Grupo Tribalhista - Música Velha Infância (cruzadinha e caça palavras)
Filosofia Moral Introdução
1. ELEMENTOS DE FILOSOFIA MORAL
James Rachels
Atenção: este livro foi apenas escaneado, não foi corrigido.
TRADUÇÃO
F. J. AZEVEDO GONÇALVES
REVISÃO CIENTÍFICA
DESIDÉRIO MURCHO
SOCIEDADE PORTUGUESA DE FILOSOFIA
Título original inglês: The Elements of Moral Philosophy
(c) The McGraw-Hill Companies, Inc., 2003 Edição portuguesa: (c)
Gradiva - Publicações, L.íta,
2004
Todos os direitos reservados
Tradução: F. J. Azevedo Gonçalves
Revisão científica: Desidério Murcho
Revisão do texto: Soares dos Reis
Capa: pintura: Omnia Vanitas, William Dyce (1806-1864) Design
gráfico: Armando Lopes
Fotocomposição: Gradiva
Impressão e acabamento: Tipografia Guerra/Viseu Reservados os
direitos para a língua portuguesa
por:
Gradiva - Publicações, L.'*'
Rua Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. -1399-041 Lisboa
Telefs. 21 397 40 67/8 - 21 39713 57 - 21 395 34 70
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URL: http://www.gradiva.pt
1.a edição: Janeiro de 2004 Depósito legal n.° 203 318/2003
Colecção coordenada por DESIDÉRIO MURCHO E GUILHERME
VALENTE
2. com o apoio científico do
CENTRO PARA o ENSINO DA FILOSOFIA
(Sociedade Portuguesa de Filosofia)
gradiva
Editor: Guilherme Valente
Índice
Prefácio 9
Sobre a quarta edição (americana) 11
1. O que é a moralidade? 13
1.1 O problema da definição 13
1.2 Primeiro exemplo: a bebé Teresa 14
1.3 Segundo exemplo: Jodie e Mary 19
1.4 Terceiro exemplo: Tracy Latimer 23
1.5 Razão e imparcialidade 27
1.6 A concepção mínima de moralidade 31
2. O desafio do relativismo cultural 33
2.1 Culturas diferentes têm códigos morais diferentes 33
2.2 Relativismo cultural 35
2.3 O argumento das diferenças culturais 37
2.4 As consequências de levar a sério o relativismo cultural 40
2.5 Por que razão há menos diferenças do que parece 43
2.6 Como todas as culturas têm alguns valores em comum. 45
2.7 A avaliação de práticas culturais indesejáveis 47
2.8 O que se pode aprender com o relativismo cultural 51
3. 3 O subjectivismo em ética 55
3.1 A ideia de base do subjectivismo ético 55
3.2 A evolução da teoria 57
3.3 A primeira fase: o subjectivismo simples 58
3.4 A segunda fase: emotivismo 61
3.5 Existirão factos morais? 65
3.6 Haverá provas em ética? 68
3.7 A questão da homossexualidade 71
4. Dependerá a moralidade da religião? 77
4.1 A suposta ligação entre moralidade e religião 77
4.2 A teoria dos mandamentos divinos 80
4.3 A teoria da lei natural 84
4.4 Religião e questões morais particulares 90
5. Egoísmo psicológico 97
5.1 Será o altruísmo possível? 97
5.2 A estratégia de reinterpretação de motivos 99
5.3 Dois argumentos a favor do egoísmo psicológico 103
5.4 Esclarecer algumas confusões 107
5.5 O erro mais grave do egoísmo psicológico 110
6. Egoísmo ético 115
6.1 Teremos o dever de ajudar pessoas que morrem à fome? 115
6.2 Três argumentos a favor do egoísmo ético 119
6.3 Três argumentos contra o egoísmo ético 127
7- A abordagem utilitarista 135
7.1 A revolução na ética 135
7.2 Primeiro exemplo: eutanásia 139
7.3 Segundo exemplo: os animais não-humanos 143
8- O debate sobre o utilitarismo 151
8.1 A versão clássica da teoria 151
8.2 Será a felicidade a única coisa que importa? 153
8.3 As consequências são a única coisa que importa? 155
8.4 Deveremos ter toda a gente igualmente em conta? 160
8.5 A defesa do utilitarismo 162
9. Haverá regras morais absolutas? 171
9.1 Harry Truman e Elizabeth Anscombe 171
9.2 O imperativo categórico 175
4. 9.3 Regras absolutas e o dever de não mentir 178
9.4 Conflitos entre regras 182
9.5 Outro olhar sobre a ideia fundamental de Kant 184
10. Kant e o respeito pelas pessoas 189
10.1 A ideia de dignidade humana 189
10.2 Retribuição e utilidade na teoria da punição 193
10.3 O retributivismo de Kant 196
11. A ideia de contrato social 203
11.1 O argumento de Hobbes 203
11.2 O dilema do prisioneiro 209
11.3 Algumas vantagens da teoria contratualista da moral 214
11.4 O problema da desobediência civil 218
11.5 Dificuldades da teoria 222
12. O feminismo e a ética dos afectos 227
12.1 Pensam os homens e mulheres de maneira diferente sobre a
ética? 227
12.2 Implicações para o juízo moral 237
12.3 Implicações para a teoria ética 242
13. A ética das virtudes 245
13.1 A ética das virtudes e a ética da acção correcta 245
13.2 As virtudes 248
13.3 Algumas vantagens da ética das virtudes 261
13.4 O problema da incompletude 263
14. Como seria uma teoria moral satisfatória? 269
14.1 Moralidade sem húbris 269
14.2 Tratar as pessoas como merecem e outros motivos 273
14.3 Utilitarismo de estratégias múltiplas 277
14.4 A comunidade moral 281
14.5 Justiça e equidade 283
14.6 Conclusão 285
Sugestões de leitura 287
Notas sobre fontes 299
índice analítico 307
5. Prefácio
Sócrates, um dos primeiros e melhores filósofos morais, afirmou que a
ética trata de "um
assunto de grande importância: saber como devemos viver". Este livro
é uma introdução à
filosofia moral, concebida neste sentido lato.
O tema é, naturalmente, demasiado vasto para ser abrangido num
pequeno livro, pelo que
tem de haver uma maneira de decidir o que incluir e o que deixar de
fora. Fui guiado pelo
seguinte pensamento: Imagine-se alguém que nada sabe a respeito do
tema, mas deseja
perder uma modesta porção de tempo a aprender. Quais são as
primeiras coisas, e as mais
importantes, que essa pessoa precisa de aprender? Este livro é a
minha resposta a essa
pergunta. Não tento abranger todos os temas desta área; nem mesmo
tento dizer tudo
quanto poderia ser dito sobre os temas tratados. Tento, isso sim,
discutir as ideias mais
importantes que um principiante deve enfrentar.
Os capítulos foram escritos de modo a poderem ser lidos
independentemente uns dos outros
- são, com efeito, ensaios díspares sobre tópicos diferentes. Assim,
alguém interessado no
egoísmo ético pode ir directamente ao sexto capítulo e encontrar aí
uma introdução
independente a essa teoria. Quando lidos em sequência, no entanto,
os capítulos
9
contam uma história mais ou menos contínua. O primeiro capítulo
apresenta uma
"concepção mínima" do que é a moral; os capítulos do meio abrangem
as mais importantes
teorias gerais da ética (com algumas digressões, quando adequadas);
e o capítulo final
apresenta a minha própria perspectiva sobre como seria uma teoria
moral satisfatória.
O objectivo do livro não é oferecer um relato arrumado e unificado da
"verdade" sobre os
temas em discussão. Isso seria uma forma pobre de apresentar o
tema. A filosofia não é
como a física. Na física há um vasto corpo de verdade estabelecida,
que nenhum físico
competente disputaria e que os principiantes têm de aprender
pacientemente a dominar. (Os
professores de Física raramente pedem aos alunos para tomarem
decisões quanto às leis da
termodinâmica.) Há, é claro, desacordos entre os físicos e
controvérsias por resolver, mas
estas decorrem geralmente sobre o pano de fundo de um acordo
substancial. Na filosofia,
pelo contrário, tudo é controverso - ou quase tudo. Filósofos
"competentes" discordam
até mesmo sobre questões fundamentais. Uma boa introdução não
tenta ocultar esse facto
algo embaraçoso.
Encontra-se aqui, portanto, uma panorâmica de ideias, teorias e
argumentos opostos. As
minhas próprias perspectivas influenciam inevitavelmente a
apresentação. Não tentei
esconder o facto de achar algumas das ideais apresentadas mais
apelativas que outras, e é
óbvio que um filósofo com uma avaliação diferente poderia apresentar
ideias diferentes de
6. outra forma. Mas tentei apresentar as teorias opostas de forma justa, e
quando apoiei ou
rejeitei uma delas tentei dar alguma razão para a aceitar ou rejeitar. A
filosofia, como a
própria moralidade, é primeiro que tudo um exercício de racionalidade
- as ideias que
devem prevalecer são as que tiverem as melhores razões do seu lado.
Se este livro for bem
sucedido, o leitor ou leitora aprenderá o suficiente para poder começar
a avaliar, por si, para
que lado pende a balança da razão.
10
Sobre a quarta edição (americana)
Os leitores familiarizados com a edição anterior deste livro podem
querer saber o que foi
alterado. Não há capítulos novos, mas há algumas secções novas; e
todos os capítulos foram
corrigidos de uma maneira ou outra, pela remoção de coisas menos
felizes e pela adição de
clarificações. Alguns dos exemplos perderam actualidade, pelo que
foram actualizados ou
substituídos. No capítulo l, há nova informação sobre o caso Tracy
Latimer; há também uma
secção nova sobre o caso recente das gémeas siamesas. Em vários
outros capítulos
acrescentei material ilustrativo. Acrescentei material novo ao capítulo
sobre regras morais
absolutas. No capítulo 14, há uma secção nova que desenvolve de
forma mais completa
"como seria uma teoria moral satisfatória".
Howard Pospesel fez muitas sugestões que me ajudaram imenso; é
um prazer agradecer-lhe.
Um muito obrigado também para Monica Eckman da MacGraw-Hill,
uma redactora
admirável.
11
7. Capítulo 1
O que é a moralidade?
Não estamos a discutir um tema sem importância, mas sim como
devemos viver.
SÓCRATES, A República, de Platão (ca. 390 a. C.)
1.1 O problema da definição
A filosofia moral é a tentativa de ganhar uma compreensão sistemática
da natureza da
moralidade e do que esta requer de nós - ou, nas palavras de
Sócrates, de "como devemos
viver", e porquê. Seria útil se pudéssemos começar com uma definição
simples e
incontroversa de moralidade, mas isso é impossível. Há muitas teorias
rivais, cada uma
expondo uma concepção diferente do que significa viver moralmente, e
qualquer definição
que vá além da formulação simples de Sócrates é susceptível de
ofender uma ou outra
dessas teorias.
Isto deve colocar-nos de sobreaviso, mas não temos de ficar
paralisados. Neste capítulo vou
descrever a "concepção mínima" de moralidade. Como o nome
sugere, a concepção mínima
é um núcleo que qualquer teoria moral
13
deveria aceitar, pelo menos como ponto de partida. Vamos começar
por examinar algumas
controvérsias morais recentes, todas relacionadas com crianças
deficientes. As
características da concepção mínima emergirão da nossa
consideração destes exemplos.
1.2 Primeiro exemplo: a bebé Teresa
Theresa Ann Campo Pearson, conhecida publicamente como "Bebé
Teresa", é uma criança
com anencefalia nascida na Florida em 1992. A anencefalia é uma das
mais graves
deformidades congénitas. Os bebés anencefálicos são por vezes
referidos como "bebés sem
cérebro", e isto dá basicamente ideia do problema, mas não é uma
imagem inteiramente
correcta. Partes importantes do encéfalo - cérebro e cerebelo - estão
em falta, bem como
o topo do crânio. Estes bebés têm, no entanto, o tronco cerebral e por
isso as funções
autónomas como a respiração e os batimentos cardíacos são
possíveis. Nos EUA, a maior
parte dos casos de anencefalia são detectados durante a gravidez e
abortados. Dos não
abortados, metade nascem mortos. Cerca de trezentos em cada ano
nascem vivos e em geral
morrem em poucos dias.
