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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
DANIELA BENY POLITO MORAES
OS ELEMENTOS DE IANSÃ COMO
POSSIBILIDADE PARA CRIAÇÃO
CÊNICA.
NATAL/RN
2017
DANIELA BENY POLITO MORAES
OS ELEMENTOS DE IANSÃ COMO POSSIBILIDADE PARA
CRIAÇÃO CÊNICA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós -
graduação em Artes Cênicas – Stricto Sensu -
Mestrado Acadêmico em Artes Cênicas pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como parte dos requisitos para obtenção do título
de Mestre em Artes Cênicas.
ORIENTADORA: PROFA. DRA. TEODORA DE ARAÚJO ALVES
NATAL/RN
2017
Catalogação da publicação na fonte.
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Sistema de Bibliotecas
Biblioteca Setorial do Departamento de Artes
Moraes, Daniela Beny Polito.
Os elementos de Iansã como possibilidade para criação cênica / Daniela Beny
Polito Moraes. - 2017.
197 f.: il.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro
de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Artes
Cênicas, Natal, 2017.
Orientador: Profª. Drª. Teodora de Araújo Alves.
1. Teatro - Aspectos antropológicos - Dissertação. 2. Candomblé - Dissertação.
3. Performance (Arte) - Dissertação. 4. Criação (Literária, artística, etc) -
Dissertação. 5. Artes cênicas - Dissertação. I. Alves, Teodora de Araújo. II. Título.
RN/UF/BS-DEART CDU 792(043.3)
FOLHA DE APROVAÇÃO
DANIELA BENY POLITO MORAES
OS ELEMENTOS DE IANSÃ COMO POSSIBILIDADE PARA
CRIAÇÃO CÊNICA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós -
graduação em Artes Cênicas – Stricto Sensu -
Mestrado Acadêmico em Artes Cênicas pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como parte dos requisitos para obtenção do título
de Mestre em Artes Cênicas.
Aprovada em, ___ de ___________________ de 2017.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________
Profa. Dra. Teodora de Araújo Alves
Presidente da banca - orientadora
______________________________________
Profa. Dra. Melissa dos Santos Lopes
Universidade Federal do Rio Grande do Norte / membro interno
________________________________
Prof. Dr. José Luiz Ligiéro Coelho
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – membro externo
DEDICATÓRIA
Dedico esta pesquisa aos que vieram antes de mim e aos que virão depois de
mim, à minha família de sangue e à minha família de santo.
AGRADECIMENTOS
Para além dos agradecimentos à família, aos amigos, aos afetos, aos professores,
aos colegas e aos voluntários, agradeço imensamente aos que de fato são mestres,
agradeço às Ialorixás Nany Moreno (Yalorixá Nany D’Oya) e Isabel Caetano (Yalorixá
Bel de Oxum) por me permitir acompanhar os ensaios e as apresentações do Afoxé Oju
Omim Omorewá, por me acolherem como parte da família. Agradeço à Ialorixá
Miriam Souza Melo (Mãe Mirian), do Ilé Ifé Omi Omu Possu Betá, por ter aberto as
portas de sua casa para que pudesse registrar o Afoxé Oju Omim Omorewá durante seu
processo de criação, ao Babalorixá Célio Rodrigues (Pai Célio) por ter me recebido
durante a saída-de-orixá de 25 anos de santo de Mãe Nany em sua casa durante a
cerimônia Odum-Okanlelogum, Casa de Iemanjá – Templo dos Orixás. Agradeço ao
Babalorixá Marco Antonio de Campos, da casa a qual faço parte, a Aldeia dos Orixás,
por todas as orientações, esclarecimentos e aconselhamentos durante estes dois anos de
escrita. Agradeço para além desta pesquisa, agradeço pela resistência, pela preservação
da memória negra no Estado de Alagoas.
Agradeço também ao Coletivo Cores, nas pessoas de Lina Bel Sena, Antonia
Delgado, Naara Martins, Fernanda Estévão, Hikel Ribeiro e Franco Fonseca pela
confiança num trabalho que ainda estava em desenvolvimento, esta dissertação só foi
possível com colaboração de vocês.
RESUMO
A presente pesquisa de mestrado “Os elementos de Iansã como possibilidade para
criação cênica”, sob orientação da professora doutora Teodora de Araújo Alves visa
compreender o trânsito da Dança de Iansã e dos seus elementos míticos entre o
Candomblé, o Afoxé, o Laboratório e o Teatro, a fim de elaborar uma proposição
metodológica para ampliação do repertório corporal de intérpretes-criadores/as. Por se
tratar de um estudo que envolve subjetividade dos/as indivíduos/as relacionados/as a
esta pesquisa, o mesmo se debruça sobre as bases da Fenomenologia proposta por
Merleau-Ponty ao tratar da corporeidade como a forma de ser-estar no mundo. Para
refletir sobre os campos da Performance que compõe esta investigação, busco dialogar
com a Antropologia da Performance com base nos estudos de Richard Schechner e
Victor Turner, a Antropologia Teatral proposta por Eugenio Barba e os estudos em
Performances afro-ameríndias desenvolvido por Zeca Ligiéro. Esta investigação se
desenvolveu junto ao Afoxé Oju Omim Omorewá (Maceió/AL), observando a saída-de-
orixá da Ialorixá Nany Moreno – também coordenadora do Afoxé – e com os
experimentos prático-criativos junto ao Coletivo Cores (Natal/RN).
Palavras-chave: Candomblé, Afoxé, Antropologia da Performance, Antropologia
Teatral, Laboratório.
ABSTRACT
The present research of master "Iansan elements like possibility to scenic creation",
under the guidance of Professor Teodora de Araújo Alves aims to understand the traffic
Iansan dance and its mythical elements between Candomblé, Afoxé, the lab and the
theatre, in order to elaborate a methodological proposal for expansion of the body of
repertoire interpreters-creators. Because it is a study that involves subjectivity of
individuals, the related to this research, the same looks at the basis of Phenomenology
by Merleau-Ponty to treat the body as a way of being in the world. To reflect on the
fields of Performance that makes up this investigation, seek dialogue with the
anthropology of Performance based on studies of Richard Schechner and Victor Turner,
the Theatrical Anthropology proposed by Eugenio Barba and the studies in afro-
amerindians Performances developed by Zeca Ligiéro. This investigation developed by
the Afoxé Oju Omim Omorewá (Maceió/AL), noting the saída-de-orixá of Ialorixá
Nany Moreno – Coordinator of Afoxé – and practical-creative experiments by the
Coletivo Cores (Natal/RN).
Keywords: Candomblé, Afoxé, Anthropology of Performance, Theatre Anthropology,
Lab.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO – A Cabeça de Iansã nos Caminhos de Ogum................................... 11
INTRODUÇÃO – Os ventos que me sopram: Contextualização do(s) objeto(s)/sujeito(s)
de pesquisa ...........................................................................................................................
14
CAPÍTULO 01 – Somos filhas de Oxum protegidas por Oyá – Afoxé Oju Omim
Omorewá: arte e resistência negra......................................................................................
31
1.1 – Espetáculo “Oju Omim”: O Candomblé em cena ..................................................... 36
1.2 – Espetáculo “Agô – Iyabás pedem passagem”: O poder da mulher negra.................. 40
1.3 – Espetáculo “Chão Batido – terra de negros e mestiços”: Todos os povos
brasileiros............................................................................................................................
44
1.4 – Espetáculo “Aquarela de cores”: O corpo que dança no corpo de dança.................... 47
1.5 – Processos de criação do Afoxé................................................................................... 50
CAPÍTULO 02 – O movimento de Afefé – Os sentidos do corpo no Candomblé e no
Teatro..................................................................................................................................
54
2.1 – A deusa do fogo e do raio: Características e arquétipos de Iansã/Oyá...................... 68
2.2 – Iansã em Terra: A deusa do vento tocando o chão.................................................... 75
2.3 – Categorização da(s) dança(s) de Iansã....................................................................... 77
CAPÍTULO 03 – O farfalhar da Borboleta – Processos de en/incorporação.................... 89
3.1 – Aprender a fazer fazendo: As aulas com Mãe Nany................................................. 98
3.2 – Meu corpo-aparelho: Memórias pós-transe............................................................... 112
3.3 – Laboratório: O espaço das memórias en/incorporadas.............................................. 117
3.4 – Corpo a corpo: Estruturações para Conduções.......................................................... 124
CAPÍTULO 04 – Dos chifres aos cascos do Búfalo – Relatos dos experimentos............. 134
4.1 – Diários de “treinamentos” conduzidos: As Danças (individuais) de Iansã............... 135
4.1.1 – Experimentos isolados.............................................................................................. 139
4.1.2 – Experimentos continuados........................................................................................ 149
4.1.3 – Experimentos para processo de criação.................................................................... 160
CONCLUSÃO – Os ares da transformação: Observações da pesquisa e projeções para
futuro.....................................................................................................................................
180
REFERÊNCIAS................................................................................................................... 186
ANEXOS.............................................................................................................................. 190
11
APRESENTAÇÃO
A CABEÇA DE IANSÃ1
NOS
CAMINHOS DE OGUM2
Antes de iniciar a introdução dessa dissertação, sinto necessidade de falar o
motivo que me fez querer pesquisar o “treinamento” para atores e atrizes com foco na
corporeidade afro-brasileira.
Entre 2002 e 2008 meu interesse de pesquisa no teatro estava focado na
dramaturgia, não só por gostar de escrever, mas pelo fascínio e proximidade com o
professor da disciplina de Literatura Dramática do curso de Teatro Licenciatura da
Universidade Federal de Alagoas. Professor doutor Otávio Cabral, além de ser uma
referência como docente e como ator, foi orientador do meu trabalho de conclusão de
curso – junto à professora doutora Sheila Maluf – e orientador no projeto de iniciação
científica, que visava mapear os dramaturgos maceioenses do século XX. A paixão era
pelas palavras, mas elas precisavam ter força e fé cênica para serem ditas, e eu, como
atriz, vinha me achando cada vez mais descrente do meu ofício, pois até então os
processos de montagem dos quais vinha participando o texto era decorado, as cenas
levantadas e os ensaios aconteciam. Parecia haver só a voz que preenche o espaço e uma
massa que ocupava um lugar na cena, não ousava chamar essa massa de corpo.
Entre 2009 e 2013 resolvi que ia buscar caminhos para essa massa enfim se
corporificar, fiz quase todas as oficinas de treinamentos e técnicas corporais que
apareceram na minha frente: Commédia dell’arte, Cavalo Marinho, contato-
1
Também conhecida como Oyá, deusa Yorubá, cultuada inicialmente às margens do rio Niger. Está
relacionada com o elemento fogo assim como também é colocada como a própria personificação dos
ventos e das tempestades no Candomblé e com o despacho dos eguns (espíritos dos mortos) na Umbanda,
encaminhando os mortos para o outro mundo. Quando associada ao Orixá Xangô, está relacionada com os
relâmpagos, trovões e tempestades. No sincretismo religioso, é representada por Santa Bárbara. “Yansã”,
em Nagô, também significa “Mãe do céu rosado” ou “Mãe do entardecer”. Dirige os ventos, as
tempestades e a sensualidade feminina.
2
“Ogum governa o ferro, a metalurgia, a guerra. É o dono dos caminhos, da tecnologia e das
oportunidades pessoais (PRANDI, 2001, p. 21)”
Imagem 01 – As armas de Iansã Imagem 02 – As armas de 0gum
Gravura de Ubi Maya Gravura de Ubi Maya
12
improvisação, aula de capoeira, eutonia, Viewpoints e cheguei ao treinamento de Koshi3
desenvolvido por Tadashi Suzuki e que naquele momento estava sendo aplicado pela
atriz e diretora argentina Ana Wolf4
, era 2011, e eu me propus a morar durante os três
meses do inverno no hemisfério sul em Buenos Aires para vivenciar intensamente
aquele treinamento Deu-se então a confusão, pois ao mesmo tempo em que me sentia
contemplada pelo treinamento, ficava muito inquieta pelo fato de ser uma técnica
japonesa aplicada em uma atriz brasileira por uma argentina que havia passado anos
num grupo de teatro da Dinamarca. Óbvio que isso não invalida o treinamento, nem
esse nem nenhum outro, mas minha reflexão era: o que fazia parte da minha cultura ou
das minhas raízes – mesmo que de modo ancestral - que poderia também vir a ser um
“treinamento”?
Em 2012, ainda buscando alguma prática corporal onde me sentisse contemplada
como na técnica de Koshi, chego às aulas de dança afro de Leide Serafim, dançarina de
Maceió que participava comigo de um projeto de interiorização das artes em Alagoas,
estando lá, resolvi experimentar a aula. Uma aula extremamente vigorosa, que me
mobilizava como ser-corpo e que havia ali uma dramaturgia que ia para além das
palavras, embora ela não falasse o significado de cada gesto, eu podia sentir nos meus
músculos e articulações que cada movimento contava uma parte de uma história e, sem
saber, já estava experimentando a Dança de Iansã.
Fiz outras aulas, com outros professores, entendendo o quanto a técnica do
Koshi poderia ser útil para me ajudar no condicionamento físico, mas agora me vinha
outra indagação: Como essa técnica que me proporciona condicionamento físico poderia
ser útil num processo de criação? Quem poderia responder essa pergunta seria outro
artista do Odin Teatret – sim, a Antropologia Teatral5
já se mostrava como um caminho
3
Em japonês Koshi significa quadris, esse treinamento tem como base o bloqueio dos quadris para que se
crie dois níveis diferentes de tensões no corpo, onde a parte inferior terá que se adaptar a esse bloqueio
dos quadris buscando novas formas de deslocamento e a parte superior terá como função pressionar os
quadris, fazendo com que o equilíbrio do/a artista da cena esteja fora do seu cotidiano.
4
Ana Wolf foi atriz do Odin Teatrat nos anos 2000, onde foi dirigida diversas vezes pelos diretores do
grupo, Eugenio Barba – diretor italiano – e Julia Varley – atriz e diretora inglesa.
5
Segundo Barba (2009) Antropologia teatral é “(...) o estudo do comportamento cênico pré-
expressivo que se encontra na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis das tradições pessoais e
coletivas. (...) A Antropologia Teatral é um estudo sobre o ator e para o ator. É uma ciência pragmática
que se torna útil, quando, por meio dela, o estudioso chega a ‘apalpar’ o processo criativo e quando,
durante o processo criativo, incrementa a liberdade do ator (BARBA, 2009, p. 25 e 30)”.
13
possível de investigação – o dançarino Augusto Omolu, que realizava seus treinamentos
pautado na dramaturgia da Dança dos Orixás, era justamente o que procurava, era
justamente ele com quem eu estava prestes a entrar em contato, era ele que eu iria
procurar para ser meu mestre, mas, por força do destino, esse encontro não foi possível,
em 2013, sua vida foi ceifada, partia um mestre, que como a maioria dos mestres de
origem africana, transmitia seu conhecimento oralmente, não deixando nada registrado a
próprio punho sobre suas técnicas de trabalho.
Ainda em 2012, comecei a me aproximar do trabalho do Afoxé Oju Omim
Omorewá6
e em especial de Mãe Nany, acompanhando alguns ensaios, uma vez que
fazia parte da equipe de produção do espetáculo que estava sendo ensaiado, tudo aquilo
me parecia muito interessante e ia para além da beleza estética dos figurinos, cenário e
coreografias. Começava a enxergar ali o que vinha procurando noutros lugares.
Reconhecia na minha casa o que buscava longe de minhas origens, reconhecia no palco
minha ancestralidade que eu nem mesmo tinha consciência da sua existência.
Ao reconhecer esses elementos na minha ancestralidade e, consequentemente, no
meu corpo, as investigações de uma corporeidade negra, ou melhor, afrodescendente,
começou a ser uma urgência dentro da Invisível Companhia de Teatro7
– grupo do qual
faço parte em Maceió – já que em 2010, durante o 17º Festival Nordestino de Teatro
(FNT) em Guaramiranga/CE, professor Zeca Ligiéro – um dos debatedores do FNT –
provocou o grupo a se pensar como um grupo de teatro negro, já que eu, o diretor do
espetáculo, o cenotécnico e o iluminador nos identificamos como negros, mesmo que o
espetáculo “Voo ao Solo” não tivesse temática nem discussões voltadas sobre a cultura
afro-brasileira. Então, se o grupo é composto por negros Umbandistas – como é o caso –
então porque não buscar como preparação para cena elementos que girem em torno
dessa corporeidade ancestral?
6
Tradução: Olhos d’água dos Filhos da Beleza/Filhos do Belo/Filhos do Ouro.
7
Grupo sediado em Maceió/AL, fundado em 2009, composta pelos artistas Daniela Beny (Atriz,
dramaturga, diretora e produtora), Marco Antonio de Campos (Encenador, diretor, cenógrafo, figurinista e
produtor), Arnaldo Ferju (Ator, contador de histórias, cenógrafo, aderecista e iluminador) e Erick Silva
(cenógrafo, cenotécnico, fotógrafo e vídeomaker), além de artistas convidados para compor elenco e
equipe técnica. Montagens: “Voo ao Solo” (2009), “A cor da chuva” (2011 – contemplado com o Prêmio
de Incentivo à Produção e Circulação de Projetos em Artes Cênicas em Alagoas, Secretaria de Estado da
Cultura de Alagoas e Fundação Universitária de Extensão e Pesquisa) e “Rosas, carroças e dramas” (2012
– contemplado pelo Programa de Cultura Banco do Nordeste/BNDES – Edição 2012, categoria Artes
Integradas ou Não-Específicas com o projeto “Rosas, carroças e dramas”, Banco do Nordeste Brasileiro e
BNDES).
14
INTRODUÇÃO
OS VENTOS QUE ME SOPRAM:
CONTEXTUALIZAÇÃO DO(S) SUJEITO(S)/OBJETO(S) DE PESQUISA
Ventou, mas que ventania
Iansã é nossa mãe,
Iansã é nossa guia.8
8
Ponto cantado de Iansã do Terreiro Aldeia dos Orixás (Maceió/AL)
15
INTRODUÇÃO
OS VENTOS QUE ME SOPRAM:
CONTEXTUALIZAÇÃO DO(S) SUJEITO(S)/OBJETO(S) DE PESQUISA
A presente pesquisa “Os elementos de Iansã como possibilidade para criação
cênica” é um estudo de abordagem Fenomenológica que visa compreender os elementos
de Iansã – no caso a mitologia, os paramentos e a codificação corporal da dança – no
contexto ritual e seus deslocamentos para o campo artístico. Para tanto, parti das
seguintes etapas: observação de saída-de-orixá, observação de ensaios e apresentações
do Afoxé Oju Omim Omorewá e aulas da Dança de Iansã ministradas pela Ialorixá9
Nany Moreno (Mãe Nany).
Como já citado acima, como elementos estou considerando a base coreográfica
da Dança de Iansã, aspectos arquetípicos desta deusa, além da mitologia iorubá
difundida pelos itan10
onde a mesma se faz presente.
Além disso, também fazem parte dessa pesquisa minhas práticas individuais em
laboratório, onde experimentei os elementos coletados seja por observação ou
vivenciados em aula, como “treinamento11
” pré-expressivo12
, se desdobrando assim nas
possibilidades de criação tanto para mim quanto para os/as voluntários/as que
participaram das práticas coletivas.
9
Literalmente significa “Mãe que cuida do Orixá”, o termo serve para designar a função das Sacerdotisas
do Candomblé.
10
Termo em iorubá para o conjunto de todos os mitos, canções e histórias componentes da cultura iorubá,
podendo vir grafado itã.
11
Neste primeiro momento estou considerando o seguinte conceito de treinamento “Ao mesmo tempo em
que o treinamento se propõe como uma preparação física ligada ao ofício, também é uma espécie de
crescimento pessoal para o ator que vai para além do nível profissional. É um meio para controlar o
próprio corpo e orientá-lo com segurança, e é também a conquista de uma inteligência física
(SAVARESE, 2012, p. 293)”. Porém outros conceitos e contextos acerca do termo treinamento serão
abordados no decorrer da dissertação, para tanto, ao se tratar da minha investigação, na falta de termo
mais adequado, optei por grafar treinamento entre aspas.
12
“Barba nos fala que o nível pré-expressivo relaciona-se com o processo, não com o resultado, onde o
ator deveria ter como objetivo o trabalho sobre si mesmo no sentido da conscientização de seu corpo para
a dilatação de sua energia e para aprender a desenvolver sua presença. Se o treinamento é a fase de
experimentação e investigação, privada do espectador, podemos entender que nesse período estamos
essencialmente trabalhando o nível da pré-expressividade (...) é o nível em que não se deve pensar no
sentido” (SAUL, 2006, p. 19)
16
Convém salientar que esta dissertação surgiu como continuidade da minha
monografia de finalização do curso de Especialização em Antropologia realizado na
Universidade Federal de Alagoas/UFAL no ano de 2014, sob orientação da professora
Ph.D. Silvia Aguiar Carneiro Martins e intitulada “A codificação corporal da Dança de
Iansã nas coreografias do Afoxé Oju Omim Omorewá”.
Antes de me aprofundar nos aspectos teatrais e antropológicos que serão
abordados nessa dissertação, gostaria de trazer aqui alguns conceitos importantes para
compreender onde inicia essa investigação e qual lugar que esses sujeitos ocupam tanto
dentro da religiosidade quanto na sociedade.
Sobre o conceito de afoxé trago as pesquisas do antropólogo Raul Lody (1976)
como suporte, onde o mesmo aponta que
Afoxé é um cortejo de rua que tradicionalmente sai no carnaval (...) É
importante observar nessa manifestação os aspectos místico, mágico e
por conseguinte religioso. Apesar dos afoxés apresentarem-se aos
olhos dos menos entendidos como um simples bloco carnavalesco,
fundamentam-se os praticantes em preceitos religiosos ligados aos
cultos dos orixás, motivo primeiro da existência e realização dos
cortejos. Por isso, afoxé também é conhecido e chamado por
Candomblé de Rua (...) Apesar de todas as modificações e
desfigurações, esses grupos procuram manter valores e características
de ‘africanidade’ como: cânticos em dialetos africanos (...) utilização
de cores e símbolos que possuem significados específicos dentro dos
preceitos religiosos dos terreiros de candomblé (LODY, 1976, p. 3)
Sobre o entendimento do que vem a ser Orixá, me reporto a Pierre Verger,
quando o mesmo define como “(...) uma força pura, asè13
imaterial que só se torna
perceptível aos seres humanos incorporando-se em um deles (VERGER, 2002, p. 19)”.
Interpreto essa citação de Verger junto com o que vivencio como iniciada na
13
“Axé (...) significa atualmente, na linguagem popular, ‘boa energia’, ‘alto astral’. Verificando sua
etnologia iorubá, vemos que o sentido atual não difere muito do termo original, tendo sido apenas
atenuado o seu grau de religiosidade. De acordo com a tradição religiosa ioruba o Axé é compreendido
como energia vital, verdadeira presença de Deus nas forças e formas da natureza, assim como no interior
dos seres humanos. Axé também é, na filosofia do Candomblé, o poder de fazer coisas acontecerem,
comando espiritual, o poder de invocar, oração, agradecimento, luz própria de Deus tornada acessível aos
homens e mulheres (LIGIÉRO, 1993, p. 35-36)”
17
Umbanda14
, sendo assim, considero aqui que o Orixá é a personificação das forças da
natureza.
Gostaria de enfatizar que inicialmente essa pesquisa se propunha a buscar
especificamente os elementos da Dança de Iansã considerando apenas a codificação
corporal como “treinamento” para o performer num ponto de vista mais amplo,
contemplando atrizes/atores, bailarinos/as, artistas performáticos e brincantes, porém,
optei, junto a minha orientadora, professora doutora Teodora de Araújo Alves, a
delimitação na prática de atores e atrizes por se tratar de um universo que estou mais
familiarizada e que faz parte da minha atividade artística e profissional, uma vez que
atuo como atriz e diretora de teatro. Embora tenha optado por este recorte, creio que,
conduzindo esta proposição de “treinamento” de maneiras mais específicas obedecendo
às necessidades de cada processo criativo, ele poderá ser aplicado nas outras áreas das
artes cênicas sem grandes dificuldades e obtendo resultados satisfatórios.
