SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 4
Baixar para ler offline
1
NNooaamm CChhoommsskkyy:: ““AAss ppeessssooaass jjáá nnããoo aaccrreeddiittaamm nnooss ffaattooss””
Prestes a fazer 90 anos, acaba de abandonar o MIT. Ali revolucionou a
linguística moderna e se transformou na consciência crítica dos EUA.
JAN MARTÍNEZ AHRENS (EL PAÍS – 12 MAR 2018)
Noam Chomsky (Filadélfia, 1928) superou faz tempo as barreiras da vaidade. Não fala de sua
vida privada, não usa celular e em um tempo onde abunda o líquido e até o gasoso, ele
representa o sólido. Foi detido por opor-se à Guerra do Vietnã, figurou na lista negra de
Richard Nixon, apoiou a publicação dos Papéis do Pentágono e denunciou a guerra suja de
Ronald Reagan. Ao longo de 60 anos, não há luta que ele não tenha travado. Defende tanto a
causa curda como o combate à mudança climática. Tanto aparece em uma manifestação do
Occupy Movement como apoia os imigrantes sem documentos.
Mergulhado na agitação permanente, o jovem que nos anos cinquenta deslumbrou o mundo
com a gramática gerativa e seus universais, longe de descansar sobre as glórias do filósofo,
optou pelo movimento contínuo. Não se importou com que o acusassem de antiamericano
ou extremista. Sempre seguiu em frente com valentia, enfrentando os demônios do
capitalismo − sejam os grandes bancos, os conglomerados militares ou Donald Trump. À
prova de fogo, sua última obra volta a confirmar sua tenacidade. Em Réquiem para o sonho
americano (editora Bertrand Brasil), ele põe no papel as teses expostas no documentário
homônimo e denuncia a obscena concentração de riqueza e poder que exibem as
democracias ocidentais. O resultado são 192 páginas de Chomsky em estado puro. Vibrante e
claro.
Preparado para o ataque.
O senhor se considera um radical?
— Todos consideramos a nós mesmos moderados e razoáveis.
Defina-se ideologicamente.
— Acredito que toda autoridade tem de se justificar. Que toda hierarquia é ilegítima
enquanto não demonstrar o contrário. Às vezes pode se justificar, mas na maioria das vezes,
não. E isso... isso é anarquismo.
Uma luz seca envolve Chomsky. Depois de 60 anos dando aulas no Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT), o professor veio viver nos confins do deserto de Sonora, no Arizona. Em
Tucson, a mais de 4.200 quilômetros de Boston, ele se instalou e estreou um escritório no
Departamento de Linguística da Universidade do Arizona. O centro é um dos poucos pontos
verdes dessa cidade abrasadora. Freixos, salgueiros, palmeiras e nogueiras crescem em torno
de um edifício de tijolos vermelhos de 1904 onde tudo fica pequeno, mas tudo é acolhedor.
Pelas paredes há fotos de alunos sorridentes, mapas das populações indígenas, estudos de
fonética, cartazes de atos culturais e, no fundo do corredor, à direita, o escritório do maior
linguista vivo.
O lugar não tem nada a ver com o espaço inovador do Frank Gehry que o abrigava em
Boston. Aqui, mal cabe uma mesa de trabalho e outra para sentar-se com dois ou três alunos.
2
O recém estreado escritório de um dos acadêmicos mais citados do século XX ainda não tem
livros próprios, e seu principal ponto de atenção recai em duas janelas que inundam a sala de
âmbar. Chomsky, em calças jeans e longos cabelos brancos, gosta dessa atmosfera calorosa.
A luz do deserto foi um dos motivos que o levaram a se mudar para Tucson. “É seca e clara”,
comenta. Sua voz é grave e ele deixa que se perca nos meandros de cada resposta. Gosta de
falar longamente. Pressa não é com ele.
Pergunta. Vivemos uma época de desencanto?
Resposta. Já faz 40 anos que o neoliberalismo, liderado por Ronald Reagan e Margaret
Thatcher, assaltou o mundo. E isso teve um efeito. A concentração aguda de riqueza em
mãos privadas veio acompanhada de uma perda do poder da população geral. As pessoas se
sentem menos representadas e levam uma vida precária, com trabalhos cada vez piores. O
resultado é uma mistura de aborrecimento, medo e escapismo. Já não se confia nem nos
próprios fatos. Há quem chama isso de populismo, mas na verdade é descrédito das
instituições.
P. E assim surgem as fake news (os boatos)?
R. A desilusão com as estruturas institucionais levou a um ponto em que as pessoas já não
acreditam nos fatos. Se você não confia em ninguém, por que tem de confiar nos fatos? Se
ninguém faz nada por mim, por que tenho de acreditar em alguém?
P. Nem mesmo nos veículos de comunicação?
R. A maioria está servindo aos interesses de Trump.
P. Mas há alguns muito críticos, como The New York Times, The Washington Post, CNN…
R. Olhe a televisão e as primeiras páginas dos jornais. Não há nada mais que Trump, Trump,
Trump. A mídia caiu na estratégia traçada por Trump. Todo dia ele lhes dá um estímulo ou
uma mentira para se manter sob os holofotes e ser o centro da atenção. Enquanto isso, o
flanco selvagem dos republicanos vai desenvolvendo sua política de extrema direita,
cortando direitos dos trabalhadores e abandonando a luta contra a mudança climática, que é
precisamente aquilo que pode acabar com todos nós.
P. O senhor vê em Trump um risco para a democracia?
R. Representa um perigo grave. Liberou de forma consciente e deliberada ondas de racismo,
xenofobia e sexismo que estavam latentes, mas que ninguém tinha legitimado.
P. Ele voltará a ganhar?
R. É possível, se conseguir retardar o efeito letal de suas políticas. É um demagogo e
showman consumado que sabe como manter ativa sua base de adoradores. Também joga a
seu favor o fato de que os democratas estão mergulhados na confusão e podem não ser
capazes de apresentar um programa convincente.
P. Continua apoiando o senador democrata Bernie Sanders?