A história da bebé Teresa nada teria de notável não fosse o pedido
invulgar feito pelos seus
pais. Sabendo que a bebé não poderia viver por muito tempo e,
mesmo que pudesse
sobreviver, nunca iria ter uma vida consciente, os pais da bebé Teresa
ofereceram os seus
órgãos para transplante. Pensaram que os seus rins, fígado, coração,
pulmões e olhos
deveriam ir para crianças que pudessem beneficiar deles. Os médicos
acharam uma boa
8. ideia. Pelo menos duas mil crianças em cada ano necessitam de
transplantes e nunca há
órgãos disponíveis suficientes. Mas os órgãos não foram retirados,
porque na Florida a lei
não permite a remoção de órgãos até o dador estar morto. Quando,
14
nove dias depois, a bebé Teresa morreu, era demasiado tarde para as
outras crianças - os
órgãos não podiam ser transplantados por se terem deteriorado
excessivamente.
As histórias dos jornais sobre a bebé Teresa suscitaram uma onda de
debates públicos. Teria
sido correcto remover os órgãos da criança, causando-lhe dessa forma
morte imediata, para
ajudar outras crianças? Vários eticistas profissionais - pessoas
empregadas por
universidades, hospitais, e escolas de direito, cujo trabalho consiste
em pensar nestas coisas
- foram solicitados pela imprensa para comentar o tema.
Surpreendentemente, poucos
concordaram com os pais e os médicos. Apelaram, ao invés, para
princípios filosóficos
consagrados para se oporem à remoção dos órgãos. "Parece
simplesmente demasiado
horrível usar pessoas como meio para os objectivos de outras
pessoas", afirmou um desses
peritos. Outro explicou: "É imoral matar para salvar. É imoral matar a
pessoa A para salvar
a pessoa B." Um terceiro acrescentou: "O que os pais estão realmente
a pedir é: matem este
bebé moribundo para que os seus órgãos possam ser usados por
outra pessoa. Bom, isso é
de facto uma proposta horrenda."
Era realmente horrendo? As opiniões dividiram-se. Os eticistas
pensavam que sim, enquanto
os pais da bebé e os médicos pensavam que não. Mas não estamos
apenas interessados no
que as pessoas pensam. Queremos conhecer a verdade da questão.
Teriam os pais razão ou
não, de facto, ao oferecerem os órgãos da bebé para transplante? Se
queremos descobrir a
verdade temos de perguntar que razões, ou argumentos, podem ser
concedidos a cada uma
das partes. O que poderá dizer-se para justificar o pedido dos pais ou
para justificar a ideia
de que o pedido estava errado?
O argumento do benefício. A sugestão dos pais baseava-se na ideia
de que, uma vez que
Teresa ia morrer em breve, os seus órgãos de nada lhe serviam. As
outras crianças, no
entanto, poderiam beneficiar deles. Assim, o raciocínio
15
parece ter sido o seguinte: Se podemos beneficiar alguém sem fazer
mal a outra pessoa,
devemos fazê-lo. Transplantar os órgãos beneficia as outras crianças
sem prejudicar a
bebé Teresa. Logo, devemos transplantar os órgãos.
Será isto correcto? Nem todos os argumentos são sólidos; por isso,
não queremos apenas
saber que argumentos podem ser aduzidos em defesa de uma dada
posição, mas também se
esses argumentos são bons. Em geral, um argumento é sólido se as
suas premissas são
9. verdadeiras e a conclusão resulta logicamente delas. Neste caso,
poderíamos interrogar-nos
sobre a proposição segundo a qual Teresa não seria prejudicada.
Afinal de contas, ela
morreria; isso não é mau para ela? Mas, se reflectirmos, parece claro
que nestas
circunstâncias trágicas os pais tinham razão - estar viva não lhe servia
de nada. Estar vivo
só é um benefício quando permite a alguém realizar actividades e ter
pensamentos,
sentimentos, e relações com outras pessoas- por outras palavras, se
permite a alguém ter
uma vida. Na ausência destas condições, a mera existência biológica
não tem valor algum.
Por isso, mesmo que Teresa pudesse continuar viva por mais alguns
dias, isso nada lhe traria
de bom. (Podemos imaginar circunstâncias nas quais outras pessoas
beneficiariam em mante-
la viva, mas isso não é o mesmo que ser ela a beneficiar disso.)
O argumento do benefício fornece, pois, uma poderosa razão para o
transplante dos órgãos.
Quais são os argumentos do lado contrário?
O argumento de que as pessoas não devem ser usadas como meios.
Os eticistas que se
opuseram aos transplantes usaram dois argumentos. O primeiro
baseava-se na ideia de que é
errado usar pessoas como meio para os fins de outras pessoas.
Retirar os órgãos de Teresa
teria sido usá-la em benefício de outras crianças; portanto, não se
deve fazê-lo. Será este um
argumento sólido? A ideia de que não devemos "usar" pessoas é
obviamente apelativa, mas
16
trata-se de uma noção vaga que tem de ser esclarecida. O que
significa ao certo? "Usar
pessoas" implica geralmente violar a sua autonomia - a capacidade de
decidirem por si
mesmas como viver as suas próprias vidas, segundo os seus próprios
desejos e valores. A
autonomia de uma pessoa pode ser violada por meio de manipulação,
impostura ou fraude.
Por exemplo, posso fingir ser amigo de alguém, quando na verdade
estou apenas interessado
em conhecer a sua irmã; ou posso mentir a alguém para conseguir um
empréstimo; ou posso
tentar convencer alguém de que gostará de assistir a um concerto
noutra cidade, quando
quero apenas que me leve até lá. Em todos estes casos estou a
manipular alguém de modo a
obter algo para mim próprio. A autonomia é igualmente violada quando
as pessoas são
forçadas a fazer coisas contra a sua vontade. Isto explica por que
razão é errado "usar
pessoas"; é errado porque a impostura, a coerção e o engano são
errados.
Retirar os órgãos à bebé Teresa não envolveria engano, impostura ou
coerção. Será que
estaríamos a "usá-la" num outro sentido moralmente significativo?
Iríamos, é claro, usar os
seus órgãos em benefício de outra pessoa. Mas fazemos isso sempre
que realizamos um
transplante. Neste caso, no entanto, iríamos fazê-lo sem a sua
permissão. Esse facto tornaria
o acto errado? Se estivéssemos a fazê-lo "contra" os seus desejos,
isso poderia justificar a
nossa oposição; seria uma violação da sua autonomia. Mas a bebé
Teresa não é um ser
autónomo: não tem desejos e é incapaz de tomar quaisquer decisões.
10. Quando as pessoas são incapazes de tomar decisões, e outros têm
que o fazer em seu lugar,
podem adoptar duas linhas de orientação razoáveis. Primeiro,
podemos perguntar-nos: O
que serviria melhor os seus interesses? Se aplicarmos este padrão à
bebé Teresa, parece não
haver objecções a que lhe retiremos os órgãos, pois, como já vimos,
seja qual for a nossa
decisão, os seus interesses não serão afectados. Ela, de qualquer
maneira, morrerá em breve.
17
A segunda linha de orientação apela para as preferências da própria
pessoa. Poderíamos
perguntar: Se pudesse dizer-nos o que quer, que diria ela? Este tipo
de pensamento é
frequentemente útil quando lidamos com pessoas que sabemos terem
preferências mas são
incapazes de exprimi-las (por exemplo, um paciente em coma que
assinou um testamento).
Só que, infelizmente, a bebé Teresa não tem preferências sobre coisa
alguma e nunca terá.
Não podemos, por isso, obter dela qualquer orientação, nem mesmo
na nossa imaginação. A
conclusão é que ficamos na contingência de fazer o que consideramos
melhor.
O argumento do erro de matar. Os eticistas recorreram igualmente ao
princípio de que é
errado matar uma pessoa para salvar outra. Retirar os órgãos de
Teresa seria matá-la para
salvar outros, afirmaram eles; por isso, retirar os órgãos seria errado.
Será este argumento sólido? A proibição de matar é certamente uma
das regras morais mais
importantes. No entanto, poucas pessoas pensam que matar é sempre
errado - a maioria
das pessoas pensa que algumas excepções são por vezes
justificadas. Á questão é, pois,
saber se retirar os órgãos da bebé Teresa deveria ser encarado como
uma excepção à regra.
Há muitas razões a favor desta ideia, sendo a mais importante que ela
morrerá de qualquer
maneira, independentemente do que fizermos, ao passo que retirar-lhe
os órgãos permitiria
pelo menos fazer algum bem a outros bebés. Qualquer pessoa que
aceite isto tomará como
falsa a primeira premissa do argumento. Em geral é errado matar uma
pessoa para salvar
outra, mas isso nem sempre é assim.
Mas há outra possibilidade. Talvez a melhor maneira de entender toda
a situação fosse
encarar desde logo a bebé Teresa como morta. Se isto parece
insensato, recorde-se que a
"morte cerebral" é hoje amplamente aceite como critério para declarar
as pessoas
legalmente mortas. Quando
18
o critério da morte cerebral foi proposto pela primeira vez, houve
resistências baseadas na
ideia de que alguém pode estar cerebralmente morto mas muita coisa
continua a funcionar
no seu interior - com assistência mecânica o coração pode continuar a
bater, pode-se
continuar a respirar, e assim por adiante. Mas a morte cerebral foi por
fim aceite e as
11. pessoas acostumaram-se a encará-la como "verdadeira" morte. Isto foi
sensato porque
quando o cérebro pára de funcionar deixa de haver esperança de vida
consciente.
As anencefalias não satisfazem os requisitos técnicos da morte
cerebral tal como é
actualmente definida; mas talvez a definição devesse ser reelaborada
para as incluir. Afinal
de contas, os anencefálicos também não têm perspectivas de vida
consciente, pela razão
profunda de que não têm cérebro ou cerebelo. Se a definição de morte
cerebral fosse
reformulada para incluir os anencefálicos, acabaríamos por nos
acostumar à ideia de que
estes infelizes bebés são nado-mortos e deixaríamos, por isso, de
encarar a extracção dos
seus órgãos como uma forma de os matar. O argumento baseado na
ideia de que matar é
errado seria então contestável.
Parece pois, no todo, que o argumento a favor do transplante dos
órgãos da bebé Teresa é
mais forte do que estes argumentos contra o transplante.
1.3 Segundo exemplo: Jodie e Mary
Em Agosto de 2000, uma jovem de Gozo, uma ilha junto de Malta,
descobriu que estava
grávida de gémeos siameses. Sabendo que as instalações de saúde
de Gozo não estavam
equipadas para lidar com as complicações de um tal nascimento, ela e
o marido foram para o
Hospital St. Mary, em Manchester, Inglaterra, para fazer aí o parto das
bebés. As crianças,
conhecidas como Mary e Jodie, estavam
19
ligadas pelo baixo abdómen. As suas espinhas dorsais encontravam-
se fundidas, e
partilhavam um coração e um par de pulmões. Jodie, a mais forte,
fornecia sangue à sua
irmã.
Ninguém sabe quantos pares de gémeos siameses nascem por ano.
São raros, embora o
nascimento recente de três pares no Oregon tenha suscitado a ideia
de que o seu número
está a crescer. ("Os Estados Unidos têm um excelente serviço de
saúde mas os registos são
muito pobres", afirmou um médico.) As causas do fenómeno não são
bem conhecidas, mas
sabemos com certeza que os gémeos siameses são uma variante de
gémeos idênticos.
Quando o conjunto de células (o "pré-embrião") se divide, três a oito
dias após a
fertilização, surgem os gémeos idênticos; quando a divisão se arrasa
mais alguns dias, pode
ficar incompleta e os gémeos podem ficar ligados.
Alguns pares de gémeos siameses não têm problemas. Chegam à
idade adulta e por vezes
casam e têm os seus próprios filhos. Mas o panorama apresentava-se
algo cinzento para
Mary e Jodie. Os médicos afirmaram que, sem intervenção, morreriam
dentro de seis meses.
A única esperança era uma operação para separá-las. Isto salvaria
Jodie, mas Mary morreria
de imediato.
Os pais, católicos devotos, não permitiram a operação baseando-se na
ideia de que isso
12. anteciparia a morte de Mary. "Pensamos que a natureza deve seguir o
seu curso", afirmaram
os pais. "Se é a vontade de Deus que as crianças não sobrevivam,
assim seja." O hospital,
convencido da sua obrigação de fazer os possíveis para salvar pelo
menos uma das crianças,
solicitou permissão aos tribunais para separar as bebés contra o
desejo dos pais. Os tribunais
concederam permissão, e a 6 de Novembro a operação foi realizada.
Tal como se esperava,
Jodie sobreviveu e Mary morreu.