Para o andamento desta pesquisa, levando em consideração todas as
particularidades envolvidas na investigação, estou tratando de um Fenômeno Situado, o
qual darei maiores detalhes a frente, onde minhas pesquisas e vivências foram
desenvolvidas inicialmente junto ao Afoxé Oju Omim Omorewá – o qual me
aprofundarei mais no capítulo seguinte – com entrevistas e com o acompanhamento de
ensaios e apresentações do grupo.
Além disso, outros horizontes foram se expandindo durante a escrita dessa
dissertação como o convite para fazer a preparação de elenco do espetáculo “O som que
se faz debaixo d’água”15
, do Coletivo Cores16
, vinculado à Extensão do Curso de Teatro
14
Para definir Umbanda optei por uma citação de Dandara e Ligiéro (1998) extraída do livro “Umbanda:
Paz, Liberdade e Cura” onde os autores trazem que “A Umbanda nos fascina por ser uma religião
ecumênica, absolutamente brasileira e, ao mesmo tempo, universalista, ligando as mais remotas tradições,
como a kongo e a iorubá, à caridade cristã, à sabedoria das nações indígenas brasileiras, ao espiritismo
kardecista. Todas as misturas possíveis buscando o entendimento e a evolução da raça humana em sua
jornada sobre a Terra (...) consideramos ser esta religião que, alimentando-se de tradições muito antigas,
como das mais recentes correntes místicas, preparou-se para entrar no terceiro milênio com uma valiosa
bagagem multicultural. Ela se distingue como uma religião altamente capaz de acompanhar as rápidas
transformações de uma sociedade cada vez mais planetária, e guarda em seus santuários diferentes
referências de nossa existência humana. A Umbanda é uma religião em processo, autoconstruíndo-se a
partir da sua própria prática religiosa dentro da dinâmica de uma tradição oral multicultural (DANDARA,
LIGIÉRO, 1998, p. 17)”
15
Segundo a encenadora Lina Bel Sena, “O som que se faz debaixo d’água é uma encenação teatral, com
três atores e uma musicista, tecida por meio de escritos dramatúrgicos na perspectiva do corpo (SOMA)
de gênero feminino que ao longo de sua experiência de vida percebe ‘chamados’ para um mundo
desconhecido. Mundo este de acordo com o pensamento dos criadores, que abraça duas vertentes
18
da UFRN, sendo assim, tive a oportunidade de conduzir o processo prático-criativo,
fundamentado nos elementos de Iansã, como metodologia para construção de repertório
corporal dos/as intérpretes-criadores/as.
Antes de apontar os procedimentos metodológicos propriamente ditos, é
importante salientar que parte do desenvolvimento epistemológico desta investigação
toma com base – a princípio intuitivamente e depois com fundamentação teórica – os
Estudos da Performance defendido pelos antropólogos Diana Taylor e Richard
Schechner, aonde ambos propõe que “as performances funcionam como atos de
transferências vitais, transmitindo o conhecimento, a memória e o sentido de identidade
social” (TAYLOR, p. 27, 2013), sendo esta forma de transmissão considerada como
conhecimento incorporado – o qual me aprofundarei com o passar dos capítulos.
Por se tratar de uma pesquisa de origem etnográfica17
que ao entrar em campo se
utilizou de técnicas específicas, trago as referências tomadas como marco teórico já na
monografia desenvolvida em 2014. Sendo assim, considero que esta pesquisa possui
aspectos de uma etnografia visual, a qual antropóloga Sarah Pink (2004), enfatiza suas
características:
(...) imagens, objetos visuais, descrições devem ser incorporadas
quando for apropriada, oportuno ou esclarecedor fazê-lo. As imagens
podem não ser necessariamente o principal método ou tópico da
pesquisa, mas através de suas relações com outros materiais sensoriais
e elementos discursivos da pesquisa, imagens e conhecimento visual
se tornarão foco de interesse (tradução minha)18
narrativas: da metalinguagem e da espiritualidade: no primeiro sentido o corpo poético, em cena, falando
dele mesmo. Dos treinos, das sonoridades, do seu ritual e cotidiano para a vida e para a cena. No segundo
sentido o corpo mediúnico, dos cânticos, sagrado, dos quintais, dos terreiros e universo se preparando
para sua missão. Trabalha-se com a matriz da mitologia dos Orixás”. “O Som que se faz debaixo d’água”
estreou dia 18 de Novembro de 2016, na A.Bo.Ca Espaços de Teatro, em Natal/RN.
16
O Coletivo Cores, criado em 2009 por alunos dos cursos de Artes Cênicas e Teatro da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte como projeto/atividade de Extensão sob a coordenação do professor
Doutor Marcos Alberto Andruchak.
17
Tomo como definição de etnografia para esta pesquisa o conceito de Flick (2007), ao dizer que “A
etnografia parte da postura teórica da descrição de realidades sociais e de sua elaboração, tendo por
objetivo o desenvolvimento de teorias. As questões de pesquisa concentram-se, principalmente, em
descrições detalhadas de estudo de caso. A entrada no campo tem importância central para a revelação
empírica e teórica do campo de estudo (FLICK, 2007, p. 161)”
18
“ (…) visual images, objects, descriptions should be incorporated when it is appropriate, opportune or
enlightening to do so. Images may not necessarily be the mean research method or topic, but through their
relation to other sensory, material and discursive elements of research images and visual knowledge will
become of interest (PINK, 2004, p. 5)”
19
O recurso áudio-visual adotado em algumas etapas do processo, se tornaram
minha memória visual e auditiva, pois, sempre recorro a ele para observar mais
detalhadamente a prática corporal do Afoxé, os aspectos pontuais da Dança de Iansã
durante o transe, e para perceber a corporeidade da Dança de Iansã além do que sinto
em meus músculos, ossos, pele e subjetividade, recorrer às filmagens e fotografias foi
fundamental para organizar e categorizar a codificação da Dança de Iansã e seus
elementos.
Segundo a antropóloga Miriam Leite (1998, p. 84) “A fotografia pode ser uma
reprodução de um recorte de alguma coisa existente, mas frequentemente é mais uma
reprodução do que o retrato e o fotógrafo gostariam que fosse”. Partindo dessa citação
divido com o leitor uma angústia que me acompanha desde 2014 que é como retratar em
imagens paradas movimentos que até mesmo no vídeo são difíceis de observar por
conta da velocidade de execução?
Pois bem, para tentar resolver esse “problema” utilizo a técnica de digital stills,
ou seja, através da filmagem, seleciono as imagens digitais congeladas e as utilizo como
fotografia, esta foi a forma viável encontrada, uma vez que não sou fotógrafa e conto
com equipamentos de funcionalidade limitada. Mesmo que a qualidade da imagem não
seja das melhores, essa técnica me permite apresentar em formato impresso as fotos,
inclusive sendo possível acompanhar os movimentos quadro-a-quadro, como algumas
das imagens que estão incluídas nesta dissertação.
Além das fotos e dos vídeos, também recorri às entrevistas19
para obtenção de
informações fundamentais para minha pesquisa. Essas entrevistas foram realizadas com
as coordenadoras do Afoxé, algumas pessoas que participaram das aulas de Dança de
Iansã em Julho de 2015 e com alguns/algumas voluntários/as que participaram das
diferentes etapas do Laboratório. Para esse grupo específico, optei por entrevistas semi-
estruturadas, tendo algumas perguntas como base, mas abrindo espaço para que os
diálogos fluíssem da forma mais confortável para os entrevistados, o que possibilitou
19
“A entrevista pode ser definida como um processo de interação social entre duas pessoas na qual uma
delas, o entrevistador, tem por objetivo a obtenção de informações por parte do outro, o entrevistado. As
informações são obtidas através de um roteiro de entrevista constando de uma lista de pontos ou tópicos
previamente estabelecidos de acordo com uma problemática central e que deve ser seguida. O processo de
interação contém quatro componentes que devem ser explicitados, enfatizando-se suas vantagens,
desvantagens e limitações. São eles: a) o entrevistador; b) o entrevistado; c) a situação da entrevista; d) o
instrumento de captação de dados, ou roteiro de entrevista (HAGUETTE, 2010, p. 81)”
20
inclusive que outros assuntos e informações viessem à tona sem terem sido cogitados a
princípio, como a trajetória religiosa de cada um e até mesmo a sua genealogia. Outro
modo de obter os feedbacks das práticas foram as rodas de conversa ao final de cada
Laboratório, onde os/as participantes além de apontarem suas impressões e sensações
ainda sugeriram ações que vieram a fazer parte das Conduções futuras, sendo possível
ter uma devolutiva não apenas do “treinamento”, mas poder construir de forma conjunta
o roteiro do trabalho proposto.
Considero importante apontar que durante as entrevistas e conversas informais
no convívio com Mãe Nany e Mãe Bel – o que está registrado aqui nesta dissertação em
relação ao campo do sagrado são informações que podem ser divulgadas amplamente,
por outro lado, por conta dos segredos de cada casa/terreiro, alguns questionamentos
que fiz às minhas interlocutoras não foram respondidos, outros foram, mas não tenho
autorização de revela-los, o mesmo ocorrerá com alguns termos em iorubá que se não
possuírem tradução em nota de rodapé é porque seu significado não foi ou não pode ser
revelado.
Para além das dúvidas referentes à Dança de Iansã ou ao próprio Afoxé, tanto
Mãe Nany quanto Mãe Bel foram minhas interlocutoras inclusive para esclarecer
algumas questões sobre o Candomblé. Quero enfatizar que, por questões culturais, o
culto do Candomblé apresentará algumas diferenças no que diz respeito às suas práticas
em cada região do Brasil ou até mesmo de um terreiro para outro, por isso mesmo, estou
tomando como base o contexto sagrado onde o Afoxé se estrutura e sem grandes
aprofundamentos no cerne religioso.
Como forma de viabilizar meus estudos e experimentos, dividi esta investigação
em três etapas, e as organizei da seguinte maneira: primeira – OBSERVAÇÃO, segunda
– EN/INCORPORAÇÃO20
e terceira – CONDUÇÃO21
.
20
Opto por esta grafia do termo por encontrar em minhas pesquisas tanto a palavra ENCORPORAÇÃO
quanto INCORPORAÇÃO, não havendo distinção de significado entre as duas, uma vez que os prefixos
latinos EN e IN significam “Movimento para dentro, passagem de um estado ou forma”, sendo os dois
significados aplicáveis a esta investigação.
21
A princípio o termo usado para esta etapa da pesquisa seria APLICAÇÃO, porém dada a afetividade
que foi apresentada durante o processo de experimento dos exercícios com terceiros, optei pelo termo
CONDUÇÃO, uma vez que meu trabalho ali se identificava mais com conduzir uma prática do que
aplicar uma técnica.
21
Em relação à estrutura dessa pesquisa, a OBSERVAÇÃO corresponde às
pesquisas de campo com o Afoxé, acompanhando os ensaios, revendo os vídeos, assim
como a observação da saída-de-orixá de Mãe Nany, ocorrida em Fevereiro de 2015.
Como EN/INCORPORAÇÃO, estou considerando as aulas da Dança de Iansã e
meus experimentos individuais em sala de ensaio. Quero salientar aqui que escolho esse
termo por compreender que não haveria outra forma de apreender os elementos que
quero trabalhar como base de um “treinamento” para terceiros se não for corporificando
essa experiência, pois, como aponta Merleau-Ponty (1999) é através da experiência
corporificada que compreendemos e estamos no mundo. Aqui traço um paralelo com
Richard Schechner (2003) com o conceito de comportamento restaurado
Comportamento restaurado é simbólico e reflexivo. Seus significados
têm que ser decodificados por aqueles que possuem conhecimento
para tanto (...) Tornar-se consciente do conhecimento restaurado é
reconhecer o processo pelo qual processos sociais, em todas as suas
formas, são transformados em teatro, fora do sentido limitado da
encenação de dramas sobre um palco (SCHECHNER, 2003, p. 35)
Pois mesmo que eu não esteja dentro do ritual religioso dançando durante o
transe, ainda assim, estarei recuperando no meu repertório corporal elementos da minha
ancestralidade que surgem durante os experimentos (e creio que alguns desses
elementos surgem inclusive, pela minha relação com o Orixá em questão, já que, como
citei anteriormente, sou filha de Iansã).
Ainda pensando na perspectiva da en/incorporação e a ideia central do
comportamento restaurado, creio que um dos pontos chaves que me fará entrar em
contato mais aproximado com os elementos que compõe a corporeidade de Iansã é a
recuperação em sala de ensaio dos movimentos vivenciados no meu estado de transe –
os quais relato ao longo dessa dissertação – buscando na memória os gestos tais como
consigo acessar e na prática tentar recuperar algumas sensações experienciadas nesse
estado alterado de consciência.
Por fim, a CONDUÇÃO são os experimentos dos elementos de Iansã como
possibilidade de “treinamento” do/a ator/atriz compartilhados com voluntários/as. Estas
práticas foram realizadas entre 2015 e 2016 em diversas oportunidades e com
participantes de diferentes perfis justamente com o intuito de saber como cada grupo e
22
cada indivíduo respondem aos estímulos propostos. Sobre esta fase da pesquisa falarei
mais a frente ao compartilhar os relatos de cada prática coletiva.
Opto por estes três termos por me basear nos apontamentos de Schechner
(2011b) que trata das técnicas que preparam o performer para performatizar, incluindo:
observação, prática, imitação, correção e repetição percebo que estas etapas estão
presentes tanto nas práticas corporais do Candomblé e do Afoxé, quanto nos
laboratórios individuais e/ou com a condução dos exercícios noutros sujeitos.
Saliento que, apesar de ter dividido meu processo de investigação em três etapas,
isso não significa que ocorreram em ordem cronológica, pois elas foram desenvolvidas
de forma concomitante e muitas vezes simultâneas.
Embora alguns locais e parte dos sujeitos da atual pesquisa sejam os mesmos, o
aprofundamento do estudo apontou novas direções, mas, mesmo assim, continuo minha
investigação pautada em alguns conceitos sobre os quais já havia me debruçado
anteriormente. Com base nesta observação, trago aqui uma citação de minha
monografia, que se tornou o primeiro passo para esta pesquisa de mestrado:
Nesse estudo, a codificação corporal é considerada como elemento de
comunicação da coreografia, através do qual aspectos do arquétipo do
Orixá são observados e reconhecidos. Esta significação da codificação
corporal é re-significada quando sua execução quanto dança sai do
espaço sagrado dos terreiros e ocupa o espaço do palco/rua/salas de
ensaio; cabendo à pesquisa problematizar e discutir a apropriação no
campo secular de um elemento sagrado, uma vez que o corpo é de
fundamental importância para o Candomblé e a Umbanda por ser o
meio em que se dá o contato/comunicação entre o plano espiritual e o
plano material (BENY, 2014a, p. 15)
A codificação será retomada nesta pesquisa no sentido da categorização dos
movimentos e a relação entre eles e os elementos litúrgicos da dança e seus elementos
dramáticos, e, consequentemente, como transmissores de conhecimento de uma
comunicação não-verbal, pois, mesmo sendo o Candomblé uma religião pautada na
tradição oral, o que se observa é que na corporeidade da Dança de Orixá tanto o
movimento da dança quanto o gestual estão intimamente ligados aos itan, pois, segundo
a professora e pesquisadora da UFF e pesquisadora FAPERJ Dra. Denise Zenicola
(2011) “Os signos corporais traduzem sentimentos e atos dos homens, são códigos
23
impressos de suas realizações intelectuais e espirituais, memórias de si e do seu grupo
ancestral (2011, p. 89)”.
Ao relocar o corpo codificado religioso para as artes, inclusive como um
processo de potencializar o artista da cena para o melhor desenvolvimento do seu ofício,
recorro aqui a um recorte de Eugenio Barba (2012, p. 230) ao definir que “A
codificação corporal é uma consequência visível dos processos fisiológicos do ator, para
dilatá-los e para produzir um equivalente das mecânicas e das forças que funcionam na
vida. A codificação é formalização”. E justamente por pensar nessa formalização é que
recorri como processo metodológico a categorização dos elementos da Dança de Iansã
que foram investigados, tomando como base premissas trazidas por Rudolf Van Laban
(1978) ao conceituar elementos que associam o movimento às ações corporais, espaço,
tempo, peso e fluência, chegando assim à qualidade de esforço.
Num primeiro momento, ao conceituar corpo e sua relação com o espaço, o
filósofo francês Maurice Merleau-Ponty indica que
O corpo é nosso meio geral de ser no mundo. Ora ele se limita aos
gestos necessários à conservação da vida e, correlativamente, põe em
torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros
gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele
manifesta através deles um novo núcleo de significação: é o caso dos
hábitos motores da dança. Ora, enfim a significação visada não pode
ser alcançada pelos meios naturais do corpo; é preciso então que ele
construa um instrumento, e ele projeta em torno de si um mundo
cultural (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 203)
Obviamente que temos contextos sócio-histórico-culturais muito diferentes entre
a França do início do século XX após passar por duas grandes guerras e um grupo
artístico situado na periferia da cidade de Maceió, no nordeste brasileiro em pleno
século XXI, por esta especificidade, a corporeidade iorubá foi pensada e discutida sob a
perspectiva apontada pela dançarina, professora e pesquisadora em dança Dra. Suzana
Martins, ao propor que
O termo corporalidade refere-se ao tratamento dado ao corpo como
um conjunto de elementos simbólicos estruturados para um
determinado fim. No Candomblé, a corporeidade é construída a partir
da união espiritual decorrente da intervenção primordial da divindade.
(...) Nesse contexto, a corporeidade é representada pelo corpo em
movimento – o jeito de dançar – que ostenta vestimenta litúrgica,
24
atributos e adereços simbólicos embalados pela qualidade específica
da música e do Orixá (MARTINS, 2008. p. 81)
Para além de pensar o corpo do médium em transe como local onde ocorre um
procedimento litúrgico, e, por conseguinte, sagrado, também considero este corpo
dançante responsável pela corporificação de elementos que manifestam as forças da
natureza – seja num aspecto mais etéreo como ar, relâmpago, fogo, no caso de Iansã ou
elementos mais concretos como animais. Temos aqui dois usos do corpo dentro da
religiosidade, mas quando se observa as ações dentro do ambiente sagrado com olhos de
artista é possível notar que não é uma dança pela dança e sim um drama, na perspectiva
do que aponta o filósofo Johan Huizinga (2008), pois
O ritual é um dromenon, isto é, uma coisa que é feita, uma ação. A
matéria desta ação é um drama, isto é, uma vez mais, um ato, uma
representação num palco. Esta ação pode revestir a forma de um
espetáculo ou de uma competição. O rito, ou “ato ritual”, representa
um acontecimento cósmico, um evento dentro do processo natural.
Contudo, a palavra “representação” não exprime o sentido exato da
ação, pelo menos na conotação mais vaga que atualmente predomina;
porque aqui “representação” é realmente identificação, a repetição
mística ou a reapresentação do acontecimento. O ritual produz um
efeito que, mais do que figurativamente mostrado, é realmente
reproduzido na ação. Por tanto, a função do rito está longe de ser
simplesmente imitativa, leva a uma verdadeira participação no próprio
ato sagrado (HUIZINGA, 2008, p. 18)
Mesmo havendo divergências em relação às especificidades de onde o corpo está
sendo pensado, seja ele na Europa ou num terreiro de Candomblé, as convergências se
dão no pensar o corpo como o lugar da experiência e sem dissociação dos aspectos
culturais e sociais que circundam o indivíduo, tornando o sujeito. Sendo assim, venho
me aproximando da abordagem fenomenológica – embora já tivesse observado
apontamentos fenomenológicos da pesquisa desenvolvida durante a escrita da
monografia que deu origem a esta dissertação, sob a perspectiva do antropólogo
estadunidense Tomaz Csordas (2008), onde o mesmo propõe que
A fenomenologia é uma ciência descritiva dos princípios existenciais,
não de produtos culturais já constituídos. Se nossa percepção ‘termina
nos objetos’, o objeto de uma antropologia fenomenológica da
percepção é capturar aquele momento de transcendência no qual a
percepção começa, e, em meio à arbitrariedade e à indeterminação,
constitui e é constituída pela cultura (CSORDAS, 2008, p. 107).
25
Então, trazendo o foco para a percepção, como investigadora, o que me interessa
aqui é como essa possibilidade de “treinamento” estimula aqueles que a experimentam,
independente se há uma memória em relação à religiosidade afro-brasileira em
particular. A potência está em como cada corpo/sujeito, dentro de sua individualidade,
poderá responder às proposições. Como cada estímulo externo mobilizará o indivíduo,
fazendo com que ele consiga acessar seus estímulos internos.
Porém, ao observar como Merleau-Ponty (1999) pensa a Fenomenologia, é
possível perceber a abrangência dessa abordagem metodológica e como ela está
entrelaçada com o conceito que ele mesmo propõe de corporeidade:
A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas,
segundo ela, resumem-se em definir as essências: a essência da
percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas a
fenomenologia também é uma filosofia que repõe as essências na
existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o
mundo de outra maneira senão a partir da sua “facticidade” (...) É a
tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é
(...) Trata-se de descrever, não de explicar nem analisar (MERLEAU-
PONTY, 1999, p. 2-3)
Existem espaços sobre a criação de significados e entendimentos de
corporeidades que são melhor abarcadas a partir do ponto de vista de Merleau-Ponty
(1999) tanto por ser a base para a conceituação de corporeidade neste atual momento da
pesquisa, como pela reflexão do que é a Fenomenologia, podendo assim situar melhor
tanto os sujeitos quanto o objeto de estudo, porém, assim como o que foi desenvolvido
em 2014, continuo dando ênfase à experiência do sujeito dentro de um determinado
contexto, passando a considerar/observar a Dança de Iansã no Afoxé como um
Fenômeno Situado, assim como os experimentos desse possível “treinamento” com
os/as participantes em sala de ensaio, no caso, como Laboratório.
Por fenômeno, estou tomando também como base o conceito de Magali Roseira
Boemer (1994), partindo do pressuposto que estarei relatando tanto o que é
experienciado pelos membros do Afoxé quanto por mim durante aulas, ensaios,
laboratórios e compartilhamentos, assim como o feedback com aqueles/as que
experimentaram a proposta de “treinamento” nas diferentes etapas dessa pesquisa, se
26
tornado uma reflexão forte sobre o andamento do meu trabalho como pesquisadora, uma
vez que
Para compreensão do fenômeno que foi posto diante dos olhos para a
investigação, o pesquisador vai buscar as descrições da experiência
pelos sujeitos que estão sendo os sujeitos da pesquisa. Dessas
descrições o pesquisador buscará captar a essência. A descrição se dá,
na experiência do sujeito que experiencia determinada situação. É
dessa maneira, situando-se, que o fenômeno se ilumina e se desvela
para o pesquisador (BOEMER, p. 88, 1994)
Faz-se necessário evidenciar que a escolha da tradição iorubá se deu pelas
características das interlocutoras e entrevistados participantes do Afoxé, uma vez que,
em sua maioria são de terreiros de Candomblé das nações Jêjê, Ketu e Nagô, que fazem
parte das subdivisões do grupo étnico iorubá, ou da Umbanda.
Tendo este recorte como referencial para as observações em campo, trazemos
aqui o Orixá Iansã sob a perspectiva iorubá, onde a mesma está associada aos elementos
da natureza que se relacionam com o fogo, ventos, raios, relâmpagos e tempestades. Sua
atribuição no plano espiritual é o despacho/trânsito dos eguns (espíritos desencarnados)
para o mundo dos mortos. Normalmente esta Iyabá22
é considerada uma feiticeira muito
poderosa e habilidosa, sendo um Orixá feminino com a capacidade de se zoomorfizar,
transformando-se em búfalo e/ou borboleta. Ao tratar do arquétipo dos/as filhos/as de
Iansã, me reporto a um breve apontamento de Pierre Verger (2002) ao explanar que
O arquétipo de Oyá-Iansã é o das mulheres audaciosas, poderosas e
autoritárias. Mulheres que podem ser fiéis e de lealdade absurda em
certas circunstâncias, mas que, em outros momentos, quando
contrariadas em seus projetos e empreendimentos, deixam-se levar a
manifestações da mais extrema cólera (VERGER, 2002 - p. 170).