3
R. É um homem decente. Usa o termo socialista, mas nele significa mais um New Deal
democrata. Suas propostas, de fato, não seriam estranhas a Eisenhower [presidente dos EUA
pelo Partido Republicano de 1953 a 1961]. Seu sucesso, mais que o de Trump, foi a
verdadeira surpresa das eleições de 2016. Pela primeira vez em um século houve alguém que
esteve a ponto de ser candidato sem apoio das corporações nem dos veículos de
comunicação, só com o apoio popular.
P. Houve um deslizamento para a direita do espectro político?
R. Na elite do espectro político sim, ocorreu esse deslizamento, mas não na população em
geral. Desde os anos oitenta se vive uma ruptura entre o que as pessoas desejam e as
políticas públicas. É fácil ver isso no caso dos impostos. As pesquisas mostram que a maioria
quer impostos mais altos para os ricos. Mas isso nunca se leva a cabo. Frente a isso se
promoveu a ideia de que reduzir impostos traz vantagens para todos e que o Estado é o
inimigo. Mas quem se beneficia com o reduzir verbas para estradas, hospitais, água limpa e ar
respirável?
P. Então o neoliberalismo triunfou?
R. O neoliberalismo existe, mas só para os pobres. O mercado livre é para eles, não para nós.
Essa é a história do capitalismo. As grandes corporações empreenderam a luta de classes, são
autênticos marxistas, mas com os valores invertidos. Os princípios do livre mercado são
ótimos para ser aplicados aos pobres, mas os muito ricos são protegidos. As grandes
indústrias de energia recebem subvenções de centenas de milhões de dólares, a economia de
alta tecnologia se beneficia das pesquisas públicas de décadas anteriores, as entidades
financeiras obtêm ajuda maciça depois de afundar… Todas elas vivem com um seguro: são
consideradas muito grandes para cair e são resgatadas quando têm problemas. No fim das
contas, os impostos servem para subvencionar essas entidades e com elas, os ricos e
poderosos. Além disso, se diz à população que o Estado é o problema e se reduz seu campo
de ação. E o que ocorre? Seu espaço é ocupado pelo poder privado, e a tirania das grandes
corporações fica cada vez maior.
P. O que o senhor descreve soa a George Orwell.
R. Até Orwell estaria assombrado. Vivemos a ficção de que o mercado é maravilhoso porque
nos dizem que está composto por consumidores informados que adotam decisões racionais.
Mas basta ligar a televisão e ver os anúncios: procuram informar o consumidor para que
tome decisões racionais? Ou procuram enganar? Pensemos, por exemplo, nos anúncios de
carros. Oferecem dados sobre suas características? Apresentam informes realizados por
entidades independentes? Porque isso sim que geraria consumidores informados capazes de
tomar decisões racionais. Em vez disso, o que vemos é um carro voando, pilotado por um
ator famoso. Tentam prejudicar o mercado. As empresas não querem mercados livres,
querem mercados cativos. De outra forma, colapsariam.
P. Diante dessa situação, não é muito fraca a contestação social?
R. Há muitos movimentos populares muito ativos, mas não se presta atenção neles porque as
elites não querem que se aceite o fato de que a democracia pode funcionar. Isso é perigoso
4
para elas. Pode ameaçar seu poder. O melhor é impor uma visão que diz a você que o Estado
é seu inimigo e que você tem de fazer o que puder sozinho.
P. Trump usa frequentemente o termo antiamericano. Como o senhor entende esse termo?
R. Os Estados Unidos são o único país onde, por criticar o Governo, te chamam de
antiamericano. E isso representa um controle ideológico, acendendo fogueiras patrióticas por
toda parte.
P. Em alguns lugares da Europa também ocorre isso.
R. Mas nada comparável ao que ocorre aqui, não há outro país onde se vejam tantas
bandeiras.
P. O senhor teme o nacionalismo?
R. Depende. Se isso significa estar interessado em sua cultura local, é bom. Mas se for uma
arma contra outros, sabemos aonde pode conduzir, já vimos e experimentamos isso.
P. Acha possível que se repita o que ocorreu nos anos trinta?
R. A situação se deteriorou. Depois da eleição de Barack Obama se desencadeou uma reação
racista de enorme virulência, com campanhas que negavam sua cidadania e identificavam o
presidente negro com o anticristo. Houve muitas manifestações de ódio. No entanto, os EUA
não são a República de Weimar [democracia alemã anterior ao nazismo]. Precisamos estar
preocupados, mas as probabilidades de que se repita algo assim não são altas.
P. Seu livro começa lembrando a Grande Depressão, uma época em que “tudo estava pior
que agora, mas havia um sentimento de que tudo iria melhorar”.
R. Eu me lembro perfeitamente. Minha família era de classe trabalhadora, estava
desempregada e não tinha educação. Objetivamente, era uma época muito pior que agora,
mas havia um sentimento de que todos estávamos juntos naquilo. Havia um presidente
compreensivo com o sofrimento, os sindicatos estavam organizados, havia movimentos
populares… Tinha-se a ideia de que juntos podíamos vencer a crise. E isso se perdeu. Agora
vivemos a sensação de que estamos sozinhos, de que não há nada a fazer, de que o Estado
está contra nós…
P. Ainda tem esperanças?
R. Claro que há esperança. Ainda há movimentos populares, gente disposta a lutar… As
oportunidades estão aí, a questão é se somos capazes de aproveitá-las.
Chomsky termina com um sorriso. Deixa vibrando no ar sua voz grave e se despede com
extrema cortesia. Em seguida, sai do escritório e desce as escadas da faculdade. Fora,
esperam-lhe Tucson e a luz seca do deserto de Sonora.
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/06/cultura/1520352987_936609.html