Ao meditar neste caso, devemos separar a questão de quem deveria
tomar a decisão da
questão de qual deve ser a
20
decisão. Podemos pensar, por exemplo, que a decisão devia caber
aos pais, caso em que nos
oporemos à intromissão dos tribunais. Mas continua em aberto a
questão independente de
saber qual seria para os pais (ou qualquer outra pessoa) a escolha
mais sensata. Vamos
concentrar-nos nesta última questão: Nas circunstâncias descritas,
seria correcto ou errado
separar as gémeas?
O argumento de que devem ser salvas tantas vidas quanto possível. O
argumento óbvio a
favor da separação das gémeas é que podemos escolher entre salvar
um bebé ou deixar
ambos morrer. Não é claramente melhor salvar um deles? Este
argumento é tão atraente que
muitas pessoas concluirão, sem mais, que isto resolve o problema. No
auge da controvérsia
sobre o caso, quando os jornais estavam cheios de histórias acerca de
Jodie e Mary, o
Ladies Home Journal encomendou uma sondagem para descobrir o
que os americanos
pensavam. A sondagem mostrou que 78% aprovava a operação. As
pessoas estavam
obviamente persuadidas pela ideia de que devemos salvar tantos
bebés quanto possível. No
entanto, os pais de Jodie e Mary pensavam que há um argumento
ainda mais forte do lado
contrário.
O argumento da santidade da vida humana. Os pais amavam as duas
filhas e pensavam que
seria errado sacrificar uma delas para salvar a outra. Naturalmente,
não eram os únicos a
defender esta perspectiva. A ideia de que toda a vida humana tem
valor, independentemente
da idade, raça, classe social ou deficiência, está no centro da tradição
moral ocidental. É
especialmente enfatizada em obras religiosas. Na ética tradicional, a
proibição de matar seres
humanos inocentes é tida como absoluta. Não importa se o
assassinato visa servir um
propósito meritório; simplesmente não pode fazer-se. Mary é um ser
humano inocente, não
podendo por isso ser morta.
21
Será este argumento sólido? Por uma razão surpreendente, os juizes
que avaliaram o caso
em tribunal pensaram que não. Negaram a pertinência do argumento
tradicional neste caso.
13. O juiz Robert Walker afirmou que a realização da operação não
mataria Mary. Ela seria
simplesmente separada da irmã e depois "morreria, não por ser
intencionalmente morta, mas
porque o seu próprio corpo não pode manter a sua vida". Por outras
palavras, a causa da
sua morte não seria a operação mas a sua própria debilidade. Os
médicos parecem ter
favorecido também esta perspectiva. Quando a operação foi
finalmente realizada,
executaram todos os procedimentos para tentarem manter Mary viva -
"concedendo-lhe
todas as possibilidades" - mesmo sabendo da inutilidade do esforço.
O argumento do juiz pode parecer um pouco sofístico. Poderíamos
pensar, seguramente,
que pouco importa dizer que a morte da Mary é causada pela
operação ou pela debilidade
do seu corpo. De qualquer das maneiras ela vai morrer, e a sua morte
acontecerá mais cedo
do que se não tivesse sido separada da irmã.
Há, no entanto, uma objecção mais natural ao argumento da santidade
da vida que não
depende de um argumento tão forçado. Podemos responder que não é
sempre errado matar
seres humanos inocentes. Em situações raras pode mesmo ser
correcto. Em particular se: a)
o ser humano inocente não tem futuro por estar condenado a morrer
em breve
independentemente do que façamos; b) o ser humano inocente não
quer continuar a viver,
talvez por estar tão-pouco desenvolvido mentalmente que não pode de
todo ter desejos; e c)
se matar o ser humano inocente permitir salvar a vida de outros, que
podem desenvolver-se
e ter uma vida boa e plena - nestas circunstâncias, pouco frequentes,
pode justificar-se
matar um inocente. E claro que muitos moralistas, sobretudo os
pensadores religiosos, não
se deixarão convencer. No entanto, esta é uma linha de pensamento
que muitas pessoas
podem achar persuasiva.
22
1.4 Terceiro exemplo: Tracy Latimer
Tracy Latimer, uma menina de doze anos vítima de paralisia cerebral,
foi morta pelo pai em
1993. Tracy vivia com a família numa quinta de uma pradaria de
Saskatchewan, no Canadá.
Numa manhã de domingo, enquanto a mulher e os filhos estavam na
missa, Robert Latimer
pôs Tracy na cabina da sua carrinha de caixa aberta e asfixiou-a com
o fumo do escape. Na
altura da morte, Tracy pesava menos de dezoito quilos; diz-se que
tinha "um nível mental
idêntico ao de um bebé de três meses". A senhora Latimer afirmou ter
ficado aliviada por
encontrar Tracy morta ao chegar a casa, e acrescentou que "não tinha
coragem" para o
fazer.
O senhor Latimer foi julgado por homicídio, mas o juiz e os jurados não
quiseram tratá-lo
com demasiada dureza. O júri considerou-o apenas culpado de
homicídio de segundo grau e
recomendou ao juiz para ignorar a sentença obrigatória de vinte e
cinco anos de prisão. O
juiz concordou e sentenciou Latimer a um ano de cadeia, seguido de
um ano de prisão
domiciliária na sua quinta. No entanto, o Supremo Tribunal do Canadá
revogou a sentença e
14. ordenou a imposição da sentença obrigatória. Robert Latimer está
ainda detido, cumprindo
uma pena de vinte e cinco anos.
Questões legais à parte, será que o senhor Latimer fez algo de
errado? Este caso envolve
muitas das questões que já vimos nos outros casos. Um argumento
contra o senhor Latimer
é que a vida de Tracy tinha valor moral, não tendo ele por isso o direito
de a matar. Em sua
defesa pode responder-se que a situação de Tracy era tão catastrófica
que ela não tinha
quaisquer perspectivas de uma "vida" em qualquer sentido além do
puramente biológico. A
sua existência estava reduzida a nada mais do que sofrimento sem
sentido, pelo que matá-la
foi um acto de misericórdia. Considerando estes argumentos, parece
que talvez o senhor
Latimer tenha agido de forma defensável. Houve, no entanto, outros
argumentos avançados
pelos seus críticos.
23
O argumento contra a discriminação dos deficientes.
Quando Robert Latimer foi sentenciado com tolerância pelo tribunal,
muitos deficientes
encararam o facto como um insulto. O presidente de Saskatoon Voice
of People with
Disabilities, que sofre de esclerose múltipla, afirmou: "Ninguém tem o
direito de decidir se a
minha vida tem um valor inferior a outra. Essa é a grande questão."
Tracy foi morta por ser
deficiente, afirmou, e isso é inadmissível. As pessoas deficientes
deveriam ser tão respeitadas
e ter tantos direitos como qualquer outra pessoa.
Que podemos dizer disto? A discriminação contra qualquer grupo de
pessoas é,
naturalmente, um assunto sério. E inaceitável porque implica tratar
algumas pessoas de
forma diferente de outras, quando não há diferenças relevantes entre
elas para o justificar.
Exemplos correntes envolvem situações como a discriminação no local
de trabalho.
Suponha-se que se recusa um trabalho a uma pessoa cega
simplesmente porque o patrão não
gosta da ideia de empregar alguém incapaz de ver. Isto não é diferente
de recusar empregar
alguém por ser negro ou judeu. Para sublinhar o quanto isto é
ofensivo, poderíamos
perguntar por que razão essa pessoa é tratada de forma diferente. É
menos capaz de fazer o
trabalho? É mais estúpida ou menos diligente? Merece menos o
emprego? É menos capaz de
beneficiar da circunstância de estar empregada? Se não há qualquer
boa razão para a excluir,
então é simplesmente arbitrário tratá-la desta forma.
Mas há algumas circunstâncias nas quais pode justificar-se tratar os
deficientes de forma
diferente. Por exemplo, ninguém iria defender seriamente que uma
pessoa cega deveria ser
empregada como controladora de tráfego aéreo. Uma vez que
podemos explicar facilmente
por que motivo isto não é desejável, a "discriminação" não é arbitrária
e não é uma violação
dos direitos da pessoa deficiente.
Devemos pensar na morte de Tracy Latimer como um caso de
discriminação de deficientes?
15. O senhor Latimer
24
argumentou que a paralisia cerebral de Tracy não era a questão. "As
pessoas andam a dizer
que isto é uma questão relacionada com deficiência", afirmou, "mas
estão enganadas. Isto
diz respeito a tortura. Para Tracy, tratava-se de uma questão de
mutilação e tortura". Antes
da sua morte, Tracy fora submetida a uma importante e delicada
intervenção cirúrgica às
costas, ancas e pernas, e havia ainda mais cirurgias planeadas.
"Tendo em conta a
combinação de um tubo para alimentação, varetas nas costas, a perna
cortada e bamba e
ainda as chagas causadas pela permanência na cama", afirmou o pai,
"como podem as
pessoas dizer que ela era uma menina feliz"? No julgamento, três dos
médicos de Tracy
deram o seu testemunho sobre a dificuldade de controlar as suas
dores. O senhor Latimer
negou, por isso, que ela tenha sido morta por causa da paralisia
cerebral; foi morta por causa
da dor e por não haver esperança para ela.
O argumento da derrapagem. Isto conduz naturalmente a outro
argumento. Quando o
Supremo Tribunal do Canadá confirmou a sentença de Robert Latimer,
Tracy Walters,
directora da Associação Canadense de Centros para Uma Vida
Independente, afirmou-se
"agradavelmente surpreendida" pela decisão. "Teria sido na verdade
uma bola de neve e um
abrir de portas a outras pessoas para decidirem quem vive e quem
morre", afirmou.
Outros defensores dos deficientes fizeram eco desta ideia. Podemos
compreender Robert
Latimer, afirmaram alguns, podemos até ser tentados a pensar que
Tracy está melhor morta.
No entanto, é perigoso pensar desta forma. Se aceitarmos qualquer
tipo de morte piedosa,
iremos dar a uma "derrapagem" inevitável, e no final toda a vida terá
perdido o seu valor.
Onde devemos pois traçar a fronteira? Se a vida de Tracy Latimer não
merece ser protegida,
o que dizer então de outros deficientes? Que dizer dos velhos, doentes
e outros membros
"inúteis" da sociedade? Neste
25
contexto, refere-se frequentemente os nazis, que queriam "purificar a
raça", e a implicação é
que se não queremos acabar como eles, é melhor não darmos os
perigosos primeiros passos.
Tem-se usado "argumento da derrapagem" do mesmo género em
relação a todo o tipo de
questões. O aborto, a fertilização in vitro (FIV) e, mais recentemente, a
clonagem, foram
criticados por causa daquilo a que podem conduzir. Uma vez que
estes argumentos
envolvem especulações sobre o futuro, são manifestamente difíceis de
avaliar. Por vezes, é
possível verificar, em retrospectiva, que as preocupações eram
infundadas. Isto aconteceu
com a FIV. Quando, em 1978, nasceu Louise Brown, a primeira "bebé
proveta", houve uma
16. série de previsões medonhas sobre o que o futuro poderia reservar
para ela, a sua família e a
sociedade como um todo. Mas nada de mau aconteceu e a FIV tornou-
se um procedimento
rotineiro usado para ajudar milhares de casais a ter filhos.
Quando o futuro é desconhecido, pode, no entanto, ser difícil
determinar se um argumento
deste tipo é sólido. Por outro lado, pessoas razoáveis podem discordar
sobre o que poderia
acontecer se a morte piedosa fosse aceite em casos como o de Tracy
Latimer. Isto dá
origem a um tipo de impasse frustrante: os desacordos quanto aos
méritos da argumentação
podem depender simplesmente das inclinações prévias dos
interlocutores - os inclinados a
defender o senhor Latimer podem pensar que as previsões são
irrealistas, enquanto os
predispostos a condená-lo insistem na sensatez das previsões.
Vale a pena notar, no entanto, que este tipo de argumento é atreito a
usos abusivos. Se não
concordamos com alguma coisa, mas não temos qualquer argumento
bom contra ela,
podemos sempre fazer uma previsão sobre as suas possíveis
consequências; por mais
implausível que a previsão seja, ninguém pode provar que esteja
errada. Este método pode
ser utilizado para contestar quase tudo. Essa
26
é a razão pela qual os argumentos deste tipo devem ser abordados
com cuidado.
1.5 Razão e imparcialidade
O que se pode aprender com tudo isto sobre a natureza da moral?
Para começar, podemos
tomar nota de dois aspectos principais: primeiro, os juízos morais têm
de se apoiar em boas
razões; segundo, a moral implica a consideração imparcial dos
interesses de cada indivíduo.