Dadas estas características, ao longo do processo de pesquisa, tanto na
observação quanto na prática nas aulas e laboratórios, esse comportamento esperado
dos/as filhos/as de Iansã fica evidenciado pelo modo de dançar. Mas, para além das
relações arquetípicas, mitológicas ou afetivas – já que sou filha de Iansã iniciada na
Umbanda – a escolha por esta Iyabá para realizar minha investigação se deu pelas
características dos movimentos que geralmente são vigorosos, expansivos e
22
Designação feminina de Orixá.
27
polirrítmicos, embora também possam trazer alguns elementos de sinuosidade, o que, ao
meu ver colabora bastante no processo de “treinamento” energético para os atores e
atrizes.
Não posso ignorar também que, durante o processo de pesquisa, nos momentos
em que estive presente nas atividades religiosas do terreiro de Umbanda de Ogum, Iansã
e Jurema Aldeia dos Orixás, em Maceió ao longo de 2015 e do qual faço parte, a relação
entre o plano espiritual e eu se modificou um pouco. Como sou médium girante – entro
em transe e “recebo” as entidades – o contato parece estar sendo mais fluido e essas
entidades, em especial Iansã aparentemente têm dançado mais, como se eles estivessem
dispostos a ensinar agora que estou mais disposta a aprender, dando a impressão que a
medida em que me aprofundo mais nos conhecimentos teóricos da religiosidade e deste
corpo afro-brasileiro estejam também amadurecendo meus laços com a religião. No
decorrer dos capítulos falarei mais da minha experiência no campo do sagrado e como
relaciono meu lugar de médium com meu lugar de atriz-pesquisadora.
Pensando em todas as etapas que compuseram o processo de investigação e nos
elementos que me aproximaram dos sujeitos dessa pesquisa, cabe aqui salientar que essa
dissertação busca refletir também sobre o processo criativo, as ressignificações de
códigos do sagrado relocado para o campo artístico e como se dá esse deslocamento.
Assim sendo, esquematizo a observação desses dados levantados e como eles se
relacionam da seguinte maneira: Candomblé  Afoxé  Laboratório  Teatro,
lembrando que nesse cruzamento de informações de cada etapa é possível perceber que
tudo está relacionado ao processo de ensino aprendizagem através do corpo, ou seja,
conhecimento incorporado, sendo a corporeidade a chave para transmissão do
conhecimento dentro de cada uma dessas esferas.
Vale salientar que a investigação sobre o Candomblé se deu na observação da
saída-de-orixá de Mãe Nany, assim como nas leituras de material acadêmico ou não
especializado na religião. Quanto ao Afoxé, a observação se deu no acompanhamento
dos ensaios e apresentações. E o que venho considerando como Laboratório e Teatro
são as experiências práticas, tanto pessoais quanto com a participação de voluntários/as.
Por fim, busco responder três perguntas que estiveram e estão muito presentes
para mim durante toda essa investigação: O que me move? O que me transforma? O que
28
farei com essa transformação? Sendo assim, como sou eu quem busca o entrelaçamento
entre Candomblé, o Afoxé e o Teatro, a tentativa de resposta a essas três perguntas, se
apresentam para mim e, consequentemente, ao leitor, nas seis partes desta dissertação.
O que me move?
A Introdução – Os ventos que me sopram: contextualização do(s)
objeto(s)/sujeito(s) de pesquisa, justamente para compartilhar a chegada até essa
investigação e apresentar alguns procedimentos para execução deste trabalho.
O Capítulo 01 – Somos filhas de Oxum23 protegidas por Oyá: Afoxé Oju
Omim Omorewá, Arte e Resistência Negra, onde trarei da História do Afoxé
pesquisado, seus processos de criação e os principais espetáculos.
O que me transforma?
O Capítulo 02 – O movimento de Afefé24: Os sentidos do corpo no
Candomblé e no teatro, visando refletir os aspectos da performance tanto no campo do
sagrado quanto do artístico.
O Capítulo 03 – O farfalhar da Borboleta: Processos de en/incorporação,
onde trarei relatos e farei apontamentos de como se dá o trânsito Candomblé  Afoxé
 Laboratório  Teatro.
O que fazer com essa transformação?
Quem me aponta é o Capítulo 04 – Dos chifres aos cascos do Búfalo: Relatos
dos experimentos, trazendo a descrição dos Laboratórios conduzidos com
voluntários/as e observações quanto às diferenças entre essas práticas.
E a Conclusão – Os ares da transformação: Observações da pesquisa e
projeções para futuro, onde busco refletir sobre as etapas da pesquisa e projeções para
pesquisas futuras, assim como a compreensão do deslocamento dos elementos de Iansã
do campo do sagrado para o ambiente artístico.
23
“Oxum preside o amor e a fertilidade, é a dona do ouro e da vaidade e senhora das águas doces
(PRANDI, 2001, p. 22)”
24
O próprio vento, mensageiro de Oyá, simboliza as mudanças e comunicações, responsável pela limpeza
e purificação do ambiente.
29
Por compreender os elementos de Iansã como os responsáveis pelo
desenvolvimento dessa pesquisa, cada capítulo foi intitulado de acordo com o espectro
de Oyá que se apresentou no momento da escrita, pois o Vento que nos rodeia me ajuda
a compreender o corpo-sujeito no Candomblé e no teatro, a metamorfose da Borboleta
reflete o trânsito entre os quatro ambientes onde se debruça minha pesquisa e a firmeza
do Búfalo me aponta que já (me) reconheço um pouco no terreno onde estou pisando.
Ao longo dessa dissertação também, trago algumas imagens de Iansã
encontradas na internet que, por relacionar de diferentes modos a figura de Iansã com
seus elementos, considero importante compartilhar.
Devidamente apresentados/as aos aspectos gerais dessa dissertação, convido
os/as leitores/as a conhecer um pouco o caminho que percorri até aqui.
30
CAPÍTULO 01
SOMOS FILHAS DE OXUM PROTEGIDAS POR OYÁ –
AFOXÉ OJU OMIM OMOREWÁ: ARTE E RESISTÊNCIA NEGRA
Fotografia 01 – registro de Iris Valões
Cena final do espetáculo “Oju Omim”
31
CAPÍTULO 01
SOMOS FILHAS DE OXUM PROTEGIDAS POR OYÁ –
AFOXÉ OJU OMIM OMOREWÁ: ARTE E RESISTÊNCIA NEGRA
O Afoxé Oju Omim Omorewá está situado no bairro do Jacintinho, em
Maceió/AL. Este bairro é um dos mais populosos da capital alagoana e possui altos
índices de criminalidade, onde, a maior parte da população exposta à violência é de
jovens negros de baixa renda. Na tentativa de diminuir o genocídio da população negra
o Omorewá visa prestar atendimento e acolher a comunidade, sendo este o perfil de
parte de seus componentes, jovens negros da periferia maceioense expostos à violência.
Sob a coordenação das Ialorixás Nany Moreno e Isabel Caetano, o Afoxé vem
desenvolvendo suas atividades desde 2003. Inicialmente se consideravam um grupo
exclusivamente percussivo, porém, com o passar do tempo e da ampliação do
atendimento à comunidade vinda de outros terreiros, o grupo passou a contar com uma
presença feminina maciça, passando a ter um subgrupo de dança.
Em 2012, com o espetáculo “Oju Omim25
” passaram a agregar elementos de
teatro em suas apresentações, se tornando assim o primeiro Afoxé a se apresentar no
tradicional palco do Teatro Deodoro26
– também situado em Maceió e de administração
do Estado de Alagoas.
Hoje o Omorewá conta com mais três espetáculos para palco que fazem parte de
seu repertório: “Agô Iyabás pedem passagem”, de 2013, espetáculo que comemora os
dez anos de atividade do Afoxé e que faz reverências aos Orixás femininos do
Candomblé e contemplado pelo 2º Prêmio de Incentivo Cultural para Comunidades de
Terreiros, promovido pela Universidade Estadual de Alagoas –UNEAL em convênio
com o MinC – Ministério da Cultura. “Chão Batido – terra de negros e mestiços”, de
2014 e eleito pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões de
Alagoas - SATED/AL como melhor espetáculo de dança afro de 2014, que aborda a
25
Pode ser traduzido como “Olho d’água”.
26
Fundado em 1898, é um dos mais tradicionais teatros de Alagoas, é administrado pelo Governo do
Estado através da Diretoria dos Teatros do Estado de Alagoas/DITEAL. Maiores informações disponíveis
no site: www.teatrodeodoro.al.gov.br
32
mestiçagem de negros, índios e europeus na constituição da religiosidade brasileira, este
espetáculo em específico pude acompanhar os ensaios com mais assiduidade para a
produção da etnografia já relatada anteriormente e que virei a retomar mais a frente.
E “Aquarela de Cores”, de 2016, que revisa os três espetáculos anteriores e
continua inovando ao aproximar o balé clássico das danças afro-brasileiras, propondo
assim uma dança afro-contemporânea com elementos estéticos e técnicos de diversas
influências.
Embora o Omorewá não esteja vinculado oficialmente a nenhum terreiro, a
maioria dos integrantes são iniciados no Candomblé ou na Umbanda, por esse motivo,
parte dos percussionistas são ogãs27
e algumas das dançarinas são ekedes28
, o que ao
meu ver, caracteriza que as práticas artísticas oriundas das religiões de matrizes
africanas são sim um mecanismo de resistência e empoderamento do povo negro ao
perceber que mesmo saindo do âmbito sagrado os atores sociais desempenham papeis
semelhantes quando relocados no campo artístico.
O Omorewá não é um grupo de artistas legalmente constituído e isso dificulta
um pouco a participação em alguns editais e seleções e, consequentemente, o repasse de
qualquer tipo de apoio financeiro, seja ele da iniciativa privada ou pública, o repasse
não é constante, fazendo com que a manutenção do grupo seja feita com os recursos que
entram em caixa através do pagamento de cachês das apresentações. Essas dificuldades
faziam inclusive com que o grupo não possuísse um local fixo para os ensaios que
acompanhei em 2014, porém, através de parcerias, colaboração e acolhimento do Centro
de Cultura Afro e Religiosa Ilé Nifé Omí Omo Posú Bétá29
e Coletivo AfroCaeté30
,
cedendo local para ensaios e a associação Patacuri – Cultura, formação e comunicação
27
Correspondente masculino da função de ekede, normalmente dentro de um terreiro de Candomblé
desempenha funções relacionadas ao toque para o Orixá (como percussionista), corte dos bichos para
oferendas e outras atividades masculinas dentro das casas.
28
É dela a função de zelar, acompanhar, dançar, cuidar das roupas e apetrechos do orixá da casa, além
dos demais orixás, dos filhos e até mesmo dos visitantes. É uma espécie de "camareira" que atua sempre
ao lado do orixá e que também cuida dos objectos pessoais do babalorixá ou iyalorixá. Ao contrário das
Iakekerês, Ialorixás e Babalorixás, as Ekedes não entram em transe.
29
Espaço religioso e de atividades culturais sob direção da Ialorixá Miriam – Mãe Miriam, no bairro da
Ponta da Terra (Maceió/AL).
30
“Coletivo AfroCaeté é um grupo de amigos de diversas idades e profissões, amantes da cultura
alagoana que tem como objetivo principal a valorização, reprodução e difusão das riquezas musicais de
nosso estado. Articular em conjuntos com os demais setores artísticos e sociais ações e estratégias que
exaltem o sentimento de pertencimento de nossos conterrâneos, voltando o olhar para nossas referências.”
– trecho retirado do site: http://coletivoafrocaete.blogspot.com.br
33
Afroameríndia31
mediando a produção do grupo, foi possível montar e finalizar os
espetáculos.
Apesar das dificuldades financeiras, ainda assim, as coordenadoras mantêm
atividades de atendimento à comunidade, promovendo periodicamente oficinas dentro
do próprio grupo e/ou para quem tiver interesse em ingressar no Afoxé. Embora as
oficinas não tenham um caráter técnico-profissionalizante – dadas as condições de
manutenção do próprio grupo – tanto Mãe Nany quanto Mãe Bel se dividem na tarefa
de ensinar atividades básicas dentro de segmentos profissionais afins ao próprio Afoxé e
que possam gerar renda aos seus componentes. Para Mãe Bel
Grupo é assim, família é assim, a gente tem que ajudar um ao outro. A
gente tem a preocupação de ensinar as pessoas a fazer as coisas, agora
a gente tá montando figurinos, a gente ensina as meninas a costurar, já
demos oficinas de colares pra cara uma fazer os seus adereções, já
demos oficina de maquiagem, de cabelos32
E Mãe Nany complementa,
A gente ensina, chega junto quando a pessoa precisa, não é só o
Omorewá Cultural, é o Omorewá social. Tudo que a gente tem do
grupo é de doação, então serve para o grupo usar, pra consertar o
próprio figurino, pra os meninos pegarem os instrumentos e dar
oficina. A gente ensina tudo porque amanhã ou depois serve pra
pessoa como trabalho mesmo33
No final de 2015, pela passagem do Dia da Consciência Negra, o Omorewá foi
um dos grupos e personalidades homenageados pela Câmera Municipal de Maceió pelos
trabalhos desenvolvidos em prol da igualdade racial, sendo então uma forma de
31
“Nosso principal objetivo é promover às culturas de matriz afro-ameríndio e universais e a diversidade
cultural brasileira em atividades sócio-pedagógico-culturais a população em geral, especialmente às
crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos, portadores de necessidades especiais, LGBT e em situação
de risco social oportunizando lhes o acesso a educação e aprendizagem das artes cênicas, musica,
audiovisual, plásticas, hip hop, culturas e modelos de educação universais, motivando o vínculo social,
fortalecendo as raízes em processos de identidade cultural dinâmica, no meio ambiente e nos valores da
cidadania em processos de combate à pobreza e minimização das desigualdades sócio-étcnico-
educacionais/culturais.” – trecho retirado do site: http://patacuri.blogspot.com.br
32
Entrevista cedida por CAETANO, Isabel. Entrevista I [Jul. 2014]. Entrevistador: Daniela Beny Polito
Moraes. Maceió, 2014. 1 arquivo .mp3 (85 min.).
33
Entrevista cedida por MORENO, Nany. Entrevista I [Jul. 2014]. Entrevistador: Daniela Beny Polito
Moraes. Maceió, 2014. 1 arquivo .mp3 (85 min.).
34
reconhecimento das atividades formativas e assistenciais do grupo dentro e fora dos
palcos, recebendo a Comanda Dandara.
Sobre a ideia de família sempre tão recorrente nas falas das minhas
interlocutoras e que já é um traço da organização hierárquica do Candomblé e da
Umbanda, trago aqui uma observação minha, feita em 2014
Mesmo que nem todos os participantes sejam candomblecistas, a
configuração da divisão das tarefas dentro do grupo em muito se
assemelha aos terreiros de Candomblé mais tradicionais, pois,
enquanto se encontra no processo de aprendizagem o Iyaô34
se dedica
a outras atividades dentro da casa a qual faz parte, desde as obrigações
religiosas até a manutenção do espaço físico (BENY, 2014a, p. 57)
Reporto-me a esta citação por lembrar de algumas atitudes dos recém-chegados
no Afoxé em relação aos mais velhos, como pedir a benção, ou não manusear
determinados objetos – principalmente os instrumentos de percussão – sem a
autorização ou pedido de algum componente mais velho, como se eles ainda não
estivessem aptos para desempenhar determinadas tarefas. Outro ponto que observei é
que em campo, enquanto ainda estava fazendo o levantamento de dados, minha
presença era vista com estranheza por algumas pessoas que ainda não me conheciam,
afinal estava lá com uma câmera fotográfica, tripé, caderno, gravador de áudio e outros
equipamentos, mas quando Mãe Nany me apresentava às pessoas, explicava que se
tratava de uma pesquisa para a Universidade e fazia questão de enfatizar que sou filha-
de-santo de Marco Antonio - Babalorixá responsável pela Aldeia dos Orixás e de
grande apreço e amizade com Mãe Nany – e que por isso mesmo era como se também
fosse sua filha. Essa consideração de Mãe Nany por Pai Marco fez com que, de uma
pessoa estranha eu fosse vista como alguém da família – o que fazia com que eu me
sentisse uma prima distante, por reconhecer as pessoas, mas não ter tanta intimidade
com elas.
Ao ser perguntada sobre as práticas religiosas por trás do Afoxé, Mãe Nany, me
respondeu que
34
Designação para os filhos de santo no candomblé já iniciados na feitura de santo, mas que ainda não
completaram o período de sete anos da iniciação.
35
Religião e arte tem ligação sim, porque a maioria do pessoal é do
Candomblé e aqueles que não são a gente procura não envolver com a
religião. A partir do momento que a gente começou a montar o grupo,
fui lá, consultei os búzios pra saber se ia dar tudo certo, a gente tem a
ligação com religião por isso, tudo que a gente faz consulta primeiro
os Orixás, mas outros procedimentos que outros afoxés fazem, a gente
não faz. A gente canta sim algumas músicas relacionadas ao
Candomblé, mesmo que as pessoas pensem que é uma música
qualquer, mas pra nós tem um significado diferente. Quando as
pessoas chegam até a gente, mas não são da religião, a gente explica
que Afoxé não é Candomblé, explica tudo pra ver se a pessoa se
adapta ou não35
Observo que o trabalho de empoderamento e autoafirmação da negritude
proposto pelo Omorewá vai para além das oficinas, mas está fundamentalmente
presente no produto artístico em si quando se propõem a homenagear a ancestralidade e
a memória do povo negro no roteiro de seus espetáculos e na composição das músicas
que fazem parte de seu repertório, os quais falarei brevemente a seguir.
Para além do termo Afoxé e os seus desdobramentos, é necessário considerar a
importância da prática da dança por si só como um mecanismo de resistência, segundo
Frigiéro (2003), citado por Zenicola (2011) “As chamadas Danças Afro Brasileiras que
apresentam performances de releituras corporais africanas, promovem o enraizamento social e
contribuem ‘para a manutenção de um ethos negros’. (p. 85)”, e a autora complementa que
É este corpus societal que estrutura e mantém o conceito fundamental
da dança chamada afro brasileira na cena, coreografada ou não. E, na
prática, apresenta no alinhamento corporal, a relação considerada ideal
entre as partes do corpo para estabelecer ações da estética da dança
negra. As motivações corpóreas dos movimentos e as diferentes
posições que este corpo passa assumir das formas mais diferenciadas
vão transmissão à tradição e transmutação destas culturas tradicionais.
É este grupo social que mantém as técnicas de estilo de dança e
devolve as formas peculiares de se performar a dança. A construção
do corpo emblemático-social tem, então, sua manutenção preservada
neste corpo e torna-se um processo transfomativo em re-definições em
constante movimento e diálogo, em constantes atualizações, o que
possibilita a compreensão das normas da organização cultural
(ZENICOLA, 2011, p. 86)
35
Entrevista cedida por MORENO, Nany. Entrevista I [Jul. 2014]. Entrevistador: Daniela Beny Polito
Moraes. Maceió, 2014. 1 arquivo .mp3 (85 min.).
36
Ao longo dos quatro espetáculos que pude acompanhar, percebo nas dançarinas
uma maior apropriação não apenas das coreografias que fazem parte do repertório do
grupo, mas uma apropriação do espaço cênico. Durante as entrevistas com Mãe Nany, a
Ialorixá fez uma observação no que diz respeito às características corporais das
dançarinas, dizendo que determinados gestos da coreografia eram uma espécie de
“marca registrada” da casa de santo onde elas foram feitas, apontando assim as
influências das mães-de-santo ou das ekedes que tenham iniciado as dançarinas nesta
função dentro da casa.
A seguir apresento um breve histórico dos quatro espetáculos que compõe o
repertório do Afoxé Oju Omim Omorewá, como também uma rápida explanação sobre
os processos de criação dentro do grupo.
1.1 – ESPETÁCULO “OJU OMIM”: O CANDOMBLÉ EM CENA
Abertura do espetáculo ”Oju Omim” realizado no palco do Teatro Deodoro (Maceió/AL), trazendo em cena bailarinas com
figurinos em homenagem às Iyabás Iansã e Oxum.
Fotografia 02 – registro de Iris Valões
37
Apesar dos afoxés terem como
característica o cortejo pelas ruas durante o
período do carnaval, o Omorewá – e outros
afoxés de Maceió – rompe com esses padrões
ao estruturar suas apresentações, elaborando
espetáculos também para palco e/ou lugares
fechados. Em 2012 o Omorewá se tornou o
primeiro afoxé a se apresentar no palco do
Teatro Deodoro, integrando a programação do
projeto Teatro Deodoro é o Maior Barato36
com o espetáculo “Oju Omim”. Nesta
ocasião, justamente pelo ineditismo e por ser
um acontecimento histórico o Omorewá trouxe para cena um espetáculo que prestava
homenagem à tradição do Candomblé, colocando no palco alguns elementos da
religiosidade, como por exemplo, a saudação aos Orixás na mesma ordem que acontece
num Xirê37
, mesclando cânticos iorubás com canções compostas em português,
contando e cantando as lendas das divindades ali representadas.
Como se pode observar na imagem abaixo, os/as dançarinos/as utilizavam
figurinos inspirados nas cores e paramentos dos Orixás, onde temos a dançarina Alane
Bárbara representando Iansã e o dançarino Lulinha representando Ogum.Seguindo
como mote o culto do Candomblé, tanto cenografia quanto figurinos acompanham a
estética que se vê nas casas de Axé, utilizando inclusive elementos simbólicos – cabaças
e potes de barro – que também são muito utilizados nas tarefas cotidianas de um
terreiro. Além dos elementos percussivos, musicais e coreográficos, este espetáculo
inicia a aproximação do Omorewá com o teatro, tendo em cena o ator convidado Alderir
36
Projeto desenvolvido pela DITEAL, onde os artistas e grupos têm liberação dos custos de pauta do
teatro e conta com 80% da bilheteria revertido para o espetáculo que se apresentou, os ingressos são
vendidos a preços populares, algumas edições ocorreram nas terças e outras nas quartas-feiras. Esse
projeto teve sua primeira edição no final da década de 1990 e contempla várias linguagens artísticas, além
de ter como objetivo a formação de plateia e a divulgação da cultura alagoana.
37
“(...) o Xirê é a designação geral usada para nominar a sequência de danças rituais dos candomblés, que
começa com Exu37
e é finalizada com Oxalá. Segue-se uma ordem pré-estabelecida, como se fosse um
roteiro teatral, reunindo orixás afins: das águas, da terra, da caça, da criação do mundo, numa ordem
funcional e que atende aos significados prescritos pelo modelo yorubá (LODY, SABINO, 2011, p. 103)”
Fotografia 03 – Registro de Iris Valões
38
de Souza representando a figura de Exu, que pelo
roteiro do espetáculo, estaria fazendo a ligação não
apenas entre os atos, mas também entre os próprios
Orixás.
Com esse espetáculo, a preocupação de Mãe
Nany é combater o preconceito e as interpretações
negativas sobre o Candomblé, justamente na ideia de
desistigmatizar que os cultos das religiões de
matrizes africanas seriam de adoração ao demônio e
outras tantas adjetivações negativas. Embora pensado
para um público mais abrangente, o espetáculo
contou com a presença maciça do povo-de-santo38
e
de simpatizantes.
Ainda na perspectiva de combater o fetichismo39
, Mãe Nany opta por, ao
compor as coreografias e escolher as dançarinas que farão os solos que representam as
Iyabás, que elas sejam de outro Orixá diferente
daquele que representam ou que sejam ekedes.
Essa escolha é tomada para que não haja o risco
do público achar que a dançarina estaria em
estado de transe, delimitando assim de forma
mais clara o lugar do corpo-sujeito que dança no
palco, mas que trás en/incorporado as
informações de sua corporeidade no ambiente
religioso.
Ao lado, a imagem da dançarina Iza
Olímpio, que foge à “regra” de não ser do Orixá
38
Termo utilizado pelos próprios praticantes para designar os filhos-de-santo do Candomblé e da
Umbanda.
