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AGRADECIMENTOS
A Deus e todos os Orixás por providenciarem luz e força para terminar este trabalho.
A Eliete, educadora, mulher guerreira, amiga e conselheira, por me ensinar a infinita
beleza da dança Afro e por me inspirar a pesquisar essa arte.
Aos meus pais, por me apoiarem nas minhas escolhas, projetos e aventuras.
Ao Prof. Dr. Júlio Cesar de Tavares, por me orientar e ajudar nesta pesquisa desafiadora,
e por acreditar neste trabalho.
Aos Professores da banca examinadora, pela sua disponibilidade, ajuda e pelas valiosas
sugestões.
Aos meus amigos e colegas de dança, pelos seus gestos, palavras, movimentos e pela
alegria gerada nas aulas.
Aos integrantes da Cia. CorpAfro, presentes e passados, por acreditar no grupo e no seu
objetivo, e pelos momentos de grande aprendizado juntos.
Ao meu amigo Alex, fantástico dançarino, por contribuir à minha pesquisa com valiosas
informações e por me convidar a conhecer e participar de maravilhosas festas públicas de
Candomblé.
A mãe Renata, Pai William e Mãe Rosa, por abrirem as portas dos seus Ilês e por me
acolherem como parte da família.
A Pai Jobi, por oferecer a oportunidade de conhecer o mundo dos Orixás.
A Alex, Claudia, Dejaneth, Eliete, Akauan e Walmir, por dançarem e tocarem
maravilhosamente no dia da defesa.
7
À FEBARJ (Federação dos Blocos Afro do Rio de Janeiro), pois foi lá que tudo começou.
À UERJ, ao Circo Voador e ao Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, por oferecer
ótimos espaços e estruturas de ensaio, tornando minha etnografia possível.
Às minhas famílias, tanto a de origem como as que me adotaram no Rio de Janeiro, pela
ajuda, amor e suporte muito preciso longe de casa.
Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense
(PPGA-UFF).
À Capes, pela concessão de bolsa de estudo para tornar essa pesquisa viável.
A todos os professores de dança Afro que me deram aula e cujos espetáculos foram uma
inspiração: a Tatiana, Pakito, Vânia, Charles Nelson, Zebrinha, Neudinha, George
Momboye, Rubens Barbot, Rui Moreira, por seus ensinamentos, seu tempo, e suas
contribuições.
Ao meu companheiro Pimpolho, por aguentar minhas crises de mestranda, pelas idéias
fornecidas, pelas brigas que me incitaram a terminar este projeto e pelo amor dado.
A todos meus amigos e amigas, pelas conversas, ajuda e solidariedade, tanto nos
momentos difíceis como nos de celebração, e por não me deixar desistir.
À minha gatinha Sete, por alegrar a casa enquanto escrevia.
A todos e todas que contribuiram com este trabalho.
8
INTRODUÇÃO
O corpo só tem sentido se aguçarmos nossos sentidos.
A arte de dançar é algo que sempre foi presente na vida do ser humano e que faz
parte de uma variedade de atividades que vão da esfera do lúdico ao religioso, da arte à
diversão, da brincadeira ao profissionalismo. Como aponta o título “To dance is Human”
de Judith Lynn Hanna, antropóloga e pesquisadora em dança na Universidade de
Maryland, dançar é humano e a humanidade se expressa quase universalmente através da
dança (Hanna, 1987). Explicando mais em detalhe a presença da dança nos vários
campos da vida humana, Hanna descreve a dança como uma arte que representa pelo
menos sete tipos de comportamento humano: físico, cultural, social, psicológico,
econômico, político e comunicativo (Hanna, 1987). Esta dissertação abordará cada uma
destas dimensões da dança, todas elas entrelaçadas e ligadas à corporeidade humana.
Junto com os tipos de comportamento humano, portanto, explicarei cada capítulo deste
trabalho através dos sentidos corporais: a visão, o tato, o olfato, o paladar, a audição e o
que pode se definir de sexto sentido: a intuição. Todos estes sentidos estão presentes na
performance da dança Afro e em todos os tipos de comportamento humano representados
pela dança. Entretanto, associei cada sentido a um capítulo e a um tema específico da
minha pesquisa, mostrando como, de maneira variada mas sempre corporalmente o “eu
dançante” na dança Afro aprende, pensa na prática, interage, compreende, comunica,
carrega memórias e resgata identidades.
O primeiro capítulo é o da visão; é um sentido forte, que permite olhar para e
assistir o que está sendo mostrado. É o capítulo onde apresentarei meus métodos
etnográficos, e farei uma descrição do campo de pesquisa além de apresentar as teorias de
performance que serão a base do meu trabalho. Com o suporte teórico de Richard
Schechner e Victor Turner falarei de performance e ritual, eventos nos quais a presença
de espectadores é fundamental. Explorarei também as teorias de interação social de
Erving Goffman, onde o olhar é um elemento chave do sucesso da interação. Seguindo o
sentido da visão, associei o paladar ao segundo capítulo, sendo esse o capítulo que vai dar
um gosto sobre a arte da dança em geral e sobre as danças afro-brasileiras e a dança Afro
em particular. Tentarei aqui explicar a história, os elementos e as modalidades do que
9
pode ser chamado de dança Afro, saboreando a variedade e complexidade dessa arte.
Nestes primeiros dois capítulos é possível ver especialmente como a dança é um
comportamento social e econômico. A dança faz parte da nossa vida social e, ao dançar, o
performer assume um certo status e executa vários papéis, assim como acontece na vida
social, como será evidenciado no próximo capítulo com as teorias de Goffman.
Economicamente falando, a dança é o meio de trabalho e de sustento de muitos
profissionais, além do fato de muitas pessoas pagarem por aprender esta arte, por motivos
que vão do buscar uma identidade ao fazer exercício, do conhecer novas pessoas ao se
distrair, como veremos dos depoimentos no segundo capítulo.
O terceiro capítulo foca-se mais sobre a modalidade sagrada da dança Afro, a
dança de Orixás. Trarei aqui uma breve introdução sobre o mundo da religião do
Candomblé, explicando quem são os Orixás e listando os principais deuses com seus
arquétipos, suas características, seus gestos e jeitos de dançar. Ao analisar o corpo que
dança Orixá, farei uma comparação entre o contexto sagrado do Candomblé e o campo
profano da dança Afro, levantando algumas questões corporais que serão retomadas em
seguida. Este capítulo é associado ao olfato, sentido que é fundamental no Candomblé e
no lidar com as forças da natureza, muito presentes quando se fala de Orixás. Faz-se aqui
evidente como dançar é algo cultural dado que todos os valores, atitudes e crenças
influenciam os movimentos e a performance do dançarino. Além disso, através da dança
transmitem-se elementos que fazem parte de uma rica cultura; neste caso passam-se
histórias e mitos originários da religião do Candomblé, parte da cultura afro-brasileira.
O quarto capítulo é da audição, pois é o capítulo que fala de comunicação. No dia
a dia a comunicação acontece tanto de maneira verbal quanto não verbal. De qualquer
maneira, o que é fundamental no processo comunicativo é que tenha alguém que escute e
receba a mensagem. Na dança Afro o corpo comunica através dos gestos, da voz, da
música, do toque do tambor, do movimento. Explorarei portanto as teorias de
comunicação que abordam os elementos de interação e cooperação entre os protagonistas
do ato comunicativo. Olhando para os tipos de comportamento de Hanna, esse capítulo
lida com o “comportamento comunicativo” da dança, considerando esta arte como uma
linguagem, um meio de comunicação não-verbal através da qual instauram-se relações e
transmitem-se significados.
10
O capítulo cinco é associado ao sexto sentido da intuição. É um capítulo onde
explorarei mais detalhadamente as teorias fenomenológicas do corpo, afirmando que não
existe uma divisão entre corpo e mente e analisando como o corpo é capaz de aprender e
compreender sozinho, pois os seus sentidos possuem uma inteligência própria e uma
memória altamente funcional. Nesse capítulo é portanto possível ver a presença e a
junção do comportamento físico e psicológico da dança; dançar é físico pois é uma ação
estritamente ligada ao corpo do dançarino e aos movimentos executados através dos
músculos, das articulações e dos impulsos energéticos vindo do cérebro. A dança é
também um comportamento psicológico pois envolve pensamentos, emoções,
sentimentos e afetos. Essas duas dimensões estão profundamente interligadas no
corpomente do “eu dançante”.
Finalmente, o sexto capítulo é o capítulo do tato, pois trata de sentir na pele a
questão de identidade e alteridade racial presente na discussão e prática da dança Afro no
Brasil. Trarei especialmente minha experiência de dançarina e pesquisadora branca no
campo da dança Afro, mostrando a presença de fortes estereótipos raciais e falando da
vivência de reações estigmatizadoras e preconceitos por causa da cor da pele de quem
dança. É evidente como a questão política está aqui presente, mostrando a dança como
um campo onde opiniões, posições sócio-políticas e ideais são expressos e onde se
instalam hierarquias e jogos de poder.
Tendo apresentado os seis sentidos que inspiraram os capítulos desta dissertação,
cabe mencionar “o sétimo sentido” que deu o título a este trabalho. A epifania que deu
origem ao título veio há pouco tempo durante uma aula de dança Afro, na qual minha
professora colocou uma das músicas que mais foram presentes nos meus anos de aulas e
ensaios com ela e com o grupo. A música é “Raça Negra” da cantora baiana Virginia
Rodrigues e as letras falam do povo negro e da “infinita beleza: o sétimo sentido da tal
legião”. A infinita beleza refere-se à beleza da dança, a beleza da cultura afro-brasileira e
do povo negro; é a beleza dos Orixás e dos reis e rainhas Africanos; a beleza da música e
do tambor; a beleza da memória ancestral, da resistência e dos gestos. É a infinita beleza
dos corpos que dançam.
11
CAPITULO 1 – Olhar para a (e na) Performance
Tudo pode ser dançado e compreendido,
pois o corpo, por uma razão ancestral,
sempre teve necessidade de comunicar-se
através do movimento.
Maria Fux
Métodos e descrição do campo de pesquisa
Desde que cheguei no Rio de Janeiro, a dança Afro entrou na minha vida de
maneira intensa, como uma verdadeira força da natureza com a qual esta arte tanto está
conectada. Foi dançando que aprendi muitas coisas sobre a cultura afro-brasileira que
comecei a sentir tão perto de mim que comecei a querer saber e pesquisar mais sobre ela.
Por isso, depois de alguns meses de aula, reparando quanto a dança Afro tinha virado
algo extremamente importante na minha vida, quis realmente entender e procurar saber
mais sobre este universo. Foi assim que decidi pensar em um projeto de mestrado onde
pudesse estudar e pesquisar a dança Afro. Esta possibilidade me foi dada dentro do
campo da antropologia, onde pude descobrir detalhes fascinantes que fazem parte do
universo da dança Afro.
Minha pesquisa baseou-se principalmente na observação participante do meu
objeto de estudo como dançarina de dança Afro. Ao longo da minha pesquisa participei
de muitas aulas e oficinas de dança Afro, tanto no Rio como em Salvador. Fiz algumas
aulas com o professor Charles Nelson na Fundição Progresso na Lapa e participei como
percussionista da banda Afro Orunmilá, na Febarj, na Lapa, onde tive contato com a
prática de dança de blocos Afro que acontecia no lugar enquanto a banda tocava. Durante
meu tempo em Salvador, frequentei as aulas de dança Afro na Escola de Dança do
Terreiro de Jesus com Vânia, Tatiana e Pakito. Consegui participar de oficinas com
Zebrinha e Neudinha, coreógrafos do Ballet Folclórico da Bahia. Além de participar
como dançarina de aulas e oficinas de dança Afro, também assisti espetáculos, festivais e
eventos de dança afro-brasileira, como o espetáculo “Orixás” da Cia Rubens Barbot de
dança, o show do Ballet Folclórico da Bahia em Salvador, a Noite da Deusa do Ebano do
Orunmila no Rio de Janeiro, e o Festival de jongo no quilombo S. José, entre outros.
Ainda, conversei e conduzi entrevistas com profissionais da área e com alunos de dança
Afro e pesquisei e estudei fontes teóricas relacionadas ao meu objeto. Além disso,
12
participei, como espectadora, de algumas festas de Candomblé em terreiros na Baixada
Fluminense para poder observar e estudar a dança de Orixás dentro do ritual religioso e
poder fazer uma comparação com o contexto profano da dança. Entre todas estas fontes
de pesquisa, houve um campo principal no qual conduzi minha etnografia, que foi o
campo onde comecei a dançar e que quero descrever mais detalhadamente.
A maioria das aulas que frequentei foram da professora de dança Afro Eliete
Miranda, baiana, formada pela escola de dança da UFBA (Universidade Federal da
Bahia), e ex dançarina e coreógrafa do Bando de Teatro Olodum de Salvador. Comecei a
dançar com Eliete em Agosto 2007 na Febarj (Federação dos blocos Afro do Rio de
Janeiro), na Lapa, bem antes de até cogitar escrever uma dissertação de mestrado. Desde
2007 nunca parei de fazer aula com Eliete e continuei seguindo ela para onde estivesse
ensinando. Durante este último ano, desde março 2009, data do início oficial da minha
etnografia, as aulas da Eliete das quais participei como dançarina e pesquisadora foram
na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e no Circo Voador na Lapa. Além
das aulas, dancei e fiz pesquisa também como membro da Cia CorpAfro de Eliete, da
qual faço parte desde setembro 2007 a pesar de algum tempo no qual me afastei do grupo
devido a atritos entre alguns membros da companhia e a falta de organização. Desde
Abril 2009, entretanto, ensaiei toda sexta e sábado junto com a Eliete e os outros
participantes do grupo no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, localizado na Tijuca.
Durante este ano, houve algumas apresentações do grupo que considerei também como
material etnográfico.
Quero portanto descrever com mais detalhes como são estes três espaços nos
quais conduzi minha pesquisa e quem foram as pessoas que fizeram parte do campo
durante o ano passado. Disse que, desde Abril 2009 as aulas e os ensaios aconteceram em
três lugares principais. O primeiro lugar onde começaram as aulas do ano passado foi o
Circo Voador, espaço cultural da prefeitura localizado na Lapa. Durante a semana ele
abriga várias atividades culturais, como aulas e oficinas de dança, circo, teatro; no fim de
semana, o circo Voador vira uma casa de show, onde é possível assistir a maioria dos
músicos e artistas brasileiros. O espaço para dançar aqui é diferente do que seria uma
qualquer sala de aula: o ambiente é aberto, ao ar livre, o chão é de madeira e a “pista” é
redonda. A circularidade do espaço, por exemplo, foi muitas vezes usada para trabalhar o
13
elemento da roda, tão importante na dança Afro, e foi aproveitado para explorar
arrumações e posições coreográficas diferentes das convencionais. A maioria das aulas no
Circo Voador foi com a percussão ao vivo presente, o que levantou a energia em várias
ocasiões. Sendo um espaço aberto, muitas vezes durante o inverno tivemos aula com
tempo frio (relativamente, óbvio, agradecendo ao Rio de Janeiro!) e chuvoso. Ao chegar
nossos corpos estavam com preguiça, endurecidos e cansados. O som do tambor era
como um despertador, que fazia nos soltar e energizar, dançar e aquecer.
As aulas no Circo sempre incluíam um momento para nos sentarmos na roda e
discutir temas sobre a dança Afro, assuntos raciais e sócio-políticos, e ler textos e poesias
sobre história e identidade afro-brasileira. Mesmo sendo um espaço aberto, é um
ambiente privado e tranquilo, que permite estes tipos de atividade de reflexão e
discussão. Estes momentos em específico foram a melhor oportunidade para nós, alunos
da aula, nos conhecermos, para trocar idéias e opiniões. O que ajudou na interação entre
nós alunos foi o número pequeno de pessoas e o fato da maioria de nós já sermos amigos
de anos, desde as primeiras aulas da Eliete. Muitas pessoas “novas” fizeram uma ou outra
aula sem dar continuação, mas tiveram umas três pessoas que começaram a dançar no
Circo Voador com a Eliete que continuaram e ficaram o ano inteiro; foram estas poucas
pessoas que aos poucos se integraram mais com o “nosso grupo” de amigos da dança já
existente. Foi muito interessante observar este tipo de interação, onde ficou sempre
evidente a distinção entre os “novos alunos” e os “antigos”, que não somente são alunos
de longa data, mas também fazem parte do grupo CorpAfro, fazendo com que a
intimidade fosse bem maior do que com os outros. Esta situação, comum nas aulas mais
recentes da Eliete, é um exemplo do conceito de team que o sociólogo Erving Goffman
define no seu livro Presentation of Self in Everyday Life. Ele escreve que um time pode
ser criado por indivíduos para ajudar o grupo do qual são membros; porém, eles acabam
formando um tipo de “sociedade secreta” cujos membros são reconhecidos pelos não-
membros por formar uma sociedade exclusiva, mesmo que esta sociedade não esteja
sendo constituída pelo fato deles atuar como um time (Goffman, 1959, p. 105).
O segundo espaço é o da UERJ, onde a diferença entre os alunos antigos e os
novos está presente também mas em nível menor, pois além de mim e mais um aluno dos
antigos, o resto da turma é formada por pessoas novas. As aulas de dança Afro da UERJ
14
fazem parte do projeto do COART que promove todo semestre várias atividades artísticas
e culturais. A Eliete tem dado aula lá há muitos anos, e eu já fiz aula na UERJ com ela
nos anos passados. No ano da minha pesquisa, 2009, formou-se uma turma que continuou
dançando nos dois semestres, e que surpreendeu pela sua vivacidade, intimidade, vontade
de aprender e de interagir. O espaço para dançar na UERJ é uma sala pequena mas limpa
e confortável, com espelhos, ar condicionado, equipamento audio-visual e uma variedade
de instrumentos percussivos a disposição. Como a aula tem três horas de duração, Eliete
sempre reserva uma boa parte do tempo para uma parte teórica, assim como ela faz no
Circo Voador, para poder discutir assuntos atuais sobre a questão Afro. Esta estrutura de
aula é o que torna o método de Eliete tão diferente da maioria das aulas de dança Afro das
quais já participei. O fato de discutir e estudar assuntos como identidade negra, sistema
de cotas, mitologia dos Orixás, histórias dos blocos Afro de Salvador etc. é algo que,
além de promover a interação entre os alunos, também estimula o interesse pela questão
Afro, e ajuda a entender mais a importância da dança como uma maneira de aprender,
compreender e resgatar certas memórias e raízes.
O terceiro ambiente que irei descrever é o Centro Coreogràfico do Rio de Janeiro
(CCRJ) onde, desde Abril 2009, o grupo CorpAfro da Eliete está ensaiando. Este é um
lugar dedicado especificamente ao universo da dança e é portanto equipado para isso. As
salas são grandes e entornadas de espelhos, o chão, a luz e o som são apropriados para
dançar, e tanto as salas quanto o prédio são extremamente limpos e funcionais. Durante
uma roda entre os membros do grupo, no nosso primeiro ensaio do ano, Eliete falou
muito sobre este espaço, que foi conseguido por meio de um processo de seleção muito
duro. A coordenação do Centro agora é de Carmen Luz, coreógrafa da Cia Étnica, que
deu a Eliete e ao grupo Corpafro a possibilidade de ser residentes no CCRJ por um ano.
Eliete comentou que “É muito importante estar neste espaço especialmente para um
grupo de dança Afro, pois sempre foi um espaço reservado a grupos de ballet ou de dança
contemporânea” (10 Abril 2009). Este comentário evidencia a importância de ter
conquistado um espaço que foi historicamente reservado somente para alguns estilos de
dança, e que sempre teve preconceito com grupos de dança Afro. Por estar em um espaço
profissional, Eliete exigia uma postura profissional, começando pelo uso de uma
uniforme para dançar. Desde o primeiro ensaio, foi evidente como o clima e a atmosfera
15
desse espaço era completamente diferente dos outros lugares de aula, pois realmente
pôde-se sentir a seriedade, a responsabilidade e o profissionalismo exigidos. Uma coisa
que Eliete evidenciou em um ensaio foi a importância de “saber chegar no lugar, não
deixando de ser você mesmo mas precisando ter limites e regras” (18 Abril 2009). Mais
uma vez, a teoria de Goffman pode ser relacionada a esta situação, pois evidencia como a
vida social de todo dia é um palco no qual, para poder ter sucesso, é preciso saber chegar,
se preparar, conhecer as regras e os limites do jogo para poder respeitá-los e conseguir
jogar e interagir com os outros (Goffman, 1959).
A partir daquele momento, os ensaios aconteceram toda sexta e sábado, por cinco
horas seguidas, sendo estes momentos de criação, de trabalho e de concentração. O
trabalho prosseguiu e evoluiu mas faltou ter uma consistência de participantes do grupo,
o que acabou demotivando um pouco o clima dos ensaios. De qualquer maneira, as
experiências vividas, as informações aprendidas e a prática adquirida durante os ensaios
foram extremamente valiosos para cada um dos membros do grupo, assim como para a
Eliete. Durante estes meses de ensaio, tiveram várias apresentações do nosso espetáculo
“Corpos e Tambores”, o qual, mesmo estando ainda em construção, transmite os
objetivos do grupo CorpAfro elencados por Eliete:
Grupo Corpafro: corpo e origem Afro-Brasil.
1. trabalhar a nossa identidade cultural.
2. trabalhar corporeidade.
3. conhecer o que tem ao nosso redor.
4. desmistificar o fato do que “dança afro é macumba”.
5. leitura, pesquisa, conhecer as origens. (24 Julho 2009)
Estes objetivos são os objetivos da arte de dançar Afro segundo os ensinamentos da
Eliete, os quais mostram como a performance da dança Afro é um meio para ensinar e
construir uma realidade que seja consciente de certas questões pertencentes à cultura
afro-brasileira. É preciso agora clarificar o conceito de performance, muitas vezes
utilizado de maneira superficial sem conhecer o seu complexo significado. Após entender
mais este termo, mostrarei como os elementos performáticos fazem parte tanto da vida
cotidiana, quanto da dança e do ritual.
16
Performance
As teorias de performance de Erving Goffman, Richard Schechner e Victor Turner
aparecem como ferramentas adequadas para analisar as aulas, ensaios e apresentações de
dança Afro que fizeram parte da minha pesquisa. Primeiro, é fundamental definir melhor
o termo performance. Segundo um dos maiores estudiosos de performance junto com
Victor Turner, o norte-americano Richard Schechner, a performance pode ser entendida
no ambiente do cotidiano, do ritual e da arte. Todos estes tipos de performance são feitas
de “comportamentos duplamente exercidos, comportamentos restaurados, ações
performadas que as pessoas treinam para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar”
(Schechner, 2003, p. 27). Ele continua afirmando que as performances “afirmam
identidades, curvam o tempo, remodelam e adornam corpos, contam histórias” (Ibidem)
Segundo Schechner portanto a atuação repetida e ensaiada é um elemento fundamental da
performance. Além disso, o componente do “jogo” é também importante. Em sua obra
“Performance Theory”, Schechner define performance como “Ritualized behavior
permeated by play” (Schechner, 1988, p. 99). A característica ritual da performance será
analisada em seguida; com resguardo ao fator do jogo, isso é algo que faz parte da
interação entre os atores, e entre atores e audience, tanto no espetáculo de teatro ou
dança, quanto na vida de todo dia. O jogo é algo que rende a performance uma situação
sempre ativa e, como Schechner escreve, um “processo turbulento de transformação”
(Schechner, 1988: 157).