Raciocínio moral. Os casos da bebé Teresa, Jodie e Mary e Tracy
Latimer, bem como
muitos outros que serão discutidos neste livro, podem despertar
sentimentos fortes. Estes
sentimentos são frequentemente sinal de seriedade moral e podem,
pois, ser objecto de
admiração. Mas podem também ser um obstáculo à descoberta da
verdade: quando temos
sentimentos fortes relativamente a uma questão, é tentador pressupor
que sabemos pura e
simplesmente o que a verdade não pode deixar de ser, sem mesmo
termos de tomar em
consideração os argumentos do lado contrário. Infelizmente, não
podemos confiar nos
nossos sentimentos, por mais fortes que sejam. Os nossos
sentimentos podem ser irracionais:
podem não ser mais do que resultados de preconceito, egoísmo ou
condicionamento
cultural. (Numa dada altura, os sentimentos das pessoas diziam-lhes,
por exemplo, que os
membros de outras raças eram inferiores e que a escravatura fazia
parte do próprio plano
divino das coisas.) Além disso, os sentimentos de pessoas diferentes
dizem-lhes
frequentemente coisas opostas: no caso de Tracy Latimer, o
sentimento forte de algumas
pessoas é que o seu pai devia ter sido condenado a uma pena longa,
enquanto outras têm o
sentimento igualmente forte de que ele nunca devia ter sido acusado.
Estes sentimentos não
17. podem, no entanto, estar ambos correctos.
27
Assim, se queremos descobrir a verdade, temos de tentar deixar que
os nossos sentimentos
sejam guiados, tanto quanto possível, pelos argumentos que se podem
fornecer a favor de
cada uma das perspectivas opostas. A moralidade é, antes de mais e
acima de tudo, uma
questão de aconselhamento racional. Em qualquer circunstância dada,
a acção moralmente
correcta é aquela a favor da qual existirem melhores razões.
Este não é um aspecto de somenos importância sobre uma pequena
gama de perspectivas
morais; é um requisito lógico geral que tem de ser aceite por qualquer
pessoa,
independentemente do seu posicionamento sobre qualquer questão
moral em particular. A
ideia fundamental pode enunciar-se de forma simples. Suponha-se
que se afirma que alguém
devia fazer isto ou aquilo (ou que fazer isto ou aquilo seria errado).
Pode-se legitimamente
perguntar por que motivo se deve fazê-lo (ou por que razão seria
errado fazê-lo), e se não
se puder dar qualquer boa razão, pode-se rejeitar o conselho como
arbitrário ou infundado.
Neste aspecto, os juízos morais são diferentes das expressões de
gosto pessoal. Se alguém
afirma "eu gosto de café", não necessita ter uma razão para tal - está
meramente a declarar
um facto sobre si mesmo, nada mais do que isso. Uma "defesa
racional" do facto de gostar
ou não de café é algo que não existe, não havendo por isso discussão
possível do caso.
Desde que uma pessoa esteja a dar conta dos seus gostos de forma
precisa, o que diz tem de
ser verdade. Além do mais, não há nisso qualquer implicação de que
as outras pessoas
tenham de ter o mesmo gosto; se todas as outras pessoas do mundo
detestarem café, isso
não importa. Por outro lado, se alguém afirma que algo é moralmente
errado, necessita ter
razões para tal, e se as suas razões forem sólidas, as outras pessoas
têm de reconhecer a sua
força. Pela mesma lógica, se não tiver boas razões para o que diz,
está simplesmente a
produzir ruídos e não vale a pena dar-lhe atenção.
28
Naturalmente, nem todas as razões passíveis de ser apresentadas são
boas razões. Há bons e
maus argumentos, e muita da perícia do pensamento moral consiste
em saber distinguir uns
de outros. Mas como podemos reconhecer as diferenças? Como
devemos proceder para
avaliar argumentos? Os exemplos que analisámos ilustram alguns
aspectos pertinentes.
A primeira coisa a fazer é entender com clareza os factos. E frequente
isto não ser tão fácil
como parece. Uma fonte de problemas relaciona-se com a dificuldade
que por vezes existe
em estabelecer os "factos" - as questões podem ser tão complexas e
difíceis que nem
mesmo os especialistas concordam entre si. Outro problema é o
preconceito humano. É
18. frequente querer acreditar numa versão dos factos por apoiar os
nossos preconceitos. Os
que reprovam a acção de Robert Latimer, por exemplo, quererão
acreditar nas previsões do
argumento da derrapagem; os que o compreendem não vão querer
acreditar nessas
previsões. É fácil imaginar outros exemplos do mesmo género:
pessoas que não querem dar
dinheiro para a caridade consideram com frequência que as
organizações de caridade são
esbanjadoras, mesmo quando não têm grandes provas disso; e as
pessoas que não gostam de
homossexuais afirmam que a comunidade gay inclui um número
desmesurado de pedófilos,
apesar das provas em contrário. Mas os factos existem
independentemente dos nossos
desejos, e o pensamento moral responsável começa quando tentamos
ver as coisas como
elas são.
Depois de os factos terem sido estabelecidos tão bem quanto possível,
os princípios morais
entram em jogo. Nos nossos três exemplos estavam envolvidos um
conjunto de princípios:
que não devemos "usar" as pessoas; que não devemos matar uma
pessoa para salvar outra;
que devemos fazer o que beneficie as pessoas afectadas pelas nossas
acções; que toda a vida
é sagrada; e que é errado discriminar os deficientes. A maioria dos
argumentos morais
29
consiste na aplicação de princípios aos factos de casos particulares, e
por isso o que importa
saber é se os princípios são sólidos e se estão a ser aplicados de
forma inteligente.
Seria bom se houvesse uma receita simples para construir bons
argumentos e evitar os maus.
Infelizmente, não há um método simples. Os argumentos podem falhar
de diversas maneiras,
como se torna evidente pela diversidade de argumentos sobre os
bebés deficientes; e
devemos estar sempre atentos à possibilidade de novas complicações
e novas formas de
erro. Mas isso não é surpreendente. A aplicação mecânica de métodos
rotineiros nunca é um
substituto satisfatório para a inteligência crítica, seja em que área for.
O pensamento moral
não é excepção.
O requisito de imparcialidade. Praticamente todas as teorias morais
importantes incluem a
ideia de imparcialidade. A ideia básica consiste em considerar os
interesses de cada indivíduo
como igualmente importantes; do ponto de vista moral, não há
pessoas privilegiadas.
Portanto, cada um de nós tem de reconhecer que o bem-estar dos
outros é tão importante
como o nosso. Ao mesmo tempo, a exigência de imparcialidade
elimina qualquer esquema
que trate os membros de determinados grupos como de certa forma
inferiores, como os
negros, os judeus e outros foram por vezes tratados.
O requisito de imparcialidade está estreitamente ligado à ideia de que
os juízos morais têm
de ser apoiados em boas razões. Considere-se a posição de um
racista branco, por exemplo,
que defende ser correcto que os empregos melhores sejam
reservados para as pessoas
19. brancas. Ele sente-se bem com uma situação na qual os executivos
das principais empresas e
os responsáveis do governo, entre outros, são brancos, enquanto os
negros ficam
restringidos a tarefas sobretudo subalternas; ele apoia ainda as
disposições sociais por meio
das quais esta situação se perpetua. Podemos agora perguntar pelas
razões para isto;
podemos
30
perguntar por que motivo se pensa que isto está certo. Haverá alguma
coisa nos brancos que
os torne mais adequados para os cargos mais bem pagos e mais
prestigiados? Serão eles
inerentemente mais inteligentes ou mais empreendedores? Será que
se importam mais
consigo mesmos e com as suas famílias? Serão capazes de beneficiar
mais por terem tais
cargos à sua disposição? Em cada um destes casos a resposta parece
ser não; e se não
houver qualquer boa razão para tratar as pessoas de maneira
diferente, a discriminação é
inaceitavelmente arbitrária.
O requisito de imparcialidade não é, pois, mais do que uma
condenação da arbitrariedade no
tratamento das pessoas. É uma regra que nos proíbe de tratar uma
pessoa de forma diferente
de outra quando não há uma boa razão para o fazer. Mas se isto
explica o que está errado
no racismo, explica igualmente por que razão em alguns casos
especiais não é racista tratar
as pessoas de maneira diferente. Suponha-se que um realizador de
cinema estava a fazer um
filme sobre a vida de Martin Luther King, Jr. Teria uma razão muito boa
para não recrutar
Tom Cruise para o papel de protagonista. É claro que a escolha deste
actor não faria
sentido. Por haver uma boa razão para isso, a "discriminação" do
realizador não seria
arbitrária, não sendo por isso vulnerável a críticas.
1.6 A concepção mínima de moralidade
A concepção mínima pode agora ser apresentada de forma breve: a
moralidade é, pelo
menos, o esforço para orientar a nossa conduta pela razão - isto é,
para fazer aquilo a
favor do qual existem melhores razões - dando simultaneamente a
mesma importância aos
interesses de cada indivíduo que será afectado por aquilo que
fazemos.
Isto oferece, entre outras coisas, uma imagem do que significa ser um
agente moral
consciente. O agente moral
31
consciencioso é alguém preocupado imparcialmente com os interesses
de quantos são
afectados por aquilo que ele, ou ela, fazem; alguém que
cuidadosamente filtra os factos e
examina as suas implicações; que aceita princípios de conduta
somente depois de os
examinar, para ter a certeza de que são sólidos; que está disposto a
"dar ouvidos à razão"
mesmo quando isso significa ter de rever convicções prévias; alguém
que, por fim, está
20. disposto a agir com base nos resultados da sua deliberação.
É claro que, como seria de esperar, nem todas as teorias éticas
aceitam este "mínimo".
Como teremos oportunidade de ver, este retrato do agente moral tem
sido posto em causa
de várias maneiras. No entanto, as teorias que rejeitam a concepção
mínima debatem-se com
sérias dificuldades. A maioria dos filósofos apercebeu-se disto, e por
isso a maior parte das
teorias da moralidade incorpora, de uma forma ou outra, a concepção
mínima. Não
discordam sobre o mínimo mas sobre como poderemos alargá-lo, ou
talvez modificá-lo, de
maneira a alcançar uma concepção moral inteiramente satisfatória.
32
21. Capítulo 2
O desafio do relativismo cultural
A moralidade varia em todas as sociedades, e é apenas um termo
cómodo para os hábitos que uma sociedade
aprova.
RUTH BENEDICT, Padrões de Cultura (1934)
2.1 Culturas diferentes têm códigos morais diferentes
Dário, um rei da antiga Pérsia, ficou intrigado com a diversidade de
culturas que encontrou
nas suas viagens. Tinha descoberto, por exemplo, que os calatinos
(uma tribo de indianos)
tinham o hábito de comer os cadáveres dos pais. Os Gregos, é claro,
não faziam isso -
cremavam os mortos e encaravam a pira funerária como a forma
natural e adequada de
dispor dos mortos. Dário pensava que uma maneira sofisticada de
entender o mundo tem de
incluir uma avaliação deste tipo de diferenças entre culturas. Um dia,
para ensinar esta lição,
convocou alguns gregos que por acaso estavam na sua corte e
perguntou-lhes quanto
queriam para comer os cadáveres dos seus pais. Eles ficaram
33
chocados, como Dário sabia que ficariam, e responderam que
nenhuma quantia os poderia
persuadir a fazer tal coisa. Dário chamou então alguns calatinos e, na
presença dos gregos,
perguntou-lhes quanto queriam para queimar os cadáveres dos seus
pais. Os calatinos
ficaram horrorizados e disseram a Dário para nem sequer referir uma
coisa tão horrível.
Esta história, relatada por Heródoto na sua História, ilustra um tema
recorrente na
bibliografia das ciências sociais: culturas diferentes têm códigos morais
diferentes. O que se
pensa ser correcto num grupo pode ser inteiramente odioso para os
membros de outro
grupo e vice-versa. Devemos comer os corpos dos mortos ou queimá-
los? Se fôssemos
gregos, uma das respostas pareceria obviamente correcta; mas se
fôssemos calatinos a
resposta contrária pareceria igualmente certa.
É fácil dar outros exemplos do mesmo género. Pense-se nos esquimós
(entre os quais o
grupo mais vasto é o inuíte). São um povo remoto e inacessível. Com
uma população de
apenas cerca de vinte e cinco mil pessoas, vivem em povoados
espalhados sobretudo ao
longo da orla da América do Norte e da Gronelândia. Até ao começo
do século xx, o mundo
exterior pouco sabia a seu respeito. Os exploradores começaram
então a trazer consigo
histórias estranhas. Os costumes esquimós revelaram-se muito
diferentes dos nossos. Os
homens tinham com frequência mais de uma mulher, e partilhavam-na
com os convidados,
concedendo-as para passar a noite em sinal de hospitalidade. Além
disso, no seio de uma
comunidade um homem dominante podia exigir e obter acesso sexual
regular às esposas de
outros homens. As mulheres, no entanto, podiam quebrar estes
acordos abandonando pura e
22. simplesmente os maridos e ligando-se a novos companheiros -
podiam, isto é, desde que os
seus antigos maridos decidissem não causar sarilhos. Tudo somado, a
prática esquimó era
um esquema volátil em quase nada semelhante àquilo a que
chamamos casamento.