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a Chomsky: As pessoas já não acreditam nos fatos

O DESASTROSO E ANTIDEMOCRÁTICO GOVERNO DONALD TRUMP
O DESASTROSO E ANTIDEMOCRÁTICO GOVERNO DONALD TRUMP O DESASTROSO E ANTIDEMOCRÁTICO GOVERNO DONALD TRUMP
O DESASTROSO E ANTIDEMOCRÁTICO GOVERNO DONALD TRUMP Fernando Alcoforado
 
A democracia sob ataque terá de ser reinventada
A democracia sob ataque terá de ser reinventadaA democracia sob ataque terá de ser reinventada
A democracia sob ataque terá de ser reinventadaaugustodefranco .
 
Publica%c3%a7%c3%a3o+message
Publica%c3%a7%c3%a3o+messagePublica%c3%a7%c3%a3o+message
Publica%c3%a7%c3%a3o+messageISSUU48
 
O Indivíduo na Sociedade - Emma Goldman
O Indivíduo na Sociedade - Emma GoldmanO Indivíduo na Sociedade - Emma Goldman
O Indivíduo na Sociedade - Emma GoldmanBlackBlocRJ
 
A esquerda e o crime organizado
A esquerda e o crime organizadoA esquerda e o crime organizado
A esquerda e o crime organizadoGiba Canto
 
12 Impunidade Nunca Mais
12 Impunidade Nunca Mais12 Impunidade Nunca Mais
12 Impunidade Nunca MaisHoracio Ruiz
 
O Avanço do Fascismo no Brasil
O Avanço do Fascismo no BrasilO Avanço do Fascismo no Brasil
O Avanço do Fascismo no BrasilMarcela Mapeli
 
Jornal Inconfidência nº 272
Jornal Inconfidência nº 272Jornal Inconfidência nº 272
Jornal Inconfidência nº 272Lucio Borges
 
OS 7 DIAS QUE ABALARAM O BRASIL
OS 7 DIAS QUE ABALARAM O BRASILOS 7 DIAS QUE ABALARAM O BRASIL
OS 7 DIAS QUE ABALARAM O BRASILaugustodefranco .
 
Midia Noam Chomsky LIVRO PDF
Midia   Noam Chomsky LIVRO PDFMidia   Noam Chomsky LIVRO PDF
Midia Noam Chomsky LIVRO PDFELIAS OMEGA
 
Midia PROPAGADA POLITICA E MANIPULAÇAO Noam chomsky (2)
Midia PROPAGADA POLITICA E MANIPULAÇAO Noam chomsky (2)Midia PROPAGADA POLITICA E MANIPULAÇAO Noam chomsky (2)
Midia PROPAGADA POLITICA E MANIPULAÇAO Noam chomsky (2)ELIAS OMEGA
 
Fim do poder mundial ou da governabilidade global
Fim do poder mundial ou da governabilidade globalFim do poder mundial ou da governabilidade global
Fim do poder mundial ou da governabilidade globalRoberto Rabat Chame
 
Fim do poder mundial ou da governabilidade global
Fim do poder mundial ou da governabilidade globalFim do poder mundial ou da governabilidade global
Fim do poder mundial ou da governabilidade globalFernando Alcoforado
 
Jornal Inconfidência nº 226 de 30 de abril/2016‏
Jornal Inconfidência nº 226 de 30 de abril/2016‏Jornal Inconfidência nº 226 de 30 de abril/2016‏
Jornal Inconfidência nº 226 de 30 de abril/2016‏Lucio Borges
 

Semelhante a Chomsky: As pessoas já não acreditam nos fatos (20)

Powerpopint
PowerpopintPowerpopint
Powerpopint
 
O DESASTROSO E ANTIDEMOCRÁTICO GOVERNO DONALD TRUMP
O DESASTROSO E ANTIDEMOCRÁTICO GOVERNO DONALD TRUMP O DESASTROSO E ANTIDEMOCRÁTICO GOVERNO DONALD TRUMP
O DESASTROSO E ANTIDEMOCRÁTICO GOVERNO DONALD TRUMP
 
Trump ameaça à paz mundial
Trump ameaça à paz mundialTrump ameaça à paz mundial
Trump ameaça à paz mundial
 
A democracia sob ataque terá de ser reinventada
A democracia sob ataque terá de ser reinventadaA democracia sob ataque terá de ser reinventada
A democracia sob ataque terá de ser reinventada
 
Publica%c3%a7%c3%a3o+message
Publica%c3%a7%c3%a3o+messagePublica%c3%a7%c3%a3o+message
Publica%c3%a7%c3%a3o+message
 
O Indivíduo na Sociedade - Emma Goldman
O Indivíduo na Sociedade - Emma GoldmanO Indivíduo na Sociedade - Emma Goldman
O Indivíduo na Sociedade - Emma Goldman
 
Admirável Mundo Novo
Admirável Mundo NovoAdmirável Mundo Novo
Admirável Mundo Novo
 
A esquerda e o crime organizado
A esquerda e o crime organizadoA esquerda e o crime organizado
A esquerda e o crime organizado
 
12 Impunidade Nunca Mais
12 Impunidade Nunca Mais12 Impunidade Nunca Mais
12 Impunidade Nunca Mais
 
GUERRA OU PAZ?
GUERRA OU PAZ?GUERRA OU PAZ?
GUERRA OU PAZ?
 
O Avanço do Fascismo no Brasil
O Avanço do Fascismo no BrasilO Avanço do Fascismo no Brasil
O Avanço do Fascismo no Brasil
 
A década da utopia
A década da utopiaA década da utopia
A década da utopia
 
Representação da multidão
Representação da multidãoRepresentação da multidão
Representação da multidão
 
Jornal Inconfidência nº 272
Jornal Inconfidência nº 272Jornal Inconfidência nº 272
Jornal Inconfidência nº 272
 
OS 7 DIAS QUE ABALARAM O BRASIL
OS 7 DIAS QUE ABALARAM O BRASILOS 7 DIAS QUE ABALARAM O BRASIL
OS 7 DIAS QUE ABALARAM O BRASIL
 
Midia Noam Chomsky LIVRO PDF
Midia   Noam Chomsky LIVRO PDFMidia   Noam Chomsky LIVRO PDF
Midia Noam Chomsky LIVRO PDF
 
Midia PROPAGADA POLITICA E MANIPULAÇAO Noam chomsky (2)
Midia PROPAGADA POLITICA E MANIPULAÇAO Noam chomsky (2)Midia PROPAGADA POLITICA E MANIPULAÇAO Noam chomsky (2)
Midia PROPAGADA POLITICA E MANIPULAÇAO Noam chomsky (2)
 
Fim do poder mundial ou da governabilidade global
Fim do poder mundial ou da governabilidade globalFim do poder mundial ou da governabilidade global
Fim do poder mundial ou da governabilidade global
 
