[1] Noam Chomsky, linguista e ativista político americano de 89 anos, mudou-se recentemente para a Universidade do Arizona após 60 anos no MIT. [2] Chomsky critica o crescente poder das corporações e a falta de representação popular nos EUA, e vê em Trump um risco para a democracia por legitimar o racismo e xenofobia. [3] Apesar disso, Chomsky mantém esperança nos movimentos populares que lutam por mudanças.
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Prestes a fazer 90 anos, acaba de abandonar o MIT. Ali revolucionou a
linguística moderna e se transformou na consciência crítica dos EUA.
JAN MARTÍNEZ AHRENS (EL PAÍS – 12 MAR 2018)
Noam Chomsky (Filadélfia, 1928) superou faz tempo as barreiras da vaidade. Não fala de sua
vida privada, não usa celular e em um tempo onde abunda o líquido e até o gasoso, ele
representa o sólido. Foi detido por opor-se à Guerra do Vietnã, figurou na lista negra de
Richard Nixon, apoiou a publicação dos Papéis do Pentágono e denunciou a guerra suja de
Ronald Reagan. Ao longo de 60 anos, não há luta que ele não tenha travado. Defende tanto a
causa curda como o combate à mudança climática. Tanto aparece em uma manifestação do
Occupy Movement como apoia os imigrantes sem documentos.
Mergulhado na agitação permanente, o jovem que nos anos cinquenta deslumbrou o mundo
com a gramática gerativa e seus universais, longe de descansar sobre as glórias do filósofo,
optou pelo movimento contínuo. Não se importou com que o acusassem de antiamericano
ou extremista. Sempre seguiu em frente com valentia, enfrentando os demônios do
capitalismo − sejam os grandes bancos, os conglomerados militares ou Donald Trump. À
prova de fogo, sua última obra volta a confirmar sua tenacidade. Em Réquiem para o sonho
americano (editora Bertrand Brasil), ele põe no papel as teses expostas no documentário
homônimo e denuncia a obscena concentração de riqueza e poder que exibem as
democracias ocidentais. O resultado são 192 páginas de Chomsky em estado puro. Vibrante e
claro.
Preparado para o ataque.
O senhor se considera um radical?
— Todos consideramos a nós mesmos moderados e razoáveis.
Defina-se ideologicamente.
— Acredito que toda autoridade tem de se justificar. Que toda hierarquia é ilegítima
enquanto não demonstrar o contrário. Às vezes pode se justificar, mas na maioria das vezes,
não. E isso... isso é anarquismo.
Uma luz seca envolve Chomsky. Depois de 60 anos dando aulas no Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT), o professor veio viver nos confins do deserto de Sonora, no Arizona. Em
Tucson, a mais de 4.200 quilômetros de Boston, ele se instalou e estreou um escritório no
Departamento de Linguística da Universidade do Arizona. O centro é um dos poucos pontos
verdes dessa cidade abrasadora. Freixos, salgueiros, palmeiras e nogueiras crescem em torno
de um edifício de tijolos vermelhos de 1904 onde tudo fica pequeno, mas tudo é acolhedor.
Pelas paredes há fotos de alunos sorridentes, mapas das populações indígenas, estudos de
fonética, cartazes de atos culturais e, no fundo do corredor, à direita, o escritório do maior
linguista vivo.
O lugar não tem nada a ver com o espaço inovador do Frank Gehry que o abrigava em
Boston. Aqui, mal cabe uma mesa de trabalho e outra para sentar-se com dois ou três alunos.
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O recém estreado escritório de um dos acadêmicos mais citados do século XX ainda não tem
livros próprios, e seu principal ponto de atenção recai em duas janelas que inundam a sala de
âmbar. Chomsky, em calças jeans e longos cabelos brancos, gosta dessa atmosfera calorosa.
A luz do deserto foi um dos motivos que o levaram a se mudar para Tucson. “É seca e clara”,
comenta. Sua voz é grave e ele deixa que se perca nos meandros de cada resposta. Gosta de
falar longamente. Pressa não é com ele.