34
Mas não eram apenas os seus casamentos e práticas sexuais que
eram diferentes. Os
esquimós pareciam igualmente ter menos respeito pela vida humana.
O infanticídio, por
exemplo, era comum. Knud Rasmussen, um dos mais famosos de
entre os primeiros
exploradores, relatou o seu encontro com uma mulher que tinha dado
à luz vinte crianças
mas tinha morto dez delas à nascença. As bebés do sexo feminino,
descobriu Rasmussen,
eram especialmente susceptíveis de ser aniquiladas, e isto era deixado
simplesmente à
decisão dos pais, sem que tal acarretasse qualquer estigma social.
Também os idosos,
quando se tornavam demasiado fracos para ajudar a família, eram
deixados ao frio e à neve
para morrer. Parecia pois haver, nesta sociedade, muito pouco
respeito pela vida.
Para o público em geral estas eram revelações perturbadoras. O
nosso próprio modo de vida
parece tão natural e correcto que para muitos de nós é difícil conceber
outras pessoas a
viver de modo tão diverso. E quando ouvimos falar de tais coisas,
tendemos imediatamente
a categorizar as outras pessoas como "retrógradas" ou "primitivas".
Mas para os
antropólogos nada havia de particularmente surpreendente nos
esquimós. Desde o tempo de
Heródoto que os observadores mais perspicazes se acostumaram à
ideia de que as
concepções de certo e errado diferem de cultura para cultura. Se
partimos do princípio de
que as nossas ideias éticas serão partilhadas por todos os povos em
todos os tempos,
estamos apenas a ser ingénuos.
2.2 Relativismo cultural
Esta observação - "culturas diferentes têm códigos morais diferentes" -
pareceu a muitos
pensadores ser a chave para compreender a moralidade. A ideia de
verdade universal em
ética, afirmam, é um mito. Tudo quanto existe são os costumes de
sociedades diferentes.
Não se pode
35
dizer que estes costumes estão "correctos" ou "incorrectos", pois isso
implicaria ter um
padrão independente de certo e errado pelo qual poderíamos julgá-los.
Mas tal padrão não
existe; todos os padrões são determinados por uma cultura. O grande
pioneiro da sociologia,
William Graham Sumner, em 1906, colocou a questão assim:
A maneira "certa" é a maneira que os antepassados utilizavam e nos
foi transmitida. A tradição é a
sua própria garantia. Não está submetida à verificação pela
experiência. A noção do que é certo está
23. nos hábitos do povo. Não reside além deles, não provém de origem
independente, para os pôr à
prova. O que estiver nos hábitos populares, seja o que for, está certo.
Isto é assim porque são
tradicionais, e por isso contêm em si a autoridade dos espíritos
ancestrais. Quando abordamos os
hábitos populares a nossa análise chega ao fim.
Esta linha de pensamento persuadiu provavelmente mais pessoas a
serem cépticas sobre
ética que qualquer outra coisa. O relativismo cultural, como tem sido
chamado, desafia a
nossa crença habitual na objectividade e universalidade da verdade
moral. Afirma, com
efeito, que não existe verdade universal em ética; existem apenas os
vários códigos morais e
nada mais. Além disso, o nosso próprio código moral não tem um
estatuto especial; é apenas
um entre muitos. Como veremos, esta ideia de base é na realidade um
conjunto de vários
pensamentos diferentes. É importante separar os vários elementos da
teoria porque, durante
a análise, algumas partes revelam-se correctas enquanto outras
parecem estar erradas. Para
começar, podemos distinguir as seguintes afirmações, todas elas
apresentadas por
relativistas culturais:
1. Sociedades diferentes têm códigos morais diferentes;
2. O código moral de uma sociedade determina o que é correcto no
seio dessa sociedade,
isto é, se o código
36
moral de uma sociedade afirma que certa acção é correcta, então essa
acção é correcta, pelo
menos nessa sociedade;
3. Não há qualquer padrão objectivo que se possa usar para ajuizar
um código social como
melhor do que outro;
4. O código moral da nossa própria sociedade não tem estatuto
especial, é apenas um entre
muitos;
5. Não há uma "verdade universal" em ética, isto é, não há verdades
morais aceites por
todos os povos em todos os tempos;
6. E mera arrogância nossa tentar julgar a conduta de outros povos.
Deveríamos adoptar
uma atitude de tolerância face às práticas de outras culturas.
Apesar de poder parecer que estas seis proposições fazem
naturalmente parte de um todo,
são independentes umas das outras, na medida em que algumas
podem ser falsas ainda que
outras sejam verdadeiras. Nos pontos seguintes vamos tentar
identificar o que está correcto
no relativismo cultural, mas vamos também denunciar o que está
errado.
2.3 O argumento das diferenças culturais
O relativismo cultural é uma teoria sobre a natureza da moralidade. À
primeira vista parece
bastante plausível. No entanto, como todas as teorias do género, pode
ser avaliada mediante
análise racional; e quando analisamos o relativismo cultural,
descobrimos que não é tão
plausível como inicialmente parecia ser.
24. A primeira coisa que precisamos fazer notar é que no âmago do
relativismo cultural está
uma certa forma de argumento. A estratégia usada pelos relativistas
culturais é
37
argumentar a partir de factos sobre as diferenças entre perspectivas
culturais a favor de uma
conclusão sobre o estatuto da moralidade. Convidam-nos, assim, a
aceitar este raciocínio:
1. Os Gregos acreditavam que comer os mortos estava errado,
enquanto os Calatinos
acreditavam que comer os mortos estava certo;
2. Logo, comer os mortos não é objectivamente certo nem
objectivamente errado. É apenas
uma questão de opinião que varia de cultura para cultura.
Ou, alternativamente:
1. Os esquimós nada vêem de errado no infanticídio, enquanto os
americanos pensam que o
infanticídio é imoral;
2. Logo, o infanticídio não é objectivamente certo nem objectivamente
errado. É apenas
uma questão de opinião, que varia de cultura para cultura.
Estes argumentos são claramente variações de uma ideia
fundamental. São ambos casos
especiais de um argumento mais geral, que afirma:
1. Culturas diferentes têm códigos morais diferentes;
2. Logo, não há uma "verdade" objectiva na moralidade. Certo e errado
são apenas
questões de opinião e as opiniões variam de cultura para cultura.
Podemos chamar a isto o argumento das diferenças culturais. Para
muitas pessoas é
persuasivo. Mas, de um ponto de vista lógico, será sólido?
Não é sólido. O problema é que a conclusão não se segue da
premissa - isto é, mesmo que
a premissa seja
38
verdadeira a conclusão pode continuar a ser falsa. A premissa diz
respeito àquilo em que as
pessoas acreditam - em algumas sociedades as pessoas acreditam
numa coisa; noutras
sociedades acreditam noutra. A conclusão, no entanto, diz respeito ao
que na verdade se
passa. O problema é que este tipo de conclusão não se segue
logicamente deste tipo de
premissa.
Considere-se de novo o exemplo dos gregos e dos calatinos. Os
gregos acreditavam que é
errado comer os mortos; os calatinos acreditavam que é correcto. Será
que daqui se
entende, do simples facto de não estarem de acordo, que não existe
verdade objectiva no
caso? Não, não se entende; pois poderia acontecer que a prática fosse
objectivamente certa
(ou errada) e que uma ou outra das posições estivesse simplesmente
errada.
25. Para tornar este aspecto mais claro, considere-se um tema diferente.
Em algumas sociedades
as pessoas acreditam que a Terra é plana. Noutras sociedades, como
a nossa, as pessoas
acreditam que a Terra é (aproximadamente) esférica. Segue-se daqui,
do mero facto de as
pessoas discordarem, que não há "verdade objectiva" em geografia?
Claro que não; nunca
chegaríamos a tal conclusão porque percebemos que, nas suas
crenças sobre o mundo, os
membros de algumas sociedades podem simplesmente estar errados.
Não há qualquer razão
para pensar que se o mundo é redondo, todos têm de saber disso. Da
mesma maneira, não
há qualquer razão para pensar que se existe uma verdade moral,
todos têm de conhecê-la. O
erro fundamental no argumento das diferenças culturais é que tenta
derivar uma conclusão
substancial sobre um tema partindo do mero facto de as pessoas
discordarem a seu respeito.
Trata-se, até agora, de uma simples questão lógica e é importante não
a interpretar
erradamente. Não estamos a dizer (ainda não, pelo menos) que a
conclusão do argumento é
falsa. Isso é ainda uma questão em aberto. O objectivo do reparo
lógico é apenas fazer notar
que a conclusão
39
não se segue da premissa. Isto é importante, porque para determinar
se a conclusão é
verdadeira necessitamos de argumentos para a apoiar. O relativismo
cultural propõe este
argumento, que infelizmente se revela falacioso. Portanto, não prova
nada.
2.4 As consequências de levar a sério o relativismo cultural
Mesmo que o argumento das diferenças culturais seja falso, o
relativismo cultural pode ser
verdadeiro. Como seria se fosse verdadeiro?
Na passagem citada, William Graham Sumner resume a essência do
relativismo cultural.
Sumner afirma que não há uma medida de certo e errado, além dos
padrões de uma
sociedade: "A noção de certo está nos hábitos da população. Não
reside além deles, não
provém de origem independente, para os pôr à prova. O que estiver
nos hábitos populares,
seja o que for, está certo." Suponha que tomávamos isto a sério. Quais
seriam algumas das
consequências?
1. Deixaríamos de poder afirmar que os costumes de outras
sociedades são moralmente
inferiores aos nossos. Isto, é claro, é um dos principais aspectos
sublinhados pelo
relativismo cultural. Teríamos de deixar de condenar outras
sociedades simplesmente por
serem "diferentes". Enquanto nos concentrarmos apenas em certos
exemplos, como as
práticas funerárias dos gregos e calatinos, isto pode parecer uma
atitude sofisticada e
esclarecida.
No entanto, seríamos também impedidos de criticar outras práticas
menos benignas. Imagine
26. que uma sociedade declarava guerra aos seus vizinhos com o intuito
de fazer escravos. Ou
suponha que uma sociedade era violentamente anti-semita e os seus
líderes se propunham
destruir os judeus. O relativismo cultural iria impedir-nos de
40
dizer que qualquer destas práticas estava errada. (Nem sequer
poderíamos dizer que uma
sociedade tolerante em relação aos judeus é melhor que uma
sociedade anti-semita, pois isso
implicaria um tipo qualquer de padrão transcultural de comparação.) A
incapacidade de
condenar estas práticas não parece muito esclarecida; pelo contrário,
a escravatura e o anti-
semitismo afiguram-se erradas onde quer que ocorram. No entanto, se
tomássemos a sério o
relativismo cultural teríamos de encarar estas práticas sociais como
algo imune à crítica;
2. Poderíamos decidir se as acções são certas ou erradas pela simples
consulta dos
padrões da nossa sociedade. O relativismo cultural propõe uma
maneira simples para
determinar o que está certo e o que está errado: tudo o que
necessitamos é perguntar se a
acção está de acordo com os códigos da nossa sociedade.
Suponhamos que em 1975 um
residente da África do Sul se perguntava se a política de apartheid do
seu país - um
sistema rigidamente racista - era moralmente correcta. Tudo o que
teria que fazer era
perguntar se esta política se conformava com o código moral da sua
sociedade. Em caso de
resposta afirmativa, não haveria motivos de preocupação, pelo menos
do ponto de vista
moral.
Esta implicação do relativismo cultural é perturbadora porque poucos
de nós pensam que o
código moral da nossa sociedade é perfeito - não é difícil pensar em
várias maneiras de a
aperfeiçoar. No entanto, o relativismo cultural não se limita a impedir-
nos de criticar os
códigos de outras sociedades; não nos permite igualmente criticar a
nossa. Afinal de contas,
se certo e errado são relativos à cultura, isto tem de ser verdade tanto
relativamente à nossa
própria cultura como relativamente às outras;
3. A ideia de progresso moral é posta em dúvida. Pensamos
habitualmente que pelo menos
algumas das mudanças sociais são melhorias. (Apesar de,
naturalmente, outras mudanças
poderem piorar as coisas.) Ao longo da maior
41
parte da história ocidental o lugar das mulheres na sociedade esteve
severamente
circunscrita. Não podiam ter bens; não podiam votar; e estavam em
geral sob o controlo
quase absoluto dos seus maridos. Recentemente, muitas destas
coisas mudaram, e a maioria
das pessoas pensa que isto é um progresso.