39
“(...) o termo foi empregue pela primeira vez em 1760 por Charles de Brosses a fim de caracterizar ‘a
primeira religião da humanidade’. Sabe-se também que esse fetichismo consiste numa elaboração do
termo ‘fetiche’, cunhado nos séculos XVI e XVII por navegantes e comerciantes portugueses e
holandeses na costa ocidental de África. Termo destinado a designar os objectos materiais que os
‘africanos’ elaboravam e aos quais estranhamente atribuíam supostas propriedades místicas ou religiosas,
passando então a adorá-los (GOLDMAN, 2009, p. 111)”
Fotografia 04 - registro de Iris Valões
Lulinha representando Xangô
Fotografia 05 – Registro de Iris Valões
39
ou de ser ekede, pois não é praticante nem do Candomblé nem da Umbanda, mas
geralmente está representando Oxum.
Levando em consideração que neste espetáculo cada um dos Orixás será
homenageado de algum modo, a reverência à Iansã vem, além das músicas cantadas em
iorubá, em composições próprias, como no caso da canção “Lá no Infinito”, composta
por Mãe Nany. Parte deste espetáculo encontra-se disponível em rede social Youtube
(<:https://www.youtube.com/watch?v=XsNai2QDX34>), podendo ser acessado pelo
público em geral.
LÁ NO INFINITO
Lá no infinito
Onde tudo é mais bonito
Onde sopram os ventos de Oyá
Onde a cachoeira canta
Onde os deuses se encantam,
Me fascina e me faz dançar.
Onde tem tanta beleza
Tem ancestralidade e riqueza
E negras mulheres a dançar
Ritmo de Candomblé, ritmado Afoxé
Essa é a cultura que traz meu axé.
Deixa passar meu povo
Deixa dizer de novo
Que sou um negro lutador
Resistência na História
Somos guerreiros quilombolas
Tradição da cultura Nagô.
40
1.2 – ESPETÁCULO “AGÔ – IYABÁS PEDEM PASSAGEM”: O PODER DA
MULHER NEGRA
Comemorando os dez anos de fundação e com o patrocínio concedido pelo 2º
Prêmio de Incentivo Cultural para Comunidades de Terreiros, promovido pela
Universidade Estadual de Alagoas –UNEAL em convênio com o MinC – Ministério da
Cultura, o Omorewá, com esse espetáculo “Agô – Iyabás pedem passagem” vem
prestar homenagem às divindades femininas do Candomblé: Nanã40
, Iemanjá41
, Obá42
,
Ewá43
, Iansã e Oxum, como se pode ver na imagem acima. Além das representações das
Iyabás pelas dançarinas em cena, se apresentando caracterizadas nas cores de cada uma
das deusas e com seus paramentos, as mesmas foram trazidas em painéis como cenário
e o feminino esteve presente inclusive nos figurinos dos homens, que trajavam saias e
alguns usavam turbantes.
40
“Nanã é a guardiã do saber ancestral e participa com outros orixás do panteão da Terra (...) é dona da
lama que existe no fundo dos lagos e com a qual foi modelado o ser humano. É considerada o orixá mais
velho do panteão na América (PRANDI, 2001, p. 21)”
41
“Iemanjá é a senhora das grandes águas, mãe dos deuses, dos homens e dos peixes, aquela que rege o
equilíbrio emocional e a loucura (...) É uma das mães primordiais e está presente em muitos mitos que
falam da criação do mundo (PRANDI, 2001, p. 22)”
42
“Obá dirige a correnteza dos rios e a vida doméstica das mulheres, no fluxo do cotidiano (PRANDI,
2001, p. 22)”
43
“Euá, orixá feminino das fontes, preside o solo sagrado onde repousam os mortos (PRANDI, 2001, p.
21)”
Fotografia 06 - Registro de Iris Valões
Abertura do espetáculo “Agô – Iyabás pedem passagem”, dançarinas representado
as Iyabás Iemanjá, Nanã e Oxum.
41
Assim como em “Oju Omim”, há elementos teatrais na estrutura do roteiro do
espetáculo, tendo a atriz convidada Rose Silva como a grande anfitriã dessa festa do
feminino, ora com textos escritos por Mãe Nany ora com poemas que orbitam sobre a
temática e odes à beleza da mulher negra, já que nesta ocasião o Afoxé promoveu o 1º
Concurso de Beleza Negra, elaborado aos moldes do concurso Deusa do Ébano,
promovido pelo bloco Ilê Aiê. Sobre o espetáculo Mãe Nany compartilha
Falar das Iyabás pra mim foi fácil demais, além de que eu queria fazer
uma homenagem não só a elas, mas as mulheres, que estão sempre na
batalha, sempre na luta do dia-a-dia. Por isso também o concurso de
beleza negra. Por que não colocar a mulher negra no palco sem ser
num desfile de moda ou de biquini? Foi tudo muito emocionante, um
show muito poderoso, com as Iyabás abençoando, textos lindos feitos
pela Rose Silva (atriz convidada para o espetáculo)44
Com esse concurso o Afoxé abriu espaço inclusive para agregar outras
dançarinas ao Omorewá. O perfil das inscritas se apresentou bastante abrangente, tendo
como concorrentes jovens entre 15 e 35 anos. As participantes eram escolhidas pela
votação do público presente no dia do espetáculo, onde os requisitos de beleza,
44
Entrevista cedida por MORENO, Nany. Entrevista I [Jul. 2014]. Entrevistador: Daniela Beny Polito
Moraes. Maceió, 2014. 1 arquivo .mp3 (85 min.)
Fotografia 07 – Registro de Íris Valões Fotografia 08 – Registro de Íris Valões
Na fotografia 07 temos a dançarina Iza Olímpio representando Oxum e na fotografia 08, a dançaria Cris Monteiro
representando Nanã.
42
simpatia, presença e desenvoltura das coreografias foram levados em consideração. O
perfil das participantes se apresentou bastante variado, concorrendo jovens vindas de
terreiros de Candomblé e Umbanda, grupos de dança parafolclóricos, escolas de balé,
grupos de teatro e alunas dos cursos de Teatro e
de Dança da UFAL, o que, ao meu ver,
comprova que de 2012 para 2013 o público dos
espetáculos do Omorewá conseguiu se expandir
para além do povo-de-santo, já que muitas das
concorrentes levaram ao teatro sua própria
torcida.
Como já era de se esperar, o Afoxé
sofreu algumas críticas inclusive pelo fato da
participante vencedora ter sido uma jovem de 15
anos, porém, o grupo, independente das opiniões
contrárias compreende que o concurso faz parte
da afirmação e empoderamento da identidade da
mulher negra, se apropriando do próprio corpo,
da vestimenta, da maquiagem e dos penteados –
elementos esses que foram ensinados para as
participantes em oficinas prévias à apresentação no teatro.
Sobre o repertório musical do espetáculo, gostaria de acrescentar aqui que
As composições de Mãe Nany selecionadas para esse espetáculo,
buscam enaltecer as características das iyabás, normalmente vinculada
à causa negra, buscando elementos históricos da composição do povo
brasileiro e de nossa miscigenação e a trajetória destes expatriados que
foram trazidos ao Brasil como escravos. Dentre elas uma composição
me chamou atenção em especial por citar elementos que abordam
fatos vinculados ao Quilombo dos Palmares (BENY, 2014a, p. 51)
O espetáculo encontra-se disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Bl8c3d_hjHo, na íntegra e podendo ser acessado pelo
público geral. E a seguir trago uma das canções mais emocionantes cantadas durante
este espetáculo, também composta por Mãe Nany.
Fotografia 09 - Registro de Iris Valões
Yara Sirilo – Vencedora do Concurso Beleza Negra
43
YEMANJÁ MÃE DO QUILOMBO
Meu povo furtado da África tem sangue negro
Levaram sua vida e seus sonhos qual peso de ouro
Negros Omorewá.
Pobres irmãos no açoite
Fortes mulheres aos montes
Lutando contra a escravidão
Menino negro na corte
Quilombo luta à noite
Buscando sua libertação.
A busca da mãe Yemanjá é por seus negros
Quilombo criam seus filhos fugindo pro morro
Morro dos Palmares.
Outro irmão no açoite
Morre Zumbi numa noite
Vejo chorando Yemanjá
Mas nascem guerreiros mais fortes
Quilombos venceram a morte,
Nossa vitória Omorewá, nossa vitória Omorewá.
44
1.3 – ESPETÁCULO “CHÃO BATIDO – TERRA DE NEGROS E MESTIÇOS”:
TODOS OS POVOS BRASILEIROS
Depois de passar pelo Candomblé e pelas deusas iorubás, o Omorewá, em 2014,
tráz para cena com o espetáculo “Chão Batido – terra de negros e mestiços” as
influências negras e indígenas que fundaram as religiões brasileiras como a Umbanda, a
Jurema45
, o Xangô46
e outras tantas manifestações religiosas afro-ameríndias, pensando
nas referências que transitam entre essas culturas e os pontos de contato entre elas. A
aproximação com o teatro se intensifica, a diferença é que neste espetáculo, ao invés de
convidarem atores, o Afoxé opta por escolher entre as dançarinas aquela que seria a
portadora das palavras do espetáculo. Por ter acompanhado o processo de composição
dos três espetáculos, considero esta tomada de decisão o amadurecimento artístico do
grupo e o empoderamento das linguagens artísticas envolvidas no espetáculo como um
todo, mostrando o quanto este agrupamento de artistas que se considerava como um
45
Variante recifense do culto da Umbanda, apresentando entidades como caboclos, preto-velhos, mestres,
vaqueiros, exus e pombagiras. O culto da Jurema concretiza o transe através do consumo do chá da erva
Jurema e trás para suas práticas influências religiosas indígenas, podendo ser chamada também de Toré.
46
Termo utilizado em Alagoas e Pernambuco para designar as casas de santo ou terreiros, sendo uma
variante do Candomblé, em sua maioria pertence à Nação Nagô e por isso mesmo conta com uma forte
presença dos elementos da cultura iorubá.
Fotografia 10 - Registro de Erick Silva
Abertura do espetáculo “Chão batido – terra de negros e mestiços”, onde se pode observar na
cenografia imagens cultuadas na Umbanda e demais elementos comuns às religiões afro-ameríndias.
45
grupo percussivo foi agregando elementos – como a dança, os textos em português e o
teatro – para suas novas produções. Creio que essas inovações na própria estrutura do
Afoxé tiveram reconhecimento principalmente pela homenagem que receberam ao
serem contemplados pelo SATED/AL como melhor espetáculo de dança afro de 2014
na categoria Profissionais do Ano.
Temos então em cena, a dançarina – e agora atriz – Cristiane Monteiro, portando
um candeeiro a frente das demais dançarinas como se abrisse caminho no meio da
escuridão do porão de um navio negreiro47
. Embora o processo de preparação de
Cristiane não tenha passado por etapas de trabalho que normalmente buscamos em
processos de composição em geral – levando-se em conta a pouca experiência com
elementos teatrais do próprio grupo – é perceptível em sua atuação a apropriação do
texto e como isso também diz respeito à sua ancestralidade, o corpo que se expressa
numa linguagem não-verbal se sente convicto ao comunicar verbalmente aquilo que de
algum modo faz parte de sua história.
Sobre o espetáculo, Mãe Nany comenta que
A gente vai falar sobre um Brasil mestiço, essa mistura de povo, a
gente apesar de ser muito misturado se olha de um jeito muito
desigual, muito preconceituoso um para outro, inclusive de um negro
para o outro. Tem essa história de que um negro não olha no olho de
outro negro porque tem vergonha de se ver, de perceber a própria
imagem, e é esse preconceito que a gente quer combater. O show vai
ser a chegada do navio negreiro, com as mulheres, com figurinos mais
rústicos, sem luxo, porque os negros escravizados não trouxeram luxo.
Agora teremos uma das meninas do grupo interpretando um trecho do
texto ‘Navio Negreiro’ de Castro Alves. Para esse espetáculo
pesquisamos também a Santeria Cubana, danças de tribos africanas,
toque do Ilê com jongo e pra finalizar um grande samba de roda48
Nessa fala é possível compreender um pouco como se dá o processo de criação e
investigação para a montagem dos espetáculos do Omorewá. Este espetáculo em
particular, é dividido em duas partes, onde a primeira trás elementos do Candomblé e a
segunda apresenta práticas religiosas mais relacionadas aos cultos indígenas e a própria
47
Na verdade, se trata da música “Yá Yá Messamba”, de Roberto Mende e Capinan, a versão mais
conhecida é cantada por Maria Bethânia, e está disponível no link:
https://www.youtube.com/watch?v=j3MLNFPGEpw .
48
Entrevista cedida por MORENO, Nany. Entrevista I [Jul. 2014]. Entrevistador: Daniela Beny Polito
Moraes. Maceió, 2014. 1 arquivo .mp3 (85 min.)
46
Umbanda, com a presença de representações de Caboclos49
, Boiadeiros50
e Pretos-
Velhos51
.
Trago aqui mais uma representação de Iansã em cena, com a dançarina Alane
Bárbara, que mesmo sendo filha de Iansã pode representa-la em cena por desempenhar a
função de ekede.
Abaixo, a música composta por Mãe Nany presta homenagem à Iansã, onde
inclusive na letra da música já apresenta um pouco do arquétipo desta divindade.
Disponível em: http://youtu.be/D6W28GhEnXQ, como vídeo não listado.
SENHORA DOS TEMPORAIS
Ela é dona dos raios
Senhora dos furacões
Guerreira independente
E não teme a nada não
49
Espíritos ancestrais de indígenas brasileiros ou de africanos que habitavam florestas da África Central.
50
Como o próprio nome já diz, são espíritos ancestrais que habitaram os sertões brasileiros aboiando
gado, muitos deles se apresentam como nordestinos ou mineiros.
51
São espíritos ancestrais de negros escravizados, alguns se apresentam como Pai, Mãe, Avó, Avô,
deixando claro a relação de respeito com a genealogia e interações intergeracionais.
Fotografia 11 - Registro de Erick Silva
47
Fotografia 12 – Registro de Cristiano
Marinho (Acervo do grupo)
Bailarino Antonio Henrique durante seu
solo
Senhora que traz mistérios
A dona do barracão
Ela traz sua espada em punho
E não teme a nada não
Amada do rei guerreiro
E filha do rei da paz
Senhora que varre a terra
Ao som dos seus ventos e temporais.
É Oyá Obá Xiré, Obá Xaré Loja.52
1.4 – ESPETÁCULO “AQUARELA DE CORES”: O
CORPO QUE DANÇA NO CORPO DE DANÇA
Em Novembro de 2016, o Afoxé Oju Omim
Omorewá levou ao palco do Centro Cultural Arte
Pajuçara, em Maceió o espetáculo “Aquarela de Cores”,
sendo ele o quarto espetáculo do grupo pensado para
apresentações em caixas cênicas.
Este espetáculo trás para cena as principais
composições do grupo já apresentada em oportunidades
anteriores, porém, pode-se considerar que a inovação desta
montagem é a inserção de mais dois dançarinos ao corpo
de dança, onde um deles tem formação em balé clássico.
52
Trecho de uma cantiga Yorubá de Iansã: Élóya O Élóya O Óbé Xire / Óbá Xare Ló Ija Élóya O / Élóya
Óbé Xire/ Óbá Xare Ló Ija Élóya O. Tradução: É Óya ela é Óya / Brinca com o facão do Rei mais velho,/
Óya usa-o na briga / É Óya que brinca com o facão/ Do Rei mais velho usando-o na guerra. – aqui
também há a referência à Oxalá, que quando jovem assumia o nome de Oxaguiã, que era um grande
guerreiro.
48
Como foi observado em relação aos espetáculos anteriores, no “Oju Omim”
tivemos a presença de Lulinha representando as divindades masculinas em cena, o
mesmo acabou não retornando aos espetáculos “Agô Iyabás pedem passagem” nem em
“Chão Batido: Terra de Negros e Mestiços”, em “Aquarela de Cores” passamos a contar
com mais duas presenças masculinas em cena: Carlos Douglas e Antonio Henrique,
bailarino de formação clássica e que neste espetáculo participou com Mãe Nany como
coreógrafo, tendo como proposta a aproximação dos estilos de dança. Vale aqui
salientar que a aproximação de Antonio com o Omorewá se deu durante as aulas da
Dança de Iansã ministradas por Nany para mim e um grupo de artistas convidados como
parte desta investigação.
Desta vez nas coreografias, além das representações de Iansã e Oxum, com a
presença de mais dois dançarinos, o espetáculo contou com a representação dos Orixás
Ogum e Oxóssi, apresentados dançando com seus respectivos pares românticos, ou seja,
as duas iyabás já aqui citadas.
Nesta oportunidade pude observar outros elementos além da dança das iyabás
presentes em cena, onde destaco como momento mais emocionante da apresentação um
trecho onde Yara Sirilo e Carlos Douglas contracenam dançando respectivamente Iansã
e Ogum, onde é possível observar similaridade nos movimentos de luta dos dois Orixás
ali representados, nesse aspecto, os braços de ambos se movem sugerindo as ações de
ataque e defesa – um braço na ação de CORTAR portando uma espada e o outro braço
na ação de PROTEGER como se estivesse segurando um escudo.
Fotografia 13 – Registro de Cristiano Marinho (Acervo do grupo)
Carlos Douglas e Yara Sirilo representando respectivamente Ogum e Iansã
49
Fotografia 14 – Registro de Carlucho (Acervo do
grupo)
Yara Sirilo e Carlos Douglas em cena de dança combate entre Iansã e
Ogum
A principal diferença
quanto à codificação corporal
de cada um deles se concentra
nos membros inferiores, pois os
quadris e os pés de Yara se
movem de acordo com a
polirritmia sugerida na Dança
de Iansã, dando pequenos saltos
impulsionando o corpo para
cima, enquanto os pés de Carlos
estão espalmados no chão, pisando com todo solado, fazendo com que, mesmo dando
pequenos saltos o tronco seja projetado para frente.
Mesmo não me debruçando nesta dissertação pontualmente sobre a Dança de
Ogum, considero importante trazer apontamentos sobre essas diferenças porque parte
dos elementos da dança desse Orixá foram apresentados por Mãe Nany em suas aulas e
retomados por mim nos laboratórios individuais.
Trago aqui a composição “Oyá Onira” de autoria de Luana Costa, uma das
primeiras vocalistas do Afoxé, dada à Mãe Nany como um presente e em homenagem
ao Orixá da Ialorixá.
OYÁ ONIRA
Essa Oyá não é de Balé53
Mas a negra cor é puro axé
Linda como ela não há,
A mãe, mãe que amou amar.
53
Segundo a tradição iorubá, os Orixás podem apresentar qualidades diferentes, essas qualidades dizem
respeito às suas atividades no plano espiritual e às possíveis combinações de características com outros
Orixás, Iansã possui pelo menos nove qualidades, dentre elas Iansã Balé/Igbalé, esta qualidade específica
de Iansã está associada diretamente ao culto aos mortos (egunegun), sendo ela a responsável pelo trânsito
dos espíritos desencarnados do Orum (mundo espiritual) para o Aiyê (mundo físico).
50
Tinha que ser filha de Oyá
Tinha que ser filha yê yê
Aquele feitiço no bailar
Vem das águas claras
Vem dos ventos
Onira54
Onira.
Na quarta-feira tem luz no seu congá
Tem beleza negra recebendo axé
Ela tem encanto que nos encanta
É axé de Oxum, é axé de Oyá.
1.5 – PROCESSOS DE CRIAÇÃO NO AFOXÉ
Como já citado, no início de 2014 acompanhei uma série de ensaios do Afoxé
Oju Omim Omorewá com o intuito de observar a codificação corporal da Dança de
Iansã nas coreografias do grupo. Neste período o Afoxé estava em processo de
montagem e finalização do espetáculo “Chão Batido – terra de negros e mestiços”. Por
tratar da miscigenação brasileira no campo da religiosidade, Mãe Nany, como
coordenadora do grupo e coreógrafa desenvolveu um trabalho de pesquisa para
composição das coreografias com influências multi-étnicas, pesquisando Jongo,
Santeria Cubana, danças tribais africanas e danças indígenas, além da busca por um
repertório musical diversificado mesclando músicas cantadas em iorubá, pontos de
Umbanda e até mesmo composições da MPB e de blocos afrobaianos e pernambucanos.
De todas as observações feitas em campo, a que mais chamou minha atenção, e a
qual focarei, aqui foi o ensaio do solo de Iansã executado pela dançarina Cristiane
54
Como já dito anteriormente, cada Orixá tem qualidades diferentes, Iansã Onira/Oiá Onira apresenta
características aproximadas à Oxum, como associações à água doce e à vaidade, segundo algumas lendas,
Iansã Onira era uma rainha muito sábia porém tinha como principal defeito sentir muito prazer ao matar
seus inimigos, o que gerava medo na população de Ira, por causa dos transtornos causados no Aiyê, Oxalá
decidiu que Onira seria mandada para morar nos rios com Oxum, Oxum então ensinaria Onira a ser mais
delicada, por outro lado Onira ensinaria Oxum a guerrear, dando origem assim à outra qualidade de
Oxum, a Oxum Opará. Há que acredite que tanto Iansã Onira quanto Oxum Opará são qualidades de
Orixás que metade do ano é Iansã e na outra metade é Oxum.
51
Monteiro, que apesar de iniciada no Candomblé não é filha de Iansã, mas foi escolhida
por Mãe Nany para realização do solo por causa das suas características de movimento,
como força, vigor e velocidade.
Ao ser indagada como se dava o processo de criação das coreografias solo, Mãe
Nany esclareceu que como parte das dançarinas são de Candomblé ou de Umbanda, já
conhecem os movimentos base da dança do Orixá, então no momento do ensaio, de
acordo com o toque da música elas têm a liberdade de inserir outros movimentos que
façam parte do seu repertório corporal, Mãe Nany observa e depois faz seus
apontamentos sobre o que pode ser mantido na coreografia, normalmente não tira
nenhum elemento criado pelas dançarinas porque geralmente a criação proposta
obedece o padrão de movimento daquele Orixá, como podemos observar na sequência
das imagens a seguir.55
55
A sequência em movimento está disponível na plataforma Youtube como vídeo não listado no link:
https://youtu.be/D6W28GhEnXQ
Fotografia 15 - Registro de Daniela Beny Fotografia 16 – Registo de Daniela Beny Fotografia 17 – Registro de Daniela Beny
52
Nesta sequência de dez imagens, pelo processo de criação
apontado por Mãe Nany, da figura 15 a 21, a dançarina
Cristiane Monteiro executa movimentos que de fato fazem
parte a coreografia da Dança de Iansã, sugerindo que esteja
portando suas ferramentas de trabalho – como o alfanje, o
chicote ou eruexim, os quais darei maiores detalhes adiante.
Já as imagens de 22 a 24, a dançarina agrega elementos do
seu repertório corporal ao solo que está desenvolvendo, pois
dentro do léxico da corporeidade de Iansã não caberia este
giro com os dedos postos diante dos olhos como se estivesse
mirando em algo. Embora não faça parte, pelas
características da forma de execução e por contar com
movimentos expansivos e de giro, essa composição foi
mantida como parte do solo.
Fotografia 18 - Registro de Daniela Beny Fotografia 19 – Registro de Daniela Beny Fotografia 20 - Registro de Daniela Beny
Fotografia 21 - Registro de Daniela Beny Fotografia 22- Registro de Daniela Beny Fotografia 23 - Registro de Daniela Beny
Fotografia 24 - Registro de Daniela Beny
53
Para refletir sobre esse processo de construção coreográfica que mescla o
conhecimento pré-existente das dançarinas com os elementos indicados pela coreógrafa
do espetáculo, trago um apontamento de Zenicola (2011) que, embora tenha
desenvolvido sua pesquisa no contexto de grupos afro do Rio de Janeiro, pode se aplicar
à realidade do Omorewá, ao dizer que
Na dança afro, um performer deverá não só ser competente, mas também
“possuir um estilo próprio”. Essa marca delimita sua singularidade e acentua
o valor do grupo e do indivíduo integrante desse grupo. O estilo pessoal é
ressaltado, por Frigiéro, como uma característica da performance afro
americana e presença marcante em países das Américas (...) Ao assumir os
conhecimentos ensinados, o bailarino vai progressivamente estabelecendo
uma série de adaptações desta nova técnica ao seu corpo, às suas habilidades
e preferências e, gradativamente, estabelece uma seleção do que será seu
estilo, sua interpretação pessoal (ZENICOLA, 2011, p. 87)
Apesar de Cristiane Monteiro ter sido a dançarina escolhida para o solo que
representa Iansã no espetáculo “Chão Batido – terra de negros e mestiços”, no dia da
apresentação, por um consenso do grupo, outra dançarina se apresentou em seu lugar,
tratava-se de Alane Bárbara, pois erade uma ocasião especial, já que uma das
componentes mais antigas do grupo que estava de volta, e, por isso mesmo, apesar de
não estar presente nos ensaios que acompanhei, já fazia parte do grupo e em espetáculos
anteriores sempre representava Iansã. O que pude observar foi que, as duas executavam
a coreografia com os elementos da Dança de Iansã, mas que cada uma delas apresentava
características muito próprias, imprimindo assim numa codificação corporal
relativamente própria de sua identidade e se um estilo.