Esta concepção de performance como atividade sempre em movimento e como
mudança pode ser comparada com a definição tanto de interação quanto de performance
de Erving Goffman. Ele afirma que a interação é a influência reciproca dos indivíduos
sobre as suas ações na sua presença imediata. A performance é toda a atividade de um
participante em uma situação, que serve para influenciar os outros participantes
(Goffman, 1959, p.15). Mais uma vez é possível ver como a “atividade” está presente
entre um grupo de indivíduos. No artigo Performance e História, Antonio Herculano
Lopes, após consultar várias definições de performance em dicionários, conclui que a
idéia de movimento, ação ou processo, combinada com a noção de resultado, assim como
a associação com um público são os elementos chave da performance. Lopes continua
explicando que no campo artístico o termo equivale ao termo apresentação, indicando a
17
atuação de um artista numa apresentação (Lopes, 2003, p. 7). Além do campo artístico,
entretanto, “todo um enorme universo que nos circunda no dia a dia é de caráter
performático” (Ibidem, p. 6)
A performance portanto relaciona-se a algo que fazemos todo dia segundo
Goffman também ao assumir os vários papéis nas diferentes situações da vida. As
aparências e o jeito de se comportar são muitas vezes os maiores elementos de uma
performance e são os indicadores de um dado papel para os outros indivíduos. A maneira
de andar, a indumentária e alguns objetos pessoais se tornam símbolos que comunicam
determinado status ou personalidade:
“Quando começamos a ensaiar no Centro Coreográfico, comprei uma bolsa de
dança, do tamanho suficiente para poder carregar minha roupa, água e tudo do
que precisasse. É uma bolsa de pano beige com um desenho de pés descalços na
frente dela, caracterizando-a como uma bolsa de dança. Ao andar pela rua com
meu cabelo preso, meu sutiã esportivo e minha bolsa, estava consciente do fato
que quem me observava passar pela rua provavelmente achava que fosse uma
dançarina.”
Este excerto do diário de campo mostra como alguém possui um dado papel pelo fato de
simplesmente aparentar aquele papel e não necessariamente estar executando ele
(Goffman, 1959). A ação de andar pela rua usando uma bolsa com um desenho que
simboliza a arte da dança é uma performance, pois é guiada e condicionada por princípios
estéticos e técnicas teatrais; ao mesmo tempo a estética teatral de uma cultura é guiada e
condicionada por processos de interação social (Schechner, 1988, p. 215).
Para mostrar como as regras de interação social e as regras de performance
artística se relacionam, é interessante olhar para algumas situações nos ensaios e
apresentações de dança Afro. Primeiro, voltando ao conceito de “time” de Goffman, ele
explica que a interação entre membros de um mesmo time precisa ser muito forte para
que a performance do grupo seja realizada com sucesso. Na dança, ao executar uma
coreografia em grupo, a cooperação entre os dançarinos é fundamental para formar um
conjunto harmônico e esteticamente coerente na frente de uma audience. É necessário
confiar no companheiro de dança e existe uma ligação de dependência reciproca entre os
indivíduos atuando juntos (Goffman, 1959). Esta cooperação é necessária tanto durante o
ensaio quanto, a maior razão, durante uma apresentação pública. Neste caso, a co-
operação precisa ser ainda maior. No caso de um dos componentes do grupo errarem na
18
frente de espectadores, os outros membros precisam não revelar o erro até o fim da
apresentação (Goffman, 1959, p. 89). Esta situação aconteceu algumas vezes durante as
apresentações do grupo CorpAfro, durante as quais, se algum de nós errasse na
coreografia, isso seria comentado somente no camarim após a apresentação.
O fato de comentar abertamente os erros só longe da presença do público, evidencia a
presença nas performances de regiões distintas que Goffman chama de “front region” e
“backstage”. A região de frente é onde a performance está acontecendo e os bastidores
são a região na qual acontecem ações relacionadas com a performance mas que não são
coerentes com a aparência da performance (Ibidem, p. 134). Antes de uma apresentação,
portanto, toda a fase de arrumação, de maquiagem, de últimas repetições das coreografia
faz parte dos bastidores. Ao entrar no palco, entra-se a região de frente, onde os
performers mostram somente o que a audience está preparada para ver. A área dos
bastidores serve também para outras funções. Longe dos olhos e dos ouvidos da audience
é muito comum os componentes do time, os dançarinos no meu caso, falar mal dos
espectadores, coisa que eles não fariam na região de frente. Este comportamento é o que
Goffman chama de “Treatment of the absent” (Ibidem, p. 170) e é uma maneira de
manter a moral do time. Este “tratamento dos ausentes” aconteceu algumas vezes durante
minha etnografia como por exemplo em uma apresentação na Cinelandia em ocasião da
marcha mundial da paz. Ao nos apresentar, a mulher responsável pelo evento nos
introduziu como um “grupo de dança típica africana”. O que quer dizer algo “típico
africano”? Isso foi o que cada um de nós pensou imediatamente, internamente julgando a
mulher por pensar que “dança Afro”, no Brasil, é igual a uma “dança africana”. Como
veremos no próximo capítulo, essa é uma definição completamente inexata. Primeiro, não
existe uma dança africana, mas várias danças africanas, pois estamos falando de um
continente composto por múltiplos países, povos e culturas. Segundo, a dança Afro-
brasileira que o nosso grupo apresenta é complexa e formada por várias modalidades que
serão descritas no próximo capítulo e que, apesar de ter uma origem africana, é uma
dança brasileira, típica portanto deste país onde se desenvolveu. Na hora do comentário
da mulher não falamos nada, entramos na praça e fizemos nossa performance. Ao sair de
cena e nos reunir depois, todo mundo do grupo comentou sobre a denominação dada pela
organizadora e mostrou sua indignação (diário, 2 Outubro 2009).
19
É interessante ver como esta divisão de regiões é típica de qualquer performance,
tanto artística, quanto da vida cotidiana ou ritual. Introduzindo o aspecto performático do
ritual, aqui temos um exercício das regiões em um terreiro do Candomblé em Nova
Iguaçu, onde as pessoas envolvidas no ritual estavam se arrumando para participar de
uma festa de Iemanjá:
Na casa de R., mãe de santo de A. houve a preparação para a festa: em um quarto
todas as mulheres se arrumaram, escolhendo a roupa certa para o evento, se
maquiaram, pentearam o cabelo por horas, preocupando-se muito com a
aparência. Achei esta cena muito parecida com a arrumação nos bastidores de
uma apresentação de dança. (9 Maio 2009)
Assim como o contexto artístico, o ritual religioso também possui sua região de frente e
seus bastidores. Ao entrar em cena, os elementos performáticos continuam co-existindo
com os elementos religiosos do ritual. A relação inversa é também algo que observei
durante meu campo, ou seja a a presença de elementos rituais na performance artística.
Em um festival de Jongo (tipo de dança Afro-brasileira) no quilombo de S. José da Serra
no Rio de Janeiro, esta correlação foi evidente especialmente na hora da benção da
fogueira, feita pelo patriarca e pela matriarca do quilombo com ervas e água, após a qual
a fogueira virou o centro das rodas de jongo que aconteceram a noite toda ao ritmo dos
tambores. Para explorar mais esta ligação performance-ritual trarei novamente as teorias
de Victor Turner e de Schechner o qual afirma que “separar arte e ritual é particularmente
difícil” (Schechner, 2003, p. 31).
Paralelo Ritual-Performance
Victor Turner desenvolve a noção de performance em sua paradigmática obra The
Anthropology of Performance. Turner define antes de tudo o conceito de “performances
culturais” citando Milton Singer, e afirmando que as performances são os elementos que
constituem uma cultura e são compostas por “mídia culturais”, ou seja modos de
comunicação verbal e não-verbal, que expressam o conteúdo de uma dada cultura, assim
como podem ter influências sobre ela. (Turner, 1987, p. 23). Muitas vezes as
performances culturais correspondem a momentos de crise ou desarmonia. Turner chama
estas situações de conflito de “dramas sociais”, nos quais as ações assumem caráter
performático pois os participantes tentam mostrar suas ações para os outros (Ibidem, p.
20
74). A performance de uma sequência complexa de atos simbólicos é definida por Turner
como ritual. O que é de importância para a nossa discussão é o paralelo que Turner faz
entre o ritual, ou cerimônia coletiva, e outros gêneros de performance como o teatro ou,
neste caso, a dança. Ambos possuem características parecidas tais como uma atuação
consciente, uma certa ordem, um estilo evocativo de se apresentar, e uma mensagem ou
significado a ser disseminado (Ibidem, p. 93). Como Turner afirma também no seu livro
Floresta de Símbolos, a performance é então uma atividade ritual; é um conjunto de
expressões que tem corpo e ideologia. O elemento do corpo é mais uma vez presente,
sendo o suporte fundamental do ritual; pois não existe linguagem sem corpo e o ritual é
linguagem (Turner, 2005).
Richard Schechner, estudioso de teatro, retoma a teoria de Turner e aplica ela
mais ainda à área de dança e teatro. Como ele escreve no texto Ritual, Violence and
Creativity, “a ação ritual é muito parecida com o teatro” (Schechner, 1963, p. 297). No
ritual, assim como no teatro e na performance da dança, o comportamento é
reorganizado, exagerado, e ritmizado, fazendo uso de figurinos, máscaras e maquiagem.
Também, seja no ritual quanto nas artes performáticas a ação é simbólica (Ibidem). Neste
texto Schechner pontua vários aspectos fundamentais que aproximam o ritual ao teatro ou
à dança, evidenciando a natureza liminar destas experiências.
Primeiro, os rituais envolvem muitas vezes elementos artísticos como dança,
música ou teatro. Eles utilizam elementos cenográficos tais quais máscaras ou figurinos,
e criam uma atmosfera de envolvimento para a audience presente. Os valores
incorporados nos participantes dos rituais são “rítmicos e cognitivos, espaciais e
conceptuais, sensuais e ideológicos”, ou seja, segundo Schechner, o ritual é “totalmente
teatro” (Ibidem, p. 302). Tomando outro texto de Schechner, Magnitudes of Performance,
ele explora mais ainda esta dimensão do ritual e da performance, analisando os ensaios e
as oficinas da peça The Prometeus Project. Ele afirma que várias vezes os participantes
das oficinas entravam em estado de trance, pois entrar o mundo de Io, a protagonista, era
uma experiência muito intensa e profunda. Assim como a experiência em si, o momento
sucessivo do alongamento permitia que os participantes voltassem ao estado presente, um
estado mental caracterizado por “mais pensar do que sentir” (Schechner, 1986, p. 365).
Nos meus ensaios de dança Afro, várias vezes experimentei este estado de trance e de
21
total envolvimento com o movimento executado. Uma das aulas viu como protagonistas
os tambores na minha experiência pessoal de dançarina:
“Hoje não conseguia parar, era como se fosse um desafio comigo mesma-queria ir
até o final. Ainda bem que os tambores ajudaram. É incrível como eles abstraem a
mente do esforço que estou fazendo. Senti o toque deles bem perto do meu
trabalho e consegui realmente estabelecer uma conexão entre a música e os
movimentos que estava fazendo. Foi muito bom.”(diário, 13 Maio 08)
Esta experiência denota um caráter praticamente ritual do ensaio, onde o som dos
tambores penetrou o corpo tão intensamente que o esforço e a dor conseguiu ser
abstraídos para se chegar a um outro nível, mais que simplesmente material, cheio de
sensações positivas. Esta conexão com o som dos tambores é algo de muito espiritual
que, no contexto da dança Afro, nos remete a uma experiência do contexto sagrado do
candomblé. Como explica Monique Augras em O Duplo e a Metamorfose “Os tambores
são personagens importantes na vida do candomblé. São considerados como seres vivos”
(Augras, 1983, p. 72). Augras continua explicando que, no barracão de candomblé, os
visitantes vão primeiro saudar os tambores, assim como depois farão os orixás e que “é o
som dos tambores que chama os deuses. Cada orixá tem seus toques específicos, aos
quais responde” (Ibidem, p. 73). Várias cantigas são cantadas para cada orixá, mas é
somente o toque do atabaque que tem o poder de fazer os deuses “baixarem”.
Mesmo não estando em um ritual de candomblé, os tambores na dança afro são
extremamente importantes. Especialmente durante a dança de orixás, é o toque do tambor
que chama o movimento. O corpo responde automaticamente com o movimento ao som
do atabaque, simbolizando um determinado orixá. Em outra aula, pode-se ver como a
conexão entre dançarino e orixá representado está presente:
“É impressionante a sensação de cansaço mas também de leveza que se
experiência no final de um ensaio destes, dedicado ao estudo de dança das yabás.
É como se um pouco da personalidade de cada uma das orixás femininas entrasse
por dentro do dançarino, que consegue se aproximar de cada uma delas através da
representação dos movimentos simbolizando cada entidade.”(diário, 17 Junho
2008)
Neste caso, o dançarino consegue incorporar o Orixá representado, “se aproximando” e
sentindo dentro de si a personalidade de cada Yabá (orixá feminino). A sensação vivida
pode ser analisada com o conceito de “jogo” de Turner, apresentado por Schechner. Este
22
“jogo” é o prazer, a mera êxtase que os rituais dão a seus participantes; é a “atuação de
perigos dentro da esquema do “como se” (Schechner, 1986, p. 365). Do outro lado,
Schechner também considera o verdadeiro estado de transe como um tipo de atuação:
“ser possuído por outro, ou seja, virar outro” (Schechner, 1988, p. 199).
Voltando ao texto Ritual, Violence and Creativity de Schechner, o autor apresenta
um segundo paralelo entre o ritual e a dança ou teatro. Utilizando o conceito de “processo
ritual” de Turner, Schechner escreve que “o processo ritual é estritamente análogo ao
processo de treino-oficina-ensaio, onde o que ‘é dado’ e o que ‘é já feito’, é desconstruido
e quebrado em pequenos pedaços de comportamento, sentimento, pensamento, e texto, e
é depois reconstruído nas performances públicas” (Schechner, 1963, p. 311). Schechner
prossegue dizendo que este treinamento comporta o aprendizado de novas maneiras de
falar e de se mover, novos gestuais e talvez novas maneiras de pensar e de sentir. Ao fim
do período de treinamento, o ator ou dançarino é incorporado na tradição do que
aprendeu, justamente como um membro iniciado em um ritual (Ibidem).
Em sua outra obra Between Theater and Anthropology, Schechner reforça mais
esta similaridade entre o rito e a arte da performance trazendo a teoria de Arnold Van
Gennep. Na obra Ritos de Passagem, o autor alemão estuda o rito como um fenômeno em
si, dotado de certos mecanismos recorrentes e de um certo conjunto de significados. Ele
concentra seu estudo nas margens, na transição, que constitui o aspeto principal dos ritos
de passagem. Além da margem, estes ritos são constituídos também por um momento
anterior (fase de separação) e um posterior (fase de agregação), os quais são importantes
de se considerar para o entendimento do ritual (Van Gennep, 1977). Fazendo um paralelo
com Van Gennep, Schechner afirma como a arte da performance é um ritual que inclui
uma fase de separação (preparo técnico e ensaio), uma de transição (performance) e uma
de retorno (relaxamento). A performance é então a fase de margem e, assim como a
iniciação, ela faz de uma pessoa, outra, com a única diferença do que as transformações
na performance são geralmente temporárias (Schechner, 1985). Viu-se portanto como o
ritual e a performance artística são dois mundos relacionados e parecidos. A linha de
separação entre os dois é fluida, e as fronteiras não são rígidas. Como podem então ser
reconhecidos devidamente? O que marca a diferença entre o rito e o espetáculo teatral ou
de dança? Schechner diz que cada ritual pode ser tirado do seu contexto original e pode
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ser performado como teatro. Isso é possível porque o contexto e a função, assim como a
estrutura ou processo fundamentais, distinguem o ritual do entretenimento da vida
cotidiana; além disso, esta diferença surge do acordo entre os performers e a audience
(Schechner, 1988, p. 152). No caso da dança de Orixás, é preciso saber distinguir entre
esta dança no contexto sagrado do Candomblé e no contexto profano da dança Afro. O
terceiro capítulo apresentará a dança de Orixás nesses dois mundos, fazendo um paralelo
e ao mesmo tempo deixando claro que a dança de um contexto é algo bem distinto da
dança do outro contexto. Antes de chegar lá quero concentrar a atenção mais sobre as
funções da performance.
Funções da Performance
Analisou-se até agora o que pode ser considerado performance; evidenciaram-se
os elementos interacionais nela presentes e viu-se a proximidade existente entre a
performance artística e o ritual sagrado. No artigo O que é Performance, Richard
Schechner elenca sete funções principais da performance: entreter, fazer alguma coisa
que é bela, marcar ou mudar a identidade, fazer ou estimular uma comunidade, curar,
ensinar, persuadir ou convencer, e lidar com o sagrado e com o demoníaco (Schechner,
2003, p. 45). Cada performance focaliza geralmente em várias funções ao mesmo tempo
e até os significados de cada função não são tão fixos, pois dependem de fatores culturais
e situacionais. O sentido do que é belo, por exemplo, muda dependendo da cultura ou
simplesmente da audience. Da mesma maneira, as performances podem entreter alguns
espectadores e não outros. Em geral, é importante lembrar e considerar essas funções
escolhidas por Schechner que, como veremos ao longo da dissertação aplicam-se muito
bem à performance da dança Afro. A questão da formação de identidade através da
performance por exemplo é particularmente presente na minha pesquisa, assim como o
fato da dança Afro lidar com ambos os campos do sagrado e do profano.
Retomando o artigo sobre Performance de Antonio Herculano Lopes, acho
importante evidenciar duas funções da performance que o autor pontua. Primeiro, ele
escreve que “os elementos performáticos contribuem para a construção de identidades
coletivas que ao mesmo tempo refletem e influenciam o curso dos eventos” (Lopes, 2003,
p. 9). Tais elementos, nas artes, assumem uma forma mais explícita, permitindo ao grupo
24
social de se auto-reconhecer. No caso da dança Afro, elementos constitutivos e
característicos dessa arte fornecem um instrumento de identidade para os dançarinos,
como veremos mais em detalhe no último capítulo. Segundo, através da performance,
recupera-se uma sensação que ficou registrada em algum canto da memória (Ibidem, p.
11). A performance da dança Afro, assim como outras formas artísticas, cria uma
experiência performática, onde o espectador penetra por dentro da performance,
envolvendo a totalidade dos seus sentidos. É por essa razão também que os sentidos são
evidenciados e dão o título a cada capítulo desta dissertação.
Um elemento fundamental que faz parte da performance destacado por Schechner
é o da transformação. Segundo ele, as pessoas usam o teatro como meio de experimentar
e atuar mudanças. Tais mudanças acontecem nos performers assim como na audience e,
como foi mencionado antes, podem ser temporárias, no caso do teatro, ou permanentes,
no caso do ritual. Em artigo intitulado “Etnografia da performance musical: identidade,
alteridade e transformação”, Rose Satiko Gitirana Hikiji aponta como esse elemento da
transformação encontra-se presente na performance musical do grupo de adolescentes do
projeto Guri. Ela escreve:
“Experiência ampla, a performance é central em projetos que, como o Guri, tem
como um dos objetivos principais a intervenção social por meio da música. Ela
torna visíveis atores e instituição. É palco de um amplo jogo de espelhos, lugar de
exibição de identidade e construção de auto-imagens. É espaço de transformação.
É concebida como auge do processo pedagógico, locus de exibição do que foi
aprendido, ensaiado, incorporado. É oportunidade de conhecer novos lugares,
pessoas, é "saída para o mundo".” (Hikiji, 2005)
A autora apresenta como a performance musical, nesse caso, é fonte de construção de
identidades e auto-imagens, é espaço de transformação e ferramenta de ensino, além de
ser uma possibilidade para conhecer novos lugares, novas pessoas e novas realidades. O
conhecimento do outro é considerado por Hikiji como elemento fundamental para a
transformação dos alunos. Tanto o encontro com os outros no palco quanto com a platéia
é uma ferramenta de aprendizagem, apesar de poder ser tanto alegre quanto conflituoso.
Graças a estes encontros, os alunos trocam impressões um do outro, cada um vê a
realidade do outro, e eles se percebem (Hikiji, 2005). A performance diante de uma
platéia permite a fixação de identidade do grupo e a experiência de transformação, de se
25
tornar o outro sem abandonar a si próprio.
Hijiki, assim como Lopes, também ressalta a experiência sensível da
performance:
“A performance é também uma experiência sensível única, que mobiliza
sensações independentemente de estarem sobre o palco amadores, profissionais,
estudantes ou participantes de um projeto de intervenção social…
Essa manipulação de expectativas, medos, vaidades e do prazer de fazer música –
somente possível dada a relação palco-platéia – corresponde a um intenso
aprendizado sentimental.” (Hikiji, 2005)
Mais uma vez pode-se observar como a performance estimula, mobiliza e manipula
sentimentos e sensações tanto para quem está no palco quanto para a platéia, permitindo
o que Hikiji chama de “intenso aprendizado sentimental”. Este aprendizado, assim como
o pleno envolvimento dos sentidos na performance e a criação de auto-imagens e
identidades fazem parte do palco e sua “magia”. Segundo a autora, essa “magia” do palco
é incorporada e carregada para a vida cotidiana, onde as imagens construídas no palco
graças à interação com os outros farão parte das noções de pessoa destes jovens
performers nas suas vidas pessoais (Hikiji, 2005)
Uma vez mais percebe-se que essa magia da performance está presente em todo
lugar: no espaço, nas coisas, nas pessoas; tudo vira um símbolo, que possui um
significado muito maior. Na análise da performance do Moçambique de Belém, Claudio
Alberto Dos Santos ressalta como o bastão usado nessa performance “deixa de ser uma
mera coisa” e assume um significado e um poder especial, “mágico” para os
moçambiqueiros. Essa coisa chega a ter alma e coração, permitindo uma vivência intensa
da performance (Dos Santos, 2003, p. 151). O Moçambique de Belém, assim como as
outras performances afro-brasileiras, caracterizam-se por essa intensidade, pelas
vibrações de energia que se criam no ar, pela impetuosidade e pelo despertar e
envolvimento de todos os sentidos e das emoções movimentados pela percussão, pela
dança e pelos gestos rituais:
“ A percussão, a dança e os gestos rituais ajudam nesse movimento que leva aos
estados alterados da percepção. O corpo dos participantes muda, transforma-se,
porque entram em jogo elementos irracionais. É um corpo emocionalmente
intenso, extático.” (Ibidem, p. 153)
O corpo na performance afro-brasileira atua através de elementos impulsivos e é um
26
corpo que se movimenta e experiência a performance não só fisicamente, mas também
emocional e espiritualmente. Na dança Afro, os “estados alterados da percepção” se
manifestam movidos pelo toque do tambor e pelos gestuais dos Orixás. O performer
transmite e vivência intensamente essa emoção, entregando-se totalmente em cena e
executando gestos fortes e exagerados que surgem de dentro, das emoções mais
profundas, das vibrações energéticas internas e das experiências sensoriais do corpo. A
performance da dança Afro é um lugar onde o corpo do dançarino percebe o outro, troca
olhares com o outro, sente os cheiros em volta dele, toca o outro e sente os gestos e
movimentos na pele, ouve os sons, as músicas e os ritmos que o entornam, e sente o gosto
do que está fazendo, da dança, da música, do ambiente, e do outro.
27
CAPITULO 2 – O Gosto da Dança Afro
Dancing is like breast-feeding.
That is, it is a potentially nurturing,
sustaining activity, an act of transmission.
