte na Emenda Consti-
tucional rf 01 de 1791, a qual garante, dentre outras, a liberdade religiosa.
A construção da estrada constituía, para eles, algo semelhante a uma
rodovia que cortasse o Vaticano. A construção da autovia destruía a
solidão, a paz e a privacidade necessárias para que os índios expressas-
sem livremente sua religião. Precedentes havia com adventistas, teste-
munhas de Jeová e com os Amish. Em 1983, a Corte de São Francisco
deu pela procedência do pedido da associação indígena. O governo ape-
lou. Enquanto isso, a lei federal declarou a área reserva florestal, porém,
garantiu e autorizou a construção da estrada-cumprindo compromisso
político assumido para aprovar a lei. Em julho de 1986 a Suprema Corte
da Califórnia confirmou a decisão de primeiro grau. Os autos subiram à
Suprema Corte, Washington. Em novembro de 1987 a Suprema Corte
reverteu as decisões originais, por diferença de apenas um voto (5 x 4).
Entendeu-se que o Podei Executivo não conseguiria operar se tivesse
que atender individualmente todos os desejos dos cidadãos. Os índios
não estavam sendo coagidos a agir contrariamente a suas crenças, o que
seria o objetivo da proteção da 1° Emenda. Em outubro de 1990 outra
lei federal proíbe a construção do que faltava da estrada, sob o funda-
mento de proteção ambiental, e não de liberdade religiosa?
Outro exemplo é o caso Reynolds vs. United States, 98 U. S. 145,
154 de 1978, a Corte julgou constitucional lei de aiminalização da bigamia.
No caso, Reynolds sustentava, em habeas cotpus, que a poligamia era um
dever religioso da comunidade mórmon. Essa decisão materializou um en-
dosso expresso da Corte a uma concepção cristã do modelo constitucional
americano, desrespeitando o direito à diferença daquela comunidade. Não
se pedia, até mesmo por não existir naquele país um controle concentrado
24 GODOV, Arnaldo Moraes. Notas sobre o direito norte-americano.In Revista da Procurado-
ria Geral do INSS, v.7 ,n.4.2001, p. 97/98.
da constitucionalidade da lei penal, a nulidade do dispositivo que criminali-
zava a bigamia; pedia-se apenas o reconhecimento da licitude da conduta de
alguém que considerava a bigamia um dever. Seria o mesmo que punir por
crime de lesões corporais familiares judeus que praticassem a circuncisão.
Rosenfeld reconhece como falaciosa a ideia de um muro de separa-
ção absoluta entre a Igreja e o Estado na América. Para tanto, lembra das
orações feitas por servidores públicos e parlamentares na abertura de uma
sessão legislativa, e a impressão da afirmativa "in God we eras?' na moeda
estadunidense, tanto em papel, quanto em metal.
No entanto, seu reconhecimento de uma identidade constitucional
cristã nos Estados Unidos não pode conduzir à adnitssão de urna preferen-
cia por via de beneffcios fiscais à Igreja Católica ou Judaica, tal como se de-
monstra no ens.° Board of Education of Kiryas Joel Village Sch. Dist.
vs. Grumet, 512 U. S. 687 de 1994. Ali, o vinho utilizado nos rituais reli-
giosos de católicos e judeus foi isentado de tributos determinados pela 18°
Emenda, algo que não se adatiu, por exemplo, com uma bebida alcoólica
(peyote) dos índios americanos. Também assim no caso Lynch vs. Don-
nely, 465 U. S. 668 (1984), quando a Corte garantiu a constitucionalidade•
de uma exibição natalina no coração de um centro comercial. A alegação
de violação do princípio da separação da Igreja e o Estado, vez que era a
municipalidade que apoiava a exibição do presépio, não foi acatada. ACorte
entendeu que a exibição não importava, por si só, a adoção de uma religião,
tendo sido equiparada a uma exposição de pinturas sacras integrantes da
coleção de um museu estatal.
