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OS NOVOS
LÍDERES URBANOSNas ruas, há um novo conceito de cidadania, mais participada, mais activa. As cidades
são agora palcos de colaboração e de co-criação, nos quais as pessoas assumem o papel
principal. Se o “Citizen Kane” de Welles tinha o mundo a seus pés, os cidadãos de hoje têm
a força da mudança na palma das mãos.
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#CIDADÃO
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de que dispunham. Cruzando essas duas linhas, foram
criadas 60 iniciativas de intervenção no espaço públi-
co, que incluíram a colocação de redes de pesca nos
topos das ruas, com peixes decorados pelos residen-
tes, a requalificação dos bancos e das caixas de elec-
tricidade com a ajuda de artistas, e, ainda, um jantar
comunitário, “sem igual em 30 anos”, conta José Car-
los Mota, um dos dinamizadores da iniciativa. “Mui-
tas vezes, dizemos que as cidades não têm espírito de
comunidade, mas, quando se criam os palcos, vemos
que isso não é verdade e o Vivó Bairro foi um exem-
plo disso”, avalia.
REFLECTIR PARA A MUDANÇA
Não menos importante em tudo isto é a reflexão críti-
ca. A mudança na cidade exige reflexão sobre o espa-
ço e, sem ela, o preço a pagar pode ser elevado. “Se não
reflectirmos sobre o que queremos na cidade, à luz de
que modelos vamos levar a cabo os projectos?”, ques-
tiona o investigador de Aveiro.
Discutir a cidade é uma tarefa hercúlea, pelo
que William Kistler, responsável pela Urban Inno-
vation Network, tem uma postura mais céptica rela-
tivamente ao processo de co-criação urbana. “Quem
não tem formação sobre o ambiente construído dá-
-lhe muito pouco valor”, afirmou durante o último
SCEWC em Barcelona. “Pedir-lhes que participem
sem o enquadramento ou a formação necessários, é
uma receita para... um desafio”, exclamou.
Significa isto que só as “elites intelectuais” têm
legitimidade para levar a cabo a mudança? Não, es-
se não é um papel exclusivo, mas podem, sim, dar um
contributo interessante neste movimento e a acade-
mia, por exemplo, está interessada em fazê-lo. O Ins-
tituto de História Contemporânea da Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa está a trabalhar num projecto de investiga-
ção colaborativa, cujo objectivo é recuperar e divul-
gar as memórias das Avenidas Novas, criando novos
caminhos para a investigação. Desde Novembro do
ano passado, de quinze em quinze dias, as investiga-
doras Luísa Seixas e Inês Castaño reúnem-se com os
ditos “Maiores das Avenidas” (os residentes seniores
desta freguesia) e recolhem histórias, testemunhos,
objectos, recordações que fazem parte daquele espa-
ço. O Memória das Avenidas não é único, e nasce de
uma iniciativa mais abrangente – o Memória para To-
dos –, mas é a sua escala e impactos locais que nos
interessam. “Há uma legitimação da memória indi-
vidual destas pessoas e um reconhecimento da par-
te da comunidade científica do contributo da história
individual para uma história colectiva”, explica Inês
Castaño. Para além da construção da identidade local,
o resgatar destas memórias pode ajudar a desmistifi-
car alguns preconceitos existentes na freguesia, em
particular face às comunidades cigana e mais pobres
que ali residem, e cuja origem esteve, eventualmente,
em factos “manipulados”, contam as investigadoras.
“A construção de um conhecimento colaborativo, no
qual as pessoas estão directamente envolvidas, talvez
possa ajudar a criar mais alicerces numa comunidade
que vive no mesmo bairro”, defendem.
Dado que se dirige a uma população sénior, mais
benefícios têm surgido daí, como o estímulo ao pa-
pel activo na sociedade ou a sensibilização para a pre-
venção das doenças da memória – aspecto ainda em
desenvolvimento. À semelhança desta, outras inicia-
tivas podem dar-se noutras disciplinas, como a bio-
medicina, ajudando a incluir outros actores na in-
vestigação científica e a dar resposta àquilo que são
as preocupações da sociedade, colocando o conheci-
mento mais próximo das pessoas. “Num contexto ur-
bano, estes processos colaborativos dão voz às pessoas
e dão-lhes uma cara, um nome. As pessoas deixam de
ser uma massa que ocupa a metrópole”, defende Luí-
sa Seixas. “Estas pessoas viveram processos de mu-
dança imensos nas suas vidas e são fontes vivas des-
tas transformações. Hoje, pela inovação tecnológica,
temos a possibilidade de construir fontes como não
acontecia anteriormente, por isso, estes processos co-
laborativos chamam também a atenção para o facto de
estas pessoas poderem participar nessa construção a
vários níveis”.
A CIDADE E O CIDADÃO, HOJE E AMANHÃ
A receita para as cidades inteligentes ainda está a es-
crever-se, mas não restam dúvidas de que as pessoas
são o ingrediente base – só não se sabe em que dosa-
gem e como interligá-las da melhor forma com o pro-
cesso governativo. “As cidades constroem-se e recons-
troem-se na esfera pública, dando a todos os cidadãos
e comunidades a capacidade de criarem história, cul-
tura e política”, escreve Catarina Selada. Para a direc-
tora da unidade de cidades da Inteli, é fulcral que as
políticas públicas estimulem e alavanquem estas “prá-
ticas e intervenções sociotécnicas descentralizadas e
distribuídas, de forma a que estas ganhem abrangência
e relevância, numa lógica de governação urbana cola-
borativa e experimentalista”.
Olhando para o futuro, é difícil prever como estes
movimentos de cidadania irão evoluir e qual o seu im-
pacto na organização da cidade. Mas, à medida que o
fervilhar destas iniciativas aumenta, José Carlos Mota
antevê dois cenários: “ou as lideranças políticas perce-
bem o poder de mobilização e transformação que exis-
te nestas organizações e trazem-nas para a sua pró-
pria dinâmica; ou estes diálogos não se estabelecem e
criam-se tensões, focos de conflito, que, mais tarde ou
mais cedo, dão origem a novas lideranças políticas de
natureza independente”.
Ainda que a maioria opte por uma postura passiva,
é certo, porém, que o cidadão está a ganhar força e que,
perante a falta de actuação do poder político, este já
não hesita em agir. Esse é um factor positivo, defende
o urbanista, pois “significa que há uma maior maturi-
dade das diferentes formas de organização cívica, há
uma certa profissionalização da cidadania”. Mas esta
realidade pode também trazer um cenário “preocu-
pante: a ideia de que o Estado, afinal, não é muito im-
portante. Se o Estado, de repente, é substituído pelas
organizações cívicas ou, eventualmente, até por pri-
vados, para que é que precisamos dele?”. Em cidades
como Berlim ou Bolonha, há cerca de 40 a 50 inicia-
tivas cívicas de gestão de cidade, um número que dei-
xa José Carlos Mota desconfortável. “Receio que esta
tendência ponha em causa o interesse colectivo, que,
em última análise, é defendido pelo Estado e não pelos
cidadãos”, alerta. SC
O VIVÓ BAIRRO INCLUIU
60 INICIATIVAS COM VISTA
A REGENERAR O CENTRO
HISTÓRICO DE AVEIRO COM
A AJUDA DA COMUNIDADE
LOCAL.
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