Barbara Browning
O universo da Dança
Como foi analisado detalhadamente na introdução, dançar é humano. E a dança
permeia várias áreas da nossa vida cotidiana. Dançar pode ser considerado algo como
vários tipos de comportamento humano, do físico ao psicológico, do social e cultural ao
econômico e político, até ser um meio de comunicação. O que é portanto dançar? Quais
são os elementos que constituem a arte da dança? E por que as pessoas dançam? Estas
são as perguntas que tentarei responder nesta primeira parte deste capítulo.
Olhando para os dados que colecionei, achei a melhor definição de dança ser a de
Judith Lynn Hanna, a autora mencionada na introdução deste trabalho, no seu livro “To
Dance is Human”. Ela define “dança” como um “comportamento humano” composto por
sequências de movimentos corporais e outras atividades motoras com valor estético,
desenhadas culturalmente, intencionalmente rítmicas e possuindo um objetivo (Hanna,
1987, p. 19). É importante evidenciar cada elemento desta definição para poder entender
a complexidade muitas vezes não reconhecida da dança. Especialmente na nossa
sociedade ocidental a dança, como a arte de maneira geral, é colocada em um plano
inferior e não é devidamente valorizada. Dentro da academia encontra-se o mesmo tipo
de resistência ao considerar a dança como uma disciplina complexa e rica de significados
a ser estudados. Por isso acho fundamental desconstruir estas noções mostrando como
dançar é algo sério e importante, algo que não é fácil e que exige muito treino e estudo
para poder ser compreendido e executado corretamente.
Voltando à definição da Hanna e aos dados observados na minha etnografia,
começo a apontar os elementos principais da arte de dançar. Primeiro, a dança tem um
objetivo. Isso quer dizer que, ao se movimentar dançando, o indivíduo quer alcançar algo,
seja este condicionamento físico, distração mental ou desejo de comunicar alguma coisa.
Veremos isso melhor ao falar do porque as pessoas dançam. Segundo, um elemento chave
da dança é o ritmo. Ritmo vem do grego rhytmos e designa aquilo que flui, que se move,
28
movimento regulado. O ritmo não está presente somente na música ou na dança.
Achamos ele na poesia (métrica), nos “ritmos” biológicos (respiração ou batida do
coração), na nossa maneira de andar. Na música, o ritmo é um “acontecimento sonoro,
que acontece numa certa regularidade temporal”. É portanto uma maneira de marcar o
tempo. Na dança, em ausência de música, o ritmo é marcado pelo próprio corpo, através
da batida da mão, da marcação dos pés no chão, da contagem ou através de outros sons
da voz. É possível portanto dançar sem música, mas não é possível dançar ser ritmo.
Tão importante quanto o elemento temporal é a dimensão espacial da dança.
Durante minha experiência como dançarina reparei que é fundamental para o dançarino
ter noção de espaço. O que exatamente quer dizer isso? Vários aspectos estão envolvidos
nessa noção, entre os quais três principais ficaram em evidência nas minhas notas de
campo. Primeiro, é preciso saber ocupar o espaço disponível para dançar de maneira
uniforme, harmoniosa e tendo consciência da distância entre seu próprio corpo e os
limites do palco ou da sala de aula, assim como a distância entre seu próprio corpo e os
outros dançarinos. Geralmente, durante uma aula de dança, os alunos ocupam um lugar
na sala de aula para poder executar os movimentos mostrados pelo professor. Após a
repetição do movimento no lugar, os alunos repetem o mesmo movimento se deslocando
pelo espaço. É importante neste momento manter a arrumação e o desenho inicial e ter
noção de onde a outra pessoa está, para não invadir o espaço do outro. Isso pode parecer
algo simples, mas requer muita concentração, visão, controle e sobretudo respeito.
Durante minhas aulas e ensaios de dança, Eliete nunca falta de repetir quanto é
importante respeitar o espaço do outro, ficar no seu lugar e saber controlar os
movimentos para que ocupem de maneira proporcional e estética o lugar de ensaio.
O segundo elemento espacial que também não falta de ser lembrado aos
dançarinos durante as aulas e ensaios é o sentido de direção. Assim como é importante
respeitar o espaço de cada um e do lugar onde se está dançando, é também fundamental
saber para onde seu corpo está indo. Durante uma aula no Circo Voador por exemplo,
trabalhamos exclusivamente este elemento de noção de espaço e direção. Fizemos
movimentos simples e repetitivos, treinando estas qualidades, com a Eliete repetindo
constantemente que “é preciso ser consciente do espaço do outro e saber respeitá-lo”, e
que “é preciso saber para onde vai, não só na dança mas no dia a dia. Tem que ter direção
29
e pisar firme!” (diário, 25 Maio 2009).
O último desafio ligado à dimensão espacial da dança é saber se adaptar aos
lugares diferentes nos quais se dança, o que é algo complicado, como pude experienciar
várias vezes nas apresentações do nosso grupo CorpAfro. Durante os ensaios do
espetáculo, o grupo encontra-se geralmente em um ou dois lugares específicos, onde
ensaiam-se as coreografias, os desenhos formados pelos corpos e pelos movimentos, as
marcações de lugares, das entradas e saídas do palco etc. No momento do dia da
apresentação, muitas vezes o espaço é totalmente diferente do que se imaginava o do no
qual as coreografias foram ensaiadas. Após ter ensaiados nas grandes salas do Centro
Coreográfico, por exemplo, fomos chamados para fazer uma apresentação em uma loja
de construção onde tivemos que dançar em um pequeno espaço no meio de banheiras.
Em outra ocasião, em vez de nos apresentar no palco do teatro do CCRJ, como nos foi
comunicado, tivemos que dançar na área externa, um espaço bem maior, onde o som e a
luz eram precárias e em vez do que em cima de um piso, dançamos na grama. Isso requer
uma rápida avaliação e estudo do novo espaço disponível, assim como uma reorganização
e adaptação das arrumações espacias previamente ensaiadas e uma capacidade do corpo
se adaptar às novas condições oferecidas.
Eliete reforça constantemente esses elementos técnicos espaço-temporais
presentes na definição de dança. Durante um ensaio no Centro Coreográfico do Rio de
Janeiro, em uma folha ela escreveu a importância da “prática de movimentos e ritmo”,
atingida através de três elementos:
- VISÃO: capacidade de perceber as formas, linhas, e proporção harmoniosas.
- PRECISÃO: velocidade e rapidez na execução do movimento, aumentando o
fortalecimento e o equilíbrio.
- TENACIDADE: qualidade do profissional coma estética e musicalidade.
Comentando sobre estes ensinamentos, Eliete falou que “precisa harmonizar os
movimentos com linhas específicas e com sentido, com direção. A musicalidade (ritmo)
está junto com a corporeidade.” (Diário, 11 Abril 2009).
Apareceram aqui mais dois elementos da definição de dança da Hanna:
movimentos executados com precisão e estética. Na dimensão de visão da Eliete, recalca-
30
se a presença na dança de formas e harmonia, e no elemento de precisão sublinha-se a
importância da rapidez, da força e do equilíbrio a ser obtidos na execução de um
movimento. Para que se obtenha este resultado é preciso muito treino, em um processo
que durante nossos ensaios do grupo chamamos de “limpar o movimento”. Esta
“limpeza” é atingida através da repetição do mesmo movimento durante a qual é preciso
prestar atenção aos mínimos detalhes para poder aperfeiçoar o movimento, até conseguir
executá-lo de modo mais perfeito possível, formando linhas e desenhos claros e nítidos,
com equilíbrio, força, jeito harmonioso e rapidez.
Este processo de treino se utiliza da repetição exaustiva como método de
aperfeiçoamento e que é chamado de “drilling” por Susan Leigh Foster no seu artigo
“Dancing Bodies”. Ela escreve como o corpo do dançarino pode ser visto como um
ensemble de linhas e pontos, puxados, empurrados, esticados, elevados pelos dançarinos
durante as aulas de técnica. Assim, o dançarino aprende as curvas que o corpo é capaz de
formar e aprende também a criar certas formas seguindo certos ritmos (Foster, 1997, p.
239). Este “drilling” é portanto necessário para “criar o corpo”, pois, através da repetição,
as imagens e ações usadas para descrever o movimento do corpo se tornam o próprio
corpo, e é assim que o processo de treino repetidamente reconfigura o corpo (Ibidem).
Ao explicar o conceito de movimento na dança, Hanna também aponta para a
importância dos já mencionados ritmos, espaço e direção, assim como para a importância
da criação de formas e de execução do movimento com força. Ela define “forma” como
“o contorno físico do desenho do movimento, criado pelo corpo e pelas suas partes,
formando ângulos e curvas”, e descreve “força” como “a quantidade relativa de energia
física e emocional gasta” (Hanna, 1987, p. 36-37). Olhando para esta descrição de
“força”, podemos observar como o elemento emocional acompanha e está estritamente
ligado ao físico. A própria Eliete durante uma minha entrevista com ela falou que “a
dança é uma mistura de técnicas com o que vem de dentro” (Eliete, 29 Dezembro 2009).
Como Susan Leigh Foster também escreve, os dançarinos podem ser instruídos e
aconselhados sobre como girar, pular, pisar etc., mas eles são também movidos a
“escutar” o próprio corpo e a permitir que novas possibilidades de movimentos se
manifestem espontaneamente (Foster, 1997, p. 250). “Escutar” o próprio corpo quer dizer
prestar atenção ao que vem de dentro do corpo e não só de fora dele; quer dizer permitir
31
que o corpo se expresse sem querer controlá-lo rigidamente e deixando fluir as energias
por ele até essas se manifestarem em forma de novos movimentos.
Este gasto de energia, tanto físico como emocional é algo que pode ser observado
na resultante dor e cansaço depois de uma aula de dança. Após uma aula no Circo Voador
Eliete falou da necessidade de considerar a consciência do corpo, da dor e do cansaço,
mesmo que seja muito difícil de fazer. A dança faz com que se haja essa consideração; “a
dança é como análise-mexe-se em coisas que não se quer mexer” (Eliete, 20 Abril 2009).
É interessante ver como isso se reflete na reação de uma aluna que após uma aula
comentou: “to frustrada, enferrujada…depois de ficar tantos meses parada, não consigo
acompanhar.” (Circo Voador, 6 Abril 2009). Neste caso o fato de estar “enferrujada”
fisicamente se relaciona diretamente a uma sensação de “frustração” no plano emocional,
mostrando como a dança, através do esforço da movimentação do corpo, atinge um lado
mais “interno” do campo das sensações e emoções. O depoimento de uma aluna depois
de uma aula de dança Afro na UERJ descreve este fator plenamente: “Foi mais do que
desempenho ou trabalho aeróbico; foi sensação, foi transcendência” (16 Setembro 2009).
As palavras desta aluna expressam como o trabalho físico anda junto com a sensação,
junto com algo além do tangível na hora de dançar. Veremos mais nos capítulos adiante
como esta ligação corpomente na dança pode ser analisada antropologicamente.
Além dos elementos já analisados do movimento na dança, a estética é algo que
precisa ser evidenciado e explorado mais. Segundo a definição de Hanna, os movimentos
na dança possuem valor estético. A autora escreve que “experiência estética” envolve o
estímulo de atenção imediata e a contemplação dos significados imanentes ou
transcendentes de um fenômeno nos níveis emocional, cognitivo e comportamental
(Hanna, 1987, p. 38). Logicamente, as experiências estéticas não são iguais para todo
mundo e variam dependendo de vários fatores, como idade, humor, background artístico
ou de dança, educação social etc. A dança possui qualidades que estimulam a experiência
estética. Essas qualidades podem ser tanto o estilo e a forma da dança quanto o próprio
conteúdo e significados transmitidos. Falando de significados, precisa apontar que estes
variam socialmente e culturalmente e a dança possui portanto significados e sequências
determinados culturalmente. A dança é um fenômeno social e é um veículo através do
qual a cultura é transmitida (Hanna, 1987), e, como argumentarei nesta dissertação,
32
através do qual a cultura é também criada e recriada permanentemente no gestual do
corpo. Do outro lado, a cultura também afeta e esculpe os estilos e a estrutura dos
movimentos de dança. Como Hanna remarca, enquanto os estilos de dança podem
requerer um treino especializado, a capacidade de dominar um estilo pode se desenvolver
através de experiências de vida cotidianas (Ibidem, p. 34).
Foram apresentados até então alguns dos elementos chave que são parte
constituinte da arte da dança, tentando explicar o que quer dizer dançar e o que a dança
envolve, mostrando a complexidade desta disciplina, muitas vezes subestimada. Falta
ainda responder o porquê da dança. O que as pessoas que dançam procuram obter? Quais
são as razões que levam alguém a querer dançar? Depois de ter posto esta pergunta para
os dançarinos do meu campo de pesquisa, reparei que existem múltiplos fatores que
inspiram entrar e ficar no mundo da dança. Uma razão primária para os alunos que
escolhem ter aula de dança é a diversão e a procura de uma atividade para si mesmo que
distraia e relaxe o corpo e a mente. Depois de uma aula de dança Afro da Eliete na UERJ,
os alunos expressaram suas sensações:
“Precisava resgatar algo. Tava me adoecendo em não fazer nada para mim e
precisava sair da rotina e foi a melhor coisa que fiz”
“O bom da dança é que você não pensa em nenhum problema”
“È uma terapia”
“È muito legal trocar energias com gente que não se conhece” (20 Maio 2009)
Como é possível ver destes comentários, as pessoas buscam a dança como uma “terapia”,
algo que faça bem para o “self”, algo que forneça uma saída e distração dos problemas e
algo social, que permita conhecer outras pessoas e trocar energias com elas. Sobre este
último ponto, uma outra aluna e membro do nosso grupo de dança Afro, disse durante um
ensaio no Centro Coreográfico:
“A arte, nesse caso a dança, é mágica, proporciona possibilidades de se encontrar,
de se aproximar quando você geralmente não convive no dia a dia”(M., 1 Maio
2009).
A dimensão social da dança é algo extremamente valorizado por todos que se envolvem
com esta arte. O fato de encontrar pessoas, trocar idéias, mover seu corpo junto com o de
outros e interagir dançando provoca um bem estar tanto físico quanto mental.
33
Se para os alunos das aulas de dança esta é mais uma atividade saudável e
divertida, já por alguns dos componentes da companhia de dança CorpAfro e por Eliete a
dança representa uma verdadeira profissão e sustento. Eliete é professora de dança Afro
full time, e sempre repete para seus alunos que ela “vive disso”. A dança portanto
significa trabalho para muitos, e deveria ser respeitada como tal pelos não profissionais
da área, coisa que infelizmente nem sempre acontece. Além da função mais prática e
econômica do ensino da dança, minha professora, e outros instrutores e profissionais com
quem falei, tanto no Rio como na Bahia, escolhem esta profissão com o objetivo de
educar os alunos. Através da dança ensina-se história, mitologia, estudos sociais e
políticos bem como a cultura de um povo. No caso da dança Afro, leva-se muito a serio
esta missão educacional sobre a história, os mitos, a identidade e a cultura afro-brasileira
e o ensino é considerado como um dos motivos e objetivos principais para dançar.
Falando mais em específico do meu campo de pesquisa, muitos dos alunos que
escolhem fazer aula de dança Afro estão à busca de algo mais, algo que está relacionado a
resgate e identidade, nesse caso resgate da cultura afro-brasileira, como refletem os
depoimentos dos alunos depois de uma aula na UERJ:
“È uma coisa muito enraizada na cultura brasileira. Tem uma identidade forte
porque a cultura africana aqui é muito forte”
“Trabalhar nosso corpo e nossa identidade ao mesmo tempo-a aula refletiu
isso”
“Cada vez que eu danço é que nem encontrar a mim mesmo”
“A energia se renova neste espaço e me faz lembrar quanto a nossa cultura é
rica”.
“Entrei para a dança para me encontrar como mulher negra; a dança não é só
uma questão de corpo mas de identidade afro-brasileira, de resgate, de
resistência”.
Esses comentários indicam a razão que conduz as pessoas a dançarem e escolherem um
gênero de dança, nesse caso dança Afro. Para muitos brasileiros (e não brasileiros
também), estudar a dança afro-brasileira é um modo de aprender e descobrir as raizes
ancestrais tão fundamentais como bastante presentes na construção da cultura e arte
34
brasileiras. Para outros alunos, especialmente para os negros, a questão identitária é
muito sentida e considerada. Como diz o último depoimento desta aluna, ela entrou para a
dança Afro para se “encontrar como mulher negra”, para resgatar a identidade afro-
brasileira presente no dia a dia do seu corpo.
Drid Williams, antropóloga e dançarina, apresenta o porquê das pessoas dançarem
no capítulo “Why do people dance?” do livro Anthropology and the Dance. Williams teve
seu treinamento como dançarina profissional e foi convidada a estudar antropologia na
Universidade de Oxford por Evans-Pritchard, que reconheceu o imenso potencial do
conhecimento em dança de Williams e a sua contribuição para o pensamento
antropológico. Em sua obra, Drid Williams pergunta: “o que as pessoas estão fazendo
quando dançam?”. E responde, primeiro, elas estão criando eo reforçando relações
sociais significativas. Segundo, elas estão reproduzindo papéis significativos para elas,
para suas histórias, seus mitos, suas crenças religiosas, vidas políticas etc. Terceiro, elas
estão estabelecendo e reforçando conexões sociais que lhe permitem seguir com suas
vidas (Williams, 1991, p. 21). Pode-se ver então como a importância do elemento de
interação social é reafirmado por Williams também, assim como foi apontado por muitos
dos alunos do campo de pesquisa. Através da dança criam-se relações sociais e
interpretam-se vários papéis, muitos dos quais têm a função de promover um resgate da
própria história, cultura, dos próprios mitos, idéias e visões, que são por sua vez
ensinados e transmitidos para quem assiste as pessoas dançarem.
Na tentativa de definir o universo da dança com seus elementos técnicos, seus
participantes e as razões que conduzem as pessoas a querer fazer parte do mundo da
dança, vimos como a dança é uma arte complexa, que exige muito treino, disciplina e
talento para poder ser aperfeiçoada. Apontou-se para as várias funções da dança, e para
como é utilizada na condição de meio de comunicação e educação, de resgate de cultura e
identidade e de bem estar físico e mental. Todos estes fatores foram analisados de
maneira geral dentro do campo geral da arte de dançar, entrando somente às vezes no
campo específico da dança Afro. O passo seguinte será introduzir as danças que fazem
parte de um complexo cinético esculpido pela herança de influências motoras e
simbólicas do povo da diáspora Africana, onde concentrarei minha análise mais
especificamente nas danças Afro-brasileiras, destacando elementos relevantes e em
35
comum entre elas, até chegar a definir o objeto da pesquisa desta dissertação que é a
dança Afro.
Danças Afro-brasileiras
Como foi afirmado anteriormente, a dança é um meio de comunicação que recria,
ensina e transmite mitos, histórias e culturas. O instrumento chave através do qual o
dançarino opera é seu próprio corpo, o qual realiza movimentos e gestos significativos.
Ao falar de corpo, é importante entender que este é um símbolo da sociedade, e que os
seres humanos experienciam o mundo através dos seus corpos. Os nossos corpos
portanto, carregam histórias e memórias, não somente individuais, mas também histórias
mais gerais, de raça, gênero e cultura. O corpo conta uma história e fala de certas
experiências culturais através de gestos, que representam símbolos.
No caso deste trabalho, serão analisadas as histórias, os gestos, os símbolos e os
corpos dançantes elaborados por intermédio da dispersão da diáspora africana e que se
difundiram para os diversos países e contextos do mundo. Robert Farris Thompson, na
introdução do seu livro “Flash of the Spirit” sobre arte africana e afro-americana, declara
que muita da música popular mundial é influenciada do que ele chama de “flash of the
spirit” de um certo povo dotado com um incrível talento improvisatório (Farris
Thompson, 1984). Devido ao comércio internacional de escravos, princípios
organizadores de música e dança atravessaram o oceano da Africa para o Novo Mundo. O
autor identifica seis desses princípios: estilo de performance percussivo; propensão para
uma métrica múltipla; elementos de chamada e resposta nas músicas; controle de
pulsação interna; sequências de acentuação suspensas (contra-tempos); músicas e danças
de alusão social (Ibidem). Veremos aqui como estes elementos se integram nas danças
afro-descendentes e, em particular, afro-brasileiras. No artigo “La musica y danza tropical
e Africana desterritorializadas”, o antropólogo Miguel Chamorro Vergara também fala de
uma “música negra” que se expandiu pelo mundo, contribuindo para a construção de uma
identidade nacional desterritorializada (Vergara, 2002). Mais em específico a dança,
segundo Vergara, é um “componente expressivo de poder da diáspora africana” (Ibidem,
p. 90), pois, continua ele, a “dança africana ou de negros” é um tipo de “manifestação
corporal ritualística” que se comunica através da linguagem dos movimentos dos
36
indivíduos, transmitindo imagens culturais (Ibidem, p. 91). O objetivo deste trabalho é
melhor compreender que movimentos corporais são esses da dança Afro e como eles
transmitem certas imagens culturais.
Falando de “música negra” e “dança Afro”, podem-se encontrar múltiplas
expressões corporais em vários lugares do mundo atuando como textos desta
“Africanidade”. Um exemplo de expressão corporal da cultura diaspórica no novo mundo
é contemporaneamente o hip-hop, símbolo da identidade Afro-americana. Segundo um
artigo escrito por Thomas F. DeFrantz, toda dança da diáspora africana pode ser ligada a
uma oralidade africana, onde o elemento da “chamada e resposta” é presente. No caso da
dança, o corpo e os movimentos respondem ao ritmo do tambor; os movimentos da
dança, portanto atuam como se fossem um discurso, contendo significado além da forma
estética e da sequência de movimentos executada pelo corpo em ação (DeFrantz, 2004).
DeFrantz continua analisando alguns dos elementos comuns às danças diaspóricas,
tentando entender o “Africanismo” presente no hip-hop, e resume afirmando que as
“danças negras” materializam no corpo uma continuidade de fala performática para os
africanos da diáspora. As danças oferecem uma maneira de identificação cultural que une
os Afro-americanos no que ele chama de corporeal orature, ou seja uma ligação entre
fala e movimento que convida à ação (Ibidem).
O próprio Vergara fala sobre os ritmos caraíbicos e tropicais como manifestação
simbólica de uma cultura através das imagens produzidas no corpo e na corporeidade ao
se mover em múltiplos sentidos (Vergara, 2002). Como exemplos de estudos sobre a
herança africana nas danças dos Caribes podemos mencionar o de Katherine Dunham em
Haiti e o de Yvonne Daniel em Cuba. Dunham conduz seu estudo na ilha de Haiti, onde
as danças possuem uma forte influência africana. Como ela escreve no seu livro “Dances
of Haiti”, muitos historiadores sempre reconheceram o fato da dança ser uma parte
fundamental da cultura dos africanos trazidos para as Américas e ser ao mesmo tempo
vital para a sobrevivência e o bem estar dos escravos, pelo menos como elemento
recreacional (Dunham, 1983). A antropóloga também explica que cada dança tradicional
de Haiti está ligada a algum tipo de ritual, profano ou sagrado que seja. Este aspecto
ritualístico da dança pode ser visto em outras danças de matriz africana no novo mundo e
será em seguida analisado com respeito ao objeto da dança de Orixás no Brasil.
37
Analisando a religião do vodun, Dunham explica os aspectos materiais, as organizações
dos grupos de dança e as funções das danças. A pesquisa feita em Haiti ressalta a
presença e a importância sagrada dos tambores, os quais são os instrumentos chave das
danças haitianas e são considerados religiosamente sagrados (Ibidem). A presença de
instrumentos percussivos e sua importância ritualística são características das danças
afro-brasileiras também, em particular das danças de Orixás.
Mais um estudo conduzido nos Caribes sobre a influência africana na dança é o de
Yvonne Daniel sobre as danças de Cuba. Daniel define três aspectos comuns às danças
afro-caribenhas, sendo estes a movimentação da pélvis, a música polirrítmica e a
presença da percussão como guia do tom e da sensação (Daniel, 2002). Entre as ilhas
caribenhas, o estudo de Daniel concentra-se na ilha de Cuba, onde ela analisa as
influências européia, indígena e africana nas danças da região. Uma parte do seu texto
analisa as múltiplas danças africanas presentes em Cuba, devido à importação de
escravos da Africa do Oeste e Central, trazidos para trabalhar na produção de açucar.
Entre as influências africanas em Cuba, Daniel aponta as de quatro grupos distintos:
Kongo, Arará, Carabalí e Yoruba, descrevendo os movimentos corporais típicos de cada
tradição e sublinhando que, assim como aconteceu também aqui no Brasil, estas danças
africanas foram influenciadas desde a sua chegada pelas tradições locais, formando
portanto algo que não pode ser chamado mais de dança africana mas de dança afro-
cubana, ou afro-brasileira no nosso caso.
Os elementos corporais descritos mudam dependendo do grupo étnico-cultural
mas mais uma vez, como foi visto no caso de Haiti, a presença dos instrumentos de
percussão é uma constante. Na descrição dos movimentos da cultura Congo-Angolana,
pertencente a povos do Congo e de Angola e que fazem parte do grupo linguístico Bantu,
podem se ver semelhanças com os movimentos de muitas danças afro-brasileiras. Daniel
descreve as danças Congo-angolanas como altamente percussivas e sensuais. O torso dos
dançarinos é dobrado para a frente, de maneira muito baixa; o movimento de cada parte
do corpo é constante, e os movimentos são extremamente fortes, dinâmicos e possuem
uma grande quantidade de saltos e pulos (Daniel, 2002). Os movimentos provenientes do
grupo Arará (dos povos do antigo Reino de Daomé) envolvem a presença de tambores e o
movimento predominante dos ombros, algo que é também muito presente nas danças
38
afro-brasileiras. Finalmente, ao descrever as danças de origem Yoruba, que incluem
povos das atuais regiões da Nigéria e República do Benin, Yvonne Daniel explica como
estas são danças específicas representando as divindades por ela chamadas “orichas” e
seus movimentos, os quais retratam as vidas e os arquétipos de cada divindade (Ibidem).
Ao descrever a dança de cada “oricha”, é impossível não reparar a extrema semelhança
com a dança de Orixás brasileira, derivante da mesma cultura Yoruba. Daniel portanto
descreve elementos visuais e corporais comuns aos quatro grupos de influência africana
em Cuba, que, como veremos adiante, são reconhecíveis na dança Afro do Brasil, como a
posição baixa com joelhos flexionados, os pés firmes no chão e as costas levemente para
a frente, posição essa típica do que é chamado de molejo na dança Afro, considerado o
elemento chave na realização desta dança. Viu-se até agora como as influências da
diáspora africana estão presentes em várias partes do globo, com resguardo à música e à
dança. Concentrarei agora a atenção na influência africana nas danças no Brasil,
introduzindo mais o objeto da pesquisa, que analisa uma destas danças afro-brasileiras
em particular, ou seja a dança Afro.
Existem múltiplos estilos de danças afro-brasileiras, muitas vezes classificadas
como danças populares, ou danças folclóricas. Cada região do Brasil tem suas danças
típicas, e a influência africana está presente em muitas delas. Durante o período colonial,
povos africanos como os Bantu, os Yoruba, os Fon e os Jeje estavam no Brasil, sendo
trazidos como escravos pelos Europeus. Em cada região eles carregaram suas histórias e
tradições, que acabaram se expressando no novo continente. As danças brasileiras de
origem africana são inúmeras e contam as história e as realidades das populações
africanas no Brasil. É nas artes que apresentam o corpo como protagonista que a estética
africana mais se manifesta. No livro Diásporas Africanas na América do Sul, Julio Cesar
de Tavares e Januário Garcia escrevem como nas artes a herança africana revelou-se na
vida brasileira, afirmando o corpo como arma de resistência à colonização e como
suporte dos signos culturais:
“Paladino de toda a experiência simbólica e material na diáspora, o corpo torna-se
maestro de uma orquestra de experiências não-verbais que efetivam a estética da
vida dessa civilização recriada pela força da imaginação.” (Tavares e Garcia,
2008, p. 42).
39
É no corpo que as experiências dos povos da diáspora africana se reproduzem e se
mantém. No caso do Brasil, essas experiências são reproduzidas e mantidas em um corpo
que expressa-se principalmente nas artes e, mais ainda, nas danças afro-brasileiras.
Acham-se hoje essas manifestações nas diferentes regiões do Brasil e incluem
artes corporais como a capoeira, o jongo, o coco, o maracatu, o tambor de crioula, o
samba, o batuque, o cacuriá, a dança Afro entre outras. Durante minha pesquisa fui
assistir um espetáculo realizado por um projeto do grupo cultural Nós do Morro na
comunidade carioca do Vidigal. O nome do show era “Afro em nós” e quis apresentar
uma série de danças afro-brasileiras. Começaram com a figura do malandro e o samba
carioca, e passou-se através do jongo, do coco, maculelê, cacuriá, capoeira, dança afro e
samba de roda. Cada apresentação de dança foi introduzida por uma breve explicação que
denotava a influência de elementos de matriz africana que aqui no Brasil juntaram-se aos
de origem indígena ou européia. Todas estas danças são de origem africana e
apresentaram vários elementos em comum que pude identificar durante a apresentação,
como grandes movimentos de braços e ombros. batidas de pés e mãos junto com a batida
do tambor, a presença da roda, a parte do quadril sempre em movimento, giros, pés
descalços e pisando forte no chão, e elementos de jogo e brincadeira. O espetáculo
terminou, não por acaso, com o samba de Ary Barroso cuja letra diz “esse aqui ai é um
pouquinho de Brasil, esse Brasil que canta e é feliz… é também um pouco de uma raça,
que não tem medo de fumaça não…”(Diário de campo, 28 Março 2009). Para mostrar
mais em detalhe e com um suporte teórico estas qualidades das danças afro-brasileiras,
trago aqui quatro estudos sobre o Jongo no Sudeste, o Tambor de Crioula do Maranhão,
a Capoeira, e o Samba.
O Jongo é considerado uma das mais importantes manifestações africanas no
Brasil, originária dos escravos da região Congo-Angola, e que, desde novembro de 2005,
foi denominado um dos Patrimônios Culturais do Brasil. Através dos cânticos, do sons
dos surdos, danças em círculo, e das batidas das mãos, o Jongo conta a história dos
escravos das velhas plantações de café. Todos os elementos desta dança e da música e
batida de tambores que a acompanha comunicam uma história de origem africana (Mattos
e Abreu, 2007). O elemento de “chamada e resposta” analisado previamente no texto de
DeFrantz sobre hip-hop, é uma característica fundamental do Jongo, onde cada estrofe
40
dos cânticos é enunciada por uma pessoa e repetida pelo grupo todo. Em um artigo sobre
os cânticos no Jongo e na Umbanda, Carina Maria Guimarães Moreira escreve que os
versos cantados nestas duas tradições são chamados de “pontos” e provém de uma cultura
baseada na oralidade. Estes pontos cantados “juntamente com o ritmo dos tambores e das
danças encerram uma tradição: a do poder mágico da palavra trazida pelos povos bantos
para o Brasil” (Moreira, 2008). Ao analisar as letras de pontos cantados de umbanda e de
jongo, Moreira exemplifica como a história oral de origem africana, junto com a música e
a dança é comunicada tanto nos eventos religiosos quanto nas rodas de jongo.
Durante o período da minha etnografia, em Maio 2009, tive a oportunidade de
viajar para o quilombo S. José da Serra na região de Valença no estado do Rio de Janeiro
onde, anualmente, realiza-se um festival de jongo, com apresentações de danças afro-
brasileiras que duram um fim de semana inteiro. O que pude observar no festival foi a
formação constante de rodas para cada apresentação. Teve rodas de jongo, de cachambu,
de capoeira, todas mostrando uma dinâmica parecida: a maioria dos participantes formam
uma roda e ficam cantando, tocando tambor e outros instrumentos percussivos, e batendo
palmas ao mesmo tempo. Enquanto isso, uma dupla de pessoas entra no meio da roda e
fica “jogando”, tanto no jongo quanto na capoeira ou no coco. Cada jogo e cada dança era
executada ao som dos tambores e de pés no chão, e tudo aconteceu em um ambiente rico
de significados e símbolos da cultura afro-brasileira, tentando-se recriar uma atmosfera
quase ritualística do festival. Este paralelo entre performance artística e ritual sublinhado
no primeiro capítulo será melhor desenvolvido no próximo capítulo.
Elementos parecidos com o jongo, como a roda, a umbigada e os tambores, se
encontram na dança típica do Maranhão Tambor de Crioula. Esta é uma dança negra
executada ao som de tambores, tocados por homens, enquanto as mulheres dançam
dentro de uma roda e com movimentos circulares, usando saias largas, grandes e
coloridas, e alternando sua entrada dentro da roda com a umbigada, comum também ao
jongo e ao samba de roda. A umbigada ou punga é um elemento importante na dança do
tambor de crioula. No passado foi vista como elemento erótico e sensual, que estimulava
a reprodução dos escravos. Hoje a punga é um dos elementos da marcação da dança,
quando a mulher que está dançando convida outra para o centro da roda, ela sai e a outra
entra (Ferretti, 2006). Ferretti, neste artigo sobre o Tambor de crioula no Maranhão
41
explica detalhadamente a diferença com o Tambor de Mina, ritual religioso Maranhense.
Existem distinções entre estas duas manifestações: o tambor de crioula é uma dança de
divertimento que se caracteriza pela importância da punga. O tambor de mina é uma
dança religiosa em que o transe é o elemento fundamental. Embora seja uma dança
eminentemente festiva, o tambor de crioula possui diversas relações com a religiosidade
popular, não sendo correto afirmar que é manifestação exclusivamente profana, pois, na
cultura popular o sagrado e o profano encontram-se intimamente relacionados (Ibidem).
Mais uma vez, nesta dança afro-brasileira, encontra-se o elemento religioso ligado ao
profano, e uma sinergia entre a dança, os tambores e a circularidade.
As expressões de danças populares afro-brasileiras que mais viraram símbolos
nacionais, tanto no Brasil quanto no exterior, são o samba e a capoeira. Mesmo sendo
duas expressões artísticas muito diferentes, e diferentes das outras mencionadas até
agora, podem-se encontrar vários elementos em comum, típicos das danças de matriz
africana. A capoeira é considerada uma mistura entre dança e arte marcial, caracterizada
por golpes e movimentos acrobáticos desenvolvidos pelos escravos e seus descendentes.
Tomando a capoeira no contexto de cultura afro-brasileira e da expressão da diáspora
africana, é importante sublinhar que existem uma simbologia, ritualidade e ancestralidade
de origem africana que influenciam consideravelmente essa manifestação. Na tese
“Capoeira Angola: cultura popular eo jogo dos saberes na roda”, Abib analisa a capoeira
como uma manifestação da cultura popular onde a memória e oralidade e ritualidade
assumem um papel muito importante (Abib, 2004). O que Abib escreve com respeito às
manifestações culturais de origem africana é relevante para este trabalho:
“É certo que não podemos desconsiderar o processo híbrido que caracterizou a
formação das manifestações afro-brasileiras e mesmo as afro-americanas.
Também é certo que, no Brasil como em poucos lugares do mundo, podemos
verificar o quanto a influência africana foi marcante e mesmo preponderante em
boa parte das manifestações envolvendo os elementos lúdicos de dança,
música, jogo e brincadeira. Não podemos desvincular o contexto de
surgimento da capoeira, do contexto do surgimento do maracatu, por exemplo, ou
das congadas e moçambiques, do jongo e do próprio samba, apenas para
citar as manifestações mais conhecidas, que partilham, juntamente com a
capoeira, de um mesmo núcleo cultural proveniente da África, responsável
por claras semelhanças entre essas manifestações.”
Dois elementos chave deste “Africanismo” derivado da diáspora africana na capoeira são:
42
primeiro, a música, executada com instrumentos de percussão sempre presente nas rodas
de capoeira onde acontece o “jogo” entre os capoeiristas. Segundo, o elemento da roda é
uma característica primária da capoeira, sendo sempre mantida como moldura do jogo
executado no meio.
Segundo o estudo “Dança da Guerra” do antropólogo Julio Cesar de Tavares, a
roda é um elemento fundamental na capoeira; é um espaço onde há uma concentração de
energias que seriam do espaço cósmico e que são “canalizadas pela rítmica do berimbau e
pela energia dos corpos em movimento”. É um espaço onde há a preservação da
“motricidade negro-africana”, baseada na movimentação dos quadris e na conservação da
energia vital da cultura iorubana, o axé (Tavares, 1984, p. 62). Tavares continua
afirmando que a dimensão energética presente na roda contribui para a “versatilidade” e a
“dinâmica mobilidade” do corpo, como pode ser observado nas danças africanas, nas
práticas religiosas e nas outras manifestações afro-brasileiras (Ibidem, p. 69). A capoeira
é portanto uma forma de ludicidade brasileira que recupera as “unidades básicas da
maneira de agir e estar no mundo da população negra” (Ibidem, p. 60), na qual os gestos
corporais refletem e resgatam a memória do cotidiano dos negros, através do que Tavares
denomina de uma “bricolage gestual” que surgiu instintivamente diante da experiência
dominadora e colonial da escravidão (Ibidem, p.70). Concluindo, Tavares escreve:
A Capoeira faz parte da memória corporal dos negros e de seus descendentes,
localizando-se nela os índices que podem falar sobre a sua resistência à
hegemonia cultural da civilização ocidental, uma vez que ela compreende as
características corporais desenvolvidas pelo negro, tanto na luta como na paz,
para garantir sua sobrevivência. (p. 103)
Essa “memória corporal” do negro é o que aproxima as manifestações corporais afro-
brasileiras, trazendo uma corporeidade específica que se originou nos corpos dos
africanos trazidos ao Brasil em condição de escravos, corpos que sempre lutaram e
reagiram contra os abusos coloniais. Essa corporeidade mostra elementos comuns às
várias formas de expressão artísticas afro-brasileiras, como será evidenciado na próxima
parte deste capítulo.
No final da roda de capoeira, geralmente acontece um samba de roda, outra
manifestação cultural afro-brasileira. Entre todos os tipos de samba, o samba de roda é o
mais próximo das danças populares analisadas até então, possuindo elementos em comum
43
com as outras manifestações. O samba de roda é originário do Recôncavo Baiano e é
dançado por homens e mulheres dentro de uma roda, os quais entram e saem da roda
alternando-se depois da umbigada, já encontrada no Jongo e no Tambor de Crioula. Este
samba é tocado por um conjunto de pandeiro, atabaque, berimbau, viola e chocalho,
acompanhado principalmente por canto e palmas, e dança-se descalço. Um elemento de
relevância nesta dança para o objeto desta pesquisa é a roda. Como escreve Daniela
Maria Amoroso no artigo “Corpo, o dono do samba: um estudo sobre o samba-de-roda do
Recôncavo”:
“A roda, como o próprio nome diz, é onde tudo acontece. É na roda que se canta,
dança, bate palmas, toca instrumentos. E é na roda que uma energia se cria, se
multiplica, se espalha. Entendo que a roda não é uma mera forma de organização
espacial do samba-de-roda e estou convencida de que semelhanças existem entre
o que acontece na roda de capoeira, no samba-de-roda e também no candomblé.
A roda constrói o lugar daquele ritual, que não é religioso, mas sim festivo. Não é
algo banal entrar numa roda para sambar, não é banal iniciar um jogo numa roda
de capoeira.”
O que pode ser destacado como ponto comum entre estes tipos de danças afro-
brasileiras (o Jongo, Tambor de Crioula, Capoeira e Samba de Roda), portanto, são dois
elementos essenciais, sempre presentes na performance de cada uma delas: o som dos
tambores como acompanhamento necessário à dança, e a formação da roda como
elemento coreográfico da execução das danças. Além disso, todas as danças afro-
brasileiras são dançadas descalços para manter o contato dos pés no chão. Segundo a
visão mítica Nagô “o corpo humano em si é um microcosmo. Os pés apóiam-se no
concreto, no barro de onde saiu para onde voltará, na terra que os antepassados pisaram e
à qual retornarão” (Augras, 1983). Estes três elementos estão presentes e são
fundamentais também na dança Afro, especialmente na dança dos Orixás. Muitas vezes
nas aulas e ensaios de dança Afro do meu campo de pesquisa trabalhou-se o conceito de
roda e circularidade, de energia dos tambores, e de contato com o chão, todos elementos
que caracterizam a dança Afro e que serão portanto retomados na parte seguinte.
AArte de Dançar Afro
O objetivo é procurar saber o que é a dança afro. Isso é ter coragem.
Eliete Miranda
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A dança Afro surgiu no Brasil devido as influência trazidas por africanos retirados
do seu país de origem para realizarem trabalho escravocrata em solo brasileiro. Os
escravos brasileiros pertenciam a diversos grupos étnicos, incluindo os Yoruba, da
Nigeria e da República do Benin, os Ewe e os Fon, do Benin e Togo e o grupo linguístico
Bantu, do Congo e Angola, e eles trouxeram consigo suas experiências corporais,
culturais e religiosas. Aqui no Brasil estas experiências se modificaram, vindo a
apresentar características típicas próprias. As danças lúdicas e religiosas destes povos,
especialmente as de origem Bantu e Yoruba, foram recriadas de maneira própria no novo
mundo, mantendo elementos de matriz africana reconhecíveis. Agora, se tivéssemos que
definir e descrever exatamente o que é a dança Afro, as coisas se complicam,
principalmente por duas razões. Primeiro, a dança Afro é uma mistura de estilos e
contribuições de variadas origens africanas re-elaboradas no Brasil; usando o termo que
Julio Cesar de Tavares utilizou referindo-se à capoeira, a dança Afro é uma “bricolage”
de múltiplos elementos. Segundo, os mitos e histórias das culturas que deram origem aos
movimentos da dança Afro fazem parte de uma história oral que sempre foi transmitida
de forma não escrita, dando origem a mais prováveis confusões e a menos clareza.
Depois de pesquisar fontes teóricas, perguntar para profissionais da área, observar e
participar da dança Afro nos últimos dois anos, cheguei à conclusão do que definir o que
é a dança Afro é um verdadeiro desafio. Até hoje não existe uma definição exata; ao
contrário, têm várias versões sobre o que é, quem criou, onde se originou e o que inclui a
dança Afro. Segundo minhas observações, isso depende do fato que a arte de dançar Afro
é algo de extremamente complexo e rico em variedades. Nesta última parte do segundo
capítulo pretendo fazer três coisas: primeiro, quero apresentar uma breve história sobre o
que é a dança Afro, trazendo as diferentes teorias e opiniões sobre a questão; segundo,
quero apontar os elementos corporais (movimentos), musicais e culturais que levam a
definir certa dança de dança Afro; e terceiro quero definir as diferentes modalidades que
fazem parte da dança Afro, de acordo com meu campo de pesquisa.
História
Uma das únicas referências teóricas sobre a dança Afro é o livro “Dança Afro-
45
Sincretismo de Movimentos” da dançarina e coreógrafa baiana Nadir Nóbrega Oliveira.
No seu texto a autora evidencia a confusão em volta deste assunto. Oliveira escreve que
“são variadas e antagônicas as opiniões e explicações sobre o que está convencionado
como Dança Afro” (Oliveira, 1992). Tentando fornecer uma história de quando e como
iniciou a dança Afro, Nadir escreve que a primeira dançarina e coreógrafa negra a
convencionar uma técnica de dança baseada nas danças negras de Haiti, foi Katherine
Dunham, nos Estados Unidos. Foi ela que, vindo ao Brasil em 1949, conheceu a bailarina
negra do Teatro Municipal Mercedes Baptista e convidou ela para estudar na sua
academia em Nova York (Ibidem). Mercedes Baptista voltou ao Brasil nos anos 50, e
fundou o balé folclórico que leva seu nome, baseado nas técnicas aprendidas com
Dunham (Ibidem). Uma das únicas fontes que contam a história da fundação da dança
Afro no Rio de Janeiro é a dissertação de mestrado na UFRJ do antropólogo Nelson
Lima, o qual escreve sobre Mercedes Baptista e o fato dela ser considerada a mãe do Balé
Afro e fundadora da escola e técnica de dança Afro no Rio de Janeiro (Lima 1995).
Segundo o estudo de Lima, a técnica de Mercedes era baseada nos rituais religiosos de
matriz africana, e tentava reproduzir com fidelidade os movimentos e gestuais dos
Orixás, divindades da religião afro-brasileira do Candomblé (ver Capítulo 3). Esta técnica
foi adaptada pelas duas principais alunas de Mercedes, Isaura de Assis e Marlene Silva,
as quais inovaram e interpretaram as origens africanas com elementos da dança clássica e
moderna, criando uma linguagem cênica e não só ritual (Lima, 1995). Um dos maiores
defensores desta versão da origem da dança Afro é Charles Nelson, professor de dança
Afro no Rio de Janeiro o qual, durante uma entrevista que tive com ele na Lapa, declarou:
“A Mercedes Baptista foi a criadora da dança afro, não somente no Rio quanto no
Brasil. O dela não é estilo de dançar, mas uma escola de Afro, é diferente. Eu
dancei com ela e com a Katherine Dunham quando ela veio ao Rio… a dança afro
nasceu no Rio, não em Salvador. Eles dizem que nasceu lá mas foi aqui com a
Mercedes; eles lá inventaram o swing baiano.” (15 Abril 2009)
Como pode-se ver deste trecho, existe um atrito sobre quem fundou e onde nasceu a
dança Afro. Segundo Charles Nelson, a dança Afro nasceu no Rio e foi fundada pela
Mercedes Baptista. A técnica tem elementos de balé juntos a movimentos inspirados pela
dança de Orixás, adaptados para palco.
Voltando ao texto de Nadir Nóbrega de Oliveira, ela escreve que, em Salvador, os
46
grupos folclóricos que começaram a se formar a partir dos anos 60, apresentavam os
“aspectos mais expressivos da cultura africana presentes na Bahia”. Ela continua
afirmando que, até hoje, as manifestações mais exploradas pelos grupos Afro em
Salvador são o Candomblé, a Puxada de Rede, o Maculelê, a Capoeira e o Samba de roda
(Oliveira, 1992, p. 33). Ainda na sua tese de doutorado sobre a influência do dançarino
Clyde Morgan na escola de dança da Universidade Federal da Bahia, Nóbrega Oliveira
reafirma a presença de “hibridações no que se chama de dança Afro em Salvador” pois
existiam trocas culturais entre danças africanas, dança moderna, capoeira e candomblé
(Oliveira, 2006, p. 114). Segundo este estudo de Oliveira, o dançarino e coreógrafo negro
norte-americano Clyde Wesley Morgan foi uma presença fundamental na escola de dança
da UFBA e contribuiu para a integração de elementos afro no seu grupo de dança
contemporânea, em um ambiente onde as técnicas de dança ensinadas incluíam somente a
moderna, clássica e contemporânea. Segundo Oliveira, Morgan “captou os movimentos
da capoeira e do candomblé, principalmente as armadas, a ginga e o ginká (movimentos
circulares dos ombros, utilizados nas danças de candomblé), introduzindo-os,
artisticamente re-elaborados, em suas coreografias (Ibidem, p. 104).
Mais um profissional considerado um dos mestres e fundadores da dança Afro em
Salvador é Raimundo Bispo Dos Santos, melhor conhecido como King, que começou a
atuar como dançarino e coreógrafo nos anos 70, inspirando-se no que tinha aprendido na
escola de dança da UFBA e nos ensinamentos de Mercedes Baptista, Katherine Dunham
e Domingos Campos, coreógrafo do Brasil Tropical (Oliveira, 2006, p. 34). No artigo da
coreógrafa e educadora Amélia Vitória de Souza Conrado “Dança Étnica Afro-Baiana”,
ela tenta explicar e compreender o que é a dança Afro e, para este propósito traz
entrevistas com o mestre King. Segundo ele, a técnica da dança Afro é inspirada nos
Orixás, sendo essa uma “técnica própria, uma postura própria dos Orixás, uma cultura”
(Conrado, 2006, p. 38). Ao falar isso, King defende uma não rigidez dos movimentos;
eles devem ser baseados na postura dos filhos de santo observados nos terreiros de
Candomblé, mas cada mestre e professor de dança deveria enriquecer estes movimentos
com estudos e experiências próprias (Conrado, 2006). Similarmente à posição do mestre
King, dois jovens instrutores de dança Afro em Salvador que tive a possibilidade de
entrevistar, colocaram sua opinião, ao lhe ser perguntado “o que é a dança Afro?”:
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AGRADECIMENTOS

  • 1. AGRADECIMENTOS A Deus e todos os Orixás por providenciarem luz e força para terminar este trabalho. A Eliete, educadora, mulher guerreira, amiga e conselheira, por me ensinar a infinita beleza da dança Afro e por me inspirar a pesquisar essa arte. Aos meus pais, por me apoiarem nas minhas escolhas, projetos e aventuras. Ao Prof. Dr. Júlio Cesar de Tavares, por me orientar e ajudar nesta pesquisa desafiadora, e por acreditar neste trabalho. Aos Professores da banca examinadora, pela sua disponibilidade, ajuda e pelas valiosas sugestões. Aos meus amigos e colegas de dança, pelos seus gestos, palavras, movimentos e pela alegria gerada nas aulas. Aos integrantes da Cia. CorpAfro, presentes e passados, por acreditar no grupo e no seu objetivo, e pelos momentos de grande aprendizado juntos. Ao meu amigo Alex, fantástico dançarino, por contribuir à minha pesquisa com valiosas informações e por me convidar a conhecer e participar de maravilhosas festas públicas de Candomblé. A mãe Renata, Pai William e Mãe Rosa, por abrirem as portas dos seus Ilês e por me acolherem como parte da família. A Pai Jobi, por oferecer a oportunidade de conhecer o mundo dos Orixás. A Alex, Claudia, Dejaneth, Eliete, Akauan e Walmir, por dançarem e tocarem maravilhosamente no dia da defesa. 7
  • 2. À FEBARJ (Federação dos Blocos Afro do Rio de Janeiro), pois foi lá que tudo começou. À UERJ, ao Circo Voador e ao Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, por oferecer ótimos espaços e estruturas de ensaio, tornando minha etnografia possível. Às minhas famílias, tanto a de origem como as que me adotaram no Rio de Janeiro, pela ajuda, amor e suporte muito preciso longe de casa. Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA-UFF). À Capes, pela concessão de bolsa de estudo para tornar essa pesquisa viável. A todos os professores de dança Afro que me deram aula e cujos espetáculos foram uma inspiração: a Tatiana, Pakito, Vânia, Charles Nelson, Zebrinha, Neudinha, George Momboye, Rubens Barbot, Rui Moreira, por seus ensinamentos, seu tempo, e suas contribuições. Ao meu companheiro Pimpolho, por aguentar minhas crises de mestranda, pelas idéias fornecidas, pelas brigas que me incitaram a terminar este projeto e pelo amor dado. A todos meus amigos e amigas, pelas conversas, ajuda e solidariedade, tanto nos momentos difíceis como nos de celebração, e por não me deixar desistir. À minha gatinha Sete, por alegrar a casa enquanto escrevia. A todos e todas que contribuiram com este trabalho. 8
  • 3. INTRODUÇÃO O corpo só tem sentido se aguçarmos nossos sentidos. A arte de dançar é algo que sempre foi presente na vida do ser humano e que faz parte de uma variedade de atividades que vão da esfera do lúdico ao religioso, da arte à diversão, da brincadeira ao profissionalismo. Como aponta o título “To dance is Human” de Judith Lynn Hanna, antropóloga e pesquisadora em dança na Universidade de Maryland, dançar é humano e a humanidade se expressa quase universalmente através da dança (Hanna, 1987). Explicando mais em detalhe a presença da dança nos vários campos da vida humana, Hanna descreve a dança como uma arte que representa pelo menos sete tipos de comportamento humano: físico, cultural, social, psicológico, econômico, político e comunicativo (Hanna, 1987). Esta dissertação abordará cada uma destas dimensões da dança, todas elas entrelaçadas e ligadas à corporeidade humana. Junto com os tipos de comportamento humano, portanto, explicarei cada capítulo deste trabalho através dos sentidos corporais: a visão, o tato, o olfato, o paladar, a audição e o que pode se definir de sexto sentido: a intuição. Todos estes sentidos estão presentes na performance da dança Afro e em todos os tipos de comportamento humano representados pela dança. Entretanto, associei cada sentido a um capítulo e a um tema específico da minha pesquisa, mostrando como, de maneira variada mas sempre corporalmente o “eu dançante” na dança Afro aprende, pensa na prática, interage, compreende, comunica, carrega memórias e resgata identidades. O primeiro capítulo é o da visão; é um sentido forte, que permite olhar para e assistir o que está sendo mostrado. É o capítulo onde apresentarei meus métodos etnográficos, e farei uma descrição do campo de pesquisa além de apresentar as teorias de performance que serão a base do meu trabalho. Com o suporte teórico de Richard Schechner e Victor Turner falarei de performance e ritual, eventos nos quais a presença de espectadores é fundamental. Explorarei também as teorias de interação social de Erving Goffman, onde o olhar é um elemento chave do sucesso da interação. Seguindo o sentido da visão, associei o paladar ao segundo capítulo, sendo esse o capítulo que vai dar um gosto sobre a arte da dança em geral e sobre as danças afro-brasileiras e a dança Afro em particular. Tentarei aqui explicar a história, os elementos e as modalidades do que 9
  • 4. pode ser chamado de dança Afro, saboreando a variedade e complexidade dessa arte. Nestes primeiros dois capítulos é possível ver especialmente como a dança é um comportamento social e econômico. A dança faz parte da nossa vida social e, ao dançar, o performer assume um certo status e executa vários papéis, assim como acontece na vida social, como será evidenciado no próximo capítulo com as teorias de Goffman. Economicamente falando, a dança é o meio de trabalho e de sustento de muitos profissionais, além do fato de muitas pessoas pagarem por aprender esta arte, por motivos que vão do buscar uma identidade ao fazer exercício, do conhecer novas pessoas ao se distrair, como veremos dos depoimentos no segundo capítulo. O terceiro capítulo foca-se mais sobre a modalidade sagrada da dança Afro, a dança de Orixás. Trarei aqui uma breve introdução sobre o mundo da religião do Candomblé, explicando quem são os Orixás e listando os principais deuses com seus arquétipos, suas características, seus gestos e jeitos de dançar. Ao analisar o corpo que dança Orixá, farei uma comparação entre o contexto sagrado do Candomblé e o campo profano da dança Afro, levantando algumas questões corporais que serão retomadas em seguida. Este capítulo é associado ao olfato, sentido que é fundamental no Candomblé e no lidar com as forças da natureza, muito presentes quando se fala de Orixás. Faz-se aqui evidente como dançar é algo cultural dado que todos os valores, atitudes e crenças influenciam os movimentos e a performance do dançarino. Além disso, através da dança transmitem-se elementos que fazem parte de uma rica cultura; neste caso passam-se histórias e mitos originários da religião do Candomblé, parte da cultura afro-brasileira. O quarto capítulo é da audição, pois é o capítulo que fala de comunicação. No dia a dia a comunicação acontece tanto de maneira verbal quanto não verbal. De qualquer maneira, o que é fundamental no processo comunicativo é que tenha alguém que escute e receba a mensagem. Na dança Afro o corpo comunica através dos gestos, da voz, da música, do toque do tambor, do movimento. Explorarei portanto as teorias de comunicação que abordam os elementos de interação e cooperação entre os protagonistas do ato comunicativo. Olhando para os tipos de comportamento de Hanna, esse capítulo lida com o “comportamento comunicativo” da dança, considerando esta arte como uma linguagem, um meio de comunicação não-verbal através da qual instauram-se relações e transmitem-se significados. 10
  • 5. O capítulo cinco é associado ao sexto sentido da intuição. É um capítulo onde explorarei mais detalhadamente as teorias fenomenológicas do corpo, afirmando que não existe uma divisão entre corpo e mente e analisando como o corpo é capaz de aprender e compreender sozinho, pois os seus sentidos possuem uma inteligência própria e uma memória altamente funcional. Nesse capítulo é portanto possível ver a presença e a junção do comportamento físico e psicológico da dança; dançar é físico pois é uma ação estritamente ligada ao corpo do dançarino e aos movimentos executados através dos músculos, das articulações e dos impulsos energéticos vindo do cérebro. A dança é também um comportamento psicológico pois envolve pensamentos, emoções, sentimentos e afetos. Essas duas dimensões estão profundamente interligadas no corpomente do “eu dançante”. Finalmente, o sexto capítulo é o capítulo do tato, pois trata de sentir na pele a questão de identidade e alteridade racial presente na discussão e prática da dança Afro no Brasil. Trarei especialmente minha experiência de dançarina e pesquisadora branca no campo da dança Afro, mostrando a presença de fortes estereótipos raciais e falando da vivência de reações estigmatizadoras e preconceitos por causa da cor da pele de quem dança. É evidente como a questão política está aqui presente, mostrando a dança como um campo onde opiniões, posições sócio-políticas e ideais são expressos e onde se instalam hierarquias e jogos de poder. Tendo apresentado os seis sentidos que inspiraram os capítulos desta dissertação, cabe mencionar “o sétimo sentido” que deu o título a este trabalho. A epifania que deu origem ao título veio há pouco tempo durante uma aula de dança Afro, na qual minha professora colocou uma das músicas que mais foram presentes nos meus anos de aulas e ensaios com ela e com o grupo. A música é “Raça Negra” da cantora baiana Virginia Rodrigues e as letras falam do povo negro e da “infinita beleza: o sétimo sentido da tal legião”. A infinita beleza refere-se à beleza da dança, a beleza da cultura afro-brasileira e do povo negro; é a beleza dos Orixás e dos reis e rainhas Africanos; a beleza da música e do tambor; a beleza da memória ancestral, da resistência e dos gestos. É a infinita beleza dos corpos que dançam. 11
  • 6. CAPITULO 1 – Olhar para a (e na) Performance Tudo pode ser dançado e compreendido, pois o corpo, por uma razão ancestral, sempre teve necessidade de comunicar-se através do movimento. Maria Fux Métodos e descrição do campo de pesquisa Desde que cheguei no Rio de Janeiro, a dança Afro entrou na minha vida de maneira intensa, como uma verdadeira força da natureza com a qual esta arte tanto está conectada. Foi dançando que aprendi muitas coisas sobre a cultura afro-brasileira que comecei a sentir tão perto de mim que comecei a querer saber e pesquisar mais sobre ela. Por isso, depois de alguns meses de aula, reparando quanto a dança Afro tinha virado algo extremamente importante na minha vida, quis realmente entender e procurar saber mais sobre este universo. Foi assim que decidi pensar em um projeto de mestrado onde pudesse estudar e pesquisar a dança Afro. Esta possibilidade me foi dada dentro do campo da antropologia, onde pude descobrir detalhes fascinantes que fazem parte do universo da dança Afro. Minha pesquisa baseou-se principalmente na observação participante do meu objeto de estudo como dançarina de dança Afro. Ao longo da minha pesquisa participei de muitas aulas e oficinas de dança Afro, tanto no Rio como em Salvador. Fiz algumas aulas com o professor Charles Nelson na Fundição Progresso na Lapa e participei como percussionista da banda Afro Orunmilá, na Febarj, na Lapa, onde tive contato com a prática de dança de blocos Afro que acontecia no lugar enquanto a banda tocava. Durante meu tempo em Salvador, frequentei as aulas de dança Afro na Escola de Dança do Terreiro de Jesus com Vânia, Tatiana e Pakito. Consegui participar de oficinas com Zebrinha e Neudinha, coreógrafos do Ballet Folclórico da Bahia. Além de participar como dançarina de aulas e oficinas de dança Afro, também assisti espetáculos, festivais e eventos de dança afro-brasileira, como o espetáculo “Orixás” da Cia Rubens Barbot de dança, o show do Ballet Folclórico da Bahia em Salvador, a Noite da Deusa do Ebano do Orunmila no Rio de Janeiro, e o Festival de jongo no quilombo S. José, entre outros. Ainda, conversei e conduzi entrevistas com profissionais da área e com alunos de dança Afro e pesquisei e estudei fontes teóricas relacionadas ao meu objeto. Além disso, 12
  • 7. participei, como espectadora, de algumas festas de Candomblé em terreiros na Baixada Fluminense para poder observar e estudar a dança de Orixás dentro do ritual religioso e poder fazer uma comparação com o contexto profano da dança. Entre todas estas fontes de pesquisa, houve um campo principal no qual conduzi minha etnografia, que foi o campo onde comecei a dançar e que quero descrever mais detalhadamente. A maioria das aulas que frequentei foram da professora de dança Afro Eliete Miranda, baiana, formada pela escola de dança da UFBA (Universidade Federal da Bahia), e ex dançarina e coreógrafa do Bando de Teatro Olodum de Salvador. Comecei a dançar com Eliete em Agosto 2007 na Febarj (Federação dos blocos Afro do Rio de Janeiro), na Lapa, bem antes de até cogitar escrever uma dissertação de mestrado. Desde 2007 nunca parei de fazer aula com Eliete e continuei seguindo ela para onde estivesse ensinando. Durante este último ano, desde março 2009, data do início oficial da minha etnografia, as aulas da Eliete das quais participei como dançarina e pesquisadora foram na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e no Circo Voador na Lapa. Além das aulas, dancei e fiz pesquisa também como membro da Cia CorpAfro de Eliete, da qual faço parte desde setembro 2007 a pesar de algum tempo no qual me afastei do grupo devido a atritos entre alguns membros da companhia e a falta de organização. Desde Abril 2009, entretanto, ensaiei toda sexta e sábado junto com a Eliete e os outros participantes do grupo no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, localizado na Tijuca. Durante este ano, houve algumas apresentações do grupo que considerei também como material etnográfico. Quero portanto descrever com mais detalhes como são estes três espaços nos quais conduzi minha pesquisa e quem foram as pessoas que fizeram parte do campo durante o ano passado. Disse que, desde Abril 2009 as aulas e os ensaios aconteceram em três lugares principais. O primeiro lugar onde começaram as aulas do ano passado foi o Circo Voador, espaço cultural da prefeitura localizado na Lapa. Durante a semana ele abriga várias atividades culturais, como aulas e oficinas de dança, circo, teatro; no fim de semana, o circo Voador vira uma casa de show, onde é possível assistir a maioria dos músicos e artistas brasileiros. O espaço para dançar aqui é diferente do que seria uma qualquer sala de aula: o ambiente é aberto, ao ar livre, o chão é de madeira e a “pista” é redonda. A circularidade do espaço, por exemplo, foi muitas vezes usada para trabalhar o 13
  • 8. elemento da roda, tão importante na dança Afro, e foi aproveitado para explorar arrumações e posições coreográficas diferentes das convencionais. A maioria das aulas no Circo Voador foi com a percussão ao vivo presente, o que levantou a energia em várias ocasiões. Sendo um espaço aberto, muitas vezes durante o inverno tivemos aula com tempo frio (relativamente, óbvio, agradecendo ao Rio de Janeiro!) e chuvoso. Ao chegar nossos corpos estavam com preguiça, endurecidos e cansados. O som do tambor era como um despertador, que fazia nos soltar e energizar, dançar e aquecer. As aulas no Circo sempre incluíam um momento para nos sentarmos na roda e discutir temas sobre a dança Afro, assuntos raciais e sócio-políticos, e ler textos e poesias sobre história e identidade afro-brasileira. Mesmo sendo um espaço aberto, é um ambiente privado e tranquilo, que permite estes tipos de atividade de reflexão e discussão. Estes momentos em específico foram a melhor oportunidade para nós, alunos da aula, nos conhecermos, para trocar idéias e opiniões. O que ajudou na interação entre nós alunos foi o número pequeno de pessoas e o fato da maioria de nós já sermos amigos de anos, desde as primeiras aulas da Eliete. Muitas pessoas “novas” fizeram uma ou outra aula sem dar continuação, mas tiveram umas três pessoas que começaram a dançar no Circo Voador com a Eliete que continuaram e ficaram o ano inteiro; foram estas poucas pessoas que aos poucos se integraram mais com o “nosso grupo” de amigos da dança já existente. Foi muito interessante observar este tipo de interação, onde ficou sempre evidente a distinção entre os “novos alunos” e os “antigos”, que não somente são alunos de longa data, mas também fazem parte do grupo CorpAfro, fazendo com que a intimidade fosse bem maior do que com os outros. Esta situação, comum nas aulas mais recentes da Eliete, é um exemplo do conceito de team que o sociólogo Erving Goffman define no seu livro Presentation of Self in Everyday Life. Ele escreve que um time pode ser criado por indivíduos para ajudar o grupo do qual são membros; porém, eles acabam formando um tipo de “sociedade secreta” cujos membros são reconhecidos pelos não- membros por formar uma sociedade exclusiva, mesmo que esta sociedade não esteja sendo constituída pelo fato deles atuar como um time (Goffman, 1959, p. 105). O segundo espaço é o da UERJ, onde a diferença entre os alunos antigos e os novos está presente também mas em nível menor, pois além de mim e mais um aluno dos antigos, o resto da turma é formada por pessoas novas. As aulas de dança Afro da UERJ 14
  • 9. fazem parte do projeto do COART que promove todo semestre várias atividades artísticas e culturais. A Eliete tem dado aula lá há muitos anos, e eu já fiz aula na UERJ com ela nos anos passados. No ano da minha pesquisa, 2009, formou-se uma turma que continuou dançando nos dois semestres, e que surpreendeu pela sua vivacidade, intimidade, vontade de aprender e de interagir. O espaço para dançar na UERJ é uma sala pequena mas limpa e confortável, com espelhos, ar condicionado, equipamento audio-visual e uma variedade de instrumentos percussivos a disposição. Como a aula tem três horas de duração, Eliete sempre reserva uma boa parte do tempo para uma parte teórica, assim como ela faz no Circo Voador, para poder discutir assuntos atuais sobre a questão Afro. Esta estrutura de aula é o que torna o método de Eliete tão diferente da maioria das aulas de dança Afro das quais já participei. O fato de discutir e estudar assuntos como identidade negra, sistema de cotas, mitologia dos Orixás, histórias dos blocos Afro de Salvador etc. é algo que, além de promover a interação entre os alunos, também estimula o interesse pela questão Afro, e ajuda a entender mais a importância da dança como uma maneira de aprender, compreender e resgatar certas memórias e raízes. O terceiro ambiente que irei descrever é o Centro Coreogràfico do Rio de Janeiro (CCRJ) onde, desde Abril 2009, o grupo CorpAfro da Eliete está ensaiando. Este é um lugar dedicado especificamente ao universo da dança e é portanto equipado para isso. As salas são grandes e entornadas de espelhos, o chão, a luz e o som são apropriados para dançar, e tanto as salas quanto o prédio são extremamente limpos e funcionais. Durante uma roda entre os membros do grupo, no nosso primeiro ensaio do ano, Eliete falou muito sobre este espaço, que foi conseguido por meio de um processo de seleção muito duro. A coordenação do Centro agora é de Carmen Luz, coreógrafa da Cia Étnica, que deu a Eliete e ao grupo Corpafro a possibilidade de ser residentes no CCRJ por um ano. Eliete comentou que “É muito importante estar neste espaço especialmente para um grupo de dança Afro, pois sempre foi um espaço reservado a grupos de ballet ou de dança contemporânea” (10 Abril 2009). Este comentário evidencia a importância de ter conquistado um espaço que foi historicamente reservado somente para alguns estilos de dança, e que sempre teve preconceito com grupos de dança Afro. Por estar em um espaço profissional, Eliete exigia uma postura profissional, começando pelo uso de uma uniforme para dançar. Desde o primeiro ensaio, foi evidente como o clima e a atmosfera 15
  • 10. desse espaço era completamente diferente dos outros lugares de aula, pois realmente pôde-se sentir a seriedade, a responsabilidade e o profissionalismo exigidos. Uma coisa que Eliete evidenciou em um ensaio foi a importância de “saber chegar no lugar, não deixando de ser você mesmo mas precisando ter limites e regras” (18 Abril 2009). Mais uma vez, a teoria de Goffman pode ser relacionada a esta situação, pois evidencia como a vida social de todo dia é um palco no qual, para poder ter sucesso, é preciso saber chegar, se preparar, conhecer as regras e os limites do jogo para poder respeitá-los e conseguir jogar e interagir com os outros (Goffman, 1959). A partir daquele momento, os ensaios aconteceram toda sexta e sábado, por cinco horas seguidas, sendo estes momentos de criação, de trabalho e de concentração. O trabalho prosseguiu e evoluiu mas faltou ter uma consistência de participantes do grupo, o que acabou demotivando um pouco o clima dos ensaios. De qualquer maneira, as experiências vividas, as informações aprendidas e a prática adquirida durante os ensaios foram extremamente valiosos para cada um dos membros do grupo, assim como para a Eliete. Durante estes meses de ensaio, tiveram várias apresentações do nosso espetáculo “Corpos e Tambores”, o qual, mesmo estando ainda em construção, transmite os objetivos do grupo CorpAfro elencados por Eliete: Grupo Corpafro: corpo e origem Afro-Brasil. 1. trabalhar a nossa identidade cultural. 2. trabalhar corporeidade. 3. conhecer o que tem ao nosso redor. 4. desmistificar o fato do que “dança afro é macumba”. 5. leitura, pesquisa, conhecer as origens. (24 Julho 2009) Estes objetivos são os objetivos da arte de dançar Afro segundo os ensinamentos da Eliete, os quais mostram como a performance da dança Afro é um meio para ensinar e construir uma realidade que seja consciente de certas questões pertencentes à cultura afro-brasileira. É preciso agora clarificar o conceito de performance, muitas vezes utilizado de maneira superficial sem conhecer o seu complexo significado. Após entender mais este termo, mostrarei como os elementos performáticos fazem parte tanto da vida cotidiana, quanto da dança e do ritual. 16
  • 11. Performance As teorias de performance de Erving Goffman, Richard Schechner e Victor Turner aparecem como ferramentas adequadas para analisar as aulas, ensaios e apresentações de dança Afro que fizeram parte da minha pesquisa. Primeiro, é fundamental definir melhor o termo performance. Segundo um dos maiores estudiosos de performance junto com Victor Turner, o norte-americano Richard Schechner, a performance pode ser entendida no ambiente do cotidiano, do ritual e da arte. Todos estes tipos de performance são feitas de “comportamentos duplamente exercidos, comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar” (Schechner, 2003, p. 27). Ele continua afirmando que as performances “afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e adornam corpos, contam histórias” (Ibidem) Segundo Schechner portanto a atuação repetida e ensaiada é um elemento fundamental da performance. Além disso, o componente do “jogo” é também importante. Em sua obra “Performance Theory”, Schechner define performance como “Ritualized behavior permeated by play” (Schechner, 1988, p. 99). A característica ritual da performance será analisada em seguida; com resguardo ao fator do jogo, isso é algo que faz parte da interação entre os atores, e entre atores e audience, tanto no espetáculo de teatro ou dança, quanto na vida de todo dia. O jogo é algo que rende a performance uma situação sempre ativa e, como Schechner escreve, um “processo turbulento de transformação” (Schechner, 1988: 157). Esta concepção de performance como atividade sempre em movimento e como mudança pode ser comparada com a definição tanto de interação quanto de performance de Erving Goffman. Ele afirma que a interação é a influência reciproca dos indivíduos sobre as suas ações na sua presença imediata. A performance é toda a atividade de um participante em uma situação, que serve para influenciar os outros participantes (Goffman, 1959, p.15). Mais uma vez é possível ver como a “atividade” está presente entre um grupo de indivíduos. No artigo Performance e História, Antonio Herculano Lopes, após consultar várias definições de performance em dicionários, conclui que a idéia de movimento, ação ou processo, combinada com a noção de resultado, assim como a associação com um público são os elementos chave da performance. Lopes continua explicando que no campo artístico o termo equivale ao termo apresentação, indicando a 17
  • 12. atuação de um artista numa apresentação (Lopes, 2003, p. 7). Além do campo artístico, entretanto, “todo um enorme universo que nos circunda no dia a dia é de caráter performático” (Ibidem, p. 6) A performance portanto relaciona-se a algo que fazemos todo dia segundo Goffman também ao assumir os vários papéis nas diferentes situações da vida. As aparências e o jeito de se comportar são muitas vezes os maiores elementos de uma performance e são os indicadores de um dado papel para os outros indivíduos. A maneira de andar, a indumentária e alguns objetos pessoais se tornam símbolos que comunicam determinado status ou personalidade: “Quando começamos a ensaiar no Centro Coreográfico, comprei uma bolsa de dança, do tamanho suficiente para poder carregar minha roupa, água e tudo do que precisasse. É uma bolsa de pano beige com um desenho de pés descalços na frente dela, caracterizando-a como uma bolsa de dança. Ao andar pela rua com meu cabelo preso, meu sutiã esportivo e minha bolsa, estava consciente do fato que quem me observava passar pela rua provavelmente achava que fosse uma dançarina.” Este excerto do diário de campo mostra como alguém possui um dado papel pelo fato de simplesmente aparentar aquele papel e não necessariamente estar executando ele (Goffman, 1959). A ação de andar pela rua usando uma bolsa com um desenho que simboliza a arte da dança é uma performance, pois é guiada e condicionada por princípios estéticos e técnicas teatrais; ao mesmo tempo a estética teatral de uma cultura é guiada e condicionada por processos de interação social (Schechner, 1988, p. 215). Para mostrar como as regras de interação social e as regras de performance artística se relacionam, é interessante olhar para algumas situações nos ensaios e apresentações de dança Afro. Primeiro, voltando ao conceito de “time” de Goffman, ele explica que a interação entre membros de um mesmo time precisa ser muito forte para que a performance do grupo seja realizada com sucesso. Na dança, ao executar uma coreografia em grupo, a cooperação entre os dançarinos é fundamental para formar um conjunto harmônico e esteticamente coerente na frente de uma audience. É necessário confiar no companheiro de dança e existe uma ligação de dependência reciproca entre os indivíduos atuando juntos (Goffman, 1959). Esta cooperação é necessária tanto durante o ensaio quanto, a maior razão, durante uma apresentação pública. Neste caso, a co- operação precisa ser ainda maior. No caso de um dos componentes do grupo errarem na 18
  • 13. frente de espectadores, os outros membros precisam não revelar o erro até o fim da apresentação (Goffman, 1959, p. 89). Esta situação aconteceu algumas vezes durante as apresentações do grupo CorpAfro, durante as quais, se algum de nós errasse na coreografia, isso seria comentado somente no camarim após a apresentação. O fato de comentar abertamente os erros só longe da presença do público, evidencia a presença nas performances de regiões distintas que Goffman chama de “front region” e “backstage”. A região de frente é onde a performance está acontecendo e os bastidores são a região na qual acontecem ações relacionadas com a performance mas que não são coerentes com a aparência da performance (Ibidem, p. 134). Antes de uma apresentação, portanto, toda a fase de arrumação, de maquiagem, de últimas repetições das coreografia faz parte dos bastidores. Ao entrar no palco, entra-se a região de frente, onde os performers mostram somente o que a audience está preparada para ver. A área dos bastidores serve também para outras funções. Longe dos olhos e dos ouvidos da audience é muito comum os componentes do time, os dançarinos no meu caso, falar mal dos espectadores, coisa que eles não fariam na região de frente. Este comportamento é o que Goffman chama de “Treatment of the absent” (Ibidem, p. 170) e é uma maneira de manter a moral do time. Este “tratamento dos ausentes” aconteceu algumas vezes durante minha etnografia como por exemplo em uma apresentação na Cinelandia em ocasião da marcha mundial da paz. Ao nos apresentar, a mulher responsável pelo evento nos introduziu como um “grupo de dança típica africana”. O que quer dizer algo “típico africano”? Isso foi o que cada um de nós pensou imediatamente, internamente julgando a mulher por pensar que “dança Afro”, no Brasil, é igual a uma “dança africana”. Como veremos no próximo capítulo, essa é uma definição completamente inexata. Primeiro, não existe uma dança africana, mas várias danças africanas, pois estamos falando de um continente composto por múltiplos países, povos e culturas. Segundo, a dança Afro- brasileira que o nosso grupo apresenta é complexa e formada por várias modalidades que serão descritas no próximo capítulo e que, apesar de ter uma origem africana, é uma dança brasileira, típica portanto deste país onde se desenvolveu. Na hora do comentário da mulher não falamos nada, entramos na praça e fizemos nossa performance. Ao sair de cena e nos reunir depois, todo mundo do grupo comentou sobre a denominação dada pela organizadora e mostrou sua indignação (diário, 2 Outubro 2009). 19
  • 14. É interessante ver como esta divisão de regiões é típica de qualquer performance, tanto artística, quanto da vida cotidiana ou ritual. Introduzindo o aspecto performático do ritual, aqui temos um exercício das regiões em um terreiro do Candomblé em Nova Iguaçu, onde as pessoas envolvidas no ritual estavam se arrumando para participar de uma festa de Iemanjá: Na casa de R., mãe de santo de A. houve a preparação para a festa: em um quarto todas as mulheres se arrumaram, escolhendo a roupa certa para o evento, se maquiaram, pentearam o cabelo por horas, preocupando-se muito com a aparência. Achei esta cena muito parecida com a arrumação nos bastidores de uma apresentação de dança. (9 Maio 2009) Assim como o contexto artístico, o ritual religioso também possui sua região de frente e seus bastidores. Ao entrar em cena, os elementos performáticos continuam co-existindo com os elementos religiosos do ritual. A relação inversa é também algo que observei durante meu campo, ou seja a a presença de elementos rituais na performance artística. Em um festival de Jongo (tipo de dança Afro-brasileira) no quilombo de S. José da Serra no Rio de Janeiro, esta correlação foi evidente especialmente na hora da benção da fogueira, feita pelo patriarca e pela matriarca do quilombo com ervas e água, após a qual a fogueira virou o centro das rodas de jongo que aconteceram a noite toda ao ritmo dos tambores. Para explorar mais esta ligação performance-ritual trarei novamente as teorias de Victor Turner e de Schechner o qual afirma que “separar arte e ritual é particularmente difícil” (Schechner, 2003, p. 31). Paralelo Ritual-Performance Victor Turner desenvolve a noção de performance em sua paradigmática obra The Anthropology of Performance. Turner define antes de tudo o conceito de “performances culturais” citando Milton Singer, e afirmando que as performances são os elementos que constituem uma cultura e são compostas por “mídia culturais”, ou seja modos de comunicação verbal e não-verbal, que expressam o conteúdo de uma dada cultura, assim como podem ter influências sobre ela. (Turner, 1987, p. 23). Muitas vezes as performances culturais correspondem a momentos de crise ou desarmonia. Turner chama estas situações de conflito de “dramas sociais”, nos quais as ações assumem caráter performático pois os participantes tentam mostrar suas ações para os outros (Ibidem, p. 20
  • 15. 74). A performance de uma sequência complexa de atos simbólicos é definida por Turner como ritual. O que é de importância para a nossa discussão é o paralelo que Turner faz entre o ritual, ou cerimônia coletiva, e outros gêneros de performance como o teatro ou, neste caso, a dança. Ambos possuem características parecidas tais como uma atuação consciente, uma certa ordem, um estilo evocativo de se apresentar, e uma mensagem ou significado a ser disseminado (Ibidem, p. 93). Como Turner afirma também no seu livro Floresta de Símbolos, a performance é então uma atividade ritual; é um conjunto de expressões que tem corpo e ideologia. O elemento do corpo é mais uma vez presente, sendo o suporte fundamental do ritual; pois não existe linguagem sem corpo e o ritual é linguagem (Turner, 2005). Richard Schechner, estudioso de teatro, retoma a teoria de Turner e aplica ela mais ainda à área de dança e teatro. Como ele escreve no texto Ritual, Violence and Creativity, “a ação ritual é muito parecida com o teatro” (Schechner, 1963, p. 297). No ritual, assim como no teatro e na performance da dança, o comportamento é reorganizado, exagerado, e ritmizado, fazendo uso de figurinos, máscaras e maquiagem. Também, seja no ritual quanto nas artes performáticas a ação é simbólica (Ibidem). Neste texto Schechner pontua vários aspectos fundamentais que aproximam o ritual ao teatro ou à dança, evidenciando a natureza liminar destas experiências. Primeiro, os rituais envolvem muitas vezes elementos artísticos como dança, música ou teatro. Eles utilizam elementos cenográficos tais quais máscaras ou figurinos, e criam uma atmosfera de envolvimento para a audience presente. Os valores incorporados nos participantes dos rituais são “rítmicos e cognitivos, espaciais e conceptuais, sensuais e ideológicos”, ou seja, segundo Schechner, o ritual é “totalmente teatro” (Ibidem, p. 302). Tomando outro texto de Schechner, Magnitudes of Performance, ele explora mais ainda esta dimensão do ritual e da performance, analisando os ensaios e as oficinas da peça The Prometeus Project. Ele afirma que várias vezes os participantes das oficinas entravam em estado de trance, pois entrar o mundo de Io, a protagonista, era uma experiência muito intensa e profunda. Assim como a experiência em si, o momento sucessivo do alongamento permitia que os participantes voltassem ao estado presente, um estado mental caracterizado por “mais pensar do que sentir” (Schechner, 1986, p. 365). Nos meus ensaios de dança Afro, várias vezes experimentei este estado de trance e de 21
  • 16. total envolvimento com o movimento executado. Uma das aulas viu como protagonistas os tambores na minha experiência pessoal de dançarina: “Hoje não conseguia parar, era como se fosse um desafio comigo mesma-queria ir até o final. Ainda bem que os tambores ajudaram. É incrível como eles abstraem a mente do esforço que estou fazendo. Senti o toque deles bem perto do meu trabalho e consegui realmente estabelecer uma conexão entre a música e os movimentos que estava fazendo. Foi muito bom.”(diário, 13 Maio 08) Esta experiência denota um caráter praticamente ritual do ensaio, onde o som dos tambores penetrou o corpo tão intensamente que o esforço e a dor conseguiu ser abstraídos para se chegar a um outro nível, mais que simplesmente material, cheio de sensações positivas. Esta conexão com o som dos tambores é algo de muito espiritual que, no contexto da dança Afro, nos remete a uma experiência do contexto sagrado do candomblé. Como explica Monique Augras em O Duplo e a Metamorfose “Os tambores são personagens importantes na vida do candomblé. São considerados como seres vivos” (Augras, 1983, p. 72). Augras continua explicando que, no barracão de candomblé, os visitantes vão primeiro saudar os tambores, assim como depois farão os orixás e que “é o som dos tambores que chama os deuses. Cada orixá tem seus toques específicos, aos quais responde” (Ibidem, p. 73). Várias cantigas são cantadas para cada orixá, mas é somente o toque do atabaque que tem o poder de fazer os deuses “baixarem”. Mesmo não estando em um ritual de candomblé, os tambores na dança afro são extremamente importantes. Especialmente durante a dança de orixás, é o toque do tambor que chama o movimento. O corpo responde automaticamente com o movimento ao som do atabaque, simbolizando um determinado orixá. Em outra aula, pode-se ver como a conexão entre dançarino e orixá representado está presente: “É impressionante a sensação de cansaço mas também de leveza que se experiência no final de um ensaio destes, dedicado ao estudo de dança das yabás. É como se um pouco da personalidade de cada uma das orixás femininas entrasse por dentro do dançarino, que consegue se aproximar de cada uma delas através da representação dos movimentos simbolizando cada entidade.”(diário, 17 Junho 2008) Neste caso, o dançarino consegue incorporar o Orixá representado, “se aproximando” e sentindo dentro de si a personalidade de cada Yabá (orixá feminino). A sensação vivida pode ser analisada com o conceito de “jogo” de Turner, apresentado por Schechner. Este 22
  • 17. “jogo” é o prazer, a mera êxtase que os rituais dão a seus participantes; é a “atuação de perigos dentro da esquema do “como se” (Schechner, 1986, p. 365). Do outro lado, Schechner também considera o verdadeiro estado de transe como um tipo de atuação: “ser possuído por outro, ou seja, virar outro” (Schechner, 1988, p. 199). Voltando ao texto Ritual, Violence and Creativity de Schechner, o autor apresenta um segundo paralelo entre o ritual e a dança ou teatro. Utilizando o conceito de “processo ritual” de Turner, Schechner escreve que “o processo ritual é estritamente análogo ao processo de treino-oficina-ensaio, onde o que ‘é dado’ e o que ‘é já feito’, é desconstruido e quebrado em pequenos pedaços de comportamento, sentimento, pensamento, e texto, e é depois reconstruído nas performances públicas” (Schechner, 1963, p. 311). Schechner prossegue dizendo que este treinamento comporta o aprendizado de novas maneiras de falar e de se mover, novos gestuais e talvez novas maneiras de pensar e de sentir. Ao fim do período de treinamento, o ator ou dançarino é incorporado na tradição do que aprendeu, justamente como um membro iniciado em um ritual (Ibidem). Em sua outra obra Between Theater and Anthropology, Schechner reforça mais esta similaridade entre o rito e a arte da performance trazendo a teoria de Arnold Van Gennep. Na obra Ritos de Passagem, o autor alemão estuda o rito como um fenômeno em si, dotado de certos mecanismos recorrentes e de um certo conjunto de significados. Ele concentra seu estudo nas margens, na transição, que constitui o aspeto principal dos ritos de passagem. Além da margem, estes ritos são constituídos também por um momento anterior (fase de separação) e um posterior (fase de agregação), os quais são importantes de se considerar para o entendimento do ritual (Van Gennep, 1977). Fazendo um paralelo com Van Gennep, Schechner afirma como a arte da performance é um ritual que inclui uma fase de separação (preparo técnico e ensaio), uma de transição (performance) e uma de retorno (relaxamento). A performance é então a fase de margem e, assim como a iniciação, ela faz de uma pessoa, outra, com a única diferença do que as transformações na performance são geralmente temporárias (Schechner, 1985). Viu-se portanto como o ritual e a performance artística são dois mundos relacionados e parecidos. A linha de separação entre os dois é fluida, e as fronteiras não são rígidas. Como podem então ser reconhecidos devidamente? O que marca a diferença entre o rito e o espetáculo teatral ou de dança? Schechner diz que cada ritual pode ser tirado do seu contexto original e pode 23
  • 18. ser performado como teatro. Isso é possível porque o contexto e a função, assim como a estrutura ou processo fundamentais, distinguem o ritual do entretenimento da vida cotidiana; além disso, esta diferença surge do acordo entre os performers e a audience (Schechner, 1988, p. 152). No caso da dança de Orixás, é preciso saber distinguir entre esta dança no contexto sagrado do Candomblé e no contexto profano da dança Afro. O terceiro capítulo apresentará a dança de Orixás nesses dois mundos, fazendo um paralelo e ao mesmo tempo deixando claro que a dança de um contexto é algo bem distinto da dança do outro contexto. Antes de chegar lá quero concentrar a atenção mais sobre as funções da performance. Funções da Performance Analisou-se até agora o que pode ser considerado performance; evidenciaram-se os elementos interacionais nela presentes e viu-se a proximidade existente entre a performance artística e o ritual sagrado. No artigo O que é Performance, Richard Schechner elenca sete funções principais da performance: entreter, fazer alguma coisa que é bela, marcar ou mudar a identidade, fazer ou estimular uma comunidade, curar, ensinar, persuadir ou convencer, e lidar com o sagrado e com o demoníaco (Schechner, 2003, p. 45). Cada performance focaliza geralmente em várias funções ao mesmo tempo e até os significados de cada função não são tão fixos, pois dependem de fatores culturais e situacionais. O sentido do que é belo, por exemplo, muda dependendo da cultura ou simplesmente da audience. Da mesma maneira, as performances podem entreter alguns espectadores e não outros. Em geral, é importante lembrar e considerar essas funções escolhidas por Schechner que, como veremos ao longo da dissertação aplicam-se muito bem à performance da dança Afro. A questão da formação de identidade através da performance por exemplo é particularmente presente na minha pesquisa, assim como o fato da dança Afro lidar com ambos os campos do sagrado e do profano. Retomando o artigo sobre Performance de Antonio Herculano Lopes, acho importante evidenciar duas funções da performance que o autor pontua. Primeiro, ele escreve que “os elementos performáticos contribuem para a construção de identidades coletivas que ao mesmo tempo refletem e influenciam o curso dos eventos” (Lopes, 2003, p. 9). Tais elementos, nas artes, assumem uma forma mais explícita, permitindo ao grupo 24
  • 19. social de se auto-reconhecer. No caso da dança Afro, elementos constitutivos e característicos dessa arte fornecem um instrumento de identidade para os dançarinos, como veremos mais em detalhe no último capítulo. Segundo, através da performance, recupera-se uma sensação que ficou registrada em algum canto da memória (Ibidem, p. 11). A performance da dança Afro, assim como outras formas artísticas, cria uma experiência performática, onde o espectador penetra por dentro da performance, envolvendo a totalidade dos seus sentidos. É por essa razão também que os sentidos são evidenciados e dão o título a cada capítulo desta dissertação. Um elemento fundamental que faz parte da performance destacado por Schechner é o da transformação. Segundo ele, as pessoas usam o teatro como meio de experimentar e atuar mudanças. Tais mudanças acontecem nos performers assim como na audience e, como foi mencionado antes, podem ser temporárias, no caso do teatro, ou permanentes, no caso do ritual. Em artigo intitulado “Etnografia da performance musical: identidade, alteridade e transformação”, Rose Satiko Gitirana Hikiji aponta como esse elemento da transformação encontra-se presente na performance musical do grupo de adolescentes do projeto Guri. Ela escreve: “Experiência ampla, a performance é central em projetos que, como o Guri, tem como um dos objetivos principais a intervenção social por meio da música. Ela torna visíveis atores e instituição. É palco de um amplo jogo de espelhos, lugar de exibição de identidade e construção de auto-imagens. É espaço de transformação. É concebida como auge do processo pedagógico, locus de exibição do que foi aprendido, ensaiado, incorporado. É oportunidade de conhecer novos lugares, pessoas, é "saída para o mundo".” (Hikiji, 2005) A autora apresenta como a performance musical, nesse caso, é fonte de construção de identidades e auto-imagens, é espaço de transformação e ferramenta de ensino, além de ser uma possibilidade para conhecer novos lugares, novas pessoas e novas realidades. O conhecimento do outro é considerado por Hikiji como elemento fundamental para a transformação dos alunos. Tanto o encontro com os outros no palco quanto com a platéia é uma ferramenta de aprendizagem, apesar de poder ser tanto alegre quanto conflituoso. Graças a estes encontros, os alunos trocam impressões um do outro, cada um vê a realidade do outro, e eles se percebem (Hikiji, 2005). A performance diante de uma platéia permite a fixação de identidade do grupo e a experiência de transformação, de se 25
  • 20. tornar o outro sem abandonar a si próprio. Hijiki, assim como Lopes, também ressalta a experiência sensível da performance: “A performance é também uma experiência sensível única, que mobiliza sensações independentemente de estarem sobre o palco amadores, profissionais, estudantes ou participantes de um projeto de intervenção social… Essa manipulação de expectativas, medos, vaidades e do prazer de fazer música – somente possível dada a relação palco-platéia – corresponde a um intenso aprendizado sentimental.” (Hikiji, 2005) Mais uma vez pode-se observar como a performance estimula, mobiliza e manipula sentimentos e sensações tanto para quem está no palco quanto para a platéia, permitindo o que Hikiji chama de “intenso aprendizado sentimental”. Este aprendizado, assim como o pleno envolvimento dos sentidos na performance e a criação de auto-imagens e identidades fazem parte do palco e sua “magia”. Segundo a autora, essa “magia” do palco é incorporada e carregada para a vida cotidiana, onde as imagens construídas no palco graças à interação com os outros farão parte das noções de pessoa destes jovens performers nas suas vidas pessoais (Hikiji, 2005) Uma vez mais percebe-se que essa magia da performance está presente em todo lugar: no espaço, nas coisas, nas pessoas; tudo vira um símbolo, que possui um significado muito maior. Na análise da performance do Moçambique de Belém, Claudio Alberto Dos Santos ressalta como o bastão usado nessa performance “deixa de ser uma mera coisa” e assume um significado e um poder especial, “mágico” para os moçambiqueiros. Essa coisa chega a ter alma e coração, permitindo uma vivência intensa da performance (Dos Santos, 2003, p. 151). O Moçambique de Belém, assim como as outras performances afro-brasileiras, caracterizam-se por essa intensidade, pelas vibrações de energia que se criam no ar, pela impetuosidade e pelo despertar e envolvimento de todos os sentidos e das emoções movimentados pela percussão, pela dança e pelos gestos rituais: “ A percussão, a dança e os gestos rituais ajudam nesse movimento que leva aos estados alterados da percepção. O corpo dos participantes muda, transforma-se, porque entram em jogo elementos irracionais. É um corpo emocionalmente intenso, extático.” (Ibidem, p. 153) O corpo na performance afro-brasileira atua através de elementos impulsivos e é um 26
  • 21. corpo que se movimenta e experiência a performance não só fisicamente, mas também emocional e espiritualmente. Na dança Afro, os “estados alterados da percepção” se manifestam movidos pelo toque do tambor e pelos gestuais dos Orixás. O performer transmite e vivência intensamente essa emoção, entregando-se totalmente em cena e executando gestos fortes e exagerados que surgem de dentro, das emoções mais profundas, das vibrações energéticas internas e das experiências sensoriais do corpo. A performance da dança Afro é um lugar onde o corpo do dançarino percebe o outro, troca olhares com o outro, sente os cheiros em volta dele, toca o outro e sente os gestos e movimentos na pele, ouve os sons, as músicas e os ritmos que o entornam, e sente o gosto do que está fazendo, da dança, da música, do ambiente, e do outro. 27