Quando discordamos da Corte no Reynokls case, nós o fazemos com
esteio forte na ideia pluralista que permeia o Estado Democrático. É certo
que a população americana — e por que não dizer a brasileira? — rejeita, por
sei; princípios morais e religiosos, a poligamia. Contudo, a ninguém é dado
o direito de impor sua visão de mundo ou sua concepção de vida digna
através da força coercitiva do .Estado. Logo, se o tipo que penaliza a poli-
gamia é eficaz num discurso universal de justificação, certamente um juízo
de adequabilidade há de se fazer presente quando a questão gira em torno
de um dever religioso.
Uma sociedade plural pressupõe exatamente o diasenso e a diferença
no tocante a projetos de vida, refletindo-se no texto constitucional através
da concorrência de princípios, tal como se vê através da percepção metoní-
mica de uma religião dominante (mainstrearn religion)e a noção de pluralismo.
ijo
16. 28 I ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ
Mas, longe de um problema, a concorrência principiológica marca a riqueza
do Estado Democrático de Direito, tal como observa Carvalho Netto:
Subsistem no ordenamento jurídico princípios contrários que estão
sempre em concorrência entre si para reger urna determinada situação.
A sensibilidade do juiz para as espedficidades do caso concreto que tem
diante de si é fundamental, portanto, para que possa encontrar a norma
adequada a produzir justiça naquela situação específica. É precisamente
a diferença entre os discursos legislativos de justificação, regidos pela
exigência de universalidade e abstração, e os discursos judiciais e execu-
tivos de aplicação, regidos pela exigência de respeito às especifiddades e
à concretude de cada caso ao densificarem as normas gerais e abstratas
na produção das normas individuais e concretas, que fornece o subs-
trato que Klaus Giinther denomina de senso de adequabilidade, que,
no Estado Democrático de Direito, é de se exigir dirconcretizador do
ordenamento ao tomar suas decisões."
Por conseguinte, restou daro que a análise semântica e pragmática26 do
ordenamento jurídico, em especial do constitucional, é fundamental para que se
possa divisar a legitimidade de discriminações. Essa, análise, por sua vez, deve
ser veementemente reforçada pelo Constitucionalismo contemporâneo.
CARVALHO NETTO, Menefick de. Da responsabilidade da administração pela situação faí
mentor da empresa privada economicamente viável por inaclimplência ou retardo indevido Si satisfação
de valores contratados como contraprestação por obras realizadas. Revista da Ordem dos Advo-
gados. Brasfiia, OAB. vol. 63, ano XXVI, jul/dez. 1996, p. 146.
Quer dizer, urna análise que examine o conteúdo performativo das condutas e políti-
cas no seu aspecto locucionário, ou seja, não apenas como ato de comunicação, mas
também como concretizador de atos jurídicos. Exige, portanto, unia adequação do
ordenamento às especificida.des dos casos concretos.
25
26
CAPÍTULO III
DISCRIMINAÇÃO ILÍCITA
A discriminação ilícita-é u
• ma conduta humana (ação ou omissão) que
viola os direitos das pessoas com base em critérios injustificados e injustos,
tais como a raça, o sexo, a idade, a opção religiosa e outros.
Esses critérios injustificados são, de maneira geral, frutos de um pre-
conceito, ou seja, de uma opinião preestabelecida ou um senso comum im-
posto pela cultura, educação, religião; em outras palavras, pelas tradições de
um povo. No caso, o preconceito se manifesta por um julgamento prévio,
negativo, estigmatizando pessoas ou coletividades por meio de estereóti-
pos', tais como:
Toda mulher loura é bonita e burra;
Toda sogra é antipática;
Todo político é corrupto;
Todo índio é preguiçoso;
"Estereótipo é um conceito muito próximo do preconceito e pode ser definido como
'uma tendência à padronização com a eliminação das qualidades individuais e das
diferenças com a ausência total do espírito crítico nas opiniões sustentadas' (Shes-
takov). Segundo Liese Dunningan, o estereótipo é um modelo rígido, anônimo; a
partir do qual são produzidos, de maneira automática, imagens ou comportamentos".