Em entrevista, Mãe Nany relata que um das principais diferenças entre as
dançarinas trata-se das características de energia e de movimento das duas dançarinas,
enquanto Cris dança com a cabeça um pouco mais abaixada, Alane dança de cabeça
erguida, como Mãe Nany também é a coreógrafa ela descreve que Cris seria a
personificação do Búfalo, enquanto seria a personificação do Vento. Possivelmente o
que influencia na característica de movimento de Cris seja o fato dela trazer em si de
modo muito presente o arquétipo de seu Orixá, no caso Xangô, se tornando assim a
corporificação do trovão.
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Daniela benypolitomoraes dissert

  • 1. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS DANIELA BENY POLITO MORAES OS ELEMENTOS DE IANSÃ COMO POSSIBILIDADE PARA CRIAÇÃO CÊNICA. NATAL/RN 2017
  • 2. DANIELA BENY POLITO MORAES OS ELEMENTOS DE IANSÃ COMO POSSIBILIDADE PARA CRIAÇÃO CÊNICA Dissertação apresentada ao Programa de Pós - graduação em Artes Cênicas – Stricto Sensu - Mestrado Acadêmico em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas. ORIENTADORA: PROFA. DRA. TEODORA DE ARAÚJO ALVES NATAL/RN 2017
  • 3. Catalogação da publicação na fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte Sistema de Bibliotecas Biblioteca Setorial do Departamento de Artes Moraes, Daniela Beny Polito. Os elementos de Iansã como possibilidade para criação cênica / Daniela Beny Polito Moraes. - 2017. 197 f.: il. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas, Natal, 2017. Orientador: Profª. Drª. Teodora de Araújo Alves. 1. Teatro - Aspectos antropológicos - Dissertação. 2. Candomblé - Dissertação. 3. Performance (Arte) - Dissertação. 4. Criação (Literária, artística, etc) - Dissertação. 5. Artes cênicas - Dissertação. I. Alves, Teodora de Araújo. II. Título. RN/UF/BS-DEART CDU 792(043.3)
  • 4. FOLHA DE APROVAÇÃO DANIELA BENY POLITO MORAES OS ELEMENTOS DE IANSÃ COMO POSSIBILIDADE PARA CRIAÇÃO CÊNICA Dissertação apresentada ao Programa de Pós - graduação em Artes Cênicas – Stricto Sensu - Mestrado Acadêmico em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas. Aprovada em, ___ de ___________________ de 2017. BANCA EXAMINADORA _____________________________________ Profa. Dra. Teodora de Araújo Alves Presidente da banca - orientadora ______________________________________ Profa. Dra. Melissa dos Santos Lopes Universidade Federal do Rio Grande do Norte / membro interno ________________________________ Prof. Dr. José Luiz Ligiéro Coelho Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – membro externo
  • 5. DEDICATÓRIA Dedico esta pesquisa aos que vieram antes de mim e aos que virão depois de mim, à minha família de sangue e à minha família de santo.
  • 6. AGRADECIMENTOS Para além dos agradecimentos à família, aos amigos, aos afetos, aos professores, aos colegas e aos voluntários, agradeço imensamente aos que de fato são mestres, agradeço às Ialorixás Nany Moreno (Yalorixá Nany D’Oya) e Isabel Caetano (Yalorixá Bel de Oxum) por me permitir acompanhar os ensaios e as apresentações do Afoxé Oju Omim Omorewá, por me acolherem como parte da família. Agradeço à Ialorixá Miriam Souza Melo (Mãe Mirian), do Ilé Ifé Omi Omu Possu Betá, por ter aberto as portas de sua casa para que pudesse registrar o Afoxé Oju Omim Omorewá durante seu processo de criação, ao Babalorixá Célio Rodrigues (Pai Célio) por ter me recebido durante a saída-de-orixá de 25 anos de santo de Mãe Nany em sua casa durante a cerimônia Odum-Okanlelogum, Casa de Iemanjá – Templo dos Orixás. Agradeço ao Babalorixá Marco Antonio de Campos, da casa a qual faço parte, a Aldeia dos Orixás, por todas as orientações, esclarecimentos e aconselhamentos durante estes dois anos de escrita. Agradeço para além desta pesquisa, agradeço pela resistência, pela preservação da memória negra no Estado de Alagoas. Agradeço também ao Coletivo Cores, nas pessoas de Lina Bel Sena, Antonia Delgado, Naara Martins, Fernanda Estévão, Hikel Ribeiro e Franco Fonseca pela confiança num trabalho que ainda estava em desenvolvimento, esta dissertação só foi possível com colaboração de vocês.
  • 7. RESUMO A presente pesquisa de mestrado “Os elementos de Iansã como possibilidade para criação cênica”, sob orientação da professora doutora Teodora de Araújo Alves visa compreender o trânsito da Dança de Iansã e dos seus elementos míticos entre o Candomblé, o Afoxé, o Laboratório e o Teatro, a fim de elaborar uma proposição metodológica para ampliação do repertório corporal de intérpretes-criadores/as. Por se tratar de um estudo que envolve subjetividade dos/as indivíduos/as relacionados/as a esta pesquisa, o mesmo se debruça sobre as bases da Fenomenologia proposta por Merleau-Ponty ao tratar da corporeidade como a forma de ser-estar no mundo. Para refletir sobre os campos da Performance que compõe esta investigação, busco dialogar com a Antropologia da Performance com base nos estudos de Richard Schechner e Victor Turner, a Antropologia Teatral proposta por Eugenio Barba e os estudos em Performances afro-ameríndias desenvolvido por Zeca Ligiéro. Esta investigação se desenvolveu junto ao Afoxé Oju Omim Omorewá (Maceió/AL), observando a saída-de- orixá da Ialorixá Nany Moreno – também coordenadora do Afoxé – e com os experimentos prático-criativos junto ao Coletivo Cores (Natal/RN). Palavras-chave: Candomblé, Afoxé, Antropologia da Performance, Antropologia Teatral, Laboratório.
  • 8. ABSTRACT The present research of master "Iansan elements like possibility to scenic creation", under the guidance of Professor Teodora de Araújo Alves aims to understand the traffic Iansan dance and its mythical elements between Candomblé, Afoxé, the lab and the theatre, in order to elaborate a methodological proposal for expansion of the body of repertoire interpreters-creators. Because it is a study that involves subjectivity of individuals, the related to this research, the same looks at the basis of Phenomenology by Merleau-Ponty to treat the body as a way of being in the world. To reflect on the fields of Performance that makes up this investigation, seek dialogue with the anthropology of Performance based on studies of Richard Schechner and Victor Turner, the Theatrical Anthropology proposed by Eugenio Barba and the studies in afro- amerindians Performances developed by Zeca Ligiéro. This investigation developed by the Afoxé Oju Omim Omorewá (Maceió/AL), noting the saída-de-orixá of Ialorixá Nany Moreno – Coordinator of Afoxé – and practical-creative experiments by the Coletivo Cores (Natal/RN). Keywords: Candomblé, Afoxé, Anthropology of Performance, Theatre Anthropology, Lab.
  • 9. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO – A Cabeça de Iansã nos Caminhos de Ogum................................... 11 INTRODUÇÃO – Os ventos que me sopram: Contextualização do(s) objeto(s)/sujeito(s) de pesquisa ........................................................................................................................... 14 CAPÍTULO 01 – Somos filhas de Oxum protegidas por Oyá – Afoxé Oju Omim Omorewá: arte e resistência negra...................................................................................... 31 1.1 – Espetáculo “Oju Omim”: O Candomblé em cena ..................................................... 36 1.2 – Espetáculo “Agô – Iyabás pedem passagem”: O poder da mulher negra.................. 40 1.3 – Espetáculo “Chão Batido – terra de negros e mestiços”: Todos os povos brasileiros............................................................................................................................ 44 1.4 – Espetáculo “Aquarela de cores”: O corpo que dança no corpo de dança.................... 47 1.5 – Processos de criação do Afoxé................................................................................... 50 CAPÍTULO 02 – O movimento de Afefé – Os sentidos do corpo no Candomblé e no Teatro.................................................................................................................................. 54 2.1 – A deusa do fogo e do raio: Características e arquétipos de Iansã/Oyá...................... 68 2.2 – Iansã em Terra: A deusa do vento tocando o chão.................................................... 75 2.3 – Categorização da(s) dança(s) de Iansã....................................................................... 77 CAPÍTULO 03 – O farfalhar da Borboleta – Processos de en/incorporação.................... 89 3.1 – Aprender a fazer fazendo: As aulas com Mãe Nany................................................. 98
  • 10. 3.2 – Meu corpo-aparelho: Memórias pós-transe............................................................... 112 3.3 – Laboratório: O espaço das memórias en/incorporadas.............................................. 117 3.4 – Corpo a corpo: Estruturações para Conduções.......................................................... 124 CAPÍTULO 04 – Dos chifres aos cascos do Búfalo – Relatos dos experimentos............. 134 4.1 – Diários de “treinamentos” conduzidos: As Danças (individuais) de Iansã............... 135 4.1.1 – Experimentos isolados.............................................................................................. 139 4.1.2 – Experimentos continuados........................................................................................ 149 4.1.3 – Experimentos para processo de criação.................................................................... 160 CONCLUSÃO – Os ares da transformação: Observações da pesquisa e projeções para futuro..................................................................................................................................... 180 REFERÊNCIAS................................................................................................................... 186 ANEXOS.............................................................................................................................. 190
  • 11. 11 APRESENTAÇÃO A CABEÇA DE IANSÃ1 NOS CAMINHOS DE OGUM2 Antes de iniciar a introdução dessa dissertação, sinto necessidade de falar o motivo que me fez querer pesquisar o “treinamento” para atores e atrizes com foco na corporeidade afro-brasileira. Entre 2002 e 2008 meu interesse de pesquisa no teatro estava focado na dramaturgia, não só por gostar de escrever, mas pelo fascínio e proximidade com o professor da disciplina de Literatura Dramática do curso de Teatro Licenciatura da Universidade Federal de Alagoas. Professor doutor Otávio Cabral, além de ser uma referência como docente e como ator, foi orientador do meu trabalho de conclusão de curso – junto à professora doutora Sheila Maluf – e orientador no projeto de iniciação científica, que visava mapear os dramaturgos maceioenses do século XX. A paixão era pelas palavras, mas elas precisavam ter força e fé cênica para serem ditas, e eu, como atriz, vinha me achando cada vez mais descrente do meu ofício, pois até então os processos de montagem dos quais vinha participando o texto era decorado, as cenas levantadas e os ensaios aconteciam. Parecia haver só a voz que preenche o espaço e uma massa que ocupava um lugar na cena, não ousava chamar essa massa de corpo. Entre 2009 e 2013 resolvi que ia buscar caminhos para essa massa enfim se corporificar, fiz quase todas as oficinas de treinamentos e técnicas corporais que apareceram na minha frente: Commédia dell’arte, Cavalo Marinho, contato- 1 Também conhecida como Oyá, deusa Yorubá, cultuada inicialmente às margens do rio Niger. Está relacionada com o elemento fogo assim como também é colocada como a própria personificação dos ventos e das tempestades no Candomblé e com o despacho dos eguns (espíritos dos mortos) na Umbanda, encaminhando os mortos para o outro mundo. Quando associada ao Orixá Xangô, está relacionada com os relâmpagos, trovões e tempestades. No sincretismo religioso, é representada por Santa Bárbara. “Yansã”, em Nagô, também significa “Mãe do céu rosado” ou “Mãe do entardecer”. Dirige os ventos, as tempestades e a sensualidade feminina. 2 “Ogum governa o ferro, a metalurgia, a guerra. É o dono dos caminhos, da tecnologia e das oportunidades pessoais (PRANDI, 2001, p. 21)” Imagem 01 – As armas de Iansã Imagem 02 – As armas de 0gum Gravura de Ubi Maya Gravura de Ubi Maya
  • 12. 12 improvisação, aula de capoeira, eutonia, Viewpoints e cheguei ao treinamento de Koshi3 desenvolvido por Tadashi Suzuki e que naquele momento estava sendo aplicado pela atriz e diretora argentina Ana Wolf4 , era 2011, e eu me propus a morar durante os três meses do inverno no hemisfério sul em Buenos Aires para vivenciar intensamente aquele treinamento Deu-se então a confusão, pois ao mesmo tempo em que me sentia contemplada pelo treinamento, ficava muito inquieta pelo fato de ser uma técnica japonesa aplicada em uma atriz brasileira por uma argentina que havia passado anos num grupo de teatro da Dinamarca. Óbvio que isso não invalida o treinamento, nem esse nem nenhum outro, mas minha reflexão era: o que fazia parte da minha cultura ou das minhas raízes – mesmo que de modo ancestral - que poderia também vir a ser um “treinamento”? Em 2012, ainda buscando alguma prática corporal onde me sentisse contemplada como na técnica de Koshi, chego às aulas de dança afro de Leide Serafim, dançarina de Maceió que participava comigo de um projeto de interiorização das artes em Alagoas, estando lá, resolvi experimentar a aula. Uma aula extremamente vigorosa, que me mobilizava como ser-corpo e que havia ali uma dramaturgia que ia para além das palavras, embora ela não falasse o significado de cada gesto, eu podia sentir nos meus músculos e articulações que cada movimento contava uma parte de uma história e, sem saber, já estava experimentando a Dança de Iansã. Fiz outras aulas, com outros professores, entendendo o quanto a técnica do Koshi poderia ser útil para me ajudar no condicionamento físico, mas agora me vinha outra indagação: Como essa técnica que me proporciona condicionamento físico poderia ser útil num processo de criação? Quem poderia responder essa pergunta seria outro artista do Odin Teatret – sim, a Antropologia Teatral5 já se mostrava como um caminho 3 Em japonês Koshi significa quadris, esse treinamento tem como base o bloqueio dos quadris para que se crie dois níveis diferentes de tensões no corpo, onde a parte inferior terá que se adaptar a esse bloqueio dos quadris buscando novas formas de deslocamento e a parte superior terá como função pressionar os quadris, fazendo com que o equilíbrio do/a artista da cena esteja fora do seu cotidiano. 4 Ana Wolf foi atriz do Odin Teatrat nos anos 2000, onde foi dirigida diversas vezes pelos diretores do grupo, Eugenio Barba – diretor italiano – e Julia Varley – atriz e diretora inglesa. 5 Segundo Barba (2009) Antropologia teatral é “(...) o estudo do comportamento cênico pré- expressivo que se encontra na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis das tradições pessoais e coletivas. (...) A Antropologia Teatral é um estudo sobre o ator e para o ator. É uma ciência pragmática que se torna útil, quando, por meio dela, o estudioso chega a ‘apalpar’ o processo criativo e quando, durante o processo criativo, incrementa a liberdade do ator (BARBA, 2009, p. 25 e 30)”.
  • 13. 13 possível de investigação – o dançarino Augusto Omolu, que realizava seus treinamentos pautado na dramaturgia da Dança dos Orixás, era justamente o que procurava, era justamente ele com quem eu estava prestes a entrar em contato, era ele que eu iria procurar para ser meu mestre, mas, por força do destino, esse encontro não foi possível, em 2013, sua vida foi ceifada, partia um mestre, que como a maioria dos mestres de origem africana, transmitia seu conhecimento oralmente, não deixando nada registrado a próprio punho sobre suas técnicas de trabalho. Ainda em 2012, comecei a me aproximar do trabalho do Afoxé Oju Omim Omorewá6 e em especial de Mãe Nany, acompanhando alguns ensaios, uma vez que fazia parte da equipe de produção do espetáculo que estava sendo ensaiado, tudo aquilo me parecia muito interessante e ia para além da beleza estética dos figurinos, cenário e coreografias. Começava a enxergar ali o que vinha procurando noutros lugares. Reconhecia na minha casa o que buscava longe de minhas origens, reconhecia no palco minha ancestralidade que eu nem mesmo tinha consciência da sua existência. Ao reconhecer esses elementos na minha ancestralidade e, consequentemente, no meu corpo, as investigações de uma corporeidade negra, ou melhor, afrodescendente, começou a ser uma urgência dentro da Invisível Companhia de Teatro7 – grupo do qual faço parte em Maceió – já que em 2010, durante o 17º Festival Nordestino de Teatro (FNT) em Guaramiranga/CE, professor Zeca Ligiéro – um dos debatedores do FNT – provocou o grupo a se pensar como um grupo de teatro negro, já que eu, o diretor do espetáculo, o cenotécnico e o iluminador nos identificamos como negros, mesmo que o espetáculo “Voo ao Solo” não tivesse temática nem discussões voltadas sobre a cultura afro-brasileira. Então, se o grupo é composto por negros Umbandistas – como é o caso – então porque não buscar como preparação para cena elementos que girem em torno dessa corporeidade ancestral? 6 Tradução: Olhos d’água dos Filhos da Beleza/Filhos do Belo/Filhos do Ouro. 7 Grupo sediado em Maceió/AL, fundado em 2009, composta pelos artistas Daniela Beny (Atriz, dramaturga, diretora e produtora), Marco Antonio de Campos (Encenador, diretor, cenógrafo, figurinista e produtor), Arnaldo Ferju (Ator, contador de histórias, cenógrafo, aderecista e iluminador) e Erick Silva (cenógrafo, cenotécnico, fotógrafo e vídeomaker), além de artistas convidados para compor elenco e equipe técnica. Montagens: “Voo ao Solo” (2009), “A cor da chuva” (2011 – contemplado com o Prêmio de Incentivo à Produção e Circulação de Projetos em Artes Cênicas em Alagoas, Secretaria de Estado da Cultura de Alagoas e Fundação Universitária de Extensão e Pesquisa) e “Rosas, carroças e dramas” (2012 – contemplado pelo Programa de Cultura Banco do Nordeste/BNDES – Edição 2012, categoria Artes Integradas ou Não-Específicas com o projeto “Rosas, carroças e dramas”, Banco do Nordeste Brasileiro e BNDES).
