1. LIVROS
12 INFANTO-JUVENIL
PÚBLICO 6 NOVEMBRO 2004
Para assinalar os 25 anos da carreira literária de Alice
| LETRA PEQUENA |
comemorativa do primeiro livro da autora, Rosa, Minha Irmã
RITA PIMENTA
‘Só sou escritora porq
| RITA PIMENTA
Alice Vieira, jornalista e
Aceitar devagarinho escritora, entrou na litera-
tura para a infância há 25
É um diário. Aos dez anos, Marta vê entrar pela casa anos. Por acaso. “Para calar
dentro uma pequena criatura, filha do pai e da mãe e entreter os meus filhos,
— logo, sua irmã. Assim de repente, não consegue decidi escrever com eles
considerá-la como tal e revela-nos o conflito interior uma história.” Nascia assim
que experimenta com essa mudança familiar. Escute-se “Rosa, Minha Irmã Rosa”,
o tom: “A minha irmã nasceu há quatro dias. É muito um romance previsto apenas
feia, tem a cara toda às rugas e eu ainda não estou muito para consumo doméstico. A
certa se gosto dela ou não.” obra só extravasaria o âmbito
Sem verdades absolutas, a narrativa vai dando conta do familiar porque em 1979 se
ambiente vivido na sociedade portuguesa dos finais dos anos criou o Prémio de Literatura
70. Com clareza, talento e sentido de humor. Obra inaugural Infantil Ano Internacional da
de Alice Vieira na literatura para a infância e juventude, “Ro- Criança, e Alice — desafiada
sa, Minha Irmã Rosa” foi o primeiro passo numa carreira pelo marido, também jorna-
que este ano chega ao 25º aniversário, pretexto para uma lista e escritor, Mário Castrim
edição comemorativa, com ilustrações de Evelina Oliveira. — resolveu concorrer. Ainda
“Traduzida em várias línguas, Alice Vieira não tem bem. Ganhou.
cessado de ver dilatar-se o reconhecimento internacional da Fazia parte do prémio a
sua obra. Esse reconhecimento publicação do texto vence-
é, em parte, fruto de dois dos dor, pela mão da Editorial
grandes méritos da sua escrita: Caminho, “na juventude
uma qualidade que nunca gera da editora”, assinalou José
distância nem inacessibilidade Oliveira no lançamento da
e uma constante atenção a pro- edição comemorativa do 25º
blemas da sociedade contem- aniversário da primeira edi-
porânea que apresentam um ção, no dia 26 de Outubro,
preocupante grau de universa- em Lisboa.
lidade, sejam eles a solidão O Mil Folhas convidou
urbana dos jovens, os vazios Alice Vieira para conversar
afectivos gerados por rupturas sobre a sua carreira como
Rosa, Minha Irmã familiares mal geridas”, pala- escritora, sobre jornalismo,
Rosa vras de José Jorge Letria, no educação, Sociedade Portu-
AUTOR Alice Vieira lançamento desta nova edição, guesa de Autores e tudo o
ILUSTRADOR Evelina dia 26 de Outubro, na Galeria mais de que tivesse vontade
Oliveira de São Mamede, em Lisboa. de falar. Como cenário,
EDITOR Editorial Com cerca de 40 títulos escolheu a sua esplanada pressões sobre a imprensa quando ingressou no ensino
Caminho publicados, “num total de um preferida em Lisboa. Lugar não se fazem apenas ao nível secundário.
