O documento discute a perspectiva do historiador Roberto de Mattei sobre o Concílio Vaticano II. Ele aponta que o Concílio trouxe uma revolução na linguagem e mentalidade da Igreja, mas não em seu conteúdo doutrinal. Além disso, destaca o silêncio do Concílio sobre o comunismo e analisa o clima pré-Conciliar e suas consequências para a Igreja nos últimos 50 anos.
1. DESTAQUE II
Roberto de Mattei
“É estranho o silêncio do Vaticano II sobre o comunismo”
O historiador italiano Roberto de Mattei está em Portugal para apresentar o seu livro
“O Concílio Vaticano II – Uma história nunca escrita”. Professor de História da Igreja e
do Cristianismo, na Universidade Europeia de Roma, Mattei foi, em 2008, condecorado
pelo Papa em reconhecimento dos serviços prestados à Igreja.
» Filipe d’Avillez
Renascença - Em que sentido é que o seu livro é uma prioritária, introduzindo uma revolução na linguagem
“história nunca escrita” do Concílio? e na mentalidade. Essa seria a característica principal,
Roberto de Mattei - Nunca até hoje foi escrita uma essa revolução, não no conteúdo, não dogmática, mas
história compreensiva sobre os três anos do Concílio. A na linguagem, na mentalidade, na maneira de apresen-
única que está escrita, por Giussepe Alberigo, é apenas tar a doutrina da Igreja.
uma colecção de textos.
Renascença - O Concílio apresentou uma ruptura
PÁG. Renascença - Falta-lhe a interpretação dos factos?
RM - Exactamente. A ideia é também dar uma nova
com a Igreja anterior?
RM - O Papa Bento XVI declarou que existe uma herme-
03 interpretação dos factos. Só depois da reconstrução
histórica dos factos é que os pastores, os teólogos, po-
dem intervir para formular os seus juízos teológicos e
morais. O meu nível é o histórico. Por exemplo, hoje
nêutica da reforma, cuja verdadeira natureza consiste
numa conjugação de continuidade e descontinuidade a
níveis diferentes. Parece-me que é justamente daí que
devemos partir. Essa continuidade e descontinuidade
em dia, toda a gente se apercebe do alcance revolucio- do Vaticano II, nos confrontos com a Igreja anterior,
nário do Maio de 68, uma revolução cultural profunda e pode ser considerada sobre dois aspectos: a dimensão
incisiva. Contudo, antes de 68, houve o Concílio, uma histórica-humana da Igreja e a dimensão ontológica.
revolução que modificou profundamente a história dos Acho que houve continuação na dimensão ontológica,
anos seguintes, a começar pelo próprio Maio de 68, que corresponde à dimensão divina da Igreja. Porém,
que tem uma componente católica que devemos re- houve descontinuidade na dimensão humana que cor-
conhecer para melhor resolver os problemas contem- responde à natureza humana da Igreja. O erro é con-
porâneos. centrar a atenção sobre os documentos do Concílio,
ou seja, o conteúdo dogmático. O Concílio, antes de
Renascença - À medida que investigou o Concílio, o ser uma série de documentos, foi um evento histórico.
que é que o surpreendeu mais? Nesse sentido, podemos dizer que houve uma ruptu-
RM - Talvez o silêncio do Concílio sobre o comunismo. ra, mas uma ruptura histórica não é, necessariamente,
Quando o Concílio se reúne, o Muro de Berlim acabara uma ruptura doutrinal e dogmática.
de desferir uma profunda ferida na Europa. O comunis-
mo estendia a sua sombra ameaçadora sobre todos os Renascença - Qual era o clima na Igreja antes do
continentes. Porque é que os padres conciliares, reuni- Concílio?
dos em Roma para tratar das relações entre a Igreja e o RM - Houve uma crise na Igreja antes do Vaticano II,
mundo moderno, ignoram o fenómeno mais macroscó- mas o clima do Concílio favoreceu a explosão dessa
pico da sua era, o imperialismo comunista? Esse é tal- crise. Hoje, temos de perguntar se a voz profética que
vez o mistério mais profundo do Concílio Vaticano II. se fez ouvir na aula conciliar foi a do Cardeal Suenens,
[da ala liberal], ou a voz dos conservadores que, no
Renascença - É cedo para fazer um balanço do efeito Concílio, combateram o Cardeal Suenens. A minoria
do Concílio na Igreja? conservadora do Concílio é hoje apresentada como a
RM - É o momento de se fazer este balanço. O Vatica- parte derrotada e os liberais são apresentados como
no II não foi o primeiro nem o último concílio, foi um profetas. O que faço no meu livro é ser a voz dos ven-
momento da longa História da Igreja. Ao longo da His- cidos do Concílio, a voz da tradição.
tória, houve 21 concílios. Alguns deles - Niceia, Trento,
Vaticano I - são inesquecíveis, por causa do alcance Renascença - Houve uma grande expectativa à volta
teológico dos documentos que deles emanaram. Outros do Concílio. Passados 50 anos como vê a situação?
foram esquecidos. Um concílio entra na História pela RM - Recentemente, Bento XVI falou de como esteve,
qualidade dos seus documentos. Nesse sentido, temos enquanto jovem teólogo, na Praça de S. Pedro, quando
uma grande liberdade crítica para analisar e fazer um João XXIII abriu o Concílio e, em todo o mundo, havia
balanço do Concílio Vaticano II. um clima de entusiasmo, parecia haver um clima de
aurora, de Pentecostes para toda a Igreja. Veja-se o
Renascença - Daqui a 400 anos, as pessoas vão-se contraste entre o clima entusiástico, um pouco utó-
lembrar do Concílio Vaticano II? pico, e a situação da Igreja que se apresenta nos dis-
RM - Não posso dizer isso, mas posso dizer que o Vati- cursos dos bispos reunidos em Roma para o Sínodo da
cano II foi um concílio diferente de todos os que o pre- Nova Evangelização. A voz dos padres sinodais é uma
cederam. A característica mais importante foi a pasto- voz dolente, pessimista, descrevem nas próprias dio-
ral. Claro que nem o Concílio de Trento nem o Vaticano ceses uma situação de profundo sofrimento da Igreja,
I tinham sido privados do elemento pastoral, mas no uma Igreja que é perseguida em todos os continentes,
Vaticano II a dimensão pastoral acabou por se tornar incluindo na Europa. Essa é a situação actual.
r/com renascença comunicação multimédia, 2012