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EFEITO VORACIDADE (Pedro Malan – JUN, 2008)1
...há três instâncias ou faixas de poder. Primeiro há o governo do poder visível, ou seja, o poder que em
democracias se exerce ou deveria ser exercido publicamente, à luz do sol, e sob o controle da opinião
pública. Segundo há a faixa do poder "semissubmerso", esse vasto espaço ocupado pelos órgãos e pelas
entidades públicas por meio dos quais se exerce o dia a dia das políticas governamentais em sua
dimensão operacional. Terceiro há a faixa do poder invisível, que pode assumir três formas: um poder
invisível dirigido a lutar contra o Estado (organizações criminosas, associações de delinquência, terroristas,
narcotraficantes...); um poder invisível formado e organizado não para combater o poder público, mas para
extrair benefícios ilícitos e buscar vantagens que com uma ação feita à luz do sol não seria possível; e,
finalmente, o poder invisível como instituição do Estado: os serviços secretos, "cuja degeneração pode dar
vida a uma verdadeira forma de governo oculto".
Os dois primeiros tipos de "poder invisível" mencionados, bem como parte das relações espúrias entre
ambos e o poder "semissubmerso" a que se refere Bobbio, foram objeto de excelente livro de Moisés Naim
intitulado Ilícito (2005). Para o autor, a vasta gama do tráfico em ilicitudes "corre o risco" de nunca ser
compreendida nem eficientemente combatida se nos restringirmos a expressões de indignação moral e
apelos a comportamentos éticos — se não colocarmos "a economia e a política no centro das análises e
das recomendações".
Naim insiste em que as verdadeiras motivações e os incentivos para as atividades ilícitas são econômicos
(oferta e procura, risco e retorno) e políticos (no sentido de que "são os políticos e a opinião pública que
definem o grosso das expectativas e dos limites às iniciativas de combate ao ilícito").
Como os incentivos econômicos são expressivos, como as formas de combate político são precárias e
como os homens não são anjos, como notou James Madison em discurso famoso, o ilícito prolifera no
mundo. De tal forma que, na conferência em que apresentou seu livro, em Washington, anos atrás, Naim se
referiu aos milhões de praticantes dessa "arte" como "cupins", embora observando que eram cupins
racionais do ponto de vista de suas motivações: a busca de retornos que cobrissem os riscos e a
volatilidade inerentes às operações a que se dedicavam com excepcional voracidade.
Lembrei-me de Naim e sua "cupinzada racional" ao ver na imprensa que a nossa Polícia Federal denominou
de Operação Vorax a investigação que levou, dias atrás, a apreensão de R$ 7 milhões em dinheiro vivo em
município que recebe royalties de petróleo e gás no valor de dezenas de milhões de reais. A cupinzada
racional local aparentemente apropriou-se de uma parcela do botim. Vorax, noticiou a imprensa, é o nome
de uma bactéria que se "alimenta" de... petróleo.
Mas o assalto “racional” ao erário é um fenômeno de tal magnitude no mundo que ganhou o nome de “efeito
voracidade” na literatura teórica e empírica sobre problemas fiscais e crescimento econômico em
sociedades caracterizadas por instituições legais e políticas menos robustas, marcada por conflitos entre
múltiplos grupos de interesse com poder. A literatura e seus modelos sugerem que a taxa do crescimento
nessas economias é menor do que poderia, dado o excesso de demandas conflitantes sobre transferências
e gastos públicos, bem como a propensão à tributação excessiva sobre o setor formal e mais moderno da
economia – aquele que tem a mais alta taxa de retorno – estimulando a informalidade e a ilicitude.
Nunca será demais tentar aprofundar a discussão desses temas, especialmente em países como o nosso,
em que correntes de opinião ainda expressivas e em posições de poder dizem, escrevem e repetem, com
respaldo político expressivo, que o Estado brasileiro é "raquítico", "nanico", que "choque de gestão é
contratar gente", que a "vitamina para o nanismo é a elevação do gasto público". Ou a elevação da carga
tributária, que permitiria um Estado mais ativo na escolha de setores a serem beneficiados com o acesso
privilegiado a recursos públicos escassos.
Esse tema sempre será controvertido, porque tanto governos quanto Estados têm suas legítimas
prioridades, que deveriam expressar-se de forma transparente nos orçamentos governamentais e nas
visões do futuro de suas lideranças políticas. Mas, convenhamos, isso não é a mesma coisa que a
pretensão de um governo em monitorar, simultaneamente e de forma centralizada, mais de 2 mil "ações de
governo", das quais cerca de 60 % são "obras" e o restante são "estudos e projetos em andamento". Todos,
diz o discurso, controlados pelo Palácio do Planalto como um grande projeto político e de comunicação
social. Quando o Programa de Aceleração do Crescimento foi anunciado, eram 1.646 ações a serem
monitoradas, das quais 912 obras e 734 "estudos e projetos em andamento". Na semana passada ficamos
sabendo que são nada mais nada menos que 2.120 as ações de governo sendo monitoradas, das quais
1.290 seriam obras e 830 estudos e projetos em andamento. Uma verdadeira usina de ideias, ações,
projetos, estudos, obras e debates. No PAC tudo cabe. Inclusive o efeito voracidade e os cupins do Naim.
1
Trecho (páginas 232 a 234) do livro “Uma certa ideia de Brasