O documento discute os rápidos progressos da automação e inteligência artificial que irão reduzir significativamente a necessidade de trabalhadores humanos, levando a níveis catastróficos de desemprego e desigualdade. A automação está substituindo trabalhadores em muitas indústrias e profissões, incluindo jornalismo, medicina e direito. Isso pode levar a uma economia com poucos consumidores viáveis, colapsando o modelo econômico atual.
1. Uma bênção para uns, uma maldição para outros, uma certeza para todos: os céleres
progressos na inteligência artificial e na automação conduzirão a um futuro em que os robots e
o software irão reduzir, significativamente, a necessidade de trabalhadores humanos. Em
análise, os níveis catastróficos do desemprego e da desigualdade que se avizinham e o que
podem os mesmos significar no que respeita às nossas perspectivas socioeconómicas, às dos
nossos filhos e, é claro, da sociedade em geral
POR HELENA OLIVEIRA
“Imagine uma economia completamente automatizada, onde quase ninguém terá um trabalho
(ou rendimento) e em que as máquinas farão tudo. Muito antes de atingirmos esse ponto, os
modelos de negócio concebidos para os mercados de massas já serão insustentáveis. De onde
virá o consumo? E, se ainda existir uma economia de mercado, por que razão a produção
deverá continuar se não existirem consumidores viáveis que possam adquirir o seu output?”
Martin Ford, em Rise of the Robots: Technology and the Threat of a Jobless Future
“Estamos interessados em robots que criem e que sejam criativos”, afirma Hod Lipson,
professor de engenharia na Cornell University e director do Creative Machines Lab da mesma
universidade. Para aquele que é considerado um dos mais reputados especialistas a nível
mundial em robótica e inteligência artificial, o futuro está ao virar da esquina e será com
máquinas e software com capacidades absolutamente inimagináveis que nós, humanos,
teremos de (con)viver. Mas e apesar de apaixonado pelo trabalho que faz, Lipson confessa,
num artigo publicado pela revista de tecnologia do MIT, que esta está a avançar a um ritmo
tão acelerado que será provável, ou mesmo certo, que os progressos na automação e nas
tecnologias digitais irão provocar convulsões sociais graves – muitos postos de trabalho serão
eliminados – em conjunto com o aumento da já tão desigual distribuição da riqueza – serão os
mais prósperos que, para não variar, retirarão o maior proveito de todo esta “evolução”.
Dentro de uma década, cerca de 90% das notícias poderão ser geradas por computadores
A noção que nos acompanha, pelo menos desde a Revolução Industrial, de que os progressos
tecnológicos destroem alguns tipos de trabalho, mas que criam, em simultâneo, outros tantos,
tem servido para acalmar as hostes até agora. Mas e desta vez, como sublinha Lipson”, “as
evidências demonstram que a tecnologia está a destruir empregos, a criar novos e melhores,
mas também em menor quantidade”.
E este temor de que os rápidos progressos na inteligência artificial (IA) e na automação
conduzirão a um futuro em que os robots e o software irão reduzir, significativamente, a
necessidade de trabalhadores humanos – e, por conseguinte, alterar as estruturas
socioeconómicas – consiste numa das tendências mais “quentes” da actualidade, dando
2. origem a um enorme “mercado” no que diz respeito a pesquisas, estudos, relatórios e, é claro,
livros. São inúmeros, com perspectivas variadas e temáticas verdadeiramente interessantes,
que o VER continuará a acompanhar.
Mas e desta vez, o destaque vai para a mais recente obra de Martin Ford, empreendedor de
Silicon Valley e “testemunha” ocular do que apelida como “A ascensão dos robots e a ameaça
de um futuro sem trabalho”, tradução literal do título do seu livro, o qual servirá como base
para este artigo. E porquê? Porque Ford não acredita que esta nova “revolução” será como as
que a precederam na história da humanidade.
Para o autor, poderemos estar no limiar de uma era que é caracterizada pelo desemprego e
desigualdade massivos, acompanhada pela implosão da própria economia de consumo. De
acordo com a análise que o The New York Times faz do livro, o que mais assusta nas palavras
de Ford é o facto de o autor não sucumbir a exageros ou a dramatismos, suportando todas as
suas visões e previsões com uma análise minuciosa das consequências económicas das
mesmas. Aliás, um dos “truques” da escrita de Ford, sublinhado num artigo publicado no
DailyBeast, reside exactamente na forma inteligente que escolhe para apresentar situações
reais, que estão já a acontecer, as quais, numa primeira análise, só poderiam ser realizadas por
humanos mas, que, na verdade, já passaram para a esfera e competências das máquinas. Ou
seja, a “ascensão dos robots” está já a acontecer e à vista de todos nós.