(SANT'ANA, Antônio Olímpio de. História e conceitos básicos sobre racismo e sem derivados.
MUNANGA, Kabengele (Coord.). Serrando o racismo na escola. Brasfiia: Ministério
da Educação. Secretaria da Educação Fundamental, 2001, p. 57)
17. 30 I ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ
Todo negro é burro;
Todo judeu é usurário;
Todo português é estúpido;
Todo imigrante subtrai emprego do nacional.
Com base nesses estereótipos, as pessoas, a Sociedade e o próprio
Estado passam a julgar e a considerar os outros em consonância com esses
modelos preconceituosos. É, pois, um fenômeno inserto na psicologia das
massas, gerando subprodutos tais como o racismo e o sexismo.
A violação dos direitos fundamentais através da discriminação pode se
manifestar de diferentes maneiras. A primeira delas, mas não a mais comum
no Brasil, é a discriminação direta ou intencional, ou seja, uma conduta
da qual se depreende facilmente o animus discriminatóries- ou seja, o dolo, a
vontade de violar o direito de outrem. Nela, está presente a premeditação,
a vontade de violar a integridade física e moral do outro. No Direito Ame-
ricano, é denominada pima fade discrimination, permitindo à vítima desin-
cumbir-se do ônus da prova quando recorre ao Judiciário buscando alguma
medida de caráter injuntivo ou declaratório. -
Apesar de raras no Brasil contemporâneo, as discriminações intencio-
nais são tipificadas como crime pelas leis n's 7.716/89 e 9.459/97. Todavia,
a tentativa de extirpar o mal da discriminação pela via penal beira o ridículo,
uma vez que não temos conhecimento de alguém que-tenha cumprido pena
por condenação criminal com amparo na referida legislação. No entanto,
até a década de 1990, os únicos esforços do governo brasileiro no tocante
ao problema aqui mencionado se encaminham nessa direção, o que torna
novidade absoluta o início de discussões sobre quotas e ações afirmativas
nos dois últimos anos da Presidência de Paliando Henrique Cardoso2.
Ao lado da discriminação direta, encontramos a discriminação de
fato, extremamente comum no Brasil. Esse tipo de discriminação se dá
tanto no campo da autonomia privada, quanto no da pública.
No primeiro, a citada forma de discriminação é denominada por Go-
mes "racismo inconsciente'. Por meio desse mecanismo, o discriminador
não tem a consciência do mal que provoca. Sequer sabe que está discrimi-
nando, o que contribui para a difusão de conceitos tais como o mito da de-
2 Os avanços e retrocessos advindos do Governo Lula merecem um exame mais acurado
por parte da doutrina pátria.
3 GOMES, 2001:30.
DISCRIMINAÇÃO ILÍCITA I 31
mocracia racial brasileira. É o que ocorre com frequência e profusão com as
blagues e piadas, chamadas politicamente incorretas e que, por serem assim
taxadas, repetem-se e se reproduzem cada vez mais no Brasir.
Racism is a malady that we ali share, because we ali have been scarred
by a common history. Unconscious prejudice presents a problem in that
ir is no subject to self-correction within te political process. When te
discriminator is not aware onis prejudice and is convinced that he
already walks in te pad5 of rightousness, neither reason nor moral per-
suasion is likely to succeed. The process defect is ali te more intrac-
table, and judicial scrutiny becomes imperatives -
Outra forma de discriminação de fato resultrde uma política de neu-
tralidade e de indiferença do aparato estatal para com as vítimas da discri-
minação. Nesse sentido, as minorias não conseguem fazer com que as mes-
mas recebam um tratamento diferenciado em razão de suas peculiaridades
étnicas, culturais e sociais.
