O poema compara a alma do sujeito lírico a um "vaso vazio" que se parte em cacos após cair das mãos da criada, representando a fragmentação interior que sente. As sensações descritas sugerem sentimentos de inutilidade e frustração perante a indiferença dos deuses. A criada é vista como mero instrumento na vontade divina de destruir a alma do poeta, deixando-o reduzido a um simples "caco".
1. Análise de poemas de Álvaro de Campos
“Apontamento”
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem por que ficou ali.
1. Explique o sentido da comparação inicial.
A comparação da alma com o “vaso vazio” remete, de imediato, para
um sentido de privação, de ausência de um conteúdo. Tal como o
vaso que, por estar vazio, se torna inútil, a alma do sujeito poético
sente-se, igualmente, sem utilidade, sem valor. E se o vaso vazio fica
em cacos, a alma também sentira a sua fragmentação.
2. Refira as sensações representadas ao longo do
poema.
No poema encontram-se representadas sensações visuais que
permitem captar “um vazo vazio” a cair pelas escadas, das mãos da
criada, ou o “espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir”
e o caco que brilha “virado do exterior lustroso”.
Há a sensação auditiva, quando se diz “Fiz barulho na queda”.
Podemos também referir a sugestão de uma sensação táctil em “Caiu
das mãos da criada” ou em “Os deuses que há debruçam-se do
parapeito da escada”.
3. Identifique dois sentimentos do “eu” expressos e
sugeridos pelas sensações.
2. O sujeito poético te, antes da fragmentação, um sentido de
inutilidade, de insignificância, sentindo-se como “um vaso vazio”.
Depois tem “mais sensações” do que tinha, mas todas elas lhe
causam um sentimento de frustração. Sente que não passa de “um
espalhamento de cacos” “absurdamente conscientes”, que fazem
“barulho na queda”, e que os deuses “fitam”.
Perante a tolerância dos deuses com a criada, que “olham e sorriem”,
parece que o desapontamento é maior. Sente em pedaços a sua obra,
a sua alma, a sua vida.
No fim, sente que nada vale, que não merece qualquer consideração,
sendo um resto, “um caco” que os deuses olham “especialmente,
pois não sabem porque ficou ali.
4. Explicite o papel atribuído á criada
A criada aparece como intermediária da vontade dos deuses. Ela
destrói involuntariamente o vaso, não é responsável, mas um
instrumento nas mãos dos deuses.
Os deuses que “olham e sorriem”, numa atitude de desdém pelo vaso
partido, ou seja, pela alma do sujeito poético transformada em cacos,
“Sorriem tolerantes á criada involuntária”.
“Reticências”
Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção.
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer
coisa!
Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de ontem
que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!
Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
3. Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio
da vida...
Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela,
Por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica metafisica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distracção de ouvir apregoando,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...
Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...
1. Indique as relações de sentido que se estabelecem
entre os primeiros versos.
Álvaro de Campos promete “pôr prateleiras na vontade e na acção”.
Quer, “como sempre quis”, pôr as suas vontades e acções arrumadas.
Quanto á vontade, fica pelo “propósito claro” de querer fazer, de
“arrumar a vida”; quanto á acção, dá já a perceber que o resultado
permanece como sempre, ou seja, sem qualquer concretização.
2. Explique como se concretiza a atitude de “Organizar
Álvaro de Campos”.
A intenção de “organizar” mantém-se como vontade, mas a
concretização parece mais difícil. É o próprio que reconhece que tudo
se vai manter na mesma. Daí a constatação de que “ não arrumei
nem uma coisa nem outra…”, e de que os outros fazem o mesmo. Por
isso, considerando-se um “produto romântico”, sorri do
“conhecimento antecipado” do que vai suceder, ou seja, da não
concretização do seu propósito.
3. Explicite dois valores expressivos da imagem
“Rodinha dentada na relojoaria da economia politica”
Por um lado, a “vendedeira” participa, com o seu pregão e a sua
actividade, na economia do país; por outro lado, ela apresenta-se
como potencial mãe daqueles que contribuíram para a existencia do
império. Foi sempre uma “Rodinha” na maquina da vida.
4. Mostre em que medida se observa, neste poema, a
angústia metafisica e o cansaço do sujeito poético.
O sujeito poético tem vontade, mas não consegue alterar as
situações, constatando que os outros agem da mesma forma. Não
consegue organizar a sua vida, pois já não controla a vontade.
Além disso, deixou de crer em qualquer coisa, sentindo o destino
como algo que o acompanha. Daí o cansaço angustiado, comparado a
“um barco velho que apodrece na praia deserta”.
4. 5. Comente a importância da comparação final com
“um deus”.
O “eu” poético conclui que a sua atitude de nada ter feito ou
concretizado o assemelha a um deus que não precisa de arrumar
nada para ser deus.
Aborde, em cuidadas composições, os seguintes
assuntos, atendendo a alguns dos tópicos colocados
na coluna da direita.
Questão Tópicos Resposta
“Eu, de resto, nem sou
intersecionista (ou
paúlico) nem futurista.
Sou eu, apenas eu,
preocupado apenas
comigo e com as
minhas sensações”
• Primeiro, o
sensacionista
das grandes
odes.
• O modernista
por
excelência.
• O poeta do
verso
torrencial e
livre.
• O cantor das
cidades e do
cosmopolitis
mo que cita o
futurismo.
• O cultor das
sensações
sem limite.
• Depois, o
poeta em que
o tema do
cansaço se
torna fulcral.
• O poeta da
condição
humana