Fim do poder mundial ou da governabilidade global
Fim do poder mundial ou da governabilidade globalFim do poder mundial ou da governabilidade global
Fim do poder mundial ou da governabilidade global
 
Jornal Inconfidência nº 226 de 30 de abril/2016‏
Jornal Inconfidência nº 226 de 30 de abril/2016‏Jornal Inconfidência nº 226 de 30 de abril/2016‏
Jornal Inconfidência nº 226 de 30 de abril/2016‏
 

Mais de Giba Canto

Casamento à prova de amantes (Cristina Chen)
Casamento à prova de amantes (Cristina Chen)Casamento à prova de amantes (Cristina Chen)
Casamento à prova de amantes (Cristina Chen)Giba Canto
 
SHOCKLEY FATORES AO ESCREVER UM ARTIGO.pdf
SHOCKLEY FATORES AO ESCREVER UM ARTIGO.pdfSHOCKLEY FATORES AO ESCREVER UM ARTIGO.pdf
SHOCKLEY FATORES AO ESCREVER UM ARTIGO.pdfGiba Canto
 
Caso de marketing Glastron Giba Canto.pdf
Caso de marketing Glastron Giba Canto.pdfCaso de marketing Glastron Giba Canto.pdf
Caso de marketing Glastron Giba Canto.pdfGiba Canto
 
Fukuyama 20 anos depois (Almeida)
Fukuyama 20 anos depois (Almeida)Fukuyama 20 anos depois (Almeida)
Fukuyama 20 anos depois (Almeida)Giba Canto
 
A JUVENTUDE FAZ
A JUVENTUDE FAZA JUVENTUDE FAZ
A JUVENTUDE FAZGiba Canto
 
Corruption - Walfrido Warde 2018
Corruption - Walfrido Warde 2018Corruption - Walfrido Warde 2018
Corruption - Walfrido Warde 2018Giba Canto
 
Meninos de Zinco
Meninos de ZincoMeninos de Zinco
Meninos de ZincoGiba Canto
 
10 atitudes para o sucesso
10 atitudes para o sucesso10 atitudes para o sucesso
10 atitudes para o sucessoGiba Canto
 
Quem eh a i gen
Quem eh a i genQuem eh a i gen
Quem eh a i genGiba Canto
 
Geracoes no ocidente
Geracoes no ocidenteGeracoes no ocidente
Geracoes no ocidenteGiba Canto
 
Cultivando discípulos do futuro
Cultivando discípulos do futuroCultivando discípulos do futuro
Cultivando discípulos do futuroGiba Canto
 
Jordan Peterson OUT 2021
Jordan Peterson OUT 2021Jordan Peterson OUT 2021
Jordan Peterson OUT 2021Giba Canto
 
Leituras Prof Giba Canto ABR 2021
Leituras Prof Giba Canto ABR 2021Leituras Prof Giba Canto ABR 2021
Leituras Prof Giba Canto ABR 2021Giba Canto
 
Camarotes degradam o espirito civico
Camarotes degradam o espirito civicoCamarotes degradam o espirito civico
Camarotes degradam o espirito civicoGiba Canto
 
Verdade (Rita Canto)
Verdade (Rita Canto)Verdade (Rita Canto)
Verdade (Rita Canto)Giba Canto
 
COLI by Michael J Sandel
COLI by Michael J SandelCOLI by Michael J Sandel
COLI by Michael J SandelGiba Canto
 
Aforismos Imorais (Pondé)
Aforismos Imorais (Pondé)Aforismos Imorais (Pondé)
Aforismos Imorais (Pondé)Giba Canto
 
O mundo narcisico
O mundo narcisicoO mundo narcisico
O mundo narcisicoGiba Canto
 
O silencio do mundo (Pondé)
O silencio do mundo (Pondé)O silencio do mundo (Pondé)
O silencio do mundo (Pondé)Giba Canto
 
Capital Civico (Zingales)
Capital Civico (Zingales)Capital Civico (Zingales)
Capital Civico (Zingales)Giba Canto
 

Mais de Giba Canto (20)

Casamento à prova de amantes (Cristina Chen)
Casamento à prova de amantes (Cristina Chen)Casamento à prova de amantes (Cristina Chen)
Casamento à prova de amantes (Cristina Chen)
 
SHOCKLEY FATORES AO ESCREVER UM ARTIGO.pdf
SHOCKLEY FATORES AO ESCREVER UM ARTIGO.pdfSHOCKLEY FATORES AO ESCREVER UM ARTIGO.pdf
SHOCKLEY FATORES AO ESCREVER UM ARTIGO.pdf
 
Caso de marketing Glastron Giba Canto.pdf
Caso de marketing Glastron Giba Canto.pdfCaso de marketing Glastron Giba Canto.pdf
Caso de marketing Glastron Giba Canto.pdf
 