The goal of te equal protection clause is not to stamp out impute
thoughts, but to guarantee a full measure of human dignity for all. Be-
yond te purposeful, affimative adoption or use mies that disadvantage
tem, minorities can also be injusted when te government is "only
indifferent" to their suffering or "merely" blind to how prior offidal
discrimination contributed to it and how current official acts will per-
petuate it6 •
4
"No Brasil, algumas (não todas) 'práticas discriminatórias' sobretudo em matéria de
educação e emprego se enquadram perfeitamente nessa modalidade. Banalizadas, pas-
sam a integrar a prática institucional normal' e são ofuscadas pela auséncia de questio-
namentos propiciada pelo mito da democracia social." (GOMESjoaquirn B. Barbosa.
Ação afirmativa e pitu-0o onshmánal da igualdade,. o direito como instrumento de transformação
seriai a experiência dosEUA Rio de Janeiro; Renovar, 2001. p. 30/31).
"O racismo é urna doença que todos nós compartilhamos, porque todos nós somos
marcados pela mesma história. O preconceito inconsciente apresenta um problema
por não estar sujeito a uma aulnoorreção dentro do processo político. Quando o clis-
ctiminador não é ciente do seu preconceito e está convencido de que já caminha no
sentido correto, nem a razão, nem a persuasão moral provavelmente terão sucesso. O
erro no processo é dificil de ser solucionado e uni exame judicial cauteloso torna-se
urgente." (LAURENCE, Charles. The i4 lhe go and equal protectiom renEnorung with MOR-
idosalatiffil, Stamford Law Revia&1987, 39/317) Tradução livre.
"O objetivo da cláusula da proteção igual não é purificar pensamentos ruins, mas ga-
rantir urna boa medida de dignidade humana para todos. Além dessa proposta, a ado-
ção de regras que deixam a minoria em desvantagem pode também ser injusta quando
0N
18. 32 ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ
Trabalhando, por quase 6 anos como Procurador Regional dos Di-
reitos do Cidadão, podemos exemplificar esta forma de discriminação por
meio de um caso concreto com o qual nos deparamos.
Na distribuição de cestas básicas pelo programa federal "Comunidade
Solidária", através de convênio entre a CONAB e a FUNAI, o Conselho
Missionário Indigenista, organização não governamental da Igreja Católi-
ca, noticiou que a remessa do feijão para a tribo dos Maxacalis, situada no
nordeste mineiro, causava mais mal do que bem. Isso porque, em razão de
hábitos alimentares peculiares, esses índios não aceitavam feijão na sua dieta
alimentar e, ao invés de comê-lo ou plantá-lo, a mercadoria era empregada
como meio de escambo por bebidas alcoólicas, alimentando um vício secu-
lar que aflige aquela população. Nossos apelos e recomendações, ao invés
de surtirem efeito positivo, sensibilizando o Governo Federal, quase retira-
ram a referida comunidade indígena do programa, que, naquela ocasião, era
a única alternativa de sobrevivência de um povo, circunscrito a pouco mais
de 4.000 (quatro mil) hectare; numa região de seca constante.
Ao contrário do Brasil, governo e sociedade americanos já enfrentam
seu problema faz um bom tempo. A aprovação do Estatuto dos Direi-
tos Civis no governo Lyndon Johnson em 1964, com sua atualização em
1987, representa um esforço sincero de enfrentamento de tais questões.
Por meio delas, o governo federal americano regra os gastos e despesas
públicas através de repasses a Instituições de Ensino pelo cumprimento de
metas de integração nos corpos docente e discente. O critério racial é em-
pregado como exigência para a contratação da iniciativa privada em casos
de concessão e permissão de obras e serviços públicos, através da Spending
Clause, inserida no artigo 1°, seção 8°, cláusula primeira da Carta amtricana,
juntamente com o § 50 da 14' emenda. Isso permite a existência de quotas
reservadas à empresas controladas por minorias (MBE: minoribi business en-
toprises). A tudo isso, soma-se a inserção no Estatuto dos Direitos Civis de
normas que objetivam a inclusão social das minorias no âmbito das relações
de emprego7.
o governo é 'indiferente a seu sofrimento' ou 'meramente' insensível à forma pela qual
a discriminação oficial contribui para isso ou como isso ocorre." (IRIBE, Laurence.