  • 14. 14 INTRODUÇÃO OS VENTOS QUE ME SOPRAM: CONTEXTUALIZAÇÃO DO(S) SUJEITO(S)/OBJETO(S) DE PESQUISA Ventou, mas que ventania Iansã é nossa mãe, Iansã é nossa guia.8 8 Ponto cantado de Iansã do Terreiro Aldeia dos Orixás (Maceió/AL)
  • 15. 15 INTRODUÇÃO OS VENTOS QUE ME SOPRAM: CONTEXTUALIZAÇÃO DO(S) SUJEITO(S)/OBJETO(S) DE PESQUISA A presente pesquisa “Os elementos de Iansã como possibilidade para criação cênica” é um estudo de abordagem Fenomenológica que visa compreender os elementos de Iansã – no caso a mitologia, os paramentos e a codificação corporal da dança – no contexto ritual e seus deslocamentos para o campo artístico. Para tanto, parti das seguintes etapas: observação de saída-de-orixá, observação de ensaios e apresentações do Afoxé Oju Omim Omorewá e aulas da Dança de Iansã ministradas pela Ialorixá9 Nany Moreno (Mãe Nany). Como já citado acima, como elementos estou considerando a base coreográfica da Dança de Iansã, aspectos arquetípicos desta deusa, além da mitologia iorubá difundida pelos itan10 onde a mesma se faz presente. Além disso, também fazem parte dessa pesquisa minhas práticas individuais em laboratório, onde experimentei os elementos coletados seja por observação ou vivenciados em aula, como “treinamento11 ” pré-expressivo12 , se desdobrando assim nas possibilidades de criação tanto para mim quanto para os/as voluntários/as que participaram das práticas coletivas. 9 Literalmente significa “Mãe que cuida do Orixá”, o termo serve para designar a função das Sacerdotisas do Candomblé. 10 Termo em iorubá para o conjunto de todos os mitos, canções e histórias componentes da cultura iorubá, podendo vir grafado itã. 11 Neste primeiro momento estou considerando o seguinte conceito de treinamento “Ao mesmo tempo em que o treinamento se propõe como uma preparação física ligada ao ofício, também é uma espécie de crescimento pessoal para o ator que vai para além do nível profissional. É um meio para controlar o próprio corpo e orientá-lo com segurança, e é também a conquista de uma inteligência física (SAVARESE, 2012, p. 293)”. Porém outros conceitos e contextos acerca do termo treinamento serão abordados no decorrer da dissertação, para tanto, ao se tratar da minha investigação, na falta de termo mais adequado, optei por grafar treinamento entre aspas. 12 “Barba nos fala que o nível pré-expressivo relaciona-se com o processo, não com o resultado, onde o ator deveria ter como objetivo o trabalho sobre si mesmo no sentido da conscientização de seu corpo para a dilatação de sua energia e para aprender a desenvolver sua presença. Se o treinamento é a fase de experimentação e investigação, privada do espectador, podemos entender que nesse período estamos essencialmente trabalhando o nível da pré-expressividade (...) é o nível em que não se deve pensar no sentido” (SAUL, 2006, p. 19)
  • 16. 16 Convém salientar que esta dissertação surgiu como continuidade da minha monografia de finalização do curso de Especialização em Antropologia realizado na Universidade Federal de Alagoas/UFAL no ano de 2014, sob orientação da professora Ph.D. Silvia Aguiar Carneiro Martins e intitulada “A codificação corporal da Dança de Iansã nas coreografias do Afoxé Oju Omim Omorewá”. Antes de me aprofundar nos aspectos teatrais e antropológicos que serão abordados nessa dissertação, gostaria de trazer aqui alguns conceitos importantes para compreender onde inicia essa investigação e qual lugar que esses sujeitos ocupam tanto dentro da religiosidade quanto na sociedade. Sobre o conceito de afoxé trago as pesquisas do antropólogo Raul Lody (1976) como suporte, onde o mesmo aponta que Afoxé é um cortejo de rua que tradicionalmente sai no carnaval (...) É importante observar nessa manifestação os aspectos místico, mágico e por conseguinte religioso. Apesar dos afoxés apresentarem-se aos olhos dos menos entendidos como um simples bloco carnavalesco, fundamentam-se os praticantes em preceitos religiosos ligados aos cultos dos orixás, motivo primeiro da existência e realização dos cortejos. Por isso, afoxé também é conhecido e chamado por Candomblé de Rua (...) Apesar de todas as modificações e desfigurações, esses grupos procuram manter valores e características de ‘africanidade’ como: cânticos em dialetos africanos (...) utilização de cores e símbolos que possuem significados específicos dentro dos preceitos religiosos dos terreiros de candomblé (LODY, 1976, p. 3) Sobre o entendimento do que vem a ser Orixá, me reporto a Pierre Verger, quando o mesmo define como “(...) uma força pura, asè13 imaterial que só se torna perceptível aos seres humanos incorporando-se em um deles (VERGER, 2002, p. 19)”. Interpreto essa citação de Verger junto com o que vivencio como iniciada na 13 “Axé (...) significa atualmente, na linguagem popular, ‘boa energia’, ‘alto astral’. Verificando sua etnologia iorubá, vemos que o sentido atual não difere muito do termo original, tendo sido apenas atenuado o seu grau de religiosidade. De acordo com a tradição religiosa ioruba o Axé é compreendido como energia vital, verdadeira presença de Deus nas forças e formas da natureza, assim como no interior dos seres humanos. Axé também é, na filosofia do Candomblé, o poder de fazer coisas acontecerem, comando espiritual, o poder de invocar, oração, agradecimento, luz própria de Deus tornada acessível aos homens e mulheres (LIGIÉRO, 1993, p. 35-36)”
  • 17. 17 Umbanda14 , sendo assim, considero aqui que o Orixá é a personificação das forças da natureza. Gostaria de enfatizar que inicialmente essa pesquisa se propunha a buscar especificamente os elementos da Dança de Iansã considerando apenas a codificação corporal como “treinamento” para o performer num ponto de vista mais amplo, contemplando atrizes/atores, bailarinos/as, artistas performáticos e brincantes, porém, optei, junto a minha orientadora, professora doutora Teodora de Araújo Alves, a delimitação na prática de atores e atrizes por se tratar de um universo que estou mais familiarizada e que faz parte da minha atividade artística e profissional, uma vez que atuo como atriz e diretora de teatro. Embora tenha optado por este recorte, creio que, conduzindo esta proposição de “treinamento” de maneiras mais específicas obedecendo às necessidades de cada processo criativo, ele poderá ser aplicado nas outras áreas das artes cênicas sem grandes dificuldades e obtendo resultados satisfatórios. Para o andamento desta pesquisa, levando em consideração todas as particularidades envolvidas na investigação, estou tratando de um Fenômeno Situado, o qual darei maiores detalhes a frente, onde minhas pesquisas e vivências foram desenvolvidas inicialmente junto ao Afoxé Oju Omim Omorewá – o qual me aprofundarei mais no capítulo seguinte – com entrevistas e com o acompanhamento de ensaios e apresentações do grupo. Além disso, outros horizontes foram se expandindo durante a escrita dessa dissertação como o convite para fazer a preparação de elenco do espetáculo “O som que se faz debaixo d’água”15 , do Coletivo Cores16 , vinculado à Extensão do Curso de Teatro 14 Para definir Umbanda optei por uma citação de Dandara e Ligiéro (1998) extraída do livro “Umbanda: Paz, Liberdade e Cura” onde os autores trazem que “A Umbanda nos fascina por ser uma religião ecumênica, absolutamente brasileira e, ao mesmo tempo, universalista, ligando as mais remotas tradições, como a kongo e a iorubá, à caridade cristã, à sabedoria das nações indígenas brasileiras, ao espiritismo kardecista. Todas as misturas possíveis buscando o entendimento e a evolução da raça humana em sua jornada sobre a Terra (...) consideramos ser esta religião que, alimentando-se de tradições muito antigas, como das mais recentes correntes místicas, preparou-se para entrar no terceiro milênio com uma valiosa bagagem multicultural. Ela se distingue como uma religião altamente capaz de acompanhar as rápidas transformações de uma sociedade cada vez mais planetária, e guarda em seus santuários diferentes referências de nossa existência humana. A Umbanda é uma religião em processo, autoconstruíndo-se a partir da sua própria prática religiosa dentro da dinâmica de uma tradição oral multicultural (DANDARA, LIGIÉRO, 1998, p. 17)” 15 Segundo a encenadora Lina Bel Sena, “O som que se faz debaixo d’água é uma encenação teatral, com três atores e uma musicista, tecida por meio de escritos dramatúrgicos na perspectiva do corpo (SOMA) de gênero feminino que ao longo de sua experiência de vida percebe ‘chamados’ para um mundo desconhecido. Mundo este de acordo com o pensamento dos criadores, que abraça duas vertentes
  • 18. 18 da UFRN, sendo assim, tive a oportunidade de conduzir o processo prático-criativo, fundamentado nos elementos de Iansã, como metodologia para construção de repertório corporal dos/as intérpretes-criadores/as. Antes de apontar os procedimentos metodológicos propriamente ditos, é importante salientar que parte do desenvolvimento epistemológico desta investigação toma com base – a princípio intuitivamente e depois com fundamentação teórica – os Estudos da Performance defendido pelos antropólogos Diana Taylor e Richard Schechner, aonde ambos propõe que “as performances funcionam como atos de transferências vitais, transmitindo o conhecimento, a memória e o sentido de identidade social” (TAYLOR, p. 27, 2013), sendo esta forma de transmissão considerada como conhecimento incorporado – o qual me aprofundarei com o passar dos capítulos. Por se tratar de uma pesquisa de origem etnográfica17 que ao entrar em campo se utilizou de técnicas específicas, trago as referências tomadas como marco teórico já na monografia desenvolvida em 2014. Sendo assim, considero que esta pesquisa possui aspectos de uma etnografia visual, a qual antropóloga Sarah Pink (2004), enfatiza suas características: (...) imagens, objetos visuais, descrições devem ser incorporadas quando for apropriada, oportuno ou esclarecedor fazê-lo. As imagens podem não ser necessariamente o principal método ou tópico da pesquisa, mas através de suas relações com outros materiais sensoriais e elementos discursivos da pesquisa, imagens e conhecimento visual se tornarão foco de interesse (tradução minha)18 narrativas: da metalinguagem e da espiritualidade: no primeiro sentido o corpo poético, em cena, falando dele mesmo. Dos treinos, das sonoridades, do seu ritual e cotidiano para a vida e para a cena. No segundo sentido o corpo mediúnico, dos cânticos, sagrado, dos quintais, dos terreiros e universo se preparando para sua missão. Trabalha-se com a matriz da mitologia dos Orixás”. “O Som que se faz debaixo d’água” estreou dia 18 de Novembro de 2016, na A.Bo.Ca Espaços de Teatro, em Natal/RN. 16 O Coletivo Cores, criado em 2009 por alunos dos cursos de Artes Cênicas e Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como projeto/atividade de Extensão sob a coordenação do professor Doutor Marcos Alberto Andruchak. 17 Tomo como definição de etnografia para esta pesquisa o conceito de Flick (2007), ao dizer que “A etnografia parte da postura teórica da descrição de realidades sociais e de sua elaboração, tendo por objetivo o desenvolvimento de teorias. As questões de pesquisa concentram-se, principalmente, em descrições detalhadas de estudo de caso. A entrada no campo tem importância central para a revelação empírica e teórica do campo de estudo (FLICK, 2007, p. 161)” 18 “ (…) visual images, objects, descriptions should be incorporated when it is appropriate, opportune or enlightening to do so. Images may not necessarily be the mean research method or topic, but through their relation to other sensory, material and discursive elements of research images and visual knowledge will become of interest (PINK, 2004, p. 5)”
  • 19. 19 O recurso áudio-visual adotado em algumas etapas do processo, se tornaram minha memória visual e auditiva, pois, sempre recorro a ele para observar mais detalhadamente a prática corporal do Afoxé, os aspectos pontuais da Dança de Iansã durante o transe, e para perceber a corporeidade da Dança de Iansã além do que sinto em meus músculos, ossos, pele e subjetividade, recorrer às filmagens e fotografias foi fundamental para organizar e categorizar a codificação da Dança de Iansã e seus elementos. Segundo a antropóloga Miriam Leite (1998, p. 84) “A fotografia pode ser uma reprodução de um recorte de alguma coisa existente, mas frequentemente é mais uma reprodução do que o retrato e o fotógrafo gostariam que fosse”. Partindo dessa citação divido com o leitor uma angústia que me acompanha desde 2014 que é como retratar em imagens paradas movimentos que até mesmo no vídeo são difíceis de observar por conta da velocidade de execução? Pois bem, para tentar resolver esse “problema” utilizo a técnica de digital stills, ou seja, através da filmagem, seleciono as imagens digitais congeladas e as utilizo como fotografia, esta foi a forma viável encontrada, uma vez que não sou fotógrafa e conto com equipamentos de funcionalidade limitada. Mesmo que a qualidade da imagem não seja das melhores, essa técnica me permite apresentar em formato impresso as fotos, inclusive sendo possível acompanhar os movimentos quadro-a-quadro, como algumas das imagens que estão incluídas nesta dissertação. Além das fotos e dos vídeos, também recorri às entrevistas19 para obtenção de informações fundamentais para minha pesquisa. Essas entrevistas foram realizadas com as coordenadoras do Afoxé, algumas pessoas que participaram das aulas de Dança de Iansã em Julho de 2015 e com alguns/algumas voluntários/as que participaram das diferentes etapas do Laboratório. Para esse grupo específico, optei por entrevistas semi- estruturadas, tendo algumas perguntas como base, mas abrindo espaço para que os diálogos fluíssem da forma mais confortável para os entrevistados, o que possibilitou 19 “A entrevista pode ser definida como um processo de interação social entre duas pessoas na qual uma delas, o entrevistador, tem por objetivo a obtenção de informações por parte do outro, o entrevistado. As informações são obtidas através de um roteiro de entrevista constando de uma lista de pontos ou tópicos previamente estabelecidos de acordo com uma problemática central e que deve ser seguida. O processo de interação contém quatro componentes que devem ser explicitados, enfatizando-se suas vantagens, desvantagens e limitações. São eles: a) o entrevistador; b) o entrevistado; c) a situação da entrevista; d) o instrumento de captação de dados, ou roteiro de entrevista (HAGUETTE, 2010, p. 81)”
  • 20. 20 inclusive que outros assuntos e informações viessem à tona sem terem sido cogitados a princípio, como a trajetória religiosa de cada um e até mesmo a sua genealogia. Outro modo de obter os feedbacks das práticas foram as rodas de conversa ao final de cada Laboratório, onde os/as participantes além de apontarem suas impressões e sensações ainda sugeriram ações que vieram a fazer parte das Conduções futuras, sendo possível ter uma devolutiva não apenas do “treinamento”, mas poder construir de forma conjunta o roteiro do trabalho proposto. Considero importante apontar que durante as entrevistas e conversas informais no convívio com Mãe Nany e Mãe Bel – o que está registrado aqui nesta dissertação em relação ao campo do sagrado são informações que podem ser divulgadas amplamente, por outro lado, por conta dos segredos de cada casa/terreiro, alguns questionamentos que fiz às minhas interlocutoras não foram respondidos, outros foram, mas não tenho autorização de revela-los, o mesmo ocorrerá com alguns termos em iorubá que se não possuírem tradução em nota de rodapé é porque seu significado não foi ou não pode ser revelado. Para além das dúvidas referentes à Dança de Iansã ou ao próprio Afoxé, tanto Mãe Nany quanto Mãe Bel foram minhas interlocutoras inclusive para esclarecer algumas questões sobre o Candomblé. Quero enfatizar que, por questões culturais, o culto do Candomblé apresentará algumas diferenças no que diz respeito às suas práticas em cada região do Brasil ou até mesmo de um terreiro para outro, por isso mesmo, estou tomando como base o contexto sagrado onde o Afoxé se estrutura e sem grandes aprofundamentos no cerne religioso. Como forma de viabilizar meus estudos e experimentos, dividi esta investigação em três etapas, e as organizei da seguinte maneira: primeira – OBSERVAÇÃO, segunda – EN/INCORPORAÇÃO20 e terceira – CONDUÇÃO21 . 20 Opto por esta grafia do termo por encontrar em minhas pesquisas tanto a palavra ENCORPORAÇÃO quanto INCORPORAÇÃO, não havendo distinção de significado entre as duas, uma vez que os prefixos latinos EN e IN significam “Movimento para dentro, passagem de um estado ou forma”, sendo os dois significados aplicáveis a esta investigação. 21 A princípio o termo usado para esta etapa da pesquisa seria APLICAÇÃO, porém dada a afetividade que foi apresentada durante o processo de experimento dos exercícios com terceiros, optei pelo termo CONDUÇÃO, uma vez que meu trabalho ali se identificava mais com conduzir uma prática do que aplicar uma técnica.
  • 21. 21 Em relação à estrutura dessa pesquisa, a OBSERVAÇÃO corresponde às pesquisas de campo com o Afoxé, acompanhando os ensaios, revendo os vídeos, assim como a observação da saída-de-orixá de Mãe Nany, ocorrida em Fevereiro de 2015. Como EN/INCORPORAÇÃO, estou considerando as aulas da Dança de Iansã e meus experimentos individuais em sala de ensaio. Quero salientar aqui que escolho esse termo por compreender que não haveria outra forma de apreender os elementos que quero trabalhar como base de um “treinamento” para terceiros se não for corporificando essa experiência, pois, como aponta Merleau-Ponty (1999) é através da experiência corporificada que compreendemos e estamos no mundo. Aqui traço um paralelo com Richard Schechner (2003) com o conceito de comportamento restaurado Comportamento restaurado é simbólico e reflexivo. Seus significados têm que ser decodificados por aqueles que possuem conhecimento para tanto (...) Tornar-se consciente do conhecimento restaurado é reconhecer o processo pelo qual processos sociais, em todas as suas formas, são transformados em teatro, fora do sentido limitado da encenação de dramas sobre um palco (SCHECHNER, 2003, p. 35) Pois mesmo que eu não esteja dentro do ritual religioso dançando durante o transe, ainda assim, estarei recuperando no meu repertório corporal elementos da minha ancestralidade que surgem durante os experimentos (e creio que alguns desses elementos surgem inclusive, pela minha relação com o Orixá em questão, já que, como citei anteriormente, sou filha de Iansã). Ainda pensando na perspectiva da en/incorporação e a ideia central do comportamento restaurado, creio que um dos pontos chaves que me fará entrar em contato mais aproximado com os elementos que compõe a corporeidade de Iansã é a recuperação em sala de ensaio dos movimentos vivenciados no meu estado de transe – os quais relato ao longo dessa dissertação – buscando na memória os gestos tais como consigo acessar e na prática tentar recuperar algumas sensações experienciadas nesse estado alterado de consciência. Por fim, a CONDUÇÃO são os experimentos dos elementos de Iansã como possibilidade de “treinamento” do/a ator/atriz compartilhados com voluntários/as. Estas práticas foram realizadas entre 2015 e 2016 em diversas oportunidades e com participantes de diferentes perfis justamente com o intuito de saber como cada grupo e
  • 22. 22 cada indivíduo respondem aos estímulos propostos. Sobre esta fase da pesquisa falarei mais a frente ao compartilhar os relatos de cada prática coletiva. Opto por estes três termos por me basear nos apontamentos de Schechner (2011b) que trata das técnicas que preparam o performer para performatizar, incluindo: observação, prática, imitação, correção e repetição percebo que estas etapas estão presentes tanto nas práticas corporais do Candomblé e do Afoxé, quanto nos laboratórios individuais e/ou com a condução dos exercícios noutros sujeitos. Saliento que, apesar de ter dividido meu processo de investigação em três etapas, isso não significa que ocorreram em ordem cronológica, pois elas foram desenvolvidas de forma concomitante e muitas vezes simultâneas. Embora alguns locais e parte dos sujeitos da atual pesquisa sejam os mesmos, o aprofundamento do estudo apontou novas direções, mas, mesmo assim, continuo minha investigação pautada em alguns conceitos sobre os quais já havia me debruçado anteriormente. Com base nesta observação, trago aqui uma citação de minha monografia, que se tornou o primeiro passo para esta pesquisa de mestrado: Nesse estudo, a codificação corporal é considerada como elemento de comunicação da coreografia, através do qual aspectos do arquétipo do Orixá são observados e reconhecidos. Esta significação da codificação corporal é re-significada quando sua execução quanto dança sai do espaço sagrado dos terreiros e ocupa o espaço do palco/rua/salas de ensaio; cabendo à pesquisa problematizar e discutir a apropriação no campo secular de um elemento sagrado, uma vez que o corpo é de fundamental importância para o Candomblé e a Umbanda por ser o meio em que se dá o contato/comunicação entre o plano espiritual e o plano material (BENY, 2014a, p. 15) A codificação será retomada nesta pesquisa no sentido da categorização dos movimentos e a relação entre eles e os elementos litúrgicos da dança e seus elementos dramáticos, e, consequentemente, como transmissores de conhecimento de uma comunicação não-verbal, pois, mesmo sendo o Candomblé uma religião pautada na tradição oral, o que se observa é que na corporeidade da Dança de Orixá tanto o movimento da dança quanto o gestual estão intimamente ligados aos itan, pois, segundo a professora e pesquisadora da UFF e pesquisadora FAPERJ Dra. Denise Zenicola (2011) “Os signos corporais traduzem sentimentos e atos dos homens, são códigos
  • 23. 23 impressos de suas realizações intelectuais e espirituais, memórias de si e do seu grupo ancestral (2011, p. 89)”. Ao relocar o corpo codificado religioso para as artes, inclusive como um processo de potencializar o artista da cena para o melhor desenvolvimento do seu ofício, recorro aqui a um recorte de Eugenio Barba (2012, p. 230) ao definir que “A codificação corporal é uma consequência visível dos processos fisiológicos do ator, para dilatá-los e para produzir um equivalente das mecânicas e das forças que funcionam na vida. A codificação é formalização”. E justamente por pensar nessa formalização é que recorri como processo metodológico a categorização dos elementos da Dança de Iansã que foram investigados, tomando como base premissas trazidas por Rudolf Van Laban (1978) ao conceituar elementos que associam o movimento às ações corporais, espaço, tempo, peso e fluência, chegando assim à qualidade de esforço. Num primeiro momento, ao conceituar corpo e sua relação com o espaço, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty indica que O corpo é nosso meio geral de ser no mundo. Ora ele se limita aos gestos necessários à conservação da vida e, correlativamente, põe em torno de nós um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através deles um novo núcleo de significação: é o caso dos hábitos motores da dança. Ora, enfim a significação visada não pode ser alcançada pelos meios naturais do corpo; é preciso então que ele construa um instrumento, e ele projeta em torno de si um mundo cultural (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 203) Obviamente que temos contextos sócio-histórico-culturais muito diferentes entre a França do início do século XX após passar por duas grandes guerras e um grupo artístico situado na periferia da cidade de Maceió, no nordeste brasileiro em pleno século XXI, por esta especificidade, a corporeidade iorubá foi pensada e discutida sob a perspectiva apontada pela dançarina, professora e pesquisadora em dança Dra. Suzana Martins, ao propor que O termo corporalidade refere-se ao tratamento dado ao corpo como um conjunto de elementos simbólicos estruturados para um determinado fim. No Candomblé, a corporeidade é construída a partir da união espiritual decorrente da intervenção primordial da divindade. (...) Nesse contexto, a corporeidade é representada pelo corpo em movimento – o jeito de dançar – que ostenta vestimenta litúrgica,
  • 24. 24 atributos e adereços simbólicos embalados pela qualidade específica da música e do Orixá (MARTINS, 2008. p. 81) Para além de pensar o corpo do médium em transe como local onde ocorre um procedimento litúrgico, e, por conseguinte, sagrado, também considero este corpo dançante responsável pela corporificação de elementos que manifestam as forças da natureza – seja num aspecto mais etéreo como ar, relâmpago, fogo, no caso de Iansã ou elementos mais concretos como animais. Temos aqui dois usos do corpo dentro da religiosidade, mas quando se observa as ações dentro do ambiente sagrado com olhos de artista é possível notar que não é uma dança pela dança e sim um drama, na perspectiva do que aponta o filósofo Johan Huizinga (2008), pois O ritual é um dromenon, isto é, uma coisa que é feita, uma ação. A matéria desta ação é um drama, isto é, uma vez mais, um ato, uma representação num palco. Esta ação pode revestir a forma de um espetáculo ou de uma competição. O rito, ou “ato ritual”, representa um acontecimento cósmico, um evento dentro do processo natural. Contudo, a palavra “representação” não exprime o sentido exato da ação, pelo menos na conotação mais vaga que atualmente predomina; porque aqui “representação” é realmente identificação, a repetição mística ou a reapresentação do acontecimento. O ritual produz um efeito que, mais do que figurativamente mostrado, é realmente reproduzido na ação. Por tanto, a função do rito está longe de ser simplesmente imitativa, leva a uma verdadeira participação no próprio ato sagrado (HUIZINGA, 2008, p. 18) Mesmo havendo divergências em relação às especificidades de onde o corpo está sendo pensado, seja ele na Europa ou num terreiro de Candomblé, as convergências se dão no pensar o corpo como o lugar da experiência e sem dissociação dos aspectos culturais e sociais que circundam o indivíduo, tornando o sujeito. Sendo assim, venho me aproximando da abordagem fenomenológica – embora já tivesse observado apontamentos fenomenológicos da pesquisa desenvolvida durante a escrita da monografia que deu origem a esta dissertação, sob a perspectiva do antropólogo estadunidense Tomaz Csordas (2008), onde o mesmo propõe que A fenomenologia é uma ciência descritiva dos princípios existenciais, não de produtos culturais já constituídos. Se nossa percepção ‘termina nos objetos’, o objeto de uma antropologia fenomenológica da percepção é capturar aquele momento de transcendência no qual a percepção começa, e, em meio à arbitrariedade e à indeterminação, constitui e é constituída pela cultura (CSORDAS, 2008, p. 107).
  • 25. 25 Então, trazendo o foco para a percepção, como investigadora, o que me interessa aqui é como essa possibilidade de “treinamento” estimula aqueles que a experimentam, independente se há uma memória em relação à religiosidade afro-brasileira em particular. A potência está em como cada corpo/sujeito, dentro de sua individualidade, poderá responder às proposições. Como cada estímulo externo mobilizará o indivíduo, fazendo com que ele consiga acessar seus estímulos internos. Porém, ao observar como Merleau-Ponty (1999) pensa a Fenomenologia, é possível perceber a abrangência dessa abordagem metodológica e como ela está entrelaçada com o conceito que ele mesmo propõe de corporeidade: A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela, resumem-se em definir as essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas a fenomenologia também é uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem e o mundo de outra maneira senão a partir da sua “facticidade” (...) É a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal como ela é (...) Trata-se de descrever, não de explicar nem analisar (MERLEAU- PONTY, 1999, p. 2-3) Existem espaços sobre a criação de significados e entendimentos de corporeidades que são melhor abarcadas a partir do ponto de vista de Merleau-Ponty (1999) tanto por ser a base para a conceituação de corporeidade neste atual momento da pesquisa, como pela reflexão do que é a Fenomenologia, podendo assim situar melhor tanto os sujeitos quanto o objeto de estudo, porém, assim como o que foi desenvolvido em 2014, continuo dando ênfase à experiência do sujeito dentro de um determinado contexto, passando a considerar/observar a Dança de Iansã no Afoxé como um Fenômeno Situado, assim como os experimentos desse possível “treinamento” com os/as participantes em sala de ensaio, no caso, como Laboratório. Por fenômeno, estou tomando também como base o conceito de Magali Roseira Boemer (1994), partindo do pressuposto que estarei relatando tanto o que é experienciado pelos membros do Afoxé quanto por mim durante aulas, ensaios, laboratórios e compartilhamentos, assim como o feedback com aqueles/as que experimentaram a proposta de “treinamento” nas diferentes etapas dessa pesquisa, se
  • 26. 26 tornado uma reflexão forte sobre o andamento do meu trabalho como pesquisadora, uma vez que Para compreensão do fenômeno que foi posto diante dos olhos para a investigação, o pesquisador vai buscar as descrições da experiência pelos sujeitos que estão sendo os sujeitos da pesquisa. Dessas descrições o pesquisador buscará captar a essência. A descrição se dá, na experiência do sujeito que experiencia determinada situação. É dessa maneira, situando-se, que o fenômeno se ilumina e se desvela para o pesquisador (BOEMER, p. 88, 1994) Faz-se necessário evidenciar que a escolha da tradição iorubá se deu pelas características das interlocutoras e entrevistados participantes do Afoxé, uma vez que, em sua maioria são de terreiros de Candomblé das nações Jêjê, Ketu e Nagô, que fazem parte das subdivisões do grupo étnico iorubá, ou da Umbanda. Tendo este recorte como referencial para as observações em campo, trazemos aqui o Orixá Iansã sob a perspectiva iorubá, onde a mesma está associada aos elementos da natureza que se relacionam com o fogo, ventos, raios, relâmpagos e tempestades. Sua atribuição no plano espiritual é o despacho/trânsito dos eguns (espíritos desencarnados) para o mundo dos mortos. Normalmente esta Iyabá22 é considerada uma feiticeira muito poderosa e habilidosa, sendo um Orixá feminino com a capacidade de se zoomorfizar, transformando-se em búfalo e/ou borboleta. Ao tratar do arquétipo dos/as filhos/as de Iansã, me reporto a um breve apontamento de Pierre Verger (2002) ao explanar que O arquétipo de Oyá-Iansã é o das mulheres audaciosas, poderosas e autoritárias. Mulheres que podem ser fiéis e de lealdade absurda em certas circunstâncias, mas que, em outros momentos, quando contrariadas em seus projetos e empreendimentos, deixam-se levar a manifestações da mais extrema cólera (VERGER, 2002 - p. 170). Dadas estas características, ao longo do processo de pesquisa, tanto na observação quanto na prática nas aulas e laboratórios, esse comportamento esperado dos/as filhos/as de Iansã fica evidenciado pelo modo de dançar. Mas, para além das relações arquetípicas, mitológicas ou afetivas – já que sou filha de Iansã iniciada na Umbanda – a escolha por esta Iyabá para realizar minha investigação se deu pelas características dos movimentos que geralmente são vigorosos, expansivos e 22 Designação feminina de Orixá.