“Vou lá fora buscar
120 págs., €14,70 milhão de exemplares”, como que, em muitas manhãs, dos “grandes”. “Os mais jo- Por ser de uma família
uma história”
assinala José Oliveira, da Ca- transforma em escritório de vens e inexperientes chegam eminentemente feminina,
minho, a autora mantém contacto directo com as crianças trabalho. Convidamos agora Actualmente, não era à redacção desapoiados e os romances de Alice Vieira
através de visitas às escolas e de conversas virtuais (“chatar”, o leitor a partilhar o essencial capaz de ser jornalista a é fácil exercer sobre eles têm muitas mulheres. As
chama-lhe Alice), formas de ter presente os interesses, per- de um diálogo claro e sincero, tempo inteiro, por já não ter vários tipos de pressão. Os protagonistas são quase sem-
turbações e aspirações dos seus leitores. com tanto de divertido como energia. Se fosse mais jovem, mais velhos, que poderiam pre miúdas, a braços com as
“Numa escrita enxuta e de extraordinária fluência — cuja de enternecedor — igual aos sim, “na área da Sociedade. ajudar nesse equilíbrio, já questões de crescimento e
carga poética se acentua nas descrições de devaneios oníricos livros que assina. É onde se toca no país e nas foram dispensados.” com uma grande capacidade
e em certos momentos de acentuado lirismo (do qual a pie- “Vinte e cinco anos é e não pessoas”. Chegou a trabalhar de se “desenvencilharem por si
guice fácil e a retórica inútil estão ausentes) —, a autora de é muito tempo. Se pensar nas no sector da Cultura, mas próprias”. Foi decerto por isso
Infância sem crianças
‘Chocolate à Chuva’ tem-nos dado algumas das imagens mais mudanças que aconteceram, não tem saudades: “Fiquei que, na Alemanha, integraram
vívidas e autênticas do mundo da infância e da adolescência é muito. A evolução de algu- farta de artistas.” Continua a usar a sua má- os seus trabalhos numa antolo-
que encontramos na nossa literatura contemporânea”, escreveu mas coisas que não existiam Abandonou o jornalismo quina de escrever, pois diz pre- gia com o título genérico “His-
José António Gomes em “Introdução à Obra de Alice Vieira”. e que agora fazem parte do como actividade principal cisar do cheiro do papel e de o tórias de Raparigas Fortes”.
Características logo evidentes nesta primeira obra. nosso dia-a-dia é enorme, em 1990. No entanto, não rasgar imediatamente. Já teve A autora explica que sabe (e
Além de vencer os prémios nacionais da Fundação Gul- mas na verdade não dei por duvida: “Só sou escritora um computador portátil, mas gosta de) estar sozinha, apren-
benkian no domínio da literatura para a infância (em 1993, o tempo passar”, explica logo porque fui jornalista. A es- acabou por oferecê-lo à neta. deu-o pelas circunstâncias do
com o livro “Este Rei Que Eu Escolhi”, e em 1994, pelo con- de entrada, enquanto recorda crita contida e o olhar para o Promete que vai comprar ou- passado: “Mas é bom ter a
junto da sua obra), recebeu a distinção alemã Auswahlliste que nunca pensou trocar a im- que está aqui ao lado vêm do tro. A pequena acha a máquina certeza de que se pode abrir
Deutscher Jugendliteraturpreis (em 1992 e 98). Integrou a prensa pela literatura. “Aliás, jornalismo. Quando tenho de de escrever uma maravilha, a porta e haver quem queira
Lista de Honra do International Board on Books for Young ainda mantenho a ligação ao fazer uma crónica e me falta “imprime logo”. entrar.”
People (1994) e foi por duas vezes a candidata portuguesa ao jornalismo. Escrevo para o assunto, saio de casa e digo: Alice tem dois irmãos mais O facto de ter sido muito
Prémio Hans Christian Andersen (1996 e 98). ‘Jornal de Notícias’, para a ‘Vou lá fora buscar uma novos, mas cresceram separa- protegida e de tanto ocuparem
Quanto à pequena Marta, acabou por acolher a bebé que ‘Activa’, para a ‘Audácia’ [di- história’.” Enquanto ri, vai dos uns dos outros. Foi criada o seu tempo com inúmeras
“aterrou” no seu mundo. Quando o pai lhe disse que a Rosa rigida a adolescentes] e para a explicando: “Não gosto de por tios-avós e portanto passou aprendizagens tornaram-na,
ia passar para o seu quarto, respondeu: “— Que bom, pai!” ‘Tempo Livre’ [do Inatel].” adjectivos desnecessários a infância rodeada de gente como diz, “numa menina mui-
Reflexão imediata: “Ele percebeu que eu estava mesmo a Como o livro premiado foi e detesto pontos de excla- crescida. “Gente crescida não, to prendada”. Desde bordar
falar a sério e que me sentia feliz por ir ter a minha irmã a bem aceite pelo público, a mação.” Com naturalidade, velhos”, corrige. Mas fizeram até tocar piano, de tudo fez.
dormir ao meu lado. Com a ‘Zeca’, o ‘Zarolho’, a caderneta editora pediu-lhe que conti- afi rma: “Tenho pouca ima- um bom trabalho? “Talvez, Brincar é que não. Por isso
de cromos e os livros, o meu quarto fica uma família com- nuasse a escrever, por isso é ginação.” mas a que preço. Valeu-me a insurge-se contra o excesso de
pleta.” Bastou abrir a porta. • no segundo título, “Lote 12, Lamenta que nas redac- companhia dos livros e perso- actividades a que se obriga os
2º Frente” (1980), que desco- ções se vá perdendo “a nagens.” Só viria a frequentar miúdos. “Não se lhes dá tempo
Letra Pequena sai no primeiro sábado de cada mês. bre a “angústia da escrita”. memória” e assinala que as a escola com outras crianças para brincar, passear na rua,
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Vieira, a Caminho lançou uma edição
Rosa. O Mil Folhas releu-o e escutou-a.
ue fui jornalista’
ADRIANO MIRANDA
Sociedade Portuguesa de
Autores (SPA), Alice Vieira
foi-se apercebendo de que
as coisas não estavam bem,
embora o discurso para o
exterior fosse em sentido
inverso. As dúvidas que ia
pondo eram cada vez mais
mal vistas.