Mas se o relativismo cultural estiver correcto, poderemos
legitimamente pensar que é um
27. progresso? Progresso significa substituir uma maneira de fazer as
coisas por uma maneira
melhor. Mas qual o padrão pelo qual avaliamos estas novas maneiras
como melhores? Se as
velhas maneiras estavam de acordo com os padrões culturais do seu
tempo, então o
relativismo cultural diria que é um erro julgá-las pelos padrões de uma
época diferente. A
sociedade do século xvm era diferente da que temos agora. Afirmar
que fizemos progressos
implica o juízo de que a sociedade de hoje é melhor, e isso é
justamente o tipo de juízo
transcultural que, segundo o relativismo cultural, é impossível.
A nossa concepção de reforma social terá igualmente de ser
reconsiderada. Reformadores
como Martin Luther King, Jr. tentaram mudar as suas sociedades para
melhor. Obedecendo
aos constrangimentos impostos pelo relativismo cultural há uma
maneira de poder fazer isto.
Se uma sociedade não está a viver de acordo com os seus ideais,
pode considerar-se que o
reformador está a agir bem; os ideais da sociedade são os padrões
pelos quais julgamos o
mérito das suas propostas. Mas ninguém pode contestar os ideais em
si, pois esses ideais são
por definição correctos. Portanto, segundo o relativismo cultural, a
ideia de reforma social
só faz sentido desta maneira limitada.
Estas três consequências do relativismo cultural levaram muitos
pensadores a rejeitá-lo
frontalmente como implausível. Faz realmente sentido, afirmam,
condenar certas práticas,
como a escravatura, onde quer que ocorram. Faz sentido pensar que a
nossa própria
sociedade fez
algum progresso cultural, embora deva admitir-se, simultaneamente,
que é ainda imperfeita e
necessita de reformas. Uma vez que o relativismo cultural supõe,
prossegue o argumento,
que estes juízos não fazem sentido, não pode estar correcto.
2.5 Por que razão há menos diferenças do que parece
O ímpeto original do relativismo cultural resulta da observação de que
as culturas diferem de
forma dramática nas suas perspectivas do que é certo e errado. Mas
até que ponto diferem
realmente? É verdade que há diferenças. No entanto, é fácil
sobrevalorizar a dimensão
dessas diferenças. Quando examinamos o que parece uma diferença
drástica, descobrimos
com frequência que as culturas não diferem tanto quanto parece.
Imagine-se uma cultura na qual as pessoas acreditam ser errado
comer vacas. Pode até ser
uma cultura pobre, na qual não há comida suficiente; mesmo assim, as
vacas são intocáveis.
Tal sociedade pareceria ter valores muito diferentes dos nossos. Mas
será que tem? Ainda
não perguntámos a razão pela qual estas pessoas se recusam a
comer vacas. Suponha-se que
é por acreditarem que depois da morte as almas dos seres humanos
habitam os corpos dos
animais, especialmente das vacas, podendo uma vaca ser a alma da
avó de alguém. Vamos
continuar a dizer que os valores deles são diferentes dos nossos?
Não; a diferença está
noutro lado. A diferença reside nos nossos sistemas de crenças, e não
nos nossos valores.
Concordamos que não devemos comer a nossa avó; limitamo-nos a
discordar sobre se a
vaca é (ou poderia ser) a nossa avó.
28. O que se pretende mostrar é que os costumes de uma sociedade são
o produto de muitos
factores interligados. Os valores sociais são apenas um deles. Outras
questões,
42
43
como as crenças religiosas e factuais dos seus membros, bem como
as circunstâncias físicas
nas quais têm de viver, são igualmente importantes. Não podemos,
portanto, concluir que há
um desacordo quanto aos valores, só porque os costumes diferem.
Pode, pois, haver menos
desacordo quanto aos valores do que parece.
Pensemos mais uma vez nos esquimós, que frequentemente matam
crianças perfeitamente
normais, especialmente raparigas. Não aprovamos tais coisas; na
nossa sociedade um pai
que tivesse morto uma criança seria preso. Parece, pois, haver uma
grande diferença nos
valores das nossas duas culturas. Mas imaginemos que perguntamos
a razão pela qual os
esquimós fazem isso. A explicação não é eles terem menos afecto
pelos seus filhos ou menos
respeito pela vida humana. Uma família esquimó protegerá sempre os
seus filhos se as
condições o permitirem. Mas eles vivem num meio extremamente
duro, onde a comida
escasseia. Um postulado fundamental do pensamento esquimó é: "A
vida é dura e a margem
de manobra pequena." Uma família pode querer alimentar os filhos
mas não poder fazê-lo.
Como em muitas outras culturas "primitivas", as mães esquimó
alimentam os seus filhos
durante um período de tempo muito mais longo do que as mães da
nossa cultura. A criança
é alimentada ao peito da mãe durante quatro anos, por vezes mais.
Por isso, mesmo nas
melhores épocas, há limites para o número de filhos que uma mãe
pode manter. Além disso,
os esquimós são um povo nómada - impossibilitados de se dedicarem
à agricultura, têm de
viajar em busca de comida. As crianças têm de ser transportadas ao
colo, e uma mãe só
pode levar um bebé na sua parca enquanto viaja ou realiza as tarefas
diárias. Os outros
membros da família ajudam como podem.
Os bebés do sexo feminino são mais prontamente rejeitados porque,
primeiro, nesta
sociedade os homens são os principais fornecedores de comida - são
eles os caçadores, de
acordo com a divisão tradicional do trabalho - e
44
torna-se obviamente importante manter um número suficiente de
fornecedores de comida.
Mas há igualmente uma segunda razão importante. Uma vez que a
taxa de mortalidade dos
caçadores é elevada, o número de homens adultos que morrem
prematuramente ultrapassa
em muito o das mulheres que morrem cedo. Assim, se os bebés
masculinos e femininos
sobrevivessem em números iguais, a população feminina adulta
ultrapassaria em muito a
29. população masculina. Examinando as estatísticas, um autor concluiu
que "se não fosse o
infanticídio de crianças do sexo feminino [...] haveria, nos grupos de
esquimós,
aproximadamente uma vez e meia mais mulheres do que homens
produtores de comida".
Portanto, entre os esquimós, o infanticídio não é sinal de uma atitude
fundamentalmente
diferente perante as crianças. É, pelo contrário, um reconhecimento de
que por vezes são
necessárias medidas drásticas para assegurar a sobrevivência da
família. Apesar disso, matar
a criança não é a primeira opção. A adopção é comum; os casais sem
filhos ficam
especialmente felizes por encarregar-se dos "excedentes" dos casais
mais férteis. Matar é
apenas o último recurso. Sublinho isto para mostrar que os dados em
bruto dos
antropólogos podem induzir em erro; podem fazer as diferenças entre
culturas parecer
maiores do que são. Os valores dos esquimós não são de modo algum
diferentes dos nossos.
Acontece apenas que a vida os obriga a escolhas que nós não temos
de fazer.
2.6 Como todas as culturas têm alguns valores em comum
Não deveria surpreender que, apesar das aparências, os esquimós
protejam as suas crianças.
Como poderia ser de outra maneira? Como poderia sobreviver um
grupo que não
valorizasse as suas crianças? É fácil de ver que, de
45
facto, todos os grupos culturais têm de proteger as suas crianças. Os
bebés são indefesos e
não podem sobreviver se não forem acarinhados durante anos.
Portanto, se um grupo não
cuidasse das suas crianças, elas não sobreviveriam e ninguém tomaria
o lugar dos membros
mais velhos do grupo. Passado algum tempo, o grupo extinguir-se-ia.
Isto significa que
qualquer grupo cultural que continue a existir tem de cuidar das suas
crianças. As crianças
que não são acarinhadas têm de ser a excepção e não a regra.
Um raciocínio semelhante mostra que há outros valores que têm de
ser mais ou menos
universais. Imagine-se o que seria de uma sociedade que não
valorizasse a verdade. Quando
uma pessoa falasse com outra, não poderia partir-se do princípio de
que estaria a dizer a
verdade, pois poderia facilmente estar a mentir. Nessa sociedade não
haveria qualquer
motivo para dar atenção ao que os outros dizem. (Pergunto que horas
são e alguém
responde "quatro horas". Mas não posso presumir que a pessoa está a
dizer a verdade;
poderia facilmente ter dito a primeira coisa que lhe tivesse passado
pela cabeça. Não tenho,
pois, qualquer razão para dar atenção à sua resposta. De facto, não
faz qualquer sentido ter-
lhe sequer perguntado.) A comunicação seria então extremamente
difícil, se não mesmo
impossível. E uma vez que as sociedades complexas não podem
existir sem comunicação
entre os seus membros, a vida em sociedade tornar-se-ia impossível.
Daqui se conclui que
em qualquer sociedade complexa tem de haver uma presunção em
favor da boa-fé. Pode,
30. naturalmente, haver excepções a esta regra: pode haver situações nas
quais se considere
permissível mentir. No entanto, estas serão excepções a uma regra
que está em vigor na
sociedade.
Eis mais um exemplo do mesmo género: Poderia existir uma
sociedade na qual não houvesse
a proibição do homicídio? Como seria? Suponhamos que as pessoas
eram livres de matar
outras pessoas, e ninguém pensava haver
46
algo de mal nisso. Numa tal "sociedade" ninguém poderia sentir-se
seguro. Todos teriam de
estar permanentemente em guarda. Aqueles que quisessem
sobreviver teriam de evitar
outras pessoas tanto quanto possível. Isto acabaria por levar os
indivíduos a tentarem
tornar-se tão auto-suficientes quanto possível - afinal de contas, a
associação com outros
seria perigosa. A sociedade a uma escala mais lata ruiria. As pessoas
poderiam,
naturalmente, unir-se em grupos mais pequenos com outras em que
pudessem confiar. Mas
repare-se no significado disto: estariam a formar sociedades mais
pequenas nas quais seria
de facto aceite uma regra contra o homicídio. A proibição do
assassínio é, pois, uma
característica de todas as sociedades.
Há aqui urna conclusão teórica geral, a saber, há algumas regras
morais que todas as
sociedades têm em comum, pois essas regras são necessárias para a
sociedade poder
existir. As regras contra a mentira e o homicídio são dois exemplos
disso, pois, de facto,
encontramos estas regras instituídas em todas as culturas viáveis. As
culturas podem diferir
relativamente aos que encaram como excepções legítimas às regras,
mas esta discordância
existe contra um acordo de fundo nas questões fundamentais. Logo, é
um erro sobrestimar
as diferenças entre culturas. Nem todas as regras morais podem variar
de sociedade para
sociedade.
2.7 A avaliação de práticas culturais indesejáveis
Em 1966, uma rapariga de dezassete anos chamada Fauziya
Kassindja chegou ao Aeroporto
Internacional de Newark e pediu asilo. Tinha fugido do seu país natal,
o Togo, pequena
nação do oeste africano, para escapar ao que ali as pessoas chamam
"excisão". A excisão é
uma intervenção desfiguradora por vezes chamada "circuncisão
feminina", embora tenha
poucas semelhanças com essa prática
47
judaica. É mais frequentemente referida, pelo menos nos jornais de
países ocidentais, como
"mutilação genital feminina".
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, a prática está
disseminada por vinte e seis
países africanos, sendo em cada ano objecto de "excisão" dois
milhões de raparigas.
31. Nalguns casos a excisão é parte de um elaborado ritual tribal,
realizado em pequenas aldeias
tradicionais, e as raparigas anseiam submeter-se a ele porque isso
assinala a sua aceitação no
mundo adulto. Noutros casos, a prática é realizada por famílias
citadinas em jovens que lhe
resistem desesperadamente.
Fauziya Kassindja era a mais jovem de cinco filhas de uma família
muçulmana devota. O seu
pai, proprietário de uma bem sucedida empresa de camionagem,
opunha-se à excisão, e tinha
a capacidade de se opor à tradição por causa da sua riqueza. As suas
primeiras quatro filhas
casaram sem ser mutiladas. Mas quando Fauziya tinha dezasseis
anos, ele morreu
subitamente. Fauziya ficou então sob tutela do avô, que ajustou para
ela um casamento e se
preparava para a submeter à excisão. Fauziya ficou aterrorizada e a
mãe e a irmã mais velha
ajudaram-na a fugir. A mãe, tendo ficado sem recursos, teve de pedir
desculpas formais e
submeter-se à autoridade do patriarca que ofendeu.
