1) Ensinar matemática para crianças surdas é desafiador devido à barreira da linguagem, já que a Língua Brasileira de Sinais (Libras) nem sempre é introduzida cedo.
2) Estratégias como substituir números escritos por sinais em Libras podem ajudar alunos surdos a compreenderem conceitos matemáticos.
3) A formação ideal de professores inclui conhecimentos básicos em Libras para que possam se comunicar melhor com alunos surdos.
1. Por que os surdos precisam enxergar a
matemática?
Os surdos têm uma maneira única de mergulhar no universo da matemática,por
meio do corpo e do olhar
Por Redação - Editorias: Universidade
Imagine que você precisa ensinar matemática para uma criança
ouvinte. Você pode falar, por exemplo, que “duas vezes dois é igual a
quatro”, e ainda usar os dedos para mostrar essa quantidade, e ela vai
aprender. Alguns anos depois, você precisa ensinar que o sinal de X
naquela conta é diferente do X que representa um número desconhecido.
Não parece impossível, certo? Afinal, isso é ensinado a todo o tempo nas
escolas.
Entretanto, algo que pode passar despercebido no processo de
aprendizagem é a língua. Ouvir e falar é natural, e é por meio dessa
comunicação que aprendemos, entre outras coisas, os conceitos
matemáticos. Mas se os surdos não se comunicam da mesma maneira,
como ensiná-los o mesmo conteúdo? A resposta é simples, afinal existe a
Língua Brasileira de Sinais (Libras). Na prática, outros problemas afetam
o aprendizado de crianças surdas, principalmente na difusão dessa língua.
De acordo com a professora Adriana Bellotti, do Instituto de Ciências
Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP, em São Carlos, é o
acesso a essa língua que vai fazer com que o surdo conheça o mundo, a
matemática ou qualquer outra coisa. “O principal desafio para se ensinar
qualquer disciplina para o surdo é a língua. Somos uma sociedade
majoritariamente ouvinte, e o surdo, inserido nela, tem uma diferença
linguística”, afirma.
Essa diferença linguística se torna um problema quando crianças surdas
não têm acesso ao aprendizado da Libras desde pequenas, causando um
atraso no seu desenvolvimento. “A língua de sinais tem que ser a primeira
língua para o aluno surdo, pois é por meio dela que ele forma seus
conceitos no ensino de matemática. Para ele compreender o conceito,
precisa ter uma língua, que o faz compreender tudo, para que a
2. conhecimento dele também evolua. Linguagem e cognição andam sempre
juntos”, explica Adriana.
Adriana ministrando o curso de ensino de matemática para surdos – Foto: Denise Casatti
As dificuldades da língua
E o que impede essas crianças de não terem a exposição ideal à língua
de sinais? Um dos problemas, segundo Adriana, é a tentativa de levá-los
a usar a linguagem falada, ou oralidade: “A grande maioria dos surdos são
filhos de pais ouvintes. Por isso, a tendência desses pais é buscar técnicas
reabilitadoras da audição e, consequentemente, da oralização. Nesse
processo, que pode durar aproximadamente sete anos, a criança pode não
estabelecer linguagem alguma, oral nem visual”. Com isso, é estabelecido
o atraso no aprendizado por conta da linguagem.
O outro problema, de acordo com Adriana, está no formato atual da escola
inclusiva. Hoje, nessas escolas, existe um intérprete em sala de aula que
faz a intermediação entre as línguas – entre o professor regente e o aluno
surdo. Mas a especialista afirma que esse formato não é efetivamente
inclusivo, visto que o professor não possui conhecimento da outra língua.
