1. miúdos
Os adolescentes lêem
como os adultos
Cada vez mais, os adolescentes lêem os mesmos livros que os adultos:
best-sellers ou fórmulas que se repetem. Por isso, não os critique, aconselha
Andreia Brites, mediadora de leitura. E abandone a pretensão de que todos
gostem de livros eruditos. O melhor é mostrar-lhes de tudo e deixá-los escolher.
Texto Rita Pimenta Fotografia Rui Gaudêncio
R
espeitar a criança, que já não é. Devemos diarísticas, dramáticas e frívolas.
liberdade, as ajudá-lo a conhecer livros, O marketing funciona com todos
preferências, porque há sempre um livro os públicos.”
os hábitos e os para um leitor e, muitas Já na conferência de Santa
comportamentos vezes, o desinteresse deriva Maria da Feira, no texto Quando
que o adolescente do desconhecimento”, diz a o adolescente nos fecha a porta,
vai assumindo em busca da mediadora, que realiza ateliers invocou o trabalho da especialista
melhor forma de ler é o caminho em várias escolas e bibliotecas Sandra Lee Beckett para falar em
para promover a leitura entre do país, integrada na carteira literatura cruzada (crossover). “O
os jovens. Quem o defende de itinerâncias da Direcção- conceito significa que há livros
é Andreia Brites, mediadora Geral do Livro e das Bibliotecas. inicialmente pensados para o
de leitura que participou A crescente autonomia nesta público juvenil mas que tiveram
recentemente nas II Jornadas fase da vida dos miúdos leva- muito sucesso junto dos adultos,
das Bibliotecas da Maia e na II os “a ler, cada vez mais, livros ultrapassando o público-alvo
Biblioconferência de Santa Maria que os adultos também lêem, para quem tinham sido escritos.”
da Feira, com reflexões sobre e não podemos criticá-los por Caso de Harry Potter, responsável
promoção da leitura junto dos escolherem best-sellers ou pelo regresso à leitura de muitos
adolescentes. fórmulas, nem ter a pretensão jovens adultos.
“O adulto não pode ser de que todos adorem livros Na sua passagem por Lisboa
paternalista com o adolescente, eruditos”. Afinal, “também é em 2009, Beckett concluía: “O
pensando nele como uma assim com os adultos”. crossover resulta da combinação
Na comunicação que de factores literários e de
apresentou na Maia (integrada marketing.” Se os adolescentes
nas conferências do Mês estão a ficar cada vez mais
Internacional das Bibliotecas sofisticados no seu desejo por
Escolares), Leitor adolescente: desafios, a cultura de massas
escolhas e paradoxos, dizia: infantiliza os adultos, “muitos dos
“Os best-sellers são universais
e transversais. As modas na
leitura são iguais às outras
modas: intensas e fugazes. Nisso,
Revistas,
os adolescentes também se jornais, banda
comportam como os adultos,
seguindo-se em tendências e desenhada ou
modas: já as houve fantásticas, enciclopédias
SIMON JArrAtt/COrBIS/vMI
são leituras tão
dignas como
uma obra
literária
2. Andreia Brites é mediadora de leitura e trabalha com escolas,
bibliotecas e comunidades de leitores de todo o país
quais não integram a verdadeira
cultura do conhecimento, mas
apenas a da informação”.
Não se conclua que estes
livros são maus. Segundo a
investigadora, “muita da melhor
ficção está actualmente a ser
publicada para jovens e é no
universo infanto-juvenil que a
literatura está a romper com as
categorias estabelecidas pelo
edifício do cânone e dos estudos
literários”. Hoje, é um fenómeno
mais visível no fantástico, mas
a leitura cruzada (embora não
orientada pelo marketing)
sempre existiu, diz a especialista.
“Assistimos a uma partilha
de leituras mais comum entre
pais e filhos adolescentes do
que há 20 anos. Por isso, a
conversa em torno dos livros é
tão importante. Há um padrão
nas leituras de raparigas de 13, 14,
15 anos, que, tendo lido sempre
e muito, começam a partilhar
best-sellers com as mães. Nicholas
Sparks, Nora roberts e outras
fórmulas românticas do género
são consumidas em família”, diz
Andreia Brites.
Formada em Estudos
Portugueses pela Universidade
Nova de Lisboa, defende outros
textos: “Não podemos esquecer
que revistas, jornais, banda
desenhada ou enciclopédias são
leituras tão dignas como uma
obra literária. A outra função do
mediador é ajudar o adolescente
a descodificar o texto que lê e ao
qual muitas vezes não acede na
totalidade por dificuldade em
apreender o código linguístico ou
desconhecimento do contexto.
Para isso, deve conversar sobre
as suas leituras, partilhar ideias,
juízos críticos, perplexidades.”
Mas ao adolescente “ainda
lhe falta, e muito, o sentido
simbólico da vida, a capacidade
de interpretar o vazio das
mensagens, de reconhecer figuras
como a ironia ou a metáfora”.
Ler sem vergonha
Para Brites, “a interpretação
literal da vida condiciona mais os
adolescentes do que os adultos na
sua apreensão do escrito”. Mas
constata que há cada vez mais
adolescentes a assumir que lêem.