Amninta eonstitutional lenv. The foundation press, 2 ed., 1988, p. 1516) Tradução livre.
"O controle da aplicação, a investigação e o julgamento das denúncias de discriminação
e de não cumprimento das normas do título VII do Estatuto cabem em princípio à
Comissão de Igualdade de Oportunidades de Emprego (EEOC — Equal Employment
Opportimity ConUssion), agência governamental independente, criada nos moldes das
DISCRIMINAÇÃO ILÍCITA 33
Dworkin nota a colaboração inestimável da Suprema_Corte Americana
no esforço de integração, chegando, inclusive, a entender como compatível
e legitimo o emprego de critérios raciais, dentre outros, para efeito da ad-
missão em estabelecimentos de ensinos.
A despeito de todas as conquistas sedimentadas pela jurisprudência
americana, mesmo com alguns retrocessos que se anotam na Suprema Cor-
te sob a presidência conservadora de Rehriquists,...não podemos nos es-
quecer de que tais vitórias superaram óbices jurisprudenciais contidos em
precedentes/Standanir sobre ações afirmativas e classificações oriundas de
inúmeras agências regulamentadoras instituídas no Direito americano desde o início
do século XX, a cujas diretrizes as Cortes Federais rendem notável deferência. [...] O
procedimento de apuração de discriminação no campo das relações de emprego cons-
titui uma das hipóteses em que o Direito americano condiciona o ingresso em juízo ao
esgotamento da via administrativa. A pessoa que se julgar discriminada ao concorrer a
um emprego, a uma promoção ou mesmo no momento da sua demissão tem prazo de
180 dias para apresentar reclamação à EEOC; a EEOC inicia, em período não superior
a 120 dias, procedimento destinado a examinar a solidez e a procedência da reclamação,
bem como a promover a conciliação entre as partes; em seguida, caso a queixa apresei-
te indícios de procedência e seriedade e a tentativa conciliatória venha a se frustrar, a
EEOC emite o `Right to sue', isto é, a autorização que habilita o Reclamante a propor
a ação na esfera judicial. (...] Note-se, porém, que a exigência de esgotamento da via
administrativa só existe para as ações judiciais findadas no Título VII do Estatuto
dos Direitos Civis. Ela não existe, por exemplo, para as asões fundadas em violação
da cláusula de igual proteção das leis contida na Décima Quarta Emenda". (GOMES,
2001: 155/157).
DWORKIN, Ronald. As a matter of principie. Cambridge, Harvard University Press,
1985, p. 293.
9 Nos últimos anos, a liderança do Justice Rehnquist fez com que a Corte retrocedesse.
No caso Rendai v. Baker de 1982, da considerou não ser dever do Estado evitar
condutas discriminatórias em estabelecimentos de ensino privado, ainda que o mesmo
opere sob contrato governamental vinculante para a admissão de quota do corpo dis-
cente. Dois anos depois, no caso Grove Cityv.BeR, a Corte passou a reduzir o alcance
das normas vedatórias de discriminação na área educacional. Antes dela, se um deter-
minado Curso de uma Universidade estivesse sendo beneficiado por verbas federais,
todos os demais cursos deveriam adotar a política de quotas. Nessa decisão, a Corte
passou a entenda que apenas aquele Curso, Faculdade ou linha de pesquisa estaria
vinculado. Todavia, o Congresso, majoritariamente democrata, impôs sonora derrota
a essa "Corte Republicana". Alterando o Estatuto dos Direitos Civis em 1987, deter-
minou que, bastando haver um departamento/faculdade da Universidade particular
que perceba o beneficio, todos os seus departamentos/faculdades ficariam obrigados
a cumprir as obrigações do Estatuto referentes às condutas afirmativas em favor de
minorias.
19. 34 1 ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ
politicas públicas baseadas no fator raça, que eram consideradas, por prin-
cípio, suspeitas/inconstitucionais.