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As máquinas que substituem os humanos
Em 2013, dois investigadores da Universidade de Oxford publicaram um ensaio – intitulado
“The Future of Employment: How Susceptible Are Jobs to Computerisation?”, no qual previam
que 47% do total de empregos existentes nos Estados Unidos seriam ameaçados pela
automação nas próximas duas décadas. O que parece um exagero está já a tornar-se realidade,
sendo várias as evidências que comprovam que estamos a enfrentar uma redução
permanente, e contínua, na necessidade de trabalho realizado por humanos. E, ao contrário
do que tem vindo a acontecer nas últimas décadas – em que apenas os profissionais com
competências reduzidas seriam as vítimas dessa automação – este assalto do emprego por
parte da tecnologia, dos robots, da inteligência artificial, dos algoritmos e do software está a
chegar aos trabalhadores “educados” e com elevados níveis de competência, e às profissões
que exigem criatividade, flexibilidade e aprendizagem contínua. Os exemplos são inúmeros e
assustadores, e ameaçam áreas especializadas como o Jornalismo, o Direito, a Medicina, a
Ciência e até “ocupações mais criativas” como a pintura ou a composição musical.
3. Em 2012, a Orquestra Sinfónica de Londres tocou uma peça musical inteiramente composta
por um programa de computador
Por exemplo, de acordo com um especialista citado pela revista Wired, a qual entrevistou
Martin Ford, dentro de uma década, cerca de 90% das notícias poderão ser geradas por
computadores ou, como escreve o autor, as aplicações médicas veiculadas pelo super-
computador Watson, da IBM, estão já a ser testadas num enorme conjunto de contextos. Por
seu turno, os médicos estão já a “formar” redes de neurónios para a realização de diagnósticos
e um simples software é já capaz de impedir que farmacêuticos e/ou profissionais da saúde
evitem combinações fatais de medicamentos; adicionalmente, motores de busca
especializados estão a substituir o trabalho de investigação feito anteriormente por advogados
durante a fase que precede os julgamentos; investigadores espanhóis e britânicos estão a
desenvolver, respectivamente, softwares específicos que são capazes de gerar pinturas
originais e composições musicais complexas – em 2012, a Orquestra Sinfónica de Londres
tocou uma peça musical inteiramente composta por um desses programas e, em Wall Street, e
em outras bolsas mundiais, a procura de analistas está a diminuir significativamente na medida
em que algoritmos e computadores ultra-rápidos são capazes de “tomar decisões” de
investimento apenas através da análise do big data.
Os exemplos são tantos que se torna difícil encontrar um sector que não esteja já a “sofrer”
dos efeitos da computação e automação, os quais são más notícias para os trabalhadores, mas
excelentes para os empregadores e empresas no geral. No sector da manufactura e dos
serviços, Martin Ford cita, entre muitos outros exemplos, a Foxconn – a empresa responsável
pela maior parte do fabrico dos produtos da Apple – cujos planos a curto prazo incluem a
“instalação” de um milhão de robots nas suas fábricas. A impressão em 3D irá, muito em
breve, revolucionar a indústria da construção, onde a edificação de casas e edifícios poderá ser
completamente automatizada. No sector alimentar, a Momentum Machines criou um robot
multitarefas que consegue preparar e embalar um hambúrguer de qualidade em 10 segundos,
o qual poderá substituir equipas inteiras de trabalhadores da indústria da fast-food. Aliás, a
McDonald’s, desde 2011 que começou a instalar, em 7 mil locais espalhados pela Europa, ecrãs
tácteis para as suas encomendas. A ideia, neste sector em particular (e também nos outros, de
acordo com objectivos diferentes, é claro), é a de reduzir os custos laborais e aplicar o dinheiro
poupado na compra de ingredientes orgânicos e sustentáveis. E, por falar em produtos
orgânicos, o sector agrícola, que é sempre um “clássico” no que à evolução tecnológica diz
respeito, não demorará muito a ser completamente automatizado, com algumas das suas
áreas a merecerem já essa “etiqueta”. No Japão, estão já a ser utilizados robots que apanham
morangos, noite e dia, com a destreza e flexibilidade de umas mãos “de fada”.