  • 27. 27 polirrítmicos, embora também possam trazer alguns elementos de sinuosidade, o que, ao meu ver colabora bastante no processo de “treinamento” energético para os atores e atrizes. Não posso ignorar também que, durante o processo de pesquisa, nos momentos em que estive presente nas atividades religiosas do terreiro de Umbanda de Ogum, Iansã e Jurema Aldeia dos Orixás, em Maceió ao longo de 2015 e do qual faço parte, a relação entre o plano espiritual e eu se modificou um pouco. Como sou médium girante – entro em transe e “recebo” as entidades – o contato parece estar sendo mais fluido e essas entidades, em especial Iansã aparentemente têm dançado mais, como se eles estivessem dispostos a ensinar agora que estou mais disposta a aprender, dando a impressão que a medida em que me aprofundo mais nos conhecimentos teóricos da religiosidade e deste corpo afro-brasileiro estejam também amadurecendo meus laços com a religião. No decorrer dos capítulos falarei mais da minha experiência no campo do sagrado e como relaciono meu lugar de médium com meu lugar de atriz-pesquisadora. Pensando em todas as etapas que compuseram o processo de investigação e nos elementos que me aproximaram dos sujeitos dessa pesquisa, cabe aqui salientar que essa dissertação busca refletir também sobre o processo criativo, as ressignificações de códigos do sagrado relocado para o campo artístico e como se dá esse deslocamento. Assim sendo, esquematizo a observação desses dados levantados e como eles se relacionam da seguinte maneira: Candomblé  Afoxé  Laboratório  Teatro, lembrando que nesse cruzamento de informações de cada etapa é possível perceber que tudo está relacionado ao processo de ensino aprendizagem através do corpo, ou seja, conhecimento incorporado, sendo a corporeidade a chave para transmissão do conhecimento dentro de cada uma dessas esferas. Vale salientar que a investigação sobre o Candomblé se deu na observação da saída-de-orixá de Mãe Nany, assim como nas leituras de material acadêmico ou não especializado na religião. Quanto ao Afoxé, a observação se deu no acompanhamento dos ensaios e apresentações. E o que venho considerando como Laboratório e Teatro são as experiências práticas, tanto pessoais quanto com a participação de voluntários/as. Por fim, busco responder três perguntas que estiveram e estão muito presentes para mim durante toda essa investigação: O que me move? O que me transforma? O que
  • 28. 28 farei com essa transformação? Sendo assim, como sou eu quem busca o entrelaçamento entre Candomblé, o Afoxé e o Teatro, a tentativa de resposta a essas três perguntas, se apresentam para mim e, consequentemente, ao leitor, nas seis partes desta dissertação. O que me move? A Introdução – Os ventos que me sopram: contextualização do(s) objeto(s)/sujeito(s) de pesquisa, justamente para compartilhar a chegada até essa investigação e apresentar alguns procedimentos para execução deste trabalho. O Capítulo 01 – Somos filhas de Oxum23 protegidas por Oyá: Afoxé Oju Omim Omorewá, Arte e Resistência Negra, onde trarei da História do Afoxé pesquisado, seus processos de criação e os principais espetáculos. O que me transforma? O Capítulo 02 – O movimento de Afefé24: Os sentidos do corpo no Candomblé e no teatro, visando refletir os aspectos da performance tanto no campo do sagrado quanto do artístico. O Capítulo 03 – O farfalhar da Borboleta: Processos de en/incorporação, onde trarei relatos e farei apontamentos de como se dá o trânsito Candomblé  Afoxé  Laboratório  Teatro. O que fazer com essa transformação? Quem me aponta é o Capítulo 04 – Dos chifres aos cascos do Búfalo: Relatos dos experimentos, trazendo a descrição dos Laboratórios conduzidos com voluntários/as e observações quanto às diferenças entre essas práticas. E a Conclusão – Os ares da transformação: Observações da pesquisa e projeções para futuro, onde busco refletir sobre as etapas da pesquisa e projeções para pesquisas futuras, assim como a compreensão do deslocamento dos elementos de Iansã do campo do sagrado para o ambiente artístico. 23 “Oxum preside o amor e a fertilidade, é a dona do ouro e da vaidade e senhora das águas doces (PRANDI, 2001, p. 22)” 24 O próprio vento, mensageiro de Oyá, simboliza as mudanças e comunicações, responsável pela limpeza e purificação do ambiente.
  • 29. 29 Por compreender os elementos de Iansã como os responsáveis pelo desenvolvimento dessa pesquisa, cada capítulo foi intitulado de acordo com o espectro de Oyá que se apresentou no momento da escrita, pois o Vento que nos rodeia me ajuda a compreender o corpo-sujeito no Candomblé e no teatro, a metamorfose da Borboleta reflete o trânsito entre os quatro ambientes onde se debruça minha pesquisa e a firmeza do Búfalo me aponta que já (me) reconheço um pouco no terreno onde estou pisando. Ao longo dessa dissertação também, trago algumas imagens de Iansã encontradas na internet que, por relacionar de diferentes modos a figura de Iansã com seus elementos, considero importante compartilhar. Devidamente apresentados/as aos aspectos gerais dessa dissertação, convido os/as leitores/as a conhecer um pouco o caminho que percorri até aqui.
  • 30. 30 CAPÍTULO 01 SOMOS FILHAS DE OXUM PROTEGIDAS POR OYÁ – AFOXÉ OJU OMIM OMOREWÁ: ARTE E RESISTÊNCIA NEGRA Fotografia 01 – registro de Iris Valões Cena final do espetáculo “Oju Omim”
  • 31. 31 CAPÍTULO 01 SOMOS FILHAS DE OXUM PROTEGIDAS POR OYÁ – AFOXÉ OJU OMIM OMOREWÁ: ARTE E RESISTÊNCIA NEGRA O Afoxé Oju Omim Omorewá está situado no bairro do Jacintinho, em Maceió/AL. Este bairro é um dos mais populosos da capital alagoana e possui altos índices de criminalidade, onde, a maior parte da população exposta à violência é de jovens negros de baixa renda. Na tentativa de diminuir o genocídio da população negra o Omorewá visa prestar atendimento e acolher a comunidade, sendo este o perfil de parte de seus componentes, jovens negros da periferia maceioense expostos à violência. Sob a coordenação das Ialorixás Nany Moreno e Isabel Caetano, o Afoxé vem desenvolvendo suas atividades desde 2003. Inicialmente se consideravam um grupo exclusivamente percussivo, porém, com o passar do tempo e da ampliação do atendimento à comunidade vinda de outros terreiros, o grupo passou a contar com uma presença feminina maciça, passando a ter um subgrupo de dança. Em 2012, com o espetáculo “Oju Omim25 ” passaram a agregar elementos de teatro em suas apresentações, se tornando assim o primeiro Afoxé a se apresentar no tradicional palco do Teatro Deodoro26 – também situado em Maceió e de administração do Estado de Alagoas. Hoje o Omorewá conta com mais três espetáculos para palco que fazem parte de seu repertório: “Agô Iyabás pedem passagem”, de 2013, espetáculo que comemora os dez anos de atividade do Afoxé e que faz reverências aos Orixás femininos do Candomblé e contemplado pelo 2º Prêmio de Incentivo Cultural para Comunidades de Terreiros, promovido pela Universidade Estadual de Alagoas –UNEAL em convênio com o MinC – Ministério da Cultura. “Chão Batido – terra de negros e mestiços”, de 2014 e eleito pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos e Diversões de Alagoas - SATED/AL como melhor espetáculo de dança afro de 2014, que aborda a 25 Pode ser traduzido como “Olho d’água”. 26 Fundado em 1898, é um dos mais tradicionais teatros de Alagoas, é administrado pelo Governo do Estado através da Diretoria dos Teatros do Estado de Alagoas/DITEAL. Maiores informações disponíveis no site: www.teatrodeodoro.al.gov.br
  • 32. 32 mestiçagem de negros, índios e europeus na constituição da religiosidade brasileira, este espetáculo em específico pude acompanhar os ensaios com mais assiduidade para a produção da etnografia já relatada anteriormente e que virei a retomar mais a frente. E “Aquarela de Cores”, de 2016, que revisa os três espetáculos anteriores e continua inovando ao aproximar o balé clássico das danças afro-brasileiras, propondo assim uma dança afro-contemporânea com elementos estéticos e técnicos de diversas influências. Embora o Omorewá não esteja vinculado oficialmente a nenhum terreiro, a maioria dos integrantes são iniciados no Candomblé ou na Umbanda, por esse motivo, parte dos percussionistas são ogãs27 e algumas das dançarinas são ekedes28 , o que ao meu ver, caracteriza que as práticas artísticas oriundas das religiões de matrizes africanas são sim um mecanismo de resistência e empoderamento do povo negro ao perceber que mesmo saindo do âmbito sagrado os atores sociais desempenham papeis semelhantes quando relocados no campo artístico. O Omorewá não é um grupo de artistas legalmente constituído e isso dificulta um pouco a participação em alguns editais e seleções e, consequentemente, o repasse de qualquer tipo de apoio financeiro, seja ele da iniciativa privada ou pública, o repasse não é constante, fazendo com que a manutenção do grupo seja feita com os recursos que entram em caixa através do pagamento de cachês das apresentações. Essas dificuldades faziam inclusive com que o grupo não possuísse um local fixo para os ensaios que acompanhei em 2014, porém, através de parcerias, colaboração e acolhimento do Centro de Cultura Afro e Religiosa Ilé Nifé Omí Omo Posú Bétá29 e Coletivo AfroCaeté30 , cedendo local para ensaios e a associação Patacuri – Cultura, formação e comunicação 27 Correspondente masculino da função de ekede, normalmente dentro de um terreiro de Candomblé desempenha funções relacionadas ao toque para o Orixá (como percussionista), corte dos bichos para oferendas e outras atividades masculinas dentro das casas. 28 É dela a função de zelar, acompanhar, dançar, cuidar das roupas e apetrechos do orixá da casa, além dos demais orixás, dos filhos e até mesmo dos visitantes. É uma espécie de "camareira" que atua sempre ao lado do orixá e que também cuida dos objectos pessoais do babalorixá ou iyalorixá. Ao contrário das Iakekerês, Ialorixás e Babalorixás, as Ekedes não entram em transe. 29 Espaço religioso e de atividades culturais sob direção da Ialorixá Miriam – Mãe Miriam, no bairro da Ponta da Terra (Maceió/AL). 30 “Coletivo AfroCaeté é um grupo de amigos de diversas idades e profissões, amantes da cultura alagoana que tem como objetivo principal a valorização, reprodução e difusão das riquezas musicais de nosso estado. Articular em conjuntos com os demais setores artísticos e sociais ações e estratégias que exaltem o sentimento de pertencimento de nossos conterrâneos, voltando o olhar para nossas referências.” – trecho retirado do site: http://coletivoafrocaete.blogspot.com.br
  • 33. 33 Afroameríndia31 mediando a produção do grupo, foi possível montar e finalizar os espetáculos. Apesar das dificuldades financeiras, ainda assim, as coordenadoras mantêm atividades de atendimento à comunidade, promovendo periodicamente oficinas dentro do próprio grupo e/ou para quem tiver interesse em ingressar no Afoxé. Embora as oficinas não tenham um caráter técnico-profissionalizante – dadas as condições de manutenção do próprio grupo – tanto Mãe Nany quanto Mãe Bel se dividem na tarefa de ensinar atividades básicas dentro de segmentos profissionais afins ao próprio Afoxé e que possam gerar renda aos seus componentes. Para Mãe Bel Grupo é assim, família é assim, a gente tem que ajudar um ao outro. A gente tem a preocupação de ensinar as pessoas a fazer as coisas, agora a gente tá montando figurinos, a gente ensina as meninas a costurar, já demos oficinas de colares pra cara uma fazer os seus adereções, já demos oficina de maquiagem, de cabelos32 E Mãe Nany complementa, A gente ensina, chega junto quando a pessoa precisa, não é só o Omorewá Cultural, é o Omorewá social. Tudo que a gente tem do grupo é de doação, então serve para o grupo usar, pra consertar o próprio figurino, pra os meninos pegarem os instrumentos e dar oficina. A gente ensina tudo porque amanhã ou depois serve pra pessoa como trabalho mesmo33 No final de 2015, pela passagem do Dia da Consciência Negra, o Omorewá foi um dos grupos e personalidades homenageados pela Câmera Municipal de Maceió pelos trabalhos desenvolvidos em prol da igualdade racial, sendo então uma forma de 31 “Nosso principal objetivo é promover às culturas de matriz afro-ameríndio e universais e a diversidade cultural brasileira em atividades sócio-pedagógico-culturais a população em geral, especialmente às crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos, portadores de necessidades especiais, LGBT e em situação de risco social oportunizando lhes o acesso a educação e aprendizagem das artes cênicas, musica, audiovisual, plásticas, hip hop, culturas e modelos de educação universais, motivando o vínculo social, fortalecendo as raízes em processos de identidade cultural dinâmica, no meio ambiente e nos valores da cidadania em processos de combate à pobreza e minimização das desigualdades sócio-étcnico- educacionais/culturais.” – trecho retirado do site: http://patacuri.blogspot.com.br 32 Entrevista cedida por CAETANO, Isabel. Entrevista I [Jul. 2014]. Entrevistador: Daniela Beny Polito Moraes. Maceió, 2014. 1 arquivo .mp3 (85 min.). 33 Entrevista cedida por MORENO, Nany. Entrevista I [Jul. 2014]. Entrevistador: Daniela Beny Polito Moraes. Maceió, 2014. 1 arquivo .mp3 (85 min.).
  • 34. 34 reconhecimento das atividades formativas e assistenciais do grupo dentro e fora dos palcos, recebendo a Comanda Dandara. Sobre a ideia de família sempre tão recorrente nas falas das minhas interlocutoras e que já é um traço da organização hierárquica do Candomblé e da Umbanda, trago aqui uma observação minha, feita em 2014 Mesmo que nem todos os participantes sejam candomblecistas, a configuração da divisão das tarefas dentro do grupo em muito se assemelha aos terreiros de Candomblé mais tradicionais, pois, enquanto se encontra no processo de aprendizagem o Iyaô34 se dedica a outras atividades dentro da casa a qual faz parte, desde as obrigações religiosas até a manutenção do espaço físico (BENY, 2014a, p. 57) Reporto-me a esta citação por lembrar de algumas atitudes dos recém-chegados no Afoxé em relação aos mais velhos, como pedir a benção, ou não manusear determinados objetos – principalmente os instrumentos de percussão – sem a autorização ou pedido de algum componente mais velho, como se eles ainda não estivessem aptos para desempenhar determinadas tarefas. Outro ponto que observei é que em campo, enquanto ainda estava fazendo o levantamento de dados, minha presença era vista com estranheza por algumas pessoas que ainda não me conheciam, afinal estava lá com uma câmera fotográfica, tripé, caderno, gravador de áudio e outros equipamentos, mas quando Mãe Nany me apresentava às pessoas, explicava que se tratava de uma pesquisa para a Universidade e fazia questão de enfatizar que sou filha- de-santo de Marco Antonio - Babalorixá responsável pela Aldeia dos Orixás e de grande apreço e amizade com Mãe Nany – e que por isso mesmo era como se também fosse sua filha. Essa consideração de Mãe Nany por Pai Marco fez com que, de uma pessoa estranha eu fosse vista como alguém da família – o que fazia com que eu me sentisse uma prima distante, por reconhecer as pessoas, mas não ter tanta intimidade com elas. Ao ser perguntada sobre as práticas religiosas por trás do Afoxé, Mãe Nany, me respondeu que 34 Designação para os filhos de santo no candomblé já iniciados na feitura de santo, mas que ainda não completaram o período de sete anos da iniciação.
  • 35. 35 Religião e arte tem ligação sim, porque a maioria do pessoal é do Candomblé e aqueles que não são a gente procura não envolver com a religião. A partir do momento que a gente começou a montar o grupo, fui lá, consultei os búzios pra saber se ia dar tudo certo, a gente tem a ligação com religião por isso, tudo que a gente faz consulta primeiro os Orixás, mas outros procedimentos que outros afoxés fazem, a gente não faz. A gente canta sim algumas músicas relacionadas ao Candomblé, mesmo que as pessoas pensem que é uma música qualquer, mas pra nós tem um significado diferente. Quando as pessoas chegam até a gente, mas não são da religião, a gente explica que Afoxé não é Candomblé, explica tudo pra ver se a pessoa se adapta ou não35 Observo que o trabalho de empoderamento e autoafirmação da negritude proposto pelo Omorewá vai para além das oficinas, mas está fundamentalmente presente no produto artístico em si quando se propõem a homenagear a ancestralidade e a memória do povo negro no roteiro de seus espetáculos e na composição das músicas que fazem parte de seu repertório, os quais falarei brevemente a seguir. Para além do termo Afoxé e os seus desdobramentos, é necessário considerar a importância da prática da dança por si só como um mecanismo de resistência, segundo Frigiéro (2003), citado por Zenicola (2011) “As chamadas Danças Afro Brasileiras que apresentam performances de releituras corporais africanas, promovem o enraizamento social e contribuem ‘para a manutenção de um ethos negros’. (p. 85)”, e a autora complementa que É este corpus societal que estrutura e mantém o conceito fundamental da dança chamada afro brasileira na cena, coreografada ou não. E, na prática, apresenta no alinhamento corporal, a relação considerada ideal entre as partes do corpo para estabelecer ações da estética da dança negra. As motivações corpóreas dos movimentos e as diferentes posições que este corpo passa assumir das formas mais diferenciadas vão transmissão à tradição e transmutação destas culturas tradicionais. É este grupo social que mantém as técnicas de estilo de dança e devolve as formas peculiares de se performar a dança. A construção do corpo emblemático-social tem, então, sua manutenção preservada neste corpo e torna-se um processo transfomativo em re-definições em constante movimento e diálogo, em constantes atualizações, o que possibilita a compreensão das normas da organização cultural (ZENICOLA, 2011, p. 86) 35 Entrevista cedida por MORENO, Nany. Entrevista I [Jul. 2014]. Entrevistador: Daniela Beny Polito Moraes. Maceió, 2014. 1 arquivo .mp3 (85 min.).
  • 36. 36 Ao longo dos quatro espetáculos que pude acompanhar, percebo nas dançarinas uma maior apropriação não apenas das coreografias que fazem parte do repertório do grupo, mas uma apropriação do espaço cênico. Durante as entrevistas com Mãe Nany, a Ialorixá fez uma observação no que diz respeito às características corporais das dançarinas, dizendo que determinados gestos da coreografia eram uma espécie de “marca registrada” da casa de santo onde elas foram feitas, apontando assim as influências das mães-de-santo ou das ekedes que tenham iniciado as dançarinas nesta função dentro da casa. A seguir apresento um breve histórico dos quatro espetáculos que compõe o repertório do Afoxé Oju Omim Omorewá, como também uma rápida explanação sobre os processos de criação dentro do grupo. 1.1 – ESPETÁCULO “OJU OMIM”: O CANDOMBLÉ EM CENA Abertura do espetáculo ”Oju Omim” realizado no palco do Teatro Deodoro (Maceió/AL), trazendo em cena bailarinas com figurinos em homenagem às Iyabás Iansã e Oxum. Fotografia 02 – registro de Iris Valões
  • 37. 37 Apesar dos afoxés terem como característica o cortejo pelas ruas durante o período do carnaval, o Omorewá – e outros afoxés de Maceió – rompe com esses padrões ao estruturar suas apresentações, elaborando espetáculos também para palco e/ou lugares fechados. Em 2012 o Omorewá se tornou o primeiro afoxé a se apresentar no palco do Teatro Deodoro, integrando a programação do projeto Teatro Deodoro é o Maior Barato36 com o espetáculo “Oju Omim”. Nesta ocasião, justamente pelo ineditismo e por ser um acontecimento histórico o Omorewá trouxe para cena um espetáculo que prestava homenagem à tradição do Candomblé, colocando no palco alguns elementos da religiosidade, como por exemplo, a saudação aos Orixás na mesma ordem que acontece num Xirê37 , mesclando cânticos iorubás com canções compostas em português, contando e cantando as lendas das divindades ali representadas. Como se pode observar na imagem abaixo, os/as dançarinos/as utilizavam figurinos inspirados nas cores e paramentos dos Orixás, onde temos a dançarina Alane Bárbara representando Iansã e o dançarino Lulinha representando Ogum.Seguindo como mote o culto do Candomblé, tanto cenografia quanto figurinos acompanham a estética que se vê nas casas de Axé, utilizando inclusive elementos simbólicos – cabaças e potes de barro – que também são muito utilizados nas tarefas cotidianas de um terreiro. Além dos elementos percussivos, musicais e coreográficos, este espetáculo inicia a aproximação do Omorewá com o teatro, tendo em cena o ator convidado Alderir 36 Projeto desenvolvido pela DITEAL, onde os artistas e grupos têm liberação dos custos de pauta do teatro e conta com 80% da bilheteria revertido para o espetáculo que se apresentou, os ingressos são vendidos a preços populares, algumas edições ocorreram nas terças e outras nas quartas-feiras. Esse projeto teve sua primeira edição no final da década de 1990 e contempla várias linguagens artísticas, além de ter como objetivo a formação de plateia e a divulgação da cultura alagoana. 37 “(...) o Xirê é a designação geral usada para nominar a sequência de danças rituais dos candomblés, que começa com Exu37 e é finalizada com Oxalá. Segue-se uma ordem pré-estabelecida, como se fosse um roteiro teatral, reunindo orixás afins: das águas, da terra, da caça, da criação do mundo, numa ordem funcional e que atende aos significados prescritos pelo modelo yorubá (LODY, SABINO, 2011, p. 103)” Fotografia 03 – Registro de Iris Valões
  • 38. 38 de Souza representando a figura de Exu, que pelo roteiro do espetáculo, estaria fazendo a ligação não apenas entre os atos, mas também entre os próprios Orixás. Com esse espetáculo, a preocupação de Mãe Nany é combater o preconceito e as interpretações negativas sobre o Candomblé, justamente na ideia de desistigmatizar que os cultos das religiões de matrizes africanas seriam de adoração ao demônio e outras tantas adjetivações negativas. Embora pensado para um público mais abrangente, o espetáculo contou com a presença maciça do povo-de-santo38 e de simpatizantes. Ainda na perspectiva de combater o fetichismo39 , Mãe Nany opta por, ao compor as coreografias e escolher as dançarinas que farão os solos que representam as Iyabás, que elas sejam de outro Orixá diferente daquele que representam ou que sejam ekedes. Essa escolha é tomada para que não haja o risco do público achar que a dançarina estaria em estado de transe, delimitando assim de forma mais clara o lugar do corpo-sujeito que dança no palco, mas que trás en/incorporado as informações de sua corporeidade no ambiente religioso. Ao lado, a imagem da dançarina Iza Olímpio, que foge à “regra” de não ser do Orixá 38 Termo utilizado pelos próprios praticantes para designar os filhos-de-santo do Candomblé e da Umbanda. 39 “(...) o termo foi empregue pela primeira vez em 1760 por Charles de Brosses a fim de caracterizar ‘a primeira religião da humanidade’. Sabe-se também que esse fetichismo consiste numa elaboração do termo ‘fetiche’, cunhado nos séculos XVI e XVII por navegantes e comerciantes portugueses e holandeses na costa ocidental de África. Termo destinado a designar os objectos materiais que os ‘africanos’ elaboravam e aos quais estranhamente atribuíam supostas propriedades místicas ou religiosas, passando então a adorá-los (GOLDMAN, 2009, p. 111)” Fotografia 04 - registro de Iris Valões Lulinha representando Xangô Fotografia 05 – Registro de Iris Valões
  • 39. 39 ou de ser ekede, pois não é praticante nem do Candomblé nem da Umbanda, mas geralmente está representando Oxum. Levando em consideração que neste espetáculo cada um dos Orixás será homenageado de algum modo, a reverência à Iansã vem, além das músicas cantadas em iorubá, em composições próprias, como no caso da canção “Lá no Infinito”, composta por Mãe Nany. Parte deste espetáculo encontra-se disponível em rede social Youtube (<:https://www.youtube.com/watch?v=XsNai2QDX34>), podendo ser acessado pelo público em geral. LÁ NO INFINITO Lá no infinito Onde tudo é mais bonito Onde sopram os ventos de Oyá Onde a cachoeira canta Onde os deuses se encantam, Me fascina e me faz dançar. Onde tem tanta beleza Tem ancestralidade e riqueza E negras mulheres a dançar Ritmo de Candomblé, ritmado Afoxé Essa é a cultura que traz meu axé. Deixa passar meu povo Deixa dizer de novo Que sou um negro lutador Resistência na História Somos guerreiros quilombolas Tradição da cultura Nagô.