  • 22. CAPITULO 2 – O Gosto da Dança Afro Dancing is like breast-feeding. That is, it is a potentially nurturing, sustaining activity, an act of transmission. Barbara Browning O universo da Dança Como foi analisado detalhadamente na introdução, dançar é humano. E a dança permeia várias áreas da nossa vida cotidiana. Dançar pode ser considerado algo como vários tipos de comportamento humano, do físico ao psicológico, do social e cultural ao econômico e político, até ser um meio de comunicação. O que é portanto dançar? Quais são os elementos que constituem a arte da dança? E por que as pessoas dançam? Estas são as perguntas que tentarei responder nesta primeira parte deste capítulo. Olhando para os dados que colecionei, achei a melhor definição de dança ser a de Judith Lynn Hanna, a autora mencionada na introdução deste trabalho, no seu livro “To Dance is Human”. Ela define “dança” como um “comportamento humano” composto por sequências de movimentos corporais e outras atividades motoras com valor estético, desenhadas culturalmente, intencionalmente rítmicas e possuindo um objetivo (Hanna, 1987, p. 19). É importante evidenciar cada elemento desta definição para poder entender a complexidade muitas vezes não reconhecida da dança. Especialmente na nossa sociedade ocidental a dança, como a arte de maneira geral, é colocada em um plano inferior e não é devidamente valorizada. Dentro da academia encontra-se o mesmo tipo de resistência ao considerar a dança como uma disciplina complexa e rica de significados a ser estudados. Por isso acho fundamental desconstruir estas noções mostrando como dançar é algo sério e importante, algo que não é fácil e que exige muito treino e estudo para poder ser compreendido e executado corretamente. Voltando à definição da Hanna e aos dados observados na minha etnografia, começo a apontar os elementos principais da arte de dançar. Primeiro, a dança tem um objetivo. Isso quer dizer que, ao se movimentar dançando, o indivíduo quer alcançar algo, seja este condicionamento físico, distração mental ou desejo de comunicar alguma coisa. Veremos isso melhor ao falar do porque as pessoas dançam. Segundo, um elemento chave da dança é o ritmo. Ritmo vem do grego rhytmos e designa aquilo que flui, que se move, 28
  • 23. movimento regulado. O ritmo não está presente somente na música ou na dança. Achamos ele na poesia (métrica), nos “ritmos” biológicos (respiração ou batida do coração), na nossa maneira de andar. Na música, o ritmo é um “acontecimento sonoro, que acontece numa certa regularidade temporal”. É portanto uma maneira de marcar o tempo. Na dança, em ausência de música, o ritmo é marcado pelo próprio corpo, através da batida da mão, da marcação dos pés no chão, da contagem ou através de outros sons da voz. É possível portanto dançar sem música, mas não é possível dançar ser ritmo. Tão importante quanto o elemento temporal é a dimensão espacial da dança. Durante minha experiência como dançarina reparei que é fundamental para o dançarino ter noção de espaço. O que exatamente quer dizer isso? Vários aspectos estão envolvidos nessa noção, entre os quais três principais ficaram em evidência nas minhas notas de campo. Primeiro, é preciso saber ocupar o espaço disponível para dançar de maneira uniforme, harmoniosa e tendo consciência da distância entre seu próprio corpo e os limites do palco ou da sala de aula, assim como a distância entre seu próprio corpo e os outros dançarinos. Geralmente, durante uma aula de dança, os alunos ocupam um lugar na sala de aula para poder executar os movimentos mostrados pelo professor. Após a repetição do movimento no lugar, os alunos repetem o mesmo movimento se deslocando pelo espaço. É importante neste momento manter a arrumação e o desenho inicial e ter noção de onde a outra pessoa está, para não invadir o espaço do outro. Isso pode parecer algo simples, mas requer muita concentração, visão, controle e sobretudo respeito. Durante minhas aulas e ensaios de dança, Eliete nunca falta de repetir quanto é importante respeitar o espaço do outro, ficar no seu lugar e saber controlar os movimentos para que ocupem de maneira proporcional e estética o lugar de ensaio. O segundo elemento espacial que também não falta de ser lembrado aos dançarinos durante as aulas e ensaios é o sentido de direção. Assim como é importante respeitar o espaço de cada um e do lugar onde se está dançando, é também fundamental saber para onde seu corpo está indo. Durante uma aula no Circo Voador por exemplo, trabalhamos exclusivamente este elemento de noção de espaço e direção. Fizemos movimentos simples e repetitivos, treinando estas qualidades, com a Eliete repetindo constantemente que “é preciso ser consciente do espaço do outro e saber respeitá-lo”, e que “é preciso saber para onde vai, não só na dança mas no dia a dia. Tem que ter direção 29
  • 24. e pisar firme!” (diário, 25 Maio 2009). O último desafio ligado à dimensão espacial da dança é saber se adaptar aos lugares diferentes nos quais se dança, o que é algo complicado, como pude experienciar várias vezes nas apresentações do nosso grupo CorpAfro. Durante os ensaios do espetáculo, o grupo encontra-se geralmente em um ou dois lugares específicos, onde ensaiam-se as coreografias, os desenhos formados pelos corpos e pelos movimentos, as marcações de lugares, das entradas e saídas do palco etc. No momento do dia da apresentação, muitas vezes o espaço é totalmente diferente do que se imaginava o do no qual as coreografias foram ensaiadas. Após ter ensaiados nas grandes salas do Centro Coreográfico, por exemplo, fomos chamados para fazer uma apresentação em uma loja de construção onde tivemos que dançar em um pequeno espaço no meio de banheiras. Em outra ocasião, em vez de nos apresentar no palco do teatro do CCRJ, como nos foi comunicado, tivemos que dançar na área externa, um espaço bem maior, onde o som e a luz eram precárias e em vez do que em cima de um piso, dançamos na grama. Isso requer uma rápida avaliação e estudo do novo espaço disponível, assim como uma reorganização e adaptação das arrumações espacias previamente ensaiadas e uma capacidade do corpo se adaptar às novas condições oferecidas. Eliete reforça constantemente esses elementos técnicos espaço-temporais presentes na definição de dança. Durante um ensaio no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, em uma folha ela escreveu a importância da “prática de movimentos e ritmo”, atingida através de três elementos: - VISÃO: capacidade de perceber as formas, linhas, e proporção harmoniosas. - PRECISÃO: velocidade e rapidez na execução do movimento, aumentando o fortalecimento e o equilíbrio. - TENACIDADE: qualidade do profissional coma estética e musicalidade. Comentando sobre estes ensinamentos, Eliete falou que “precisa harmonizar os movimentos com linhas específicas e com sentido, com direção. A musicalidade (ritmo) está junto com a corporeidade.” (Diário, 11 Abril 2009). Apareceram aqui mais dois elementos da definição de dança da Hanna: movimentos executados com precisão e estética. Na dimensão de visão da Eliete, recalca- 30
  • 25. se a presença na dança de formas e harmonia, e no elemento de precisão sublinha-se a importância da rapidez, da força e do equilíbrio a ser obtidos na execução de um movimento. Para que se obtenha este resultado é preciso muito treino, em um processo que durante nossos ensaios do grupo chamamos de “limpar o movimento”. Esta “limpeza” é atingida através da repetição do mesmo movimento durante a qual é preciso prestar atenção aos mínimos detalhes para poder aperfeiçoar o movimento, até conseguir executá-lo de modo mais perfeito possível, formando linhas e desenhos claros e nítidos, com equilíbrio, força, jeito harmonioso e rapidez. Este processo de treino se utiliza da repetição exaustiva como método de aperfeiçoamento e que é chamado de “drilling” por Susan Leigh Foster no seu artigo “Dancing Bodies”. Ela escreve como o corpo do dançarino pode ser visto como um ensemble de linhas e pontos, puxados, empurrados, esticados, elevados pelos dançarinos durante as aulas de técnica. Assim, o dançarino aprende as curvas que o corpo é capaz de formar e aprende também a criar certas formas seguindo certos ritmos (Foster, 1997, p. 239). Este “drilling” é portanto necessário para “criar o corpo”, pois, através da repetição, as imagens e ações usadas para descrever o movimento do corpo se tornam o próprio corpo, e é assim que o processo de treino repetidamente reconfigura o corpo (Ibidem). Ao explicar o conceito de movimento na dança, Hanna também aponta para a importância dos já mencionados ritmos, espaço e direção, assim como para a importância da criação de formas e de execução do movimento com força. Ela define “forma” como “o contorno físico do desenho do movimento, criado pelo corpo e pelas suas partes, formando ângulos e curvas”, e descreve “força” como “a quantidade relativa de energia física e emocional gasta” (Hanna, 1987, p. 36-37). Olhando para esta descrição de “força”, podemos observar como o elemento emocional acompanha e está estritamente ligado ao físico. A própria Eliete durante uma minha entrevista com ela falou que “a dança é uma mistura de técnicas com o que vem de dentro” (Eliete, 29 Dezembro 2009). Como Susan Leigh Foster também escreve, os dançarinos podem ser instruídos e aconselhados sobre como girar, pular, pisar etc., mas eles são também movidos a “escutar” o próprio corpo e a permitir que novas possibilidades de movimentos se manifestem espontaneamente (Foster, 1997, p. 250). “Escutar” o próprio corpo quer dizer prestar atenção ao que vem de dentro do corpo e não só de fora dele; quer dizer permitir 31
  • 26. que o corpo se expresse sem querer controlá-lo rigidamente e deixando fluir as energias por ele até essas se manifestarem em forma de novos movimentos. Este gasto de energia, tanto físico como emocional é algo que pode ser observado na resultante dor e cansaço depois de uma aula de dança. Após uma aula no Circo Voador Eliete falou da necessidade de considerar a consciência do corpo, da dor e do cansaço, mesmo que seja muito difícil de fazer. A dança faz com que se haja essa consideração; “a dança é como análise-mexe-se em coisas que não se quer mexer” (Eliete, 20 Abril 2009). É interessante ver como isso se reflete na reação de uma aluna que após uma aula comentou: “to frustrada, enferrujada…depois de ficar tantos meses parada, não consigo acompanhar.” (Circo Voador, 6 Abril 2009). Neste caso o fato de estar “enferrujada” fisicamente se relaciona diretamente a uma sensação de “frustração” no plano emocional, mostrando como a dança, através do esforço da movimentação do corpo, atinge um lado mais “interno” do campo das sensações e emoções. O depoimento de uma aluna depois de uma aula de dança Afro na UERJ descreve este fator plenamente: “Foi mais do que desempenho ou trabalho aeróbico; foi sensação, foi transcendência” (16 Setembro 2009). As palavras desta aluna expressam como o trabalho físico anda junto com a sensação, junto com algo além do tangível na hora de dançar. Veremos mais nos capítulos adiante como esta ligação corpomente na dança pode ser analisada antropologicamente. Além dos elementos já analisados do movimento na dança, a estética é algo que precisa ser evidenciado e explorado mais. Segundo a definição de Hanna, os movimentos na dança possuem valor estético. A autora escreve que “experiência estética” envolve o estímulo de atenção imediata e a contemplação dos significados imanentes ou transcendentes de um fenômeno nos níveis emocional, cognitivo e comportamental (Hanna, 1987, p. 38). Logicamente, as experiências estéticas não são iguais para todo mundo e variam dependendo de vários fatores, como idade, humor, background artístico ou de dança, educação social etc. A dança possui qualidades que estimulam a experiência estética. Essas qualidades podem ser tanto o estilo e a forma da dança quanto o próprio conteúdo e significados transmitidos. Falando de significados, precisa apontar que estes variam socialmente e culturalmente e a dança possui portanto significados e sequências determinados culturalmente. A dança é um fenômeno social e é um veículo através do qual a cultura é transmitida (Hanna, 1987), e, como argumentarei nesta dissertação, 32
  • 27. através do qual a cultura é também criada e recriada permanentemente no gestual do corpo. Do outro lado, a cultura também afeta e esculpe os estilos e a estrutura dos movimentos de dança. Como Hanna remarca, enquanto os estilos de dança podem requerer um treino especializado, a capacidade de dominar um estilo pode se desenvolver através de experiências de vida cotidianas (Ibidem, p. 34). Foram apresentados até então alguns dos elementos chave que são parte constituinte da arte da dança, tentando explicar o que quer dizer dançar e o que a dança envolve, mostrando a complexidade desta disciplina, muitas vezes subestimada. Falta ainda responder o porquê da dança. O que as pessoas que dançam procuram obter? Quais são as razões que levam alguém a querer dançar? Depois de ter posto esta pergunta para os dançarinos do meu campo de pesquisa, reparei que existem múltiplos fatores que inspiram entrar e ficar no mundo da dança. Uma razão primária para os alunos que escolhem ter aula de dança é a diversão e a procura de uma atividade para si mesmo que distraia e relaxe o corpo e a mente. Depois de uma aula de dança Afro da Eliete na UERJ, os alunos expressaram suas sensações: “Precisava resgatar algo. Tava me adoecendo em não fazer nada para mim e precisava sair da rotina e foi a melhor coisa que fiz” “O bom da dança é que você não pensa em nenhum problema” “È uma terapia” “È muito legal trocar energias com gente que não se conhece” (20 Maio 2009) Como é possível ver destes comentários, as pessoas buscam a dança como uma “terapia”, algo que faça bem para o “self”, algo que forneça uma saída e distração dos problemas e algo social, que permita conhecer outras pessoas e trocar energias com elas. Sobre este último ponto, uma outra aluna e membro do nosso grupo de dança Afro, disse durante um ensaio no Centro Coreográfico: “A arte, nesse caso a dança, é mágica, proporciona possibilidades de se encontrar, de se aproximar quando você geralmente não convive no dia a dia”(M., 1 Maio 2009). A dimensão social da dança é algo extremamente valorizado por todos que se envolvem com esta arte. O fato de encontrar pessoas, trocar idéias, mover seu corpo junto com o de outros e interagir dançando provoca um bem estar tanto físico quanto mental. 33
  • 28. Se para os alunos das aulas de dança esta é mais uma atividade saudável e divertida, já por alguns dos componentes da companhia de dança CorpAfro e por Eliete a dança representa uma verdadeira profissão e sustento. Eliete é professora de dança Afro full time, e sempre repete para seus alunos que ela “vive disso”. A dança portanto significa trabalho para muitos, e deveria ser respeitada como tal pelos não profissionais da área, coisa que infelizmente nem sempre acontece. Além da função mais prática e econômica do ensino da dança, minha professora, e outros instrutores e profissionais com quem falei, tanto no Rio como na Bahia, escolhem esta profissão com o objetivo de educar os alunos. Através da dança ensina-se história, mitologia, estudos sociais e políticos bem como a cultura de um povo. No caso da dança Afro, leva-se muito a serio esta missão educacional sobre a história, os mitos, a identidade e a cultura afro-brasileira e o ensino é considerado como um dos motivos e objetivos principais para dançar. Falando mais em específico do meu campo de pesquisa, muitos dos alunos que escolhem fazer aula de dança Afro estão à busca de algo mais, algo que está relacionado a resgate e identidade, nesse caso resgate da cultura afro-brasileira, como refletem os depoimentos dos alunos depois de uma aula na UERJ: “È uma coisa muito enraizada na cultura brasileira. Tem uma identidade forte porque a cultura africana aqui é muito forte” “Trabalhar nosso corpo e nossa identidade ao mesmo tempo-a aula refletiu isso” “Cada vez que eu danço é que nem encontrar a mim mesmo” “A energia se renova neste espaço e me faz lembrar quanto a nossa cultura é rica”. “Entrei para a dança para me encontrar como mulher negra; a dança não é só uma questão de corpo mas de identidade afro-brasileira, de resgate, de resistência”. Esses comentários indicam a razão que conduz as pessoas a dançarem e escolherem um gênero de dança, nesse caso dança Afro. Para muitos brasileiros (e não brasileiros também), estudar a dança afro-brasileira é um modo de aprender e descobrir as raizes ancestrais tão fundamentais como bastante presentes na construção da cultura e arte 34
  • 29. brasileiras. Para outros alunos, especialmente para os negros, a questão identitária é muito sentida e considerada. Como diz o último depoimento desta aluna, ela entrou para a dança Afro para se “encontrar como mulher negra”, para resgatar a identidade afro- brasileira presente no dia a dia do seu corpo. Drid Williams, antropóloga e dançarina, apresenta o porquê das pessoas dançarem no capítulo “Why do people dance?” do livro Anthropology and the Dance. Williams teve seu treinamento como dançarina profissional e foi convidada a estudar antropologia na Universidade de Oxford por Evans-Pritchard, que reconheceu o imenso potencial do conhecimento em dança de Williams e a sua contribuição para o pensamento antropológico. Em sua obra, Drid Williams pergunta: “o que as pessoas estão fazendo quando dançam?”. E responde, primeiro, elas estão criando eo reforçando relações sociais significativas. Segundo, elas estão reproduzindo papéis significativos para elas, para suas histórias, seus mitos, suas crenças religiosas, vidas políticas etc. Terceiro, elas estão estabelecendo e reforçando conexões sociais que lhe permitem seguir com suas vidas (Williams, 1991, p. 21). Pode-se ver então como a importância do elemento de interação social é reafirmado por Williams também, assim como foi apontado por muitos dos alunos do campo de pesquisa. Através da dança criam-se relações sociais e interpretam-se vários papéis, muitos dos quais têm a função de promover um resgate da própria história, cultura, dos próprios mitos, idéias e visões, que são por sua vez ensinados e transmitidos para quem assiste as pessoas dançarem. Na tentativa de definir o universo da dança com seus elementos técnicos, seus participantes e as razões que conduzem as pessoas a querer fazer parte do mundo da dança, vimos como a dança é uma arte complexa, que exige muito treino, disciplina e talento para poder ser aperfeiçoada. Apontou-se para as várias funções da dança, e para como é utilizada na condição de meio de comunicação e educação, de resgate de cultura e identidade e de bem estar físico e mental. Todos estes fatores foram analisados de maneira geral dentro do campo geral da arte de dançar, entrando somente às vezes no campo específico da dança Afro. O passo seguinte será introduzir as danças que fazem parte de um complexo cinético esculpido pela herança de influências motoras e simbólicas do povo da diáspora Africana, onde concentrarei minha análise mais especificamente nas danças Afro-brasileiras, destacando elementos relevantes e em 35
  • 30. comum entre elas, até chegar a definir o objeto da pesquisa desta dissertação que é a dança Afro. Danças Afro-brasileiras Como foi afirmado anteriormente, a dança é um meio de comunicação que recria, ensina e transmite mitos, histórias e culturas. O instrumento chave através do qual o dançarino opera é seu próprio corpo, o qual realiza movimentos e gestos significativos. Ao falar de corpo, é importante entender que este é um símbolo da sociedade, e que os seres humanos experienciam o mundo através dos seus corpos. Os nossos corpos portanto, carregam histórias e memórias, não somente individuais, mas também histórias mais gerais, de raça, gênero e cultura. O corpo conta uma história e fala de certas experiências culturais através de gestos, que representam símbolos. No caso deste trabalho, serão analisadas as histórias, os gestos, os símbolos e os corpos dançantes elaborados por intermédio da dispersão da diáspora africana e que se difundiram para os diversos países e contextos do mundo. Robert Farris Thompson, na introdução do seu livro “Flash of the Spirit” sobre arte africana e afro-americana, declara que muita da música popular mundial é influenciada do que ele chama de “flash of the spirit” de um certo povo dotado com um incrível talento improvisatório (Farris Thompson, 1984). Devido ao comércio internacional de escravos, princípios organizadores de música e dança atravessaram o oceano da Africa para o Novo Mundo. O autor identifica seis desses princípios: estilo de performance percussivo; propensão para uma métrica múltipla; elementos de chamada e resposta nas músicas; controle de pulsação interna; sequências de acentuação suspensas (contra-tempos); músicas e danças de alusão social (Ibidem). Veremos aqui como estes elementos se integram nas danças afro-descendentes e, em particular, afro-brasileiras. No artigo “La musica y danza tropical e Africana desterritorializadas”, o antropólogo Miguel Chamorro Vergara também fala de uma “música negra” que se expandiu pelo mundo, contribuindo para a construção de uma identidade nacional desterritorializada (Vergara, 2002). Mais em específico a dança, segundo Vergara, é um “componente expressivo de poder da diáspora africana” (Ibidem, p. 90), pois, continua ele, a “dança africana ou de negros” é um tipo de “manifestação corporal ritualística” que se comunica através da linguagem dos movimentos dos 36
  • 31. indivíduos, transmitindo imagens culturais (Ibidem, p. 91). O objetivo deste trabalho é melhor compreender que movimentos corporais são esses da dança Afro e como eles transmitem certas imagens culturais. Falando de “música negra” e “dança Afro”, podem-se encontrar múltiplas expressões corporais em vários lugares do mundo atuando como textos desta “Africanidade”. Um exemplo de expressão corporal da cultura diaspórica no novo mundo é contemporaneamente o hip-hop, símbolo da identidade Afro-americana. Segundo um artigo escrito por Thomas F. DeFrantz, toda dança da diáspora africana pode ser ligada a uma oralidade africana, onde o elemento da “chamada e resposta” é presente. No caso da dança, o corpo e os movimentos respondem ao ritmo do tambor; os movimentos da dança, portanto atuam como se fossem um discurso, contendo significado além da forma estética e da sequência de movimentos executada pelo corpo em ação (DeFrantz, 2004). DeFrantz continua analisando alguns dos elementos comuns às danças diaspóricas, tentando entender o “Africanismo” presente no hip-hop, e resume afirmando que as “danças negras” materializam no corpo uma continuidade de fala performática para os africanos da diáspora. As danças oferecem uma maneira de identificação cultural que une os Afro-americanos no que ele chama de corporeal orature, ou seja uma ligação entre fala e movimento que convida à ação (Ibidem). O próprio Vergara fala sobre os ritmos caraíbicos e tropicais como manifestação simbólica de uma cultura através das imagens produzidas no corpo e na corporeidade ao se mover em múltiplos sentidos (Vergara, 2002). Como exemplos de estudos sobre a herança africana nas danças dos Caribes podemos mencionar o de Katherine Dunham em Haiti e o de Yvonne Daniel em Cuba. Dunham conduz seu estudo na ilha de Haiti, onde as danças possuem uma forte influência africana. Como ela escreve no seu livro “Dances of Haiti”, muitos historiadores sempre reconheceram o fato da dança ser uma parte fundamental da cultura dos africanos trazidos para as Américas e ser ao mesmo tempo vital para a sobrevivência e o bem estar dos escravos, pelo menos como elemento recreacional (Dunham, 1983). A antropóloga também explica que cada dança tradicional de Haiti está ligada a algum tipo de ritual, profano ou sagrado que seja. Este aspecto ritualístico da dança pode ser visto em outras danças de matriz africana no novo mundo e será em seguida analisado com respeito ao objeto da dança de Orixás no Brasil. 37