Fukuyama 20 anos depois (Almeida)
Fukuyama 20 anos depois (Almeida)Fukuyama 20 anos depois (Almeida)
Fukuyama 20 anos depois (Almeida)
 
A JUVENTUDE FAZ
A JUVENTUDE FAZA JUVENTUDE FAZ
A JUVENTUDE FAZ
 
Corruption - Walfrido Warde 2018
Corruption - Walfrido Warde 2018Corruption - Walfrido Warde 2018
Corruption - Walfrido Warde 2018
 
Meninos de Zinco
Meninos de ZincoMeninos de Zinco
Meninos de Zinco
 
10 atitudes para o sucesso
10 atitudes para o sucesso10 atitudes para o sucesso
10 atitudes para o sucesso
 
Quem eh a i gen
Quem eh a i genQuem eh a i gen
Quem eh a i gen
 
Geracoes no ocidente
Geracoes no ocidenteGeracoes no ocidente
Geracoes no ocidente
 
Cultivando discípulos do futuro
Cultivando discípulos do futuroCultivando discípulos do futuro
Cultivando discípulos do futuro
 
Jordan Peterson OUT 2021
Jordan Peterson OUT 2021Jordan Peterson OUT 2021
Jordan Peterson OUT 2021
 
Leituras Prof Giba Canto ABR 2021
Leituras Prof Giba Canto ABR 2021Leituras Prof Giba Canto ABR 2021
Leituras Prof Giba Canto ABR 2021
 
Camarotes degradam o espirito civico
Camarotes degradam o espirito civicoCamarotes degradam o espirito civico
Camarotes degradam o espirito civico
 
Verdade (Rita Canto)
Verdade (Rita Canto)Verdade (Rita Canto)
Verdade (Rita Canto)
 
COLI by Michael J Sandel
COLI by Michael J SandelCOLI by Michael J Sandel
COLI by Michael J Sandel
 
Aforismos Imorais (Pondé)
Aforismos Imorais (Pondé)Aforismos Imorais (Pondé)
Aforismos Imorais (Pondé)
 
O mundo narcisico
O mundo narcisicoO mundo narcisico
O mundo narcisico
 
O silencio do mundo (Pondé)
O silencio do mundo (Pondé)O silencio do mundo (Pondé)
O silencio do mundo (Pondé)
 
Capital Civico (Zingales)
Capital Civico (Zingales)Capital Civico (Zingales)
Capital Civico (Zingales)
 