Entretanto, na América, Fauziya foi detida durante dois anos enquanto
as autoridades
decidiam o que fazer. Por fim foi-lhe concedido asilo, mas não sem
antes se tornar o centro
de uma controvérsia sobre a forma como devemos encarar as práticas
culturais de outros
povos. Uma série de artigos no New York Times favoreceu a ideia de
que a excisão é uma
prática bárbara merecedora de condenação. Outros observadores
mostraram-se relutantes
em ser tão peremptórios - vive e deixa viver, afirmaram; afinal de
contas, é provável a
nossa cultura parecer igualmente estranha para eles.
Vamos supor que estamos inclinados a afirmar que a excisão é má.
Estaríamos nós apenas a
impor os padrões da nossa própria cultura? Se o relativismo cultural
estiver
48
correcto, isso é tudo quanto podemos fazer, pois não há um padrão
culturalmente neutro a
que possamos apelar. Mas, será isto verdade?
Haverá um padrão culturalmente neutro de certo e errado? Há
naturalmente muito que dizer
contra a excisão. É dolorosa e tem como resultado a perda
permanente do prazer sexual. Os
seus efeitos, a curto prazo, incluem hemorragias, tétano e septicemia.
Por vezes, a mulher
morre. Os efeitos de longo prazo incluem infecção crónica, cicatrizes
que dificultam a
marcha e dores contínuas.
Qual é, pois, o motivo pelo qual se tornou uma prática social tão
alargada? Não é fácil
responder. A excisão não tem benefícios sociais aparentes. Ao
contrário do infanticídio entre
os esquimós, não é necessária à sobrevivência do grupo. Nem é uma
questão religiosa. A
excisão é praticada por grupos de várias religiões, entre elas o
islamismo e o cristianismo,
nenhuma das quais a recomenda.
Apesar disso, aduzem-se em sua defesa uma série de razões. As
mulheres incapazes de
prazer sexual são supostamente menos propensas à promiscuidade;
assim, haverá menos
32. gravidezes indesejadas em mulheres solteiras. Acresce que as
esposas, para quem o sexo é
apenas um dever, têm menor probabilidade de ser infiéis aos maridos;
e uma vez que não
irão pensar em sexo, estarão mais atentas às necessidades dos
maridos e filhos. Pensa-se,
por outro lado, que os maridos apreciam mais o sexo com mulheres
que foram objecto de
excisão. (A falta de prazer sexual das mulheres é considerada
irrelevante.) Os homens não
querem mulheres que não foram objecto de excisão por serem
impuras e imaturas. E, acima
de tudo, é uma prática realizada desde tempos imemoriais, e não
podemos alterar os
costumes antigos.
Seria fácil, e talvez um pouco arrogante, ridicularizar estes
argumentos. Mas podemos fazer
notar uma característica importante de toda esta linha de raciocínio:
tenta justificar a excisão
mostrando que é benéfica - homens,
49
mulheres e respectivas famílias são alegadamente beneficiados
quando as mulheres são
objecto de excisão. Poderíamos, pois, abordar este raciocínio, e a
excisão em si,
perguntando até que ponto isto é verdade: será a excisão, no todo,
benéfica ou prejudicial?
Na verdade, este é um padrão que pode razoavelmente ser usado
para pensar sobre qualquer
tipo de prática social: podemos perguntar se a prática promove ou é
um obstáculo ao bem-
estar das pessoas cujas vidas são por ela afectadas. E, como
corolário, podemos perguntar
se há um conjunto alternativo de práticas sociais com melhores
resultados na promoção do
seu bem-estar. Se assim for, podemos concluir que a prática em vigor
é deficiente.
Mas isto parece justamente o tipo de padrão moral independente que o
relativismo cultural
afirma não poder existir. E um padrão único que pode ser invocado
para ajuizar as práticas
de qualquer cultura, em qualquer época, nomeadamente a nossa. É
claro que as pessoas não
irão, em geral, encarar este princípio como algo "trazido do exterior"
para os julgar, porque,
como as regras contra a mentira e o homicídio, o bem-estar dos seus
membros é um valor
inerente a todas as culturas viáveis.
Por que razão, apesar de tudo isto, pessoas prudentes podem ter
relutância, mesmo assim,
em criticar outras culturas. Apesar de se sentirem pessoalmente
horrorizadas com a excisão,
muitas pessoas ponderadas têm relutância em afirmar que está
errada, pelo menos por três
razões. Primeiro, há um nervosismo compreensível quanto a "interferir
nos hábitos culturais
das outras pessoas". Os europeus e os seus descendentes culturais
da América têm uma
história pouco honrosa de destruição de culturas nativas em nome do
cristianismo e do
iluminismo. Horrorizadas com estes factos, algumas pessoas recusam
fazer quaisquer juízos
negativos sobre outras culturas, especialmente culturas semelhantes
àquelas que foram
prejudicadas
50
33. no passado. Devemos notar, no entanto, que há uma diferença entre
a) considerar uma
prática cultural deficiente; e b) pensar que deveríamos anunciar o
facto, dirigir uma
campanha, aplicar pressão diplomática ou enviar o exército. No
primeiro caso, tentamos
apenas ver o mundo com clareza, do ponto de vista moral. O segundo
caso é completamente
diferente. Por vezes poderá ser correcto "fazer qualquer coisa", mas
outras não.
As pessoas sentem também, de forma bastante correcta, que devem
ser tolerantes face a
outras culturas. A tolerância é, sem dúvida, uma virtude - uma pessoa
tolerante está
disposta a viver em cooperação pacífica com quem encara as coisas
de forma diferente. Mas
nada na natureza da tolerância exige que consideremos todas as
crenças, todas as religiões e
todas as práticas sociais igualmente admiráveis. Pelo contrário, se não
considerássemos
algumas melhores do que outras, não haveria nada para tolerar.
Por último, as pessoas podem sentir-se relutantes em ajuizar por que
não querem mostrar
desprezo pela sociedade criticada. Mas, uma vez mais, trata-se de um
erro: condenar uma
prática em particular não é dizer que uma cultura é no seu todo
desprezível ou inferior a
qualquer outra cultura, incluindo a nossa. Pode mesmo ter aspectos
admiráveis. Na verdade,
podemos considerar que isto é verdade no que respeita à maioria das
sociedades humanas -
são misturas de boas e más práticas. Acontece apenas que a excisão
é uma das más.
2.8 O que se pode aprender com o relativismo cultural
Afirmei no início que iríamos identificar tanto o que está certo como o
que está errado no
relativismo cultural. Mas até agora fiquei-me pelos seus erros: afirmei
que repousa sobre um
argumento inválido, que as suas
51
consequências o tornam à partida implausível, e ainda que a dimensão
do desacordo moral é bem
menor do que o relativismo cultural pressupõe. Tudo isto constitui, na
verdade, uma
completa rejeição da teoria. No entanto, continua a ser uma ideia muito
sedutora, e o leitor
pode sentir que tudo isto é um pouco injusto. A teoria deve ter alguma
coisa a seu favor,
pois a não ser assim porque razão se tornaria tão influente? Penso, na
verdade, que há
alguma coisa correcta no relativismo cultural, e quero agora passar a
dizer o que é. Há duas
lições que devemos aprender com a teoria, ainda que acabemos por
rejeitá-la.
Primeiro, o relativismo cultural alerta-nos, de maneira correcta, para os
perigos de pressupor
que todas as nossas preferências estão fundadas numa espécie de
padrão racional absoluto.
Não estão. Muitas das nossas práticas (mas não todas) são
particularidades exclusivas da
nossa sociedade, e é fácil perder de vista esse facto. Ao recordar-nos
isso, a teoria presta um
bom serviço.
34. As práticas funerárias são um caso exemplar. Os calatinos eram,
segundo Heródoto,
"homens que comiam os seus pais" - uma ideia chocante, pelo menos
para nós. Mas comer
a carne dos mortos podia ser encarado como um sinal de respeito.
Podia ser tomado como
um acto simbólico que declara: queremos que o espírito desta pessoa
permaneça em nós.
Talvez fosse esta a ideia dos calatinos. Numa tal maneira de pensar,
enterrar os mortos
poderia ser encarado como um acto de rejeição, e queimar o cadáver
como um sinal claro de
desprezo. Se isto é difícil de imaginar, então talvez precisemos de
alargar a nossa
imaginação. É claro que podemos sentir uma repugnância visceral
perante a ideia de comer
carne humana, quaisquer que sejam as circunstâncias. Mas, e depois?
Esta repugnância pode
ser apenas, como dizem os relativistas, uma questão de hábito na
nossa sociedade.
Há muitas outras matérias sobre as quais tendemos a pensar em
termos de objectivamente
certo ou errado e que
52
mais não são do que convenções sociais. Poderíamos fazer uma lista
muito longa. Devem as
mulheres cobrir os seios? A exposição pública dos seios é
escandalosa na nossa sociedade,
enquanto noutras passa despercebida. Objectivamente falando, não é
correcta nem
incorrecta - não há uma razão objectiva para considerar nenhum dos
costumes melhor. O
relativismo cultural começa com a preciosa observação de que muitas
das nossas práticas
são apenas isto; produtos culturais. Mas depois engana-se, ao inferir
do facto de algumas
práticas serem assim que todas têm de ser assim.
A segunda lição relaciona-se com a necessidade de manter o espírito
aberto. No processo de
crescimento, cada um de nós adquiriu algumas convicções fortes:
aprendemos a aceitar
alguns tipos de conduta e a rejeitar outros. Podemos, ocasionalmente,
ver essas convicções
postas à prova. Por exemplo, podem ter-nos ensinado que a
homossexualidade é imoral, e
podemos sentir-nos muito desconfortáveis junto de pessoas gay e
encará-las como estranhas
e "diferentes". Então alguém sugere que isto pode ser um mero
preconceito; que a
homossexualidade não tem nada de mal; que os homossexuais são
apenas pessoas como as
outras que, sem o terem escolhido, se sentem atraídas por pessoas do
mesmo sexo. Mas, por
termos convicções tão fortes sobre o assunto, pode ser difícil tomar
isto a sério. Mesmo
depois de ouvir os argumentos, podemos manter o sentimento
inabalável de que os
homossexuais são, de alguma forma, um grupo repugnante.
O relativismo cultural, ao sublinhar que as nossas perspectivas morais
podem reflectir
preconceitos da nossa sociedade, fornece um antídoto para este tipo
de dogmatismo.
Quando conta a história dos Gregos e Calatinos, Heródoto acrescenta:
Se se propusesse, fosse a quem fosse, que escolhesse de entre todas
as tradições culturais as
melhores, cada um, depois de reflectir maduramente, escolheria a sua,
convencido que está de que a
35. tradição em que nasceu é de longe a melhor.
53
Perceber isto pode levar-nos a uma maior abertura de espírito.
Podemos compreender que
os nossos sentimentos não são necessariamente percepções da
verdade - podem não ser
mais do que o resultado do condicionamento cultural. Assim, quando
ouvimos alguém
sugerir que um aspecto do nosso código social não é realmente o
melhor, e damos por nós a
resistir a esta sugestão, podemos parar e recordar isto. Podemos ficar
então mais abertos à
descoberta da verdade, seja ela qual for.
Podemos, pois, compreender a atracção do relativismo cultural, apesar
de a teoria ter sérias
insuficiências. É uma teoria atraente porque se baseia na observação
pertinente de que
muitas das práticas e atitudes por nós consideradas tão naturais são
na verdade apenas
produtos culturais. Além disso, manter este pensamento firmemente
em vista é importante se
quisermos evitar a arrogância e manter o espírito aberto. Isto são
aspectos importantes, que
não devem ser tomados de forma ligeira. Mas podemos aceitar estes
aspectos sem aceitar
toda a teoria.
54
36. Capítulo 3
O subjectivismo em ética
Imagine-se qualquer acção reconhecidamente viciosa: homicídio
voluntário, por exemplo. Examinemo-la
sob todas as perspectivas, e vejamos se conseguimos encontrar esse
facto ou realidade que chamamos vício.
[...] Nunca conseguimos descobri-lo até voltarmos a reflexão para nós
mesmos e descobrirmos um
sentimento de reprovação, que nasce em nós, perante essa acção. Eis
uma questão de facto; mas é objecto do
sentimento e não da razão.