“Esse aluno está inserido num ambiente ouvinte, mas ele tem um contato
mínimo com seus colegas porque muitos não sabem se comunicar com
ele. Então, ele fica restrito ao intérprete”, ela afirma. E isso resulta em uma
situação onde o intérprete acaba se responsabilizando pelo aluno, quando
essa função deveria ser do professor. “Essa relação entre professor e
aluno deveria ser mais próxima por meio de um conhecimento básico da
língua de sinais. O professor não precisa ter domínio completo da língua,
mas, pelo menos, um conhecimento mínimo para incluir o aluno no
3. contexto das explicações”, diz.Imagine, então, que juntando todas essas
situações, o que poderia ser um problema simples acaba se acumulando
à medida que o conteúdo da escola avança. Como o aluno chega na
escola sem domínio de uma língua, o intérprete precisa ensinar tanto a
comunicação em Libras quanto o sinal de um conceito matemático que a
criança nunca viu. “Ou seja, ele tem que, ao mesmo tempo, constituir a
língua e compreender os conceitos. Isso vai gerar um atraso na
aprendizagem”, explica Adriana.
.
Trocando números por sinais
Quando a criança já está atrasada no conteúdo, o que fazer? Até mesmo
um jogo de “par ou ímpar” pode não fazer sentido para ela. Por isso, Diany
Nakamura, estudante de Licenciatura em Matemática do ICMC, pesquisou
algumas estratégias para ensinar um aluno do 9º ano do Ensino
Fundamental. Com deficiência auditiva, o estudante teve seu ensino
prejudicado pela dificuldade de acesso ao conhecimento, já que não havia
um intérprete em sala de aula.
Para promover a utilização de materiais adaptados, Diany trocou os
números escritos da tabuada pelo sinal equivalente em Libras: “Quem tem
deficiência auditiva e sabe Libras tem um reconhecimento visuo-espacial,
ou seja, quando você faz um movimento com as mãos, ele imediatamente
procura na cabeça o significado daquilo. É um processo que acontece
muito mais rapidamente do que se o educador mostrasse o número por
escrito”.
4. Folha de tabuada em Libras, feita por Diany. Cada coluna representa um valor da tabuada,
do 3 ao 8 – Imagem: Diany Nakamurav
De acordo com Diany, o estudante não fazia a contagem numérica usando
as mãos, associando cada dedo a uma unidade. Então, na hora de jogar
“par ou ímpar”, por exemplo, ele não compreendia que havia um número
sendo mostrado, mas tentava interpretar se aquela disposição da mão
significava um sinal em Libras. Por isso, Diany mudou o jeito de jogar “par
ou ímpar”: a ideia foi usar o sinal em Libras do número desejado em vez
de simplesmente contar os dedos.
5. Segundo ela, aos poucos, o conceito foi sendo internalizado no aluno, e
ele passou a compreender até mesmo a diferença entre equações. “Hoje,
ele tem menos dificuldades na escola, e o atraso não é tão evidente”,
afirma.
.
A escola bilíngue
O desafio, hoje, é que a Libras seja uma língua em circulação na sala de
aula. Por isso, o formato ideal, de acordo com Adriana, é a escola bilíngue,
em que a Libras seja a primeira língua. “Essa escola valoriza a língua de
sinais, tudo é ensinado em língua de sinais. Em um segundo momento,
entra a língua portuguesa na modalidade escrita”, explica a professora.
Mas também é necessário que a educação em casa seja feita em Libras.
“O ideal é o ensino de língua de sinais desde quando for diagnosticada a
surdez. Com isso, começa todo um processo de exposição à língua,
porque é assim que a criança vai aprender e, quando chegar à escola, já
tem uma língua constituída”, diz a professora.
Se houver esse embasamento, até nas escolas inclusivas, com a presença
de um intérprete, a intermediação será mais eficiente. “O aluno já vai ter
subsídios para compreender esse conteúdo por conta da língua de sinais
que já estará constituída”, afirma.
.
A formação do professor
Se é preciso que o professor tenha, pelo menos, uma noção básica da
língua de sinais, como formar esse profissional para que ele seja ainda
mais capacitado? Por meio de um decreto publicado no Brasil em 2005, os
cursos de licenciatura no país devem oferecer uma disciplina curricular
obrigatória de Libras, enquanto os bacharelados devem tê-la como
optativa. Mas isso não é suficiente para formar um profissional na língua.
“Assim como qualquer língua, nós não conseguimos aprender a Libras em
seis meses nem mesmo em um ano. O professor precisa ter noção de
quem é o surdo, quais são as especificidades dele, qual é a melhor forma
dele aprender, como se deu todo esse processo de educação até chegar
onde ele está agora”, explica.