Chomsky: As pessoas já não acreditam nos fatos

  • 1. 1 NNooaamm CChhoommsskkyy:: ““AAss ppeessssooaass jjáá nnããoo aaccrreeddiittaamm nnooss ffaattooss”” Prestes a fazer 90 anos, acaba de abandonar o MIT. Ali revolucionou a linguística moderna e se transformou na consciência crítica dos EUA. JAN MARTÍNEZ AHRENS (EL PAÍS – 12 MAR 2018) Noam Chomsky (Filadélfia, 1928) superou faz tempo as barreiras da vaidade. Não fala de sua vida privada, não usa celular e em um tempo onde abunda o líquido e até o gasoso, ele representa o sólido. Foi detido por opor-se à Guerra do Vietnã, figurou na lista negra de Richard Nixon, apoiou a publicação dos Papéis do Pentágono e denunciou a guerra suja de Ronald Reagan. Ao longo de 60 anos, não há luta que ele não tenha travado. Defende tanto a causa curda como o combate à mudança climática. Tanto aparece em uma manifestação do Occupy Movement como apoia os imigrantes sem documentos. Mergulhado na agitação permanente, o jovem que nos anos cinquenta deslumbrou o mundo com a gramática gerativa e seus universais, longe de descansar sobre as glórias do filósofo, optou pelo movimento contínuo. Não se importou com que o acusassem de antiamericano ou extremista. Sempre seguiu em frente com valentia, enfrentando os demônios do capitalismo − sejam os grandes bancos, os conglomerados militares ou Donald Trump. À prova de fogo, sua última obra volta a confirmar sua tenacidade. Em Réquiem para o sonho americano (editora Bertrand Brasil), ele põe no papel as teses expostas no documentário homônimo e denuncia a obscena concentração de riqueza e poder que exibem as democracias ocidentais. O resultado são 192 páginas de Chomsky em estado puro. Vibrante e claro. Preparado para o ataque. O senhor se considera um radical? — Todos consideramos a nós mesmos moderados e razoáveis. Defina-se ideologicamente. — Acredito que toda autoridade tem de se justificar. Que toda hierarquia é ilegítima enquanto não demonstrar o contrário. Às vezes pode se justificar, mas na maioria das vezes, não. E isso... isso é anarquismo. Uma luz seca envolve Chomsky. Depois de 60 anos dando aulas no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), o professor veio viver nos confins do deserto de Sonora, no Arizona. Em Tucson, a mais de 4.200 quilômetros de Boston, ele se instalou e estreou um escritório no Departamento de Linguística da Universidade do Arizona. O centro é um dos poucos pontos verdes dessa cidade abrasadora. Freixos, salgueiros, palmeiras e nogueiras crescem em torno de um edifício de tijolos vermelhos de 1904 onde tudo fica pequeno, mas tudo é acolhedor. Pelas paredes há fotos de alunos sorridentes, mapas das populações indígenas, estudos de fonética, cartazes de atos culturais e, no fundo do corredor, à direita, o escritório do maior linguista vivo. O lugar não tem nada a ver com o espaço inovador do Frank Gehry que o abrigava em Boston. Aqui, mal cabe uma mesa de trabalho e outra para sentar-se com dois ou três alunos.
  • 2. 2 O recém estreado escritório de um dos acadêmicos mais citados do século XX ainda não tem livros próprios, e seu principal ponto de atenção recai em duas janelas que inundam a sala de âmbar. Chomsky, em calças jeans e longos cabelos brancos, gosta dessa atmosfera calorosa. A luz do deserto foi um dos motivos que o levaram a se mudar para Tucson. “É seca e clara”, comenta. Sua voz é grave e ele deixa que se perca nos meandros de cada resposta. Gosta de falar longamente. Pressa não é com ele. Pergunta. Vivemos uma época de desencanto? Resposta. Já faz 40 anos que o neoliberalismo, liderado por Ronald Reagan e Margaret Thatcher, assaltou o mundo. E isso teve um efeito. A concentração aguda de riqueza em mãos privadas veio acompanhada de uma perda do poder da população geral. As pessoas se sentem menos representadas e levam uma vida precária, com trabalhos cada vez piores. O resultado é uma mistura de aborrecimento, medo e escapismo. Já não se confia nem nos próprios fatos. Há quem chama isso de populismo, mas na verdade é descrédito das instituições. P. E assim surgem as fake news (os boatos)? R. A desilusão com as estruturas institucionais levou a um ponto em que as pessoas já não acreditam nos fatos. Se você não confia em ninguém, por que tem de confiar nos fatos? Se ninguém faz nada por mim, por que tenho de acreditar em alguém? P. Nem mesmo nos veículos de comunicação? R. A maioria está servindo aos interesses de Trump. P. Mas há alguns muito críticos, como The New York Times, The Washington Post, CNN… R. Olhe a televisão e as primeiras páginas dos jornais. Não há nada mais que Trump, Trump, Trump. A mídia caiu na estratégia traçada por Trump. Todo dia ele lhes dá um estímulo ou uma mentira para se manter sob os holofotes e ser o centro da atenção. Enquanto isso, o flanco selvagem dos republicanos vai desenvolvendo sua política de extrema direita, cortando direitos dos trabalhadores e abandonando a luta contra a mudança climática, que é precisamente aquilo que pode acabar com todos nós. P. O senhor vê em Trump um risco para a democracia? R. Representa um perigo grave. Liberou de forma consciente e deliberada ondas de racismo, xenofobia e sexismo que estavam latentes, mas que ninguém tinha legitimado. P. Ele voltará a ganhar? R. É possível, se conseguir retardar o efeito letal de suas políticas. É um demagogo e showman consumado que sabe como manter ativa sua base de adoradores. Também joga a seu favor o fato de que os democratas estão mergulhados na confusão e podem não ser capazes de apresentar um programa convincente. P. Continua apoiando o senador democrata Bernie Sanders?