DAVID HUME, Tratado da Natureza Humana (1740)
3.1 A ideia de base do subjectivismo ético
Em 2001 realizou-se uma eleição municipal em Nova Iorque, e quando
chegou o momento
do desfile anual do Orgulho Gay todos os candidatos democratas e
republicanos
compareceram para desfilar. "Não há um único candidato que se
possa descrever como mau
nas questões que nos dizem respeito", afirmou Matt Foreman, director
executivo do Empire
State Pride Agenda, uma organização de defesa dos direitos dos
homossexuais. Acrescentou
ainda
55
que, "noutras partes do país, as posições aqui defendidas seriam
extremamente impopulares
nas urnas, se não mesmo fatais". O Partido Republicano Nacional
parece concordar;
pressionado pelos conservadores religiosos fez da oposição aos
direitos dos homossexuais
uma parte do seu posicionamento a nível nacional.
O que pensam realmente as pessoas de outras partes do país? O
instituto de sondagens
Gallup Poli tem perguntado aos americanos desde 1982: "Pensa que a
homossexualidade
deveria ser considerada um estilo de vida alternativo aceitável?" Nesse
ano, 34% respondeu
afirmativamente. O número tem vindo, no entanto, a aumentar, e em
2000 uma maioria -
52% - afirmou pensar que a homossexualidade deveria ser
considerada aceitável. Isto
significa, é claro, que quase outros tantos pensam de forma diferente.
As pessoas de ambos
os lados têm convicções fortes. O reverendo Jerry Falwell falou em
nome de muitos quando
afirmou numa entrevista para a televisão: "A homossexualidade é
imoral. Os chamados
'direitos dos homossexuais' não são de modo algum direitos, porque a
imoralidade não é
correcta." Falwell é baptista. A perspectiva católica é mais elaborada,
mas admite também
que o sexo gay não é permissível. Segundo o Catecismo da Igreja
Católica, gays e lésbicas
"não escolhem a sua condição homossexual" e "devem ser aceites
com respeito, compaixão
e sensibilidade. Qualquer sinal de discriminação injusta a seu respeito
deve ser evitado". Não
obstante, "os actos homossexuais são intrinsecamente doentios" e
"não podem ser
aprovados em circunstância alguma". Portanto, para ter vidas
virtuosas, as pessoas
homossexuais devem ser castas.
37. Que atitude devemos tomar? Poderíamos dizer que a
homossexualidade é imoral, ou então
que nada tem de mal. Mas há uma terceira alternativa. Poderíamos
dizer algo como isto:
As pessoas têm opiniões diferentes, mas no que concerne à moral não
há "factos", e ninguém está
"certo". As pessoas simplesmente sentem de forma diferente, e é tudo.
56
Este é o pensamento de base por detrás do subjectivismo ético. O
subjectivismo ético é a
ideia segundo a qual as nossas opiniões morais se baseiam nos
nossos sentimentos e nada
mais. Nesta perspectiva, o "objectivamente" certo ou errado é coisa
que não existe.
E um facto que algumas pessoas são homossexuais e outras
heterossexuais; mas não é um
facto que uma coisa seja boa e outra má. Por isso, quando alguém
como Falwell afirma que
a homossexualidade está errada, não está a afirmar um facto sobre a
homossexualidade. Está
apenas, isso sim, a afirmar algo sobre os seus sentimentos face a ela.
O subjectivismo ético não é, naturalmente, apenas uma ideia sobre a
avaliação da
homossexualidade. Aplica-se a todas as questões morais. Para dar um
exemplo diferente, é
um facto que os nazis exterminaram milhões de pessoas inocentes;
mas, segundo o
subjectivismo ético, não é um facto que o que fizeram foi mau. Quando
dizemos que as suas
acções foram más estamos apenas a dizer que temos sentimentos
negativos em relação a
elas. O mesmo se aplica a qualquer outro juízo moral.
3.2 A evolução da teoria
O desenvolvimento de uma teoria filosófica percorre frequentemente
vários estádios. De
início a ideia será apresentada de uma forma crua e simples, e muitas
pessoas achá-la-ão
atraente por uma razão ou outra. Mas a ideia é então submetida a uma
análise crítica e
descobre-se que tem defeitos. Apresentam-se argumentos contra ela.
Nessa altura, algumas
pessoas podem ficar tão impressionadas com as objecções que
abandonam totalmente a
ideia, concluindo que não pode estar correcta. Outras, no entanto,
podem continuar a
confiar na ideia de base e tentarão, por isso, aprimorá-la, dando-lhe
uma formulação
melhorada
57
que não seja vulnerável às objecções. Durante algum tempo poderá
parecer que se salvou a
teoria. Mas podem então encontrar-se novos argumentos que lançam
dúvidas sobre a nova
versão da teoria. Uma vez mais, as novas objecções podem levar
algumas pessoas a
abandonar a ideia, enquanto outras mantêm a f é e tentam salvar a
teoria formulando ainda
outra versão nova e "melhorada". O processo de revisão e crítica
começará então de novo.
A teoria do subjectivismo ético desenvolveu-se justamente desta
maneira. Começou como
38. uma ideia simples - nas palavras de David Hume, a ideia de que a
moralidade é uma
questão de sentimento e não de facto. Mas à medida que se
apresentavam objecções à
teoria, e que os seus defensores tentavam responder-lhes, a teoria
evoluiu para algo muito
mais sofisticado.
3.3 A primeira fase: o subjectivismo simples
A versão mais simples da teoria, que expõe a ideia principal mas não
tenta aprimorá-la por aí
além, é esta: Quando uma pessoa afirma que algo é moralmente bom
ou mau isso significa
que ele ou ela aprovam, ou desaprovam, essa coisa, e nada mais que
isso. Por outras
palavras:
X é moralmente aceitável X está correcto X é bom Deve-se fazer X
Eu (o interlocutor) aprovo X
E pela mesma ordem de ideias:
X é moralmente inaceitável
X está errado
X é mau
Não se deve fazer X
Eu (o interlocutor) desaprovo X
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Podemos chamar subjectivismo simples a esta versão da teoria.
Exprime a ideia básica do
subjectivismo ético numa forma elementar e simples, e muitas pessoas
acharam-na atraente.
No entanto, o subjectivismo simples está aberto a várias objecções,
porque tem implicações
contrárias ao que sabemos (ou pelo menos contrárias ao que
pensamos saber) sobre a
natureza da avaliação moral. Eis duas das mais proeminentes
objecções.
O subjectivismo simples não dá conta da nossa falibilidade. Ninguém é
infalível.
Estamos por vezes errados nas nossas avaliações e quando o
descobrimos podemos querer
corrigir os nossos juízos. Mas, se o subjectivismo simples estivesse
correcto, isso seria
impossível, porque o subjectivismo simples pressupõe que somos
infalíveis.
Considere-se outra vez Falwell, que considera a homossexualidade
imoral. Segundo o
subjectivismo simples, Falwell está simplesmente a afirmar que
desaprova a
homossexualidade. É claro que há a possibilidade de não estar a falar
sinceramente - é
possível que ele não desaprove realmente a homossexualidade, mas
esteja simplesmente a
responder às expectativas da sua audiência conservadora. No entanto,
se supusermos que
está a falar sinceramente - se supusermos que Falwell desaprova
mesmo a
homossexualidade -, segue-se então que o que ele diz é verdade.
Enquanto estiver
honestamente a representar os seus sentimentos não pode estar
enganado.
39. Mas isto contradiz o facto elementar de nenhum de nós ser infalível.
Por vezes estamos
errados. Portanto, o subjectivismo simples não pode estar correcto.
O subjectivismo simples não dá conta do desacordo.
O segundo argumento contra o subjectivismo simples baseia-se na
ideia de que esta teoria
não pode explicar a existência de desacordo moral. Matt Foreman não
pensa que a
homossexualidade seja imoral. Perante isto, parece que
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ele e Falwell discordam. Mas repare-se o que o subjectivismo simples
sugere quanto a esta
situação.
Segundo o subjectivismo simples, quando Foreman afirma que a
homossexualidade não é
imoral está simplesmente a declarar a sua atitude - está a dizer que
ele, Foreman, não
desaprova a homossexualidade. Falwell discordaria disso? Não,
Falwell estaria de acordo
que Foreman não desaprova a homossexualidade. Simultaneamente,
quando Falwell afirma
que a homossexualidade é imoral, está apenas a dizer que ele,
Falwell, a desaprova. Como
poderia alguém discordar disso? Assim, segundo o subjectivismo
simples, não há desacordo
entre eles; cada um deveria admitir a verdade do que o outro está a
dizer. No entanto,
parece evidente que algo não está certo aqui, pois Falwell e Foreman
discordam realmente
sobre a questão de saber se a homossexualidade é imoral ou não.
Há uma espécie de frustração eterna implícita no subjectivismo
simples: Falwell e Foreman
estão em profundo desacordo; no entanto, não podem sequer
apresentar as suas posições de
forma a debater o tema em conjunto. Foreman pode tentar negar o que
Falwell afirma, mas,
segundo o subjectivismo simples, apenas consegue mudar de assunto.
O argumento pode ser resumido assim: Quando uma pessoa afirma "X
é moralmente
aceitável" e alguém diz "X é moralmente inaceitável", estão em
desacordo. No entanto, se o
subjectivismo simples estivesse correcto não haveria desacordo entre
eles. Logo, o
subjectivismo simples não pode estar correcto.
Estes argumentos, e outros semelhantes, mostram que o
subjectivismo simples é uma teoria
falhada. Não pode ser sustentada, pelo menos de uma forma tão
rígida. Perante tais
argumentos, alguns pensadores preferiram rejeitar o subjectivismo
ético no seu todo.
Outros, no entanto, esforçaram-se por produzir uma versão melhorada
da teoria que não
fosse vulnerável a tais objecções.
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3.4 A segunda fase: emotivismo
A versão melhorada é uma teoria que se tornou conhecida como
"emotivismo".
Desenvolvida principalmente pelo filósofo americano Charles L.
Stevenson (1908-1979), o
40. emotivismo tornou-se uma das teorias éticas mais influentes do século
xx. É muito mais
subtil e sofisticada do que o subjectivismo simples.
O emotivismo começa com a observação de que a linguagem é usada
de várias maneiras.
Um dos seus usos principais é a afirmação de factos, ou pelo menos a
afirmação do que
pensamos serem factos. Podemos, assim, dizer:
"Abraham Lincoln foi presidente dos Estados Unidos." "Tenho um
.encontro às quatro
horas." "A gasolina custa 0,970 cêntimos por litro." "Shakespeare é o
autor de Hamlet."
Em cada caso estamos a dizer algo que é verdadeiro ou falso, e o
propósito da elocução é,
normalmente, comunicar informação ao ouvinte.
No entanto, há outros propósitos para os quais a linguagem pode ser
usada. Suponha-se que
digo: "Fecha a porta!" Esta elocução não é verdadeira nem falsa. Não
é uma afirmação de
tipo algum; é uma ordem, o que é algo diferente. O seu propósito não
é transmitir
informação; o seu propósito é, antes, levar alguém a fazer qualquer
coisa. Não estou a tentar
alterar as crenças de alguém; estou a tentar influenciar-lhe a conduta.
Considere-se elocuções como as seguintes, que não são nem
afirmações de factos nem
ordens:
"Um viva por Abraham Lincoln!"
"Ai de mim!"
"Quem me dera que a gasolina não fosse tão cara!"
"Que se dane o Hamlet."
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Estes são tipos comuns de frases que entendemos com bastante
facilidade. Mas nenhuma
delas é "verdadeira" ou "falsa". (Não faz sentido dizer : "É verdade que
um viva por
Abraham Lincoln" ou "É falso que ai de mim"). Estas frases não são,
recorde-se, usadas
para afirmar factos. São usadas, isso sim, para exprimir as atitudes do
interlocutor.
É preciso notar claramente a diferença entre relatar uma atitude e
exprimir essa mesma
atitude. Se alguém disser "Gosto de Abraham Lincoln", está a
comunicar o facto de ter uma
atitude positiva em relação a Lincoln. Isto é uma afirmação de facto,
que é verdadeira ou
falsa. Por outro lado, se alguém gritar: "Um viva por Lincoln!", não está
a declarar qualquer
tipo de facto, nem mesmo um facto sobre as suas atitudes. Está a
exprimir uma atitude, mas
não a relatar que a tem.
Com estes reparos em vista, voltemos agora a atenção para a
linguagem moral. Segundo o
emotivismo, a linguagem moral não é uma linguagem de afirmação de
factos; não é
normalmente usada para transmitir informação. O seu propósito é
diferente. É usada,
primeiro, como um meio de influenciar o comportamento das pessoas.
Se alguém diz "Não