A disciplina de ensino de Libras é ministrada por Adriana nos cursos de
licenciatura em Matemática, oferecido pelo ICMC, e licenciatura em
Ciências Exatas, oferecido em parceria com o Instituto de Química de São
Carlos e Instituto de Física de São Carlos. Pedagoga e doutora em
educação, ela dedica sua carreira acadêmica à pesquisa e docência na
área de educação de surdos. A disciplina prioriza o vocabulário básico,
para que o professor seja capaz de se comunicar com o aluno surdo.
6. Assim, o educador construirá uma relação com esses alunos e, ainda que
não saiba a língua por completo, poderá assumir a responsabilidade pelo
ensino, a qual deixará de ser do intérprete. A partir daí, eles podem
estabelecer uma parceria para pensar em práticas e estratégias que
favoreçam o aprendizado dos alunos surdos.
Alunos do curso de ensino de matemática em Libras dizem “A matemática está em tudo”
– Foto: Denise Casatti
Além das disciplinas regulares, Adriana ministra um curso de extensão
sobre ensino de matemática para surdos, que é aberto à comunidade,
onde o conteúdo é aprofundado. Por isso, o requisito básico é que os
participantes tenham um curso introdutório de Libras. Entre os
matriculados estão alunos que fizeram a disciplina regular e quiseram dar
continuidade ao estudo, professores de outras instituições, alunos de
mestrado e doutorado, professores da rede municipal e intérpretes de
língua de sinais.
No curso, Adriana apresenta um tema e, durante as aulas, os participantes
debatem as melhores formas de transmitir o conteúdo e os conceitos aos
surdos. “Trabalhamos estratégias metodológicas, reflexões mais
7. aprofundadas sobre o ensino de matemática para surdos, visto que os
alunos já têm uma base na língua”, afirma.
Um exemplo do conteúdo abordado é a geometria. Inicialmente, achamos
que é mais simples para os alunos surdos aprenderem esse conteúdo, por
ser mais visual. Mas, apesar de captar a imagem com mais facilidade, eles
ainda precisam compreender o conceito. Explicar o que é um triângulo,
qual o seu sinal, o que é ângulo são, de acordo com Adriana, algumas das
dificuldades encontradas no caminho: “temos que proporcionar atividades
práticas para que ele compreenda o conceito”, explica. Segundo ela, o
aspecto visual é extremamente importante, mas deve ser aliado a um
suporte, como um material de apoio em Libras para o aluno estudar.
Adriana ainda explica que, em alguns casos, o intérprete pode entrar em
acordo com o aluno para criar um sinal, porque a construção do conceito
caminha junto com a linguagem. “Como a língua de sinais é uma língua
em construção, temos muitas áreas que não têm um vocabulário oficial.
Então, o intérprete vai construindo a língua junto com o aluno, na prática.
Esse acordo é possível desde que, em outro momento, exista um trabalho
para conhecer o sinal oficial”, conta a professora.
Segundo ela, é preciso existir uma maior valorização da língua de sinais,
para que os professores compreendam sua necessidade. “Os professores
têm o conhecimento específico da matemática, mas não sabem a
metodologia, a didática e a prática, com esse olhar voltado para o surdo e
sua especificidade”, diz Adriana.
A professora finaliza afirmando que o principal problema nessa área está
relacionado à forma como as pessoas enxergam a língua de sinais: “É
importante que existam as leis, mas um dos desafios é a língua sair do
status de apenas obrigatória. No meio social, as pessoas precisam
valorizá-la enquanto língua, em vez de gestos ou mímica. Ela tem
características próprias que a definem enquanto meio de comunicação e
expressão da comunidade surda, e se é importante, assim como o inglês
ou espanhol, por que não ser uma disciplina curricular para as crianças?
Se for assim, no momento em que elas precisarem usar a Libras, vai ser
natural”.
Alexandre Wolf/Assessoria de Comunicação ICMC
Link: http://jornal.usp.br/universidade/por-que-os-surdos-precisam-enxergar-a-matematica/