Os analistas de Wall Street e de outras bolsas mundiais estão a ser substituídos por algoritmos
e computadores ultra-rápidos que tomam “decisões” de investimento
Quando confrontado com a ideia de que, à semelhança do que aconteceu com a
industrialização, o desaparecimento de postos de trabalho num sector seria contrabalançado
4. com a criação de outros tantos numa área diferente, Ford socorre-se de estatísticas. Por
exemplo, a outrora gigantesca Blockbuster chegou a empregar 60 mil pessoas nos Estados
Unidos. Actualmente, a empresa de aluguer de vídeos online, a Redbox, tem, em toda a área
de Chicago, uma equipa com sete pessoas. O autor faz também uma comparação
esclarecedora entre a velha General Motors e a Google: ajustado à inflação, a gigantesca
fabricante de automóveis teve um lucro que rondou os 11 mil milhões de dólares em 1979,
época em que empregava 840 mil trabalhadores; em 2012, a Google lucrou cerca de 14 mil
milhões de dólares, com uma força de trabalho de cerca de 38 mil pessoas. O mesmo acontece
com empresas como o YouTube ou o Instagram, que são caracterizados por forças de trabalho
mínimas e receitas “máximas”. E os exemplos sucedem-se.
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A economia dos sem-trabalho
A pequena quantidade de exemplos acima referida é suficiente para nos obrigar a reflectir nas
consequências inerentes ao desaparecimento de inúmeros postos de trabalho em quase todos
os sectores da economia.
Se tivermos em linha de conta que os níveis de desemprego continuam a assombrar muitas
economias, em particular o de longa duração e o jovem – este último caracterizado por uma
oferta que não é equivalente às competências académicas exibidas pelos licenciados e
detentores de outros níveis ainda mais elevados -, Ford vai ainda mais longe e cita a recente
Grande Recessão como a “grande” oportunidade que as empresas acabaram por encontrar
para não voltar a contratar os inúmeros trabalhadores que, entretanto, foram despedidos.
Inebriadas pelo poder dos avanços contínuos na tecnologia, as empresas acreditam, de forma
crescente, que conseguem continuar a operar e com sucesso, os seus negócios, sem a
componente humana. Ford cita o co-fundador de uma start-up dedicada automatização da
produção de hambúrgueres gourmet, que afirma que “o nosso dispositivo não foi concebido
para tornar os nossos empregados mais eficientes, mas para os excluir completamente”.
No Japão, a apanha de morangos é feita, dia e noite, por robots
Se existem idealistas que conseguem encontrar benefícios inegáveis para o desaparecimento
de tantos postos de trabalho, como por exemplo o argumento de que não vale a pena
defender o lugar dos jovens que trabalham nos balcões de venda de fast-food, na medida em
que os seus níveis de satisfação com o trabalho são tão baixos, que o melhor mesmo é eliminá-
los, a verdade é que, em larga escala, este fundamento é impossível de nos deixar indiferentes.
Mesmo que toda esta automatização sirva para aumentar os níveis de eficiência e de receitas,
em conjunto com questões de segurança e higiene e diminuir drasticamente os custos com os
5. empregados – os robots não adoecem, não fazem greves e não pedem o seu salário ao final do
mês – a utopia, defendida também por muitos, que poderemos estar a caminhar para uma
sociedade em que o “alívio” das horas que passamos a trabalhar se transformará numa busca
de significados mais “elevados” e baseados em lazer, não é, nem pode ser, uma resposta.
E não é preciso ser economista para se perceber porquê. Se os salários constituem o principal
meio através do qual os consumidores ganham poder de compra na economia, e se o
desemprego ou o subemprego se tornar massivo, como Ford agoira, não será possível comprar
a comida, os produtos e os serviços que as máquinas irão oferecer com rapidez, eficiência e
qualidade sem paralelo. E as consequências não se farão sentir apenas a nível económico, mas
também a nível social e individual. Apesar de muitos estudos garantirem que o nível de
envolvimento e satisfação dos trabalhadores com o trabalho que realizam está em “estado de
miséria”, o ser humano não sabe “viver sem trabalhar” e também não é possível, na sociedade
em que vivemos, dissociar o trabalho do rendimento. Adicionalmente, numa economia global
baseada nos modelos de capitalismo neoclássicos, o desemprego em massa significará
depressão e não utopia. O futuro imaginado pela ficção científica em que as pessoas não
precisam de trabalhar, podendo dedicar-se à perseguição de significados mais nobres não é
mesmo mais do que pura ficção. E nem as normas sociais nem os sistemas económicos estão
preparados para que tal aconteça.