Pergunta. Vivemos uma época de desencanto?
Resposta. Já faz 40 anos que o neoliberalismo, liderado por Ronald Reagan e Margaret
Thatcher, assaltou o mundo. E isso teve um efeito. A concentração aguda de riqueza em
mãos privadas veio acompanhada de uma perda do poder da população geral. As pessoas se
sentem menos representadas e levam uma vida precária, com trabalhos cada vez piores. O
resultado é uma mistura de aborrecimento, medo e escapismo. Já não se confia nem nos
próprios fatos. Há quem chama isso de populismo, mas na verdade é descrédito das
instituições.
P. E assim surgem as fake news (os boatos)?
R. A desilusão com as estruturas institucionais levou a um ponto em que as pessoas já não
acreditam nos fatos. Se você não confia em ninguém, por que tem de confiar nos fatos? Se
ninguém faz nada por mim, por que tenho de acreditar em alguém?
P. Nem mesmo nos veículos de comunicação?
R. A maioria está servindo aos interesses de Trump.
P. Mas há alguns muito críticos, como The New York Times, The Washington Post, CNN…
R. Olhe a televisão e as primeiras páginas dos jornais. Não há nada mais que Trump, Trump,
Trump. A mídia caiu na estratégia traçada por Trump. Todo dia ele lhes dá um estímulo ou
uma mentira para se manter sob os holofotes e ser o centro da atenção. Enquanto isso, o
flanco selvagem dos republicanos vai desenvolvendo sua política de extrema direita,
cortando direitos dos trabalhadores e abandonando a luta contra a mudança climática, que é
precisamente aquilo que pode acabar com todos nós.
P. O senhor vê em Trump um risco para a democracia?
R. Representa um perigo grave. Liberou de forma consciente e deliberada ondas de racismo,
xenofobia e sexismo que estavam latentes, mas que ninguém tinha legitimado.
P. Ele voltará a ganhar?
R. É possível, se conseguir retardar o efeito letal de suas políticas. É um demagogo e
showman consumado que sabe como manter ativa sua base de adoradores. Também joga a
seu favor o fato de que os democratas estão mergulhados na confusão e podem não ser
capazes de apresentar um programa convincente.
P. Continua apoiando o senador democrata Bernie Sanders?
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R. É um homem decente. Usa o termo socialista, mas nele significa mais um New Deal
democrata. Suas propostas, de fato, não seriam estranhas a Eisenhower [presidente dos EUA
pelo Partido Republicano de 1953 a 1961]. Seu sucesso, mais que o de Trump, foi a
verdadeira surpresa das eleições de 2016. Pela primeira vez em um século houve alguém que
esteve a ponto de ser candidato sem apoio das corporações nem dos veículos de
comunicação, só com o apoio popular.
P. Houve um deslizamento para a direita do espectro político?
R. Na elite do espectro político sim, ocorreu esse deslizamento, mas não na população em
geral. Desde os anos oitenta se vive uma ruptura entre o que as pessoas desejam e as
políticas públicas. É fácil ver isso no caso dos impostos. As pesquisas mostram que a maioria
quer impostos mais altos para os ricos. Mas isso nunca se leva a cabo. Frente a isso se
promoveu a ideia de que reduzir impostos traz vantagens para todos e que o Estado é o
inimigo. Mas quem se beneficia com o reduzir verbas para estradas, hospitais, água limpa e ar
respirável?
P. Então o neoliberalismo triunfou?
R. O neoliberalismo existe, mas só para os pobres. O mercado livre é para eles, não para nós.
Essa é a história do capitalismo. As grandes corporações empreenderam a luta de classes, são
autênticos marxistas, mas com os valores invertidos. Os princípios do livre mercado são
ótimos para ser aplicados aos pobres, mas os muito ricos são protegidos. As grandes
indústrias de energia recebem subvenções de centenas de milhões de dólares, a economia de
alta tecnologia se beneficia das pesquisas públicas de décadas anteriores, as entidades
financeiras obtêm ajuda maciça depois de afundar… Todas elas vivem com um seguro: são
consideradas muito grandes para cair e são resgatadas quando têm problemas. No fim das
contas, os impostos servem para subvencionar essas entidades e com elas, os ricos e
poderosos. Além disso, se diz à população que o Estado é o problema e se reduz seu campo
de ação. E o que ocorre? Seu espaço é ocupado pelo poder privado, e a tirania das grandes
corporações fica cada vez maior.