  • 40. 40 1.2 – ESPETÁCULO “AGÔ – IYABÁS PEDEM PASSAGEM”: O PODER DA MULHER NEGRA Comemorando os dez anos de fundação e com o patrocínio concedido pelo 2º Prêmio de Incentivo Cultural para Comunidades de Terreiros, promovido pela Universidade Estadual de Alagoas –UNEAL em convênio com o MinC – Ministério da Cultura, o Omorewá, com esse espetáculo “Agô – Iyabás pedem passagem” vem prestar homenagem às divindades femininas do Candomblé: Nanã40 , Iemanjá41 , Obá42 , Ewá43 , Iansã e Oxum, como se pode ver na imagem acima. Além das representações das Iyabás pelas dançarinas em cena, se apresentando caracterizadas nas cores de cada uma das deusas e com seus paramentos, as mesmas foram trazidas em painéis como cenário e o feminino esteve presente inclusive nos figurinos dos homens, que trajavam saias e alguns usavam turbantes. 40 “Nanã é a guardiã do saber ancestral e participa com outros orixás do panteão da Terra (...) é dona da lama que existe no fundo dos lagos e com a qual foi modelado o ser humano. É considerada o orixá mais velho do panteão na América (PRANDI, 2001, p. 21)” 41 “Iemanjá é a senhora das grandes águas, mãe dos deuses, dos homens e dos peixes, aquela que rege o equilíbrio emocional e a loucura (...) É uma das mães primordiais e está presente em muitos mitos que falam da criação do mundo (PRANDI, 2001, p. 22)” 42 “Obá dirige a correnteza dos rios e a vida doméstica das mulheres, no fluxo do cotidiano (PRANDI, 2001, p. 22)” 43 “Euá, orixá feminino das fontes, preside o solo sagrado onde repousam os mortos (PRANDI, 2001, p. 21)” Fotografia 06 - Registro de Iris Valões Abertura do espetáculo “Agô – Iyabás pedem passagem”, dançarinas representado as Iyabás Iemanjá, Nanã e Oxum.
  • 41. 41 Assim como em “Oju Omim”, há elementos teatrais na estrutura do roteiro do espetáculo, tendo a atriz convidada Rose Silva como a grande anfitriã dessa festa do feminino, ora com textos escritos por Mãe Nany ora com poemas que orbitam sobre a temática e odes à beleza da mulher negra, já que nesta ocasião o Afoxé promoveu o 1º Concurso de Beleza Negra, elaborado aos moldes do concurso Deusa do Ébano, promovido pelo bloco Ilê Aiê. Sobre o espetáculo Mãe Nany compartilha Falar das Iyabás pra mim foi fácil demais, além de que eu queria fazer uma homenagem não só a elas, mas as mulheres, que estão sempre na batalha, sempre na luta do dia-a-dia. Por isso também o concurso de beleza negra. Por que não colocar a mulher negra no palco sem ser num desfile de moda ou de biquini? Foi tudo muito emocionante, um show muito poderoso, com as Iyabás abençoando, textos lindos feitos pela Rose Silva (atriz convidada para o espetáculo)44 Com esse concurso o Afoxé abriu espaço inclusive para agregar outras dançarinas ao Omorewá. O perfil das inscritas se apresentou bastante abrangente, tendo como concorrentes jovens entre 15 e 35 anos. As participantes eram escolhidas pela votação do público presente no dia do espetáculo, onde os requisitos de beleza, 44 Entrevista cedida por MORENO, Nany. Entrevista I [Jul. 2014]. Entrevistador: Daniela Beny Polito Moraes. Maceió, 2014. 1 arquivo .mp3 (85 min.) Fotografia 07 – Registro de Íris Valões Fotografia 08 – Registro de Íris Valões Na fotografia 07 temos a dançarina Iza Olímpio representando Oxum e na fotografia 08, a dançaria Cris Monteiro representando Nanã.
  • 42. 42 simpatia, presença e desenvoltura das coreografias foram levados em consideração. O perfil das participantes se apresentou bastante variado, concorrendo jovens vindas de terreiros de Candomblé e Umbanda, grupos de dança parafolclóricos, escolas de balé, grupos de teatro e alunas dos cursos de Teatro e de Dança da UFAL, o que, ao meu ver, comprova que de 2012 para 2013 o público dos espetáculos do Omorewá conseguiu se expandir para além do povo-de-santo, já que muitas das concorrentes levaram ao teatro sua própria torcida. Como já era de se esperar, o Afoxé sofreu algumas críticas inclusive pelo fato da participante vencedora ter sido uma jovem de 15 anos, porém, o grupo, independente das opiniões contrárias compreende que o concurso faz parte da afirmação e empoderamento da identidade da mulher negra, se apropriando do próprio corpo, da vestimenta, da maquiagem e dos penteados – elementos esses que foram ensinados para as participantes em oficinas prévias à apresentação no teatro. Sobre o repertório musical do espetáculo, gostaria de acrescentar aqui que As composições de Mãe Nany selecionadas para esse espetáculo, buscam enaltecer as características das iyabás, normalmente vinculada à causa negra, buscando elementos históricos da composição do povo brasileiro e de nossa miscigenação e a trajetória destes expatriados que foram trazidos ao Brasil como escravos. Dentre elas uma composição me chamou atenção em especial por citar elementos que abordam fatos vinculados ao Quilombo dos Palmares (BENY, 2014a, p. 51) O espetáculo encontra-se disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Bl8c3d_hjHo, na íntegra e podendo ser acessado pelo público geral. E a seguir trago uma das canções mais emocionantes cantadas durante este espetáculo, também composta por Mãe Nany. Fotografia 09 - Registro de Iris Valões Yara Sirilo – Vencedora do Concurso Beleza Negra
  • 43. 43 YEMANJÁ MÃE DO QUILOMBO Meu povo furtado da África tem sangue negro Levaram sua vida e seus sonhos qual peso de ouro Negros Omorewá. Pobres irmãos no açoite Fortes mulheres aos montes Lutando contra a escravidão Menino negro na corte Quilombo luta à noite Buscando sua libertação. A busca da mãe Yemanjá é por seus negros Quilombo criam seus filhos fugindo pro morro Morro dos Palmares. Outro irmão no açoite Morre Zumbi numa noite Vejo chorando Yemanjá Mas nascem guerreiros mais fortes Quilombos venceram a morte, Nossa vitória Omorewá, nossa vitória Omorewá.
  • 44. 44 1.3 – ESPETÁCULO “CHÃO BATIDO – TERRA DE NEGROS E MESTIÇOS”: TODOS OS POVOS BRASILEIROS Depois de passar pelo Candomblé e pelas deusas iorubás, o Omorewá, em 2014, tráz para cena com o espetáculo “Chão Batido – terra de negros e mestiços” as influências negras e indígenas que fundaram as religiões brasileiras como a Umbanda, a Jurema45 , o Xangô46 e outras tantas manifestações religiosas afro-ameríndias, pensando nas referências que transitam entre essas culturas e os pontos de contato entre elas. A aproximação com o teatro se intensifica, a diferença é que neste espetáculo, ao invés de convidarem atores, o Afoxé opta por escolher entre as dançarinas aquela que seria a portadora das palavras do espetáculo. Por ter acompanhado o processo de composição dos três espetáculos, considero esta tomada de decisão o amadurecimento artístico do grupo e o empoderamento das linguagens artísticas envolvidas no espetáculo como um todo, mostrando o quanto este agrupamento de artistas que se considerava como um 45 Variante recifense do culto da Umbanda, apresentando entidades como caboclos, preto-velhos, mestres, vaqueiros, exus e pombagiras. O culto da Jurema concretiza o transe através do consumo do chá da erva Jurema e trás para suas práticas influências religiosas indígenas, podendo ser chamada também de Toré. 46 Termo utilizado em Alagoas e Pernambuco para designar as casas de santo ou terreiros, sendo uma variante do Candomblé, em sua maioria pertence à Nação Nagô e por isso mesmo conta com uma forte presença dos elementos da cultura iorubá. Fotografia 10 - Registro de Erick Silva Abertura do espetáculo “Chão batido – terra de negros e mestiços”, onde se pode observar na cenografia imagens cultuadas na Umbanda e demais elementos comuns às religiões afro-ameríndias.
  • 45. 45 grupo percussivo foi agregando elementos – como a dança, os textos em português e o teatro – para suas novas produções. Creio que essas inovações na própria estrutura do Afoxé tiveram reconhecimento principalmente pela homenagem que receberam ao serem contemplados pelo SATED/AL como melhor espetáculo de dança afro de 2014 na categoria Profissionais do Ano. Temos então em cena, a dançarina – e agora atriz – Cristiane Monteiro, portando um candeeiro a frente das demais dançarinas como se abrisse caminho no meio da escuridão do porão de um navio negreiro47 . Embora o processo de preparação de Cristiane não tenha passado por etapas de trabalho que normalmente buscamos em processos de composição em geral – levando-se em conta a pouca experiência com elementos teatrais do próprio grupo – é perceptível em sua atuação a apropriação do texto e como isso também diz respeito à sua ancestralidade, o corpo que se expressa numa linguagem não-verbal se sente convicto ao comunicar verbalmente aquilo que de algum modo faz parte de sua história. Sobre o espetáculo, Mãe Nany comenta que A gente vai falar sobre um Brasil mestiço, essa mistura de povo, a gente apesar de ser muito misturado se olha de um jeito muito desigual, muito preconceituoso um para outro, inclusive de um negro para o outro. Tem essa história de que um negro não olha no olho de outro negro porque tem vergonha de se ver, de perceber a própria imagem, e é esse preconceito que a gente quer combater. O show vai ser a chegada do navio negreiro, com as mulheres, com figurinos mais rústicos, sem luxo, porque os negros escravizados não trouxeram luxo. Agora teremos uma das meninas do grupo interpretando um trecho do texto ‘Navio Negreiro’ de Castro Alves. Para esse espetáculo pesquisamos também a Santeria Cubana, danças de tribos africanas, toque do Ilê com jongo e pra finalizar um grande samba de roda48 Nessa fala é possível compreender um pouco como se dá o processo de criação e investigação para a montagem dos espetáculos do Omorewá. Este espetáculo em particular, é dividido em duas partes, onde a primeira trás elementos do Candomblé e a segunda apresenta práticas religiosas mais relacionadas aos cultos indígenas e a própria 47 Na verdade, se trata da música “Yá Yá Messamba”, de Roberto Mende e Capinan, a versão mais conhecida é cantada por Maria Bethânia, e está disponível no link: https://www.youtube.com/watch?v=j3MLNFPGEpw . 48 Entrevista cedida por MORENO, Nany. Entrevista I [Jul. 2014]. Entrevistador: Daniela Beny Polito Moraes. Maceió, 2014. 1 arquivo .mp3 (85 min.)
  • 46. 46 Umbanda, com a presença de representações de Caboclos49 , Boiadeiros50 e Pretos- Velhos51 . Trago aqui mais uma representação de Iansã em cena, com a dançarina Alane Bárbara, que mesmo sendo filha de Iansã pode representa-la em cena por desempenhar a função de ekede. Abaixo, a música composta por Mãe Nany presta homenagem à Iansã, onde inclusive na letra da música já apresenta um pouco do arquétipo desta divindade. Disponível em: http://youtu.be/D6W28GhEnXQ, como vídeo não listado. SENHORA DOS TEMPORAIS Ela é dona dos raios Senhora dos furacões Guerreira independente E não teme a nada não 49 Espíritos ancestrais de indígenas brasileiros ou de africanos que habitavam florestas da África Central. 50 Como o próprio nome já diz, são espíritos ancestrais que habitaram os sertões brasileiros aboiando gado, muitos deles se apresentam como nordestinos ou mineiros. 51 São espíritos ancestrais de negros escravizados, alguns se apresentam como Pai, Mãe, Avó, Avô, deixando claro a relação de respeito com a genealogia e interações intergeracionais. Fotografia 11 - Registro de Erick Silva
  • 47. 47 Fotografia 12 – Registro de Cristiano Marinho (Acervo do grupo) Bailarino Antonio Henrique durante seu solo Senhora que traz mistérios A dona do barracão Ela traz sua espada em punho E não teme a nada não Amada do rei guerreiro E filha do rei da paz Senhora que varre a terra Ao som dos seus ventos e temporais. É Oyá Obá Xiré, Obá Xaré Loja.52 1.4 – ESPETÁCULO “AQUARELA DE CORES”: O CORPO QUE DANÇA NO CORPO DE DANÇA Em Novembro de 2016, o Afoxé Oju Omim Omorewá levou ao palco do Centro Cultural Arte Pajuçara, em Maceió o espetáculo “Aquarela de Cores”, sendo ele o quarto espetáculo do grupo pensado para apresentações em caixas cênicas. Este espetáculo trás para cena as principais composições do grupo já apresentada em oportunidades anteriores, porém, pode-se considerar que a inovação desta montagem é a inserção de mais dois dançarinos ao corpo de dança, onde um deles tem formação em balé clássico. 52 Trecho de uma cantiga Yorubá de Iansã: Élóya O Élóya O Óbé Xire / Óbá Xare Ló Ija Élóya O / Élóya Óbé Xire/ Óbá Xare Ló Ija Élóya O. Tradução: É Óya ela é Óya / Brinca com o facão do Rei mais velho,/ Óya usa-o na briga / É Óya que brinca com o facão/ Do Rei mais velho usando-o na guerra. – aqui também há a referência à Oxalá, que quando jovem assumia o nome de Oxaguiã, que era um grande guerreiro.
  • 48. 48 Como foi observado em relação aos espetáculos anteriores, no “Oju Omim” tivemos a presença de Lulinha representando as divindades masculinas em cena, o mesmo acabou não retornando aos espetáculos “Agô Iyabás pedem passagem” nem em “Chão Batido: Terra de Negros e Mestiços”, em “Aquarela de Cores” passamos a contar com mais duas presenças masculinas em cena: Carlos Douglas e Antonio Henrique, bailarino de formação clássica e que neste espetáculo participou com Mãe Nany como coreógrafo, tendo como proposta a aproximação dos estilos de dança. Vale aqui salientar que a aproximação de Antonio com o Omorewá se deu durante as aulas da Dança de Iansã ministradas por Nany para mim e um grupo de artistas convidados como parte desta investigação. Desta vez nas coreografias, além das representações de Iansã e Oxum, com a presença de mais dois dançarinos, o espetáculo contou com a representação dos Orixás Ogum e Oxóssi, apresentados dançando com seus respectivos pares românticos, ou seja, as duas iyabás já aqui citadas. Nesta oportunidade pude observar outros elementos além da dança das iyabás presentes em cena, onde destaco como momento mais emocionante da apresentação um trecho onde Yara Sirilo e Carlos Douglas contracenam dançando respectivamente Iansã e Ogum, onde é possível observar similaridade nos movimentos de luta dos dois Orixás ali representados, nesse aspecto, os braços de ambos se movem sugerindo as ações de ataque e defesa – um braço na ação de CORTAR portando uma espada e o outro braço na ação de PROTEGER como se estivesse segurando um escudo. Fotografia 13 – Registro de Cristiano Marinho (Acervo do grupo) Carlos Douglas e Yara Sirilo representando respectivamente Ogum e Iansã
  • 49. 49 Fotografia 14 – Registro de Carlucho (Acervo do grupo) Yara Sirilo e Carlos Douglas em cena de dança combate entre Iansã e Ogum A principal diferença quanto à codificação corporal de cada um deles se concentra nos membros inferiores, pois os quadris e os pés de Yara se movem de acordo com a polirritmia sugerida na Dança de Iansã, dando pequenos saltos impulsionando o corpo para cima, enquanto os pés de Carlos estão espalmados no chão, pisando com todo solado, fazendo com que, mesmo dando pequenos saltos o tronco seja projetado para frente. Mesmo não me debruçando nesta dissertação pontualmente sobre a Dança de Ogum, considero importante trazer apontamentos sobre essas diferenças porque parte dos elementos da dança desse Orixá foram apresentados por Mãe Nany em suas aulas e retomados por mim nos laboratórios individuais. Trago aqui a composição “Oyá Onira” de autoria de Luana Costa, uma das primeiras vocalistas do Afoxé, dada à Mãe Nany como um presente e em homenagem ao Orixá da Ialorixá. OYÁ ONIRA Essa Oyá não é de Balé53 Mas a negra cor é puro axé Linda como ela não há, A mãe, mãe que amou amar. 53 Segundo a tradição iorubá, os Orixás podem apresentar qualidades diferentes, essas qualidades dizem respeito às suas atividades no plano espiritual e às possíveis combinações de características com outros Orixás, Iansã possui pelo menos nove qualidades, dentre elas Iansã Balé/Igbalé, esta qualidade específica de Iansã está associada diretamente ao culto aos mortos (egunegun), sendo ela a responsável pelo trânsito dos espíritos desencarnados do Orum (mundo espiritual) para o Aiyê (mundo físico).
  • 50. 50 Tinha que ser filha de Oyá Tinha que ser filha yê yê Aquele feitiço no bailar Vem das águas claras Vem dos ventos Onira54 Onira. Na quarta-feira tem luz no seu congá Tem beleza negra recebendo axé Ela tem encanto que nos encanta É axé de Oxum, é axé de Oyá. 1.5 – PROCESSOS DE CRIAÇÃO NO AFOXÉ Como já citado, no início de 2014 acompanhei uma série de ensaios do Afoxé Oju Omim Omorewá com o intuito de observar a codificação corporal da Dança de Iansã nas coreografias do grupo. Neste período o Afoxé estava em processo de montagem e finalização do espetáculo “Chão Batido – terra de negros e mestiços”. Por tratar da miscigenação brasileira no campo da religiosidade, Mãe Nany, como coordenadora do grupo e coreógrafa desenvolveu um trabalho de pesquisa para composição das coreografias com influências multi-étnicas, pesquisando Jongo, Santeria Cubana, danças tribais africanas e danças indígenas, além da busca por um repertório musical diversificado mesclando músicas cantadas em iorubá, pontos de Umbanda e até mesmo composições da MPB e de blocos afrobaianos e pernambucanos. De todas as observações feitas em campo, a que mais chamou minha atenção, e a qual focarei, aqui foi o ensaio do solo de Iansã executado pela dançarina Cristiane 54 Como já dito anteriormente, cada Orixá tem qualidades diferentes, Iansã Onira/Oiá Onira apresenta características aproximadas à Oxum, como associações à água doce e à vaidade, segundo algumas lendas, Iansã Onira era uma rainha muito sábia porém tinha como principal defeito sentir muito prazer ao matar seus inimigos, o que gerava medo na população de Ira, por causa dos transtornos causados no Aiyê, Oxalá decidiu que Onira seria mandada para morar nos rios com Oxum, Oxum então ensinaria Onira a ser mais delicada, por outro lado Onira ensinaria Oxum a guerrear, dando origem assim à outra qualidade de Oxum, a Oxum Opará. Há que acredite que tanto Iansã Onira quanto Oxum Opará são qualidades de Orixás que metade do ano é Iansã e na outra metade é Oxum.
  • 51. 51 Monteiro, que apesar de iniciada no Candomblé não é filha de Iansã, mas foi escolhida por Mãe Nany para realização do solo por causa das suas características de movimento, como força, vigor e velocidade. Ao ser indagada como se dava o processo de criação das coreografias solo, Mãe Nany esclareceu que como parte das dançarinas são de Candomblé ou de Umbanda, já conhecem os movimentos base da dança do Orixá, então no momento do ensaio, de acordo com o toque da música elas têm a liberdade de inserir outros movimentos que façam parte do seu repertório corporal, Mãe Nany observa e depois faz seus apontamentos sobre o que pode ser mantido na coreografia, normalmente não tira nenhum elemento criado pelas dançarinas porque geralmente a criação proposta obedece o padrão de movimento daquele Orixá, como podemos observar na sequência das imagens a seguir.55 55 A sequência em movimento está disponível na plataforma Youtube como vídeo não listado no link: https://youtu.be/D6W28GhEnXQ Fotografia 15 - Registro de Daniela Beny Fotografia 16 – Registo de Daniela Beny Fotografia 17 – Registro de Daniela Beny
  • 52. 52 Nesta sequência de dez imagens, pelo processo de criação apontado por Mãe Nany, da figura 15 a 21, a dançarina Cristiane Monteiro executa movimentos que de fato fazem parte a coreografia da Dança de Iansã, sugerindo que esteja portando suas ferramentas de trabalho – como o alfanje, o chicote ou eruexim, os quais darei maiores detalhes adiante. Já as imagens de 22 a 24, a dançarina agrega elementos do seu repertório corporal ao solo que está desenvolvendo, pois dentro do léxico da corporeidade de Iansã não caberia este giro com os dedos postos diante dos olhos como se estivesse mirando em algo. Embora não faça parte, pelas características da forma de execução e por contar com movimentos expansivos e de giro, essa composição foi mantida como parte do solo. Fotografia 18 - Registro de Daniela Beny Fotografia 19 – Registro de Daniela Beny Fotografia 20 - Registro de Daniela Beny Fotografia 21 - Registro de Daniela Beny Fotografia 22- Registro de Daniela Beny Fotografia 23 - Registro de Daniela Beny Fotografia 24 - Registro de Daniela Beny
  • 53. 53 Para refletir sobre esse processo de construção coreográfica que mescla o conhecimento pré-existente das dançarinas com os elementos indicados pela coreógrafa do espetáculo, trago um apontamento de Zenicola (2011) que, embora tenha desenvolvido sua pesquisa no contexto de grupos afro do Rio de Janeiro, pode se aplicar à realidade do Omorewá, ao dizer que Na dança afro, um performer deverá não só ser competente, mas também “possuir um estilo próprio”. Essa marca delimita sua singularidade e acentua o valor do grupo e do indivíduo integrante desse grupo. O estilo pessoal é ressaltado, por Frigiéro, como uma característica da performance afro americana e presença marcante em países das Américas (...) Ao assumir os conhecimentos ensinados, o bailarino vai progressivamente estabelecendo uma série de adaptações desta nova técnica ao seu corpo, às suas habilidades e preferências e, gradativamente, estabelece uma seleção do que será seu estilo, sua interpretação pessoal (ZENICOLA, 2011, p. 87) Apesar de Cristiane Monteiro ter sido a dançarina escolhida para o solo que representa Iansã no espetáculo “Chão Batido – terra de negros e mestiços”, no dia da apresentação, por um consenso do grupo, outra dançarina se apresentou em seu lugar, tratava-se de Alane Bárbara, pois erade uma ocasião especial, já que uma das componentes mais antigas do grupo que estava de volta, e, por isso mesmo, apesar de não estar presente nos ensaios que acompanhei, já fazia parte do grupo e em espetáculos anteriores sempre representava Iansã. O que pude observar foi que, as duas executavam a coreografia com os elementos da Dança de Iansã, mas que cada uma delas apresentava características muito próprias, imprimindo assim numa codificação corporal relativamente própria de sua identidade e se um estilo. Em entrevista, Mãe Nany relata que um das principais diferenças entre as dançarinas trata-se das características de energia e de movimento das duas dançarinas, enquanto Cris dança com a cabeça um pouco mais abaixada, Alane dança de cabeça erguida, como Mãe Nany também é a coreógrafa ela descreve que Cris seria a personificação do Búfalo, enquanto seria a personificação do Vento. Possivelmente o que influencia na característica de movimento de Cris seja o fato dela trazer em si de modo muito presente o arquétipo de seu Orixá, no caso Xangô, se tornando assim a corporificação do trovão.