Se se eliminam postos de trabalhos, aumentará o subemprego e o desemprego, os
consumidores terão menos poder de compra e a procura deixará de existir. Uma questão que,
pelo menos, está já a preocupar muitos economistas. E que está também a dar origem a
cenários de pós-capitalismo que, apesar de parecerem promissores na teoria, serão muito
difíceis de implementar na prática.
A Momentum Machines criou um robot multitarefas que consegue preparar e embalar um
hambúrguer de qualidade em 10 segundos
Como Ford também alerta, em toda esta marcha de progresso tecnológico, não serão as
máquinas ou os robots os maus da fita. O que é mais provável que aconteça é que seja o
próprio capitalismo – ou uma sua “estúpida forma” – que contribuirá para a sua própria
destruição. Como escreve, a ironia reside no facto de, à conta da perseguição e ambição
ilimitadas pela busca de resultados e lucros de curto prazo, em conjunto com o corte de custos
desenfreado, o mundo capitalista poderá estar a colocar em perigo o crescimento económico
de que precisa para sobreviver.
Porque se não existirem empregos para os humanos, não existirão consumidores com
rendimento disponível para a aquisição de bens e serviços. A não ser pela elite dos mais ricos
que não precisa de trabalhar para sobreviver e consumir. O que conduz ao aumento – se é que
6. tal ainda é possível – da desigualdade de rendimentos, que já é vergonhosamente desigual o
suficiente como demonstra a infeliz equação dos que pertencem ao 1% da humanidade e que
concentram uma riqueza equivalente à dos demais 99%. Para Martin Ford, e muitos outros
especialistas em tecnologia e suas consequências sociais e económicas, “existem muitas razões
que apontam para que a tecnologia se transforme no principal propulsor da desigualdade no
futuro, o que irá extremar ainda mais as coisas”. O eclipse da classe média é também uma
previsão “certa” do autor, a par do desaparecimento da mobilidade económica também. E
pensar que o futuro reside numa sociedade com base no consumo de produtos de luxo
(apenas disponíveis para a elite milionária) não é economicamente viável. Nem socialmente
desejável e, muito menos, aceitável.
A solução poderá estar no rendimento mínimo garantido
Na medida em que as previsões são negras para um futuro sem trabalho, e as consequências
de tal fenómeno são mais do que suficientes para abalar toda a nossa estrutura social e
económica, as soluções para a sua mitigação não são fáceis de encontrar.
Para além da velha ideia de “taxar os ricos”, são vários os economistas de renome que
defendem, como Paul Krugman ou Joseph Stieglitz, que uma possibilidade para fazer face à
revolução da automatização e ao desemprego em massa, a qual é também sustentada por
Martin Ford, reside na atribuição do rendimento mínimo/básico garantido (universal ou
incondicional, dependendo da terminologia utilizada). O tema tem vindo a ser crescentemente
debatido (o VER está a preparar um artigo sobre o mesmo) e este modelo está já a ser testado
em algumas regiões, em particular na Europa (apesar de parecer, não é uma ideia inovadora e
já esteve na ribalta, várias vezes, ao longo do século XX, tendo sido defendido por laureados
com o Nobel da Economia como James Tobin, Milton Friedman ou Friedrich Hayeck, entre
outros).
Em traços gerais, este rendimento mínimo universal – que, apesar de sujeito a várias críticas, é
defendido tanto pela ala liberal como pela conservadora – deverá ser instituído – e garantido –
pelo Estado (com diferenças bem marcadas relativamente a outras prestações sociais) ou de
outras instituições públicas, independentemente de outros rendimentos e sem contrapartidas.
Por um lado, aos que nada têm, permitirá a manutenção de uma vida digna. Para os que têm
alguma coisa, poderá favorecer o investimento em educação e formação e, de acordo com
Ford, servir também para aumentar a tomada de risco e promover o empreendedorismo.
Se para os críticos, a ideia é apenas “socialista”, para um número crescente de economistas e
políticos, este modelo – de implementação complexa, é certo – poderá ser a única forma de
7. contornar a massificação do desemprego e o desaparecimento do poder de compra. E garantir
que a economia não sofra uma catastrófica implosão. É que o futuro está já ali.