Todavia, algumas técnicas interpretativas consolidadas por essa Corte
tem sido fundamentais para o combate ao problema. A primeira delas é a
teoria dos motivos mistos (Mixed motive theog). Essa teoria é de suma impor-
tância, uma vez que a prática discriminatória se faz de forma dissimulada,
no bojo de outras razões legítimas que levaram a tal conduta. Por meio dela,
a Corte distingue situações nas quais a motivação da conduta é única e dire-
ta daquelas nas quais outros fatores teriam atuado toncorrentemente para
a ocorrência da conduta discriminatória, dificultando, portanto, o trabalho
de defesa de práticas ilegítimas.
Essa teoria surge com força no caso Price Waterhouse v. Hopldns
490 U.S. 228 (1989). Graças ao precedente criado pelo referido caso, a Cor-
te haveria de verificar se a causa discriminatória tinha sido de fato prepon-
derante, considerando as demais causas creditadas como legítimas. Todavia,
e exatamente porque esse precedente ainda deixava espaço para a ocorrên-
cia de atos velados de discriminação, o Congresso aprovou uma alteração
no Civil Rights Acts of 1991 que revogaria o dito precedente. A partir de
então, mesmo que na conduta concorram causas legítimas ao lado de uma
discriminatória, o clisaiminador não escapará mais de sua responsabilidade.
Basta, portanto, provar-se que há motivo discriminatório para que se pro-
duza o ato gerador de direitos indenizatórios.
Outra técnica é a chamada teoria do impacto desproporcional (disparate
impact doctrine). Por meio dela, políticas governamentais e empresariais apa-
rentemente neutras e observadoras do princípio da isonomia formal pas-
sam a ser objeto de controle da constitudonalidade pelo princípio do due
process of law substantive.
Essa teoria permite a correção de atos discriminatórios desprovidos de
intencionalidade na conduta. Precedente original da "disparate impact doctri-
ne" foi o caso Griggs vs. Dulce Power Co., 420 F. 2d 1225 de 1971.
Na demanda, os requerentes negros, consorciados/apoiados pelo Go-
verno Federal americano, insurgiram-se contra teste de inteligência realizado
para processo de admissão na empresa. Em sua defesa, a empresa alegava
que o teste era objetivo, dando igual oportunidade a brancos e negros. Tan-
to era assim que diversos negros compunham sai quadro de empregados.
No entanto, os autores lograram provar que os postos obtidos pelos negros
eram manifestamente subalternos. A presença de negros exclusivamente
ali, ao invés de reduzir a segregação racial, acirrava-a, pois sublinhava o
DISCRIMINAÇÃO ILÍCITA 35
discurso racista de subordinação e inferioridade da raça negra'°. Assim, o
teste de inteligência colocava os candidatos negros em piores condições
empregatícias do que os brancos, visto que a segregação racial à época se
reproduzia em escolas em ruínas e numa educação de baixíssima qualidade
para os negros.
A partir daquele momento, o elemento estatístico tornou-se prova
fundamental e amplamente aceita pela Corte Americana como mecanismo
de aferição da inconstitucionalidade por violação da 14' Emenda pelo em-
prego da teoria do impacto desproporcional da medida. Se os dados estatís-
ticos demonstrarem haver um visível prejuízo para as minorias, tornar-se-ão
elementos probatórios da ilegitimidade da discrimiqgão11.