P. O que o senhor descreve soa a George Orwell.
R. Até Orwell estaria assombrado. Vivemos a ficção de que o mercado é maravilhoso porque
nos dizem que está composto por consumidores informados que adotam decisões racionais.
Mas basta ligar a televisão e ver os anúncios: procuram informar o consumidor para que
tome decisões racionais? Ou procuram enganar? Pensemos, por exemplo, nos anúncios de
carros. Oferecem dados sobre suas características? Apresentam informes realizados por
entidades independentes? Porque isso sim que geraria consumidores informados capazes de
tomar decisões racionais. Em vez disso, o que vemos é um carro voando, pilotado por um
ator famoso. Tentam prejudicar o mercado. As empresas não querem mercados livres,
querem mercados cativos. De outra forma, colapsariam.
P. Diante dessa situação, não é muito fraca a contestação social?
R. Há muitos movimentos populares muito ativos, mas não se presta atenção neles porque as
elites não querem que se aceite o fato de que a democracia pode funcionar. Isso é perigoso
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para elas. Pode ameaçar seu poder. O melhor é impor uma visão que diz a você que o Estado
é seu inimigo e que você tem de fazer o que puder sozinho.
P. Trump usa frequentemente o termo antiamericano. Como o senhor entende esse termo?
R. Os Estados Unidos são o único país onde, por criticar o Governo, te chamam de
antiamericano. E isso representa um controle ideológico, acendendo fogueiras patrióticas por
toda parte.
P. Em alguns lugares da Europa também ocorre isso.
R. Mas nada comparável ao que ocorre aqui, não há outro país onde se vejam tantas
bandeiras.
P. O senhor teme o nacionalismo?
R. Depende. Se isso significa estar interessado em sua cultura local, é bom. Mas se for uma
arma contra outros, sabemos aonde pode conduzir, já vimos e experimentamos isso.
P. Acha possível que se repita o que ocorreu nos anos trinta?
R. A situação se deteriorou. Depois da eleição de Barack Obama se desencadeou uma reação
racista de enorme virulência, com campanhas que negavam sua cidadania e identificavam o
presidente negro com o anticristo. Houve muitas manifestações de ódio. No entanto, os EUA
não são a República de Weimar [democracia alemã anterior ao nazismo]. Precisamos estar
preocupados, mas as probabilidades de que se repita algo assim não são altas.
P. Seu livro começa lembrando a Grande Depressão, uma época em que “tudo estava pior
que agora, mas havia um sentimento de que tudo iria melhorar”.
R. Eu me lembro perfeitamente. Minha família era de classe trabalhadora, estava
desempregada e não tinha educação. Objetivamente, era uma época muito pior que agora,
mas havia um sentimento de que todos estávamos juntos naquilo. Havia um presidente
compreensivo com o sofrimento, os sindicatos estavam organizados, havia movimentos
populares… Tinha-se a ideia de que juntos podíamos vencer a crise. E isso se perdeu. Agora
vivemos a sensação de que estamos sozinhos, de que não há nada a fazer, de que o Estado
está contra nós…
P. Ainda tem esperanças?
R. Claro que há esperança. Ainda há movimentos populares, gente disposta a lutar… As
oportunidades estão aí, a questão é se somos capazes de aproveitá-las.
Chomsky termina com um sorriso. Deixa vibrando no ar sua voz grave e se despede com
extrema cortesia. Em seguida, sai do escritório e desce as escadas da faculdade. Fora,
esperam-lhe Tucson e a luz seca do deserto de Sonora.
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/06/cultura/1520352987_936609.html