“Quando Manuel Freire
me convidou para a sua
equipa, não hesitei. A
campanha na SPA fez-me
recordar os tempos do
PREC. Gosto destas lutas.
Ainda agora, quando sou-
be que o ‘DN’ estava em
plenário, fugiu-me o pé
para lá ir.” Considera que,
de momento, a recupera-
ção na SPA é complicada.
“Mas, com o apoio dos
cooperantes, vamos tentar
o mínimo de estragos. Só
houve uma baixa, a de José
Saramago. Sabemos que os
escritores são pouco ama-
dos e vamos lutar para
que não vá para a frente
as propostas de alteração
fiscal e de direitos.”
“O Casamento
da Minha Mãe”
Para Alice Vieira, que
cita Pennac de memória,
“quando se trata de leitura,
não devem existir imperati-
inventar o que fazer ou mesmo conhecer a época em que foi vos”. Então, nada de obrigar
nada fazer.” escrito. Se o escrevesse agora, as crianças a ler? “Penso
Alice Vieira tem dois filhos, seria outro.” que se deve transmitir aos
a escritora e ilustradora Cata- As narrativas acontecem miúdos que, ao não lerem,
rina da Fonseca (35 anos), e o sempre em Lisboa, à excepção estão a privar-se de um pra-
André, professor de Matemáti- de “Viagem à Roda do Meu zer. Como os livros foram
ca (34 anos), a viver em Ingla- Nome” (1987). “Só gosto de a coisa mais importante na
terra. Foi com eles que, há 25 escrever sobre o que conheço minha vida, não consigo
anos, resolveu gastar o prémio realmente, tenho de sentir a imaginá-la sem eles.” Diz
que recebeu por “Rosa, Minha terra como minha. E adoro também que a televisão e
Irmã Rosa”. “Foram 75 contos, Lisboa.” o computador não devem
levei-os à Grécia. Afinal, eles Nalguns títulos aparece a ser olhados como inimigos,
eram co-autores. Recebi o figura da “criada”, nomea- antes como “outros tipos de
prémio em Novembro e em damente em “Os Olhos de prazer e como diferentes
Dezembro já estávamos em Ana Marta” (1990) e “Se meios de aprendizagem”.
Atenas. Fomos tantas vezes ao Perguntarem por Mim, Di- O próximo livro já está
Pártenon que a guia já sabia o gam Que Voei” (1997). Não pronto e valeu-lhe uma ten-
nome dos meus filhos.” é snobismo, “são memórias”. dinite na mão direita. “Há
Só quando eles pediram para Por isso não actualiza o vocá- dois anos que não escrevia
praticar determinada activida- bulo para “empregadas”. “As romances, que é o que eu
de é que cedeu: “A Catarina criadas, no sentido do termo gosto mais de fazer.” O
quis ir para o ‘ballet’ e o An- que lhes atribuo, têm que ver título será, muito prova-
dré pediu para jogar xadrez, foi com o passado, com a cumpli- velmente, “O Casamento
federado e tudo.” Antes disso, cidade e proximidade que as da Minha Mãe” e, como
nada de “extracurriculares”. caracterizavam noutra época. quase sempre, só lhe surgiu
Quando relê os seus livros Normalmente, nos meus li- no fi nal da narrativa. Faz
não os altera porque conside- vros, aparecem associadas a a sinopse: “Trata de uma
ra que há um registo temporal recordações e elas próprias já miúda que é largada às
que deve permanecer. “Neste são velhinhas.” mãos de uns vagos paren-
título, a dada altura diz-se tes quando nasce. A mãe
que ‘cem escudos não dá é modelo. Quando cresce,
“Os escritores
para comprar muitos livros’, a rapariga decide roubar os
são pouco amados”
não fazia qualquer sentido namorados à mãe. E mais
alterar a moeda para euros. Depois de ter passado não digo.” Também não é
O livro também deve dar a por várias direcções da preciso. •