No Brasil, todavia, nenhuma dessas duas técnicas logrou sua adoção
pelo nosso Judiciário. Somente a discriminação direta, intencional e com
motivação exclusiva permite ao cidadão obter indenização ou correção do
malefício praticado' Essa timidez é inaceitável e incompatível com a no-
" "Para os negros autores da ação, tal exigência ambígua tinha motivação discriminatória
e visava pura e simplesmente a manter o nano
' , já que, tendo eles sido obrigados
por força de lei a freqüentar escolas segregadas e de inferior qualidade, dificilmente
estariam aptos a lograr aprovação nos referidos testes em igualdade de condições com
pessoas da raça branca. Logo, a exigência imposta pela empresa, conquantocevestida
de aparência até certo ponto anódina e 'neutra', configurava em realidade uma medida
de 'impacto desproporcional' sobre os candidatos negros, oriundos de esColas segre-
gadas Violava, portanto, entre outros, o princípio constitucional da igualdade, mais
precisamente a chamada equality at birth' ." (GOMES, 2001: 25/26)
" Gerald Günther descreve caso interessantíssimo de aplicação da teoria do impacto
desproporcional. &Prefeitura de São Francisco acatava 99% dos pedidos de permis-
são para exploração de lavanderia para os brancosale outro lado, esse percentual caía
para 1% quando os pedidos eram formulados por pessoas de origem asiática. A Corte,
.conscia de que quase 25% da população de São Francisco era composta por imigrantes
ou descendentes de imigrantes asiático; considerou nesse caso "yick wo" a conduta
da municipalidade viciada por razões discriminatórias. (GÜNTHER, Gerald. Constitu-
tionalLaw.13 ed., The Foundation Press, Inc, Westbury, New York, 1997)
li 'DISCRIMINAÇÃO RACIAL NO TRABALHO — CARACTERIZAÇÃO — EFEI-
TOS JURÍDICOS.
A discriminação no trabalho, motivada por etnia, reli&ião, sexo, nacionalidade, convic-
ção filosófica ou política, ou de qualquer outra natureza, será sempre odiosa e moral-
mente repudiável, alem de atentatória dos direitos e garantias fundamentais. Para que
surta (eitos jurídicos, no entanto, no âmbito laborai, hão de ser seguramente caracterkados
não só a ssta prática, mas, principalmente, a ata imputabilidade ao empregador. Se os atos tidos
como discriminatórios não passaram do relacionamento pessoal do reclamante com o
seu chefe imediato, não se pode atribuí-los ao reclamado que deles sequer tem ciência.
20.
21.
22. 78 ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ DISCRIMINAÇÃO POR ORIENTAÇÃO SEXUAL 79
ou seja, a concepção segundo a qual o grupo ou Nação próprio do indiví-
duo é socialmente mais importante — ou se aproxima mais da verdade — do
que os outros permaneceu.
Assim, a modernidade trouxe consigo uma perspectiVa antropológica,
centrada na ideia de respeito à privacidade do indivíduo e da família, bem
como impondo, como já. se viu, limitações aos poderes do Soberano.
Essa perspectiva individualista reproduz uma sociedade que se legiti-
ma sobre bases convencionais, deixando-se de lado uma justificativa trans-
cendental/religiosa do uso coativo da força pelo Estado.
Todavia, é errôneo afirmar que a Sociedade Moderna se desvencilhou
dos costumes e tradições. Ao contrário, os mesmos se tornaram elementos
unificadores, atuando como aferidores da identidade deste ou daquele gru-
pamento humano. Essa identidade etnocêntrica colaboran para a consolida-
ção dos novos Estados como discurso racionalizador do poder, permitindo
identificar, nos valores comuns aos membros, aquilo que seria correto, bom
e digno, e, em todo comportamento que fugisse do comum, algo torpe e
desprezível. A "verdade" seria encontrada nesse consenso ético e moral ho-
mogeneizante. Já o erro, merecedor da reprovação social, seria encontrado
em qualquer padrão de comportamento que fugisse do habitual.
Na Idade Média, a Inquisição procurava legitimar seu discurso de
poder através de "argumentos de autoridade". Os Conalios Papais foram
elementos essenciais para a "padronização" de comportamentos soCiais,
morais e religiosos, num amálgama normativo que não permitia separar o
Direito, a moral e a religião. Por outro lado, no período moderno encon-
tramos os discursos nacionalistas, o patriotismo, o sexismo, o racismo. e a
intolerância religiosa cumprindo a função de padronização social.