  • 32. Analisando a religião do vodun, Dunham explica os aspectos materiais, as organizações dos grupos de dança e as funções das danças. A pesquisa feita em Haiti ressalta a presença e a importância sagrada dos tambores, os quais são os instrumentos chave das danças haitianas e são considerados religiosamente sagrados (Ibidem). A presença de instrumentos percussivos e sua importância ritualística são características das danças afro-brasileiras também, em particular das danças de Orixás. Mais um estudo conduzido nos Caribes sobre a influência africana na dança é o de Yvonne Daniel sobre as danças de Cuba. Daniel define três aspectos comuns às danças afro-caribenhas, sendo estes a movimentação da pélvis, a música polirrítmica e a presença da percussão como guia do tom e da sensação (Daniel, 2002). Entre as ilhas caribenhas, o estudo de Daniel concentra-se na ilha de Cuba, onde ela analisa as influências européia, indígena e africana nas danças da região. Uma parte do seu texto analisa as múltiplas danças africanas presentes em Cuba, devido à importação de escravos da Africa do Oeste e Central, trazidos para trabalhar na produção de açucar. Entre as influências africanas em Cuba, Daniel aponta as de quatro grupos distintos: Kongo, Arará, Carabalí e Yoruba, descrevendo os movimentos corporais típicos de cada tradição e sublinhando que, assim como aconteceu também aqui no Brasil, estas danças africanas foram influenciadas desde a sua chegada pelas tradições locais, formando portanto algo que não pode ser chamado mais de dança africana mas de dança afro- cubana, ou afro-brasileira no nosso caso. Os elementos corporais descritos mudam dependendo do grupo étnico-cultural mas mais uma vez, como foi visto no caso de Haiti, a presença dos instrumentos de percussão é uma constante. Na descrição dos movimentos da cultura Congo-Angolana, pertencente a povos do Congo e de Angola e que fazem parte do grupo linguístico Bantu, podem se ver semelhanças com os movimentos de muitas danças afro-brasileiras. Daniel descreve as danças Congo-angolanas como altamente percussivas e sensuais. O torso dos dançarinos é dobrado para a frente, de maneira muito baixa; o movimento de cada parte do corpo é constante, e os movimentos são extremamente fortes, dinâmicos e possuem uma grande quantidade de saltos e pulos (Daniel, 2002). Os movimentos provenientes do grupo Arará (dos povos do antigo Reino de Daomé) envolvem a presença de tambores e o movimento predominante dos ombros, algo que é também muito presente nas danças 38
  • 33. afro-brasileiras. Finalmente, ao descrever as danças de origem Yoruba, que incluem povos das atuais regiões da Nigéria e República do Benin, Yvonne Daniel explica como estas são danças específicas representando as divindades por ela chamadas “orichas” e seus movimentos, os quais retratam as vidas e os arquétipos de cada divindade (Ibidem). Ao descrever a dança de cada “oricha”, é impossível não reparar a extrema semelhança com a dança de Orixás brasileira, derivante da mesma cultura Yoruba. Daniel portanto descreve elementos visuais e corporais comuns aos quatro grupos de influência africana em Cuba, que, como veremos adiante, são reconhecíveis na dança Afro do Brasil, como a posição baixa com joelhos flexionados, os pés firmes no chão e as costas levemente para a frente, posição essa típica do que é chamado de molejo na dança Afro, considerado o elemento chave na realização desta dança. Viu-se até agora como as influências da diáspora africana estão presentes em várias partes do globo, com resguardo à música e à dança. Concentrarei agora a atenção na influência africana nas danças no Brasil, introduzindo mais o objeto da pesquisa, que analisa uma destas danças afro-brasileiras em particular, ou seja a dança Afro. Existem múltiplos estilos de danças afro-brasileiras, muitas vezes classificadas como danças populares, ou danças folclóricas. Cada região do Brasil tem suas danças típicas, e a influência africana está presente em muitas delas. Durante o período colonial, povos africanos como os Bantu, os Yoruba, os Fon e os Jeje estavam no Brasil, sendo trazidos como escravos pelos Europeus. Em cada região eles carregaram suas histórias e tradições, que acabaram se expressando no novo continente. As danças brasileiras de origem africana são inúmeras e contam as história e as realidades das populações africanas no Brasil. É nas artes que apresentam o corpo como protagonista que a estética africana mais se manifesta. No livro Diásporas Africanas na América do Sul, Julio Cesar de Tavares e Januário Garcia escrevem como nas artes a herança africana revelou-se na vida brasileira, afirmando o corpo como arma de resistência à colonização e como suporte dos signos culturais: “Paladino de toda a experiência simbólica e material na diáspora, o corpo torna-se maestro de uma orquestra de experiências não-verbais que efetivam a estética da vida dessa civilização recriada pela força da imaginação.” (Tavares e Garcia, 2008, p. 42). 39
  • 34. É no corpo que as experiências dos povos da diáspora africana se reproduzem e se mantém. No caso do Brasil, essas experiências são reproduzidas e mantidas em um corpo que expressa-se principalmente nas artes e, mais ainda, nas danças afro-brasileiras. Acham-se hoje essas manifestações nas diferentes regiões do Brasil e incluem artes corporais como a capoeira, o jongo, o coco, o maracatu, o tambor de crioula, o samba, o batuque, o cacuriá, a dança Afro entre outras. Durante minha pesquisa fui assistir um espetáculo realizado por um projeto do grupo cultural Nós do Morro na comunidade carioca do Vidigal. O nome do show era “Afro em nós” e quis apresentar uma série de danças afro-brasileiras. Começaram com a figura do malandro e o samba carioca, e passou-se através do jongo, do coco, maculelê, cacuriá, capoeira, dança afro e samba de roda. Cada apresentação de dança foi introduzida por uma breve explicação que denotava a influência de elementos de matriz africana que aqui no Brasil juntaram-se aos de origem indígena ou européia. Todas estas danças são de origem africana e apresentaram vários elementos em comum que pude identificar durante a apresentação, como grandes movimentos de braços e ombros. batidas de pés e mãos junto com a batida do tambor, a presença da roda, a parte do quadril sempre em movimento, giros, pés descalços e pisando forte no chão, e elementos de jogo e brincadeira. O espetáculo terminou, não por acaso, com o samba de Ary Barroso cuja letra diz “esse aqui ai é um pouquinho de Brasil, esse Brasil que canta e é feliz… é também um pouco de uma raça, que não tem medo de fumaça não…”(Diário de campo, 28 Março 2009). Para mostrar mais em detalhe e com um suporte teórico estas qualidades das danças afro-brasileiras, trago aqui quatro estudos sobre o Jongo no Sudeste, o Tambor de Crioula do Maranhão, a Capoeira, e o Samba. O Jongo é considerado uma das mais importantes manifestações africanas no Brasil, originária dos escravos da região Congo-Angola, e que, desde novembro de 2005, foi denominado um dos Patrimônios Culturais do Brasil. Através dos cânticos, do sons dos surdos, danças em círculo, e das batidas das mãos, o Jongo conta a história dos escravos das velhas plantações de café. Todos os elementos desta dança e da música e batida de tambores que a acompanha comunicam uma história de origem africana (Mattos e Abreu, 2007). O elemento de “chamada e resposta” analisado previamente no texto de DeFrantz sobre hip-hop, é uma característica fundamental do Jongo, onde cada estrofe 40
  • 35. dos cânticos é enunciada por uma pessoa e repetida pelo grupo todo. Em um artigo sobre os cânticos no Jongo e na Umbanda, Carina Maria Guimarães Moreira escreve que os versos cantados nestas duas tradições são chamados de “pontos” e provém de uma cultura baseada na oralidade. Estes pontos cantados “juntamente com o ritmo dos tambores e das danças encerram uma tradição: a do poder mágico da palavra trazida pelos povos bantos para o Brasil” (Moreira, 2008). Ao analisar as letras de pontos cantados de umbanda e de jongo, Moreira exemplifica como a história oral de origem africana, junto com a música e a dança é comunicada tanto nos eventos religiosos quanto nas rodas de jongo. Durante o período da minha etnografia, em Maio 2009, tive a oportunidade de viajar para o quilombo S. José da Serra na região de Valença no estado do Rio de Janeiro onde, anualmente, realiza-se um festival de jongo, com apresentações de danças afro- brasileiras que duram um fim de semana inteiro. O que pude observar no festival foi a formação constante de rodas para cada apresentação. Teve rodas de jongo, de cachambu, de capoeira, todas mostrando uma dinâmica parecida: a maioria dos participantes formam uma roda e ficam cantando, tocando tambor e outros instrumentos percussivos, e batendo palmas ao mesmo tempo. Enquanto isso, uma dupla de pessoas entra no meio da roda e fica “jogando”, tanto no jongo quanto na capoeira ou no coco. Cada jogo e cada dança era executada ao som dos tambores e de pés no chão, e tudo aconteceu em um ambiente rico de significados e símbolos da cultura afro-brasileira, tentando-se recriar uma atmosfera quase ritualística do festival. Este paralelo entre performance artística e ritual sublinhado no primeiro capítulo será melhor desenvolvido no próximo capítulo. Elementos parecidos com o jongo, como a roda, a umbigada e os tambores, se encontram na dança típica do Maranhão Tambor de Crioula. Esta é uma dança negra executada ao som de tambores, tocados por homens, enquanto as mulheres dançam dentro de uma roda e com movimentos circulares, usando saias largas, grandes e coloridas, e alternando sua entrada dentro da roda com a umbigada, comum também ao jongo e ao samba de roda. A umbigada ou punga é um elemento importante na dança do tambor de crioula. No passado foi vista como elemento erótico e sensual, que estimulava a reprodução dos escravos. Hoje a punga é um dos elementos da marcação da dança, quando a mulher que está dançando convida outra para o centro da roda, ela sai e a outra entra (Ferretti, 2006). Ferretti, neste artigo sobre o Tambor de crioula no Maranhão 41
  • 36. explica detalhadamente a diferença com o Tambor de Mina, ritual religioso Maranhense. Existem distinções entre estas duas manifestações: o tambor de crioula é uma dança de divertimento que se caracteriza pela importância da punga. O tambor de mina é uma dança religiosa em que o transe é o elemento fundamental. Embora seja uma dança eminentemente festiva, o tambor de crioula possui diversas relações com a religiosidade popular, não sendo correto afirmar que é manifestação exclusivamente profana, pois, na cultura popular o sagrado e o profano encontram-se intimamente relacionados (Ibidem). Mais uma vez, nesta dança afro-brasileira, encontra-se o elemento religioso ligado ao profano, e uma sinergia entre a dança, os tambores e a circularidade. As expressões de danças populares afro-brasileiras que mais viraram símbolos nacionais, tanto no Brasil quanto no exterior, são o samba e a capoeira. Mesmo sendo duas expressões artísticas muito diferentes, e diferentes das outras mencionadas até agora, podem-se encontrar vários elementos em comum, típicos das danças de matriz africana. A capoeira é considerada uma mistura entre dança e arte marcial, caracterizada por golpes e movimentos acrobáticos desenvolvidos pelos escravos e seus descendentes. Tomando a capoeira no contexto de cultura afro-brasileira e da expressão da diáspora africana, é importante sublinhar que existem uma simbologia, ritualidade e ancestralidade de origem africana que influenciam consideravelmente essa manifestação. Na tese “Capoeira Angola: cultura popular eo jogo dos saberes na roda”, Abib analisa a capoeira como uma manifestação da cultura popular onde a memória e oralidade e ritualidade assumem um papel muito importante (Abib, 2004). O que Abib escreve com respeito às manifestações culturais de origem africana é relevante para este trabalho: “É certo que não podemos desconsiderar o processo híbrido que caracterizou a formação das manifestações afro-brasileiras e mesmo as afro-americanas. Também é certo que, no Brasil como em poucos lugares do mundo, podemos verificar o quanto a influência africana foi marcante e mesmo preponderante em boa parte das manifestações envolvendo os elementos lúdicos de dança, música, jogo e brincadeira. Não podemos desvincular o contexto de surgimento da capoeira, do contexto do surgimento do maracatu, por exemplo, ou das congadas e moçambiques, do jongo e do próprio samba, apenas para citar as manifestações mais conhecidas, que partilham, juntamente com a capoeira, de um mesmo núcleo cultural proveniente da África, responsável por claras semelhanças entre essas manifestações.” Dois elementos chave deste “Africanismo” derivado da diáspora africana na capoeira são: 42
  • 37. primeiro, a música, executada com instrumentos de percussão sempre presente nas rodas de capoeira onde acontece o “jogo” entre os capoeiristas. Segundo, o elemento da roda é uma característica primária da capoeira, sendo sempre mantida como moldura do jogo executado no meio. Segundo o estudo “Dança da Guerra” do antropólogo Julio Cesar de Tavares, a roda é um elemento fundamental na capoeira; é um espaço onde há uma concentração de energias que seriam do espaço cósmico e que são “canalizadas pela rítmica do berimbau e pela energia dos corpos em movimento”. É um espaço onde há a preservação da “motricidade negro-africana”, baseada na movimentação dos quadris e na conservação da energia vital da cultura iorubana, o axé (Tavares, 1984, p. 62). Tavares continua afirmando que a dimensão energética presente na roda contribui para a “versatilidade” e a “dinâmica mobilidade” do corpo, como pode ser observado nas danças africanas, nas práticas religiosas e nas outras manifestações afro-brasileiras (Ibidem, p. 69). A capoeira é portanto uma forma de ludicidade brasileira que recupera as “unidades básicas da maneira de agir e estar no mundo da população negra” (Ibidem, p. 60), na qual os gestos corporais refletem e resgatam a memória do cotidiano dos negros, através do que Tavares denomina de uma “bricolage gestual” que surgiu instintivamente diante da experiência dominadora e colonial da escravidão (Ibidem, p.70). Concluindo, Tavares escreve: A Capoeira faz parte da memória corporal dos negros e de seus descendentes, localizando-se nela os índices que podem falar sobre a sua resistência à hegemonia cultural da civilização ocidental, uma vez que ela compreende as características corporais desenvolvidas pelo negro, tanto na luta como na paz, para garantir sua sobrevivência. (p. 103) Essa “memória corporal” do negro é o que aproxima as manifestações corporais afro- brasileiras, trazendo uma corporeidade específica que se originou nos corpos dos africanos trazidos ao Brasil em condição de escravos, corpos que sempre lutaram e reagiram contra os abusos coloniais. Essa corporeidade mostra elementos comuns às várias formas de expressão artísticas afro-brasileiras, como será evidenciado na próxima parte deste capítulo. No final da roda de capoeira, geralmente acontece um samba de roda, outra manifestação cultural afro-brasileira. Entre todos os tipos de samba, o samba de roda é o mais próximo das danças populares analisadas até então, possuindo elementos em comum 43
  • 38. com as outras manifestações. O samba de roda é originário do Recôncavo Baiano e é dançado por homens e mulheres dentro de uma roda, os quais entram e saem da roda alternando-se depois da umbigada, já encontrada no Jongo e no Tambor de Crioula. Este samba é tocado por um conjunto de pandeiro, atabaque, berimbau, viola e chocalho, acompanhado principalmente por canto e palmas, e dança-se descalço. Um elemento de relevância nesta dança para o objeto desta pesquisa é a roda. Como escreve Daniela Maria Amoroso no artigo “Corpo, o dono do samba: um estudo sobre o samba-de-roda do Recôncavo”: “A roda, como o próprio nome diz, é onde tudo acontece. É na roda que se canta, dança, bate palmas, toca instrumentos. E é na roda que uma energia se cria, se multiplica, se espalha. Entendo que a roda não é uma mera forma de organização espacial do samba-de-roda e estou convencida de que semelhanças existem entre o que acontece na roda de capoeira, no samba-de-roda e também no candomblé. A roda constrói o lugar daquele ritual, que não é religioso, mas sim festivo. Não é algo banal entrar numa roda para sambar, não é banal iniciar um jogo numa roda de capoeira.” O que pode ser destacado como ponto comum entre estes tipos de danças afro- brasileiras (o Jongo, Tambor de Crioula, Capoeira e Samba de Roda), portanto, são dois elementos essenciais, sempre presentes na performance de cada uma delas: o som dos tambores como acompanhamento necessário à dança, e a formação da roda como elemento coreográfico da execução das danças. Além disso, todas as danças afro- brasileiras são dançadas descalços para manter o contato dos pés no chão. Segundo a visão mítica Nagô “o corpo humano em si é um microcosmo. Os pés apóiam-se no concreto, no barro de onde saiu para onde voltará, na terra que os antepassados pisaram e à qual retornarão” (Augras, 1983). Estes três elementos estão presentes e são fundamentais também na dança Afro, especialmente na dança dos Orixás. Muitas vezes nas aulas e ensaios de dança Afro do meu campo de pesquisa trabalhou-se o conceito de roda e circularidade, de energia dos tambores, e de contato com o chão, todos elementos que caracterizam a dança Afro e que serão portanto retomados na parte seguinte. AArte de Dançar Afro O objetivo é procurar saber o que é a dança afro. Isso é ter coragem. Eliete Miranda 44
  • 39. A dança Afro surgiu no Brasil devido as influência trazidas por africanos retirados do seu país de origem para realizarem trabalho escravocrata em solo brasileiro. Os escravos brasileiros pertenciam a diversos grupos étnicos, incluindo os Yoruba, da Nigeria e da República do Benin, os Ewe e os Fon, do Benin e Togo e o grupo linguístico Bantu, do Congo e Angola, e eles trouxeram consigo suas experiências corporais, culturais e religiosas. Aqui no Brasil estas experiências se modificaram, vindo a apresentar características típicas próprias. As danças lúdicas e religiosas destes povos, especialmente as de origem Bantu e Yoruba, foram recriadas de maneira própria no novo mundo, mantendo elementos de matriz africana reconhecíveis. Agora, se tivéssemos que definir e descrever exatamente o que é a dança Afro, as coisas se complicam, principalmente por duas razões. Primeiro, a dança Afro é uma mistura de estilos e contribuições de variadas origens africanas re-elaboradas no Brasil; usando o termo que Julio Cesar de Tavares utilizou referindo-se à capoeira, a dança Afro é uma “bricolage” de múltiplos elementos. Segundo, os mitos e histórias das culturas que deram origem aos movimentos da dança Afro fazem parte de uma história oral que sempre foi transmitida de forma não escrita, dando origem a mais prováveis confusões e a menos clareza. Depois de pesquisar fontes teóricas, perguntar para profissionais da área, observar e participar da dança Afro nos últimos dois anos, cheguei à conclusão do que definir o que é a dança Afro é um verdadeiro desafio. Até hoje não existe uma definição exata; ao contrário, têm várias versões sobre o que é, quem criou, onde se originou e o que inclui a dança Afro. Segundo minhas observações, isso depende do fato que a arte de dançar Afro é algo de extremamente complexo e rico em variedades. Nesta última parte do segundo capítulo pretendo fazer três coisas: primeiro, quero apresentar uma breve história sobre o que é a dança Afro, trazendo as diferentes teorias e opiniões sobre a questão; segundo, quero apontar os elementos corporais (movimentos), musicais e culturais que levam a definir certa dança de dança Afro; e terceiro quero definir as diferentes modalidades que fazem parte da dança Afro, de acordo com meu campo de pesquisa. História Uma das únicas referências teóricas sobre a dança Afro é o livro “Dança Afro- 45
  • 40. Sincretismo de Movimentos” da dançarina e coreógrafa baiana Nadir Nóbrega Oliveira. No seu texto a autora evidencia a confusão em volta deste assunto. Oliveira escreve que “são variadas e antagônicas as opiniões e explicações sobre o que está convencionado como Dança Afro” (Oliveira, 1992). Tentando fornecer uma história de quando e como iniciou a dança Afro, Nadir escreve que a primeira dançarina e coreógrafa negra a convencionar uma técnica de dança baseada nas danças negras de Haiti, foi Katherine Dunham, nos Estados Unidos. Foi ela que, vindo ao Brasil em 1949, conheceu a bailarina negra do Teatro Municipal Mercedes Baptista e convidou ela para estudar na sua academia em Nova York (Ibidem). Mercedes Baptista voltou ao Brasil nos anos 50, e fundou o balé folclórico que leva seu nome, baseado nas técnicas aprendidas com Dunham (Ibidem). Uma das únicas fontes que contam a história da fundação da dança Afro no Rio de Janeiro é a dissertação de mestrado na UFRJ do antropólogo Nelson Lima, o qual escreve sobre Mercedes Baptista e o fato dela ser considerada a mãe do Balé Afro e fundadora da escola e técnica de dança Afro no Rio de Janeiro (Lima 1995). Segundo o estudo de Lima, a técnica de Mercedes era baseada nos rituais religiosos de matriz africana, e tentava reproduzir com fidelidade os movimentos e gestuais dos Orixás, divindades da religião afro-brasileira do Candomblé (ver Capítulo 3). Esta técnica foi adaptada pelas duas principais alunas de Mercedes, Isaura de Assis e Marlene Silva, as quais inovaram e interpretaram as origens africanas com elementos da dança clássica e moderna, criando uma linguagem cênica e não só ritual (Lima, 1995). Um dos maiores defensores desta versão da origem da dança Afro é Charles Nelson, professor de dança Afro no Rio de Janeiro o qual, durante uma entrevista que tive com ele na Lapa, declarou: “A Mercedes Baptista foi a criadora da dança afro, não somente no Rio quanto no Brasil. O dela não é estilo de dançar, mas uma escola de Afro, é diferente. Eu dancei com ela e com a Katherine Dunham quando ela veio ao Rio… a dança afro nasceu no Rio, não em Salvador. Eles dizem que nasceu lá mas foi aqui com a Mercedes; eles lá inventaram o swing baiano.” (15 Abril 2009) Como pode-se ver deste trecho, existe um atrito sobre quem fundou e onde nasceu a dança Afro. Segundo Charles Nelson, a dança Afro nasceu no Rio e foi fundada pela Mercedes Baptista. A técnica tem elementos de balé juntos a movimentos inspirados pela dança de Orixás, adaptados para palco. Voltando ao texto de Nadir Nóbrega de Oliveira, ela escreve que, em Salvador, os 46
  • 41. grupos folclóricos que começaram a se formar a partir dos anos 60, apresentavam os “aspectos mais expressivos da cultura africana presentes na Bahia”. Ela continua afirmando que, até hoje, as manifestações mais exploradas pelos grupos Afro em Salvador são o Candomblé, a Puxada de Rede, o Maculelê, a Capoeira e o Samba de roda (Oliveira, 1992, p. 33). Ainda na sua tese de doutorado sobre a influência do dançarino Clyde Morgan na escola de dança da Universidade Federal da Bahia, Nóbrega Oliveira reafirma a presença de “hibridações no que se chama de dança Afro em Salvador” pois existiam trocas culturais entre danças africanas, dança moderna, capoeira e candomblé (Oliveira, 2006, p. 114). Segundo este estudo de Oliveira, o dançarino e coreógrafo negro norte-americano Clyde Wesley Morgan foi uma presença fundamental na escola de dança da UFBA e contribuiu para a integração de elementos afro no seu grupo de dança contemporânea, em um ambiente onde as técnicas de dança ensinadas incluíam somente a moderna, clássica e contemporânea. Segundo Oliveira, Morgan “captou os movimentos da capoeira e do candomblé, principalmente as armadas, a ginga e o ginká (movimentos circulares dos ombros, utilizados nas danças de candomblé), introduzindo-os, artisticamente re-elaborados, em suas coreografias (Ibidem, p. 104). Mais um profissional considerado um dos mestres e fundadores da dança Afro em Salvador é Raimundo Bispo Dos Santos, melhor conhecido como King, que começou a atuar como dançarino e coreógrafo nos anos 70, inspirando-se no que tinha aprendido na escola de dança da UFBA e nos ensinamentos de Mercedes Baptista, Katherine Dunham e Domingos Campos, coreógrafo do Brasil Tropical (Oliveira, 2006, p. 34). No artigo da coreógrafa e educadora Amélia Vitória de Souza Conrado “Dança Étnica Afro-Baiana”, ela tenta explicar e compreender o que é a dança Afro e, para este propósito traz entrevistas com o mestre King. Segundo ele, a técnica da dança Afro é inspirada nos Orixás, sendo essa uma “técnica própria, uma postura própria dos Orixás, uma cultura” (Conrado, 2006, p. 38). Ao falar isso, King defende uma não rigidez dos movimentos; eles devem ser baseados na postura dos filhos de santo observados nos terreiros de Candomblé, mas cada mestre e professor de dança deveria enriquecer estes movimentos com estudos e experiências próprias (Conrado, 2006). Similarmente à posição do mestre King, dois jovens instrutores de dança Afro em Salvador que tive a possibilidade de entrevistar, colocaram sua opinião, ao lhe ser perguntado “o que é a dança Afro?”: 47