  • 3. 3 R. É um homem decente. Usa o termo socialista, mas nele significa mais um New Deal democrata. Suas propostas, de fato, não seriam estranhas a Eisenhower [presidente dos EUA pelo Partido Republicano de 1953 a 1961]. Seu sucesso, mais que o de Trump, foi a verdadeira surpresa das eleições de 2016. Pela primeira vez em um século houve alguém que esteve a ponto de ser candidato sem apoio das corporações nem dos veículos de comunicação, só com o apoio popular. P. Houve um deslizamento para a direita do espectro político? R. Na elite do espectro político sim, ocorreu esse deslizamento, mas não na população em geral. Desde os anos oitenta se vive uma ruptura entre o que as pessoas desejam e as políticas públicas. É fácil ver isso no caso dos impostos. As pesquisas mostram que a maioria quer impostos mais altos para os ricos. Mas isso nunca se leva a cabo. Frente a isso se promoveu a ideia de que reduzir impostos traz vantagens para todos e que o Estado é o inimigo. Mas quem se beneficia com o reduzir verbas para estradas, hospitais, água limpa e ar respirável? P. Então o neoliberalismo triunfou? R. O neoliberalismo existe, mas só para os pobres. O mercado livre é para eles, não para nós. Essa é a história do capitalismo. As grandes corporações empreenderam a luta de classes, são autênticos marxistas, mas com os valores invertidos. Os princípios do livre mercado são ótimos para ser aplicados aos pobres, mas os muito ricos são protegidos. As grandes indústrias de energia recebem subvenções de centenas de milhões de dólares, a economia de alta tecnologia se beneficia das pesquisas públicas de décadas anteriores, as entidades financeiras obtêm ajuda maciça depois de afundar… Todas elas vivem com um seguro: são consideradas muito grandes para cair e são resgatadas quando têm problemas. No fim das contas, os impostos servem para subvencionar essas entidades e com elas, os ricos e poderosos. Além disso, se diz à população que o Estado é o problema e se reduz seu campo de ação. E o que ocorre? Seu espaço é ocupado pelo poder privado, e a tirania das grandes corporações fica cada vez maior. P. O que o senhor descreve soa a George Orwell. R. Até Orwell estaria assombrado. Vivemos a ficção de que o mercado é maravilhoso porque nos dizem que está composto por consumidores informados que adotam decisões racionais. Mas basta ligar a televisão e ver os anúncios: procuram informar o consumidor para que tome decisões racionais? Ou procuram enganar? Pensemos, por exemplo, nos anúncios de carros. Oferecem dados sobre suas características? Apresentam informes realizados por entidades independentes? Porque isso sim que geraria consumidores informados capazes de tomar decisões racionais. Em vez disso, o que vemos é um carro voando, pilotado por um ator famoso. Tentam prejudicar o mercado. As empresas não querem mercados livres, querem mercados cativos. De outra forma, colapsariam. P. Diante dessa situação, não é muito fraca a contestação social? R. Há muitos movimentos populares muito ativos, mas não se presta atenção neles porque as elites não querem que se aceite o fato de que a democracia pode funcionar. Isso é perigoso
  • 4. 4 para elas. Pode ameaçar seu poder. O melhor é impor uma visão que diz a você que o Estado é seu inimigo e que você tem de fazer o que puder sozinho. P. Trump usa frequentemente o termo antiamericano. Como o senhor entende esse termo? R. Os Estados Unidos são o único país onde, por criticar o Governo, te chamam de antiamericano. E isso representa um controle ideológico, acendendo fogueiras patrióticas por toda parte. P. Em alguns lugares da Europa também ocorre isso. R. Mas nada comparável ao que ocorre aqui, não há outro país onde se vejam tantas bandeiras. P. O senhor teme o nacionalismo? R. Depende. Se isso significa estar interessado em sua cultura local, é bom. Mas se for uma arma contra outros, sabemos aonde pode conduzir, já vimos e experimentamos isso. P. Acha possível que se repita o que ocorreu nos anos trinta? R. A situação se deteriorou. Depois da eleição de Barack Obama se desencadeou uma reação racista de enorme virulência, com campanhas que negavam sua cidadania e identificavam o presidente negro com o anticristo. Houve muitas manifestações de ódio. No entanto, os EUA não são a República de Weimar [democracia alemã anterior ao nazismo]. Precisamos estar preocupados, mas as probabilidades de que se repita algo assim não são altas. P. Seu livro começa lembrando a Grande Depressão, uma época em que “tudo estava pior que agora, mas havia um sentimento de que tudo iria melhorar”. R. Eu me lembro perfeitamente. Minha família era de classe trabalhadora, estava desempregada e não tinha educação. Objetivamente, era uma época muito pior que agora, mas havia um sentimento de que todos estávamos juntos naquilo. Havia um presidente compreensivo com o sofrimento, os sindicatos estavam organizados, havia movimentos populares… Tinha-se a ideia de que juntos podíamos vencer a crise. E isso se perdeu. Agora vivemos a sensação de que estamos sozinhos, de que não há nada a fazer, de que o Estado está contra nós… P. Ainda tem esperanças? R. Claro que há esperança. Ainda há movimentos populares, gente disposta a lutar… As oportunidades estão aí, a questão é se somos capazes de aproveitá-las. Chomsky termina com um sorriso. Deixa vibrando no ar sua voz grave e se despede com extrema cortesia. Em seguida, sai do escritório e desce as escadas da faculdade. Fora, esperam-lhe Tucson e a luz seca do deserto de Sonora. Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/06/cultura/1520352987_936609.html