Essa padronização etnocêntrica3, nasci-
da desde os primeiros dias da
humanidade, prossegue como uma tônica tanto nos paradigmas liberal,
3 Essa atitude etnocêntrica é aspecto essencial na questão da discriminação contra os
indígenas. Ela é 'h atitude tradicional dos missionários que, movidos pelo desejo de
salvar almas consideram sua tarefa a erradicação de costumes, a seu ver heréticos e
detestáveis, como a antropofagia, a poligamia, a nudez e outros. É, também, a atitude
daqueles que julgam uma vergonha para um povo civilizado ter patrícios que se pintam
com urucum, afiam os dentes, deformam os beiços e as orelhas, vivem em choças
imundas e falam línguas ridículas. Estes se propõem lavar a nação desta mancha in-
famante, escondendo a existência de índios e simultaneamente os obrigando a adotar
as únicas formas corretas de vestir, comer, casar e falar, que conhecem. [...] A atitude
romântica dos que concebem os índios como gente bizarra, imiscível na sociedade
"como no social do Estado de Direita Ela pode ser exemplificaria por atos
de violência concertados, bastando relembrar as lutas para formação dos
Estados Nacionais e das guerras religiosas, nas quais o outro era encara-
do como o inimigo. A própria escravatura pode ser vista como exemplo
do fenômeno cultural do etnocentrismo, uma vez que a mesma buscava
sua legitimação num discurso que estabelecia uma pretensa diferenciação
entre as "raças branca e negra", autorizando à primeira sobrepor-se à
vontade da segunda.
Assim, a grande novidade do paradigma do Estado Democrático de
Direito é justamente a noção de pluralismo, o qual tem Por pressuposto a
admissão, de respeito e proteção a projetos de vidaastintos daqueles con-
siderados como padrão pela maioria da sociedade'. É, pois, uma proposta
de superar uma visão de mundo etnocêntrica, ao reconhecer o direito a
projetos de vida alternativos.
Sabemos [...] que a identidade não é a marca da sociedade democrática
contemporânea. Ao itivés da homogeneidade e da similitude, a diferen-
ça e o desacordo são os seus traços fundamentais. [...] A multiplicidade
de valores culturais, visões religiosas de mundo, compromissos morais,
concepções sobre a vida digna, enfim, isso que resta outra alternativa
nacional, que deve ser conservada em suas características originais, quando mais não
seja como uma raridade que a nação pode dar-se ao luxo de manter, ao lado de museus
e dos jardins zoológicos. Propugnam pelo estabelecimento de 'reservas' onde os índios
sejam postos de quarentena..." (RIBEIRO, Dany. Os índios e a civilização; a intwação das
populages indtatar no Brasil Moderno. São Paulo; Cia. Das Letras, 1996. P.213-214)
"[..1 o Estado Democrático de Direito pressupõe que o pluralismo é constitutivo da
própria sociedade contemporânea, e que, portanto, não se pode, legitimamente, elimi-
nar qualquer projeto de vida sem se interferir na auto-identidade de uma determinada
rsociedade. Ao contrário, ele deve reconhecer que todos os projetos que compõem uma
sociedade, inclusive os minoritários, são relevantes na composição de sua identidade.
Se os diversos projetos estão em conflito, a solução dada ao problema pelo Estado
Democrático não é pressupor que um consenso radical, homogêneo e ilimitado seja
historicamente possível, ou que' seja possível criar-se, artificialmente (ou seja, sem a
participação popular no processo decisório), um projeto 'alternativo', mas que é pos-
sível, preservarem-se condições mínimas para que todos os projetos se realizem. Para
dizermos com Dworkin, o Estado Democrático de Direito percebe que estamos uni-
dos em uma sociedade, apesar de divididos em projetos, interesses e convicções', e
que, portanto, a tolerância é exigida, se queremos que a sociedade, bem como o Estado,
sejam realmente pluralistas." (GALUPPO, Marcelo Campos. Hermenêutica constitucional
e pluralismo. In SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo de e SAMPAIO, José Adércio Leite.
Hermenêutica ejtaisdipio constitucional. Belo Horizonte, Dei Rey, 2001, p. 54).