“De há seis anos para cá, à minha
pergunta da praxe, no início dos
ateliers, ‘há alguém que goste de
ler?’, o tom geral da resposta c
3. miúdos
mudou de ‘não’ para ‘mais ou 11 livros, que passam por toda a Dicionário do Diabo
menos’. E há cada vez mais alunos turma, e têm de perceber quais Ambrose Bierce,
a levantar o braço, afirmando que pertencem a cada receita.” Tinta-da-China.
gostam de ler, sem olharem para A ideia é levá-los a mexer em “Um grande livro
a reacção dos colegas. A leitura várias obras e perceberem as de não ficção”
já não é um inimigo mortal. É, diferenças. “Descobri que são
para muitos, uma obrigação; para absolutamente fãs do concurso
vários, algo que gostam de fazer MasterChef, e por isso têm agora
pontualmente e, para alguns, um uma noção do que são receitas.
hábito.” Isso ajudou-os. A mim também.”
Esta alteração deve-se “ao A turma fascinou-se com as A Evolução de Calpurnia
investimento que tem vindo a colecções João Pastel (Michael Tate Jacqueline Kelly,
ser feito na leitura recreativa Broad) e André Cabelo-em-Pé (Guy Contraponto.
desde o ensino pré-escolar, à Basse e Pete Wiliamson), ambos “Um livro de literatura
sensibilização de educadores da Booksmile. juvenil estrangeira”
e pais para a importância da As comunidades de leitores são
leitura e ao acesso a livros mais mais difíceis de orientar. “Não
diversificados”. vão de livre vontade passar uma
Andreia Brites divulga e hora na biblioteca escolar…”,
critica literatura para crianças mas há excepções. E conta a boa
e jovens na revista Os Meus experiência com a Biblioteca
Livros, onde assina uma rubrica Municipal de Sobral de Monte
sobre promoção da leitura, que Agraço, onde mantém um grupo
considera ser “uma maneira de de leitura há três anos. “Apanhei
formar cidadãos conscientes”. miúdos com 12 anos, que agora
Com entusiasmo, defende que estão com 15. Um deles, na
“dar a ler é um acto altruísta” e primeira comunidade, não lia; na Ulysses Moore
afasta pretensões formativas — “se segunda; tornou-se fã das Crónicas Pierdomenico Baccalario,
as tivermos, não conseguiremos de Spiderwick e já estava a gostar Presença.
ver claramente o jovem que temos da série de Ulysses Moore. É muito “Uma fórmula bem
à frente, embaciada que fica a engraçado apanhá-los em fases pensada e cuidada”
lente pelo nosso próprio ego”. muito diferentes da vida.”
Lamenta que a literatura juvenil Outro exemplo: “Uma das
seja “ostracizada”. “A infantil já miúdas (14 anos) contou que
é o parente pobre. E a juvenil é tinha posto o pai a chorar
tão válida como a infantil e como com A Melodia do Adeus, de
a literatura para adultos. E vou Nicholas Sparks. requisitou
bater-me por isso até ao fim.” o livro na biblioteca, leu-o
Nesse sentido, criou, em conjunto e chorou. Depois, foi a mãe
com Sérgio Letria, o blogue O (que também chorou) e
Bicho dos Livros. convenceram o pai. também Beija-Mim
ele se emocionou. O que é Jorge Araújo, Aletheia.
Pôr o pai a chorar relevante é a expressão da “Um livro de literatura
Em termos práticos, Andreia miúda: ‘Fui eu que pus o meu juvenil portuguesa”
Brites orienta dois tipos pai a chorar’.”
de actividades: ateliers e Um exercício: “Li um
comunidades de leitores. “Ateliers excerto do Tom Sawyer, com
com uma turma, numa única a capa tapada. Um miúdo
sessão de 90 minutos. Mostro que diz não gostar de ler e até é
várias opções de leitura. Crio um pouco malcomportado foi o
situações lúdicas, em que eles, único que identificou o livro. tem
com base na capa, no título ou no 14 anos.”
tema, dizem que livros gostariam Andreia Brites, admiradora
de ler. Por vezes são eles que da escritora Ana Saldanha e fã
sugerem livros para outros.” de colecções como O Diário de
O mais recente, intitulado Com Um Banana e Ulysses Moore, foi André Cabelo-em-Pé Guy
a Mão na Massa, aconteceu na “uma adolescente feliz”. Aos Bass (texto), Pete Wiliamson
Escola Básica 2/3 Comandante 34 anos, quando está com os (ilustração), Booksmile.
Conceição e Silva, da Cova da alunos, continua a sê-lo. “A nível “Um livro ilustrado para
Piedade, com uma turma de da cumplicidade com o grupo, da pré-adolescentes e lido por
6.º ano. “Eles têm vários livros grande curiosidade sobre o mundo adolescentes”
e três receitas diferentes (com e de gostar do outro, é muito bom
a forma de receita culinária, continuar adolescente.” Mesmo já
mas adaptada à leitura): os crescida. a
ingredientes e preparação têm
que ver com o tipo de livros. Levo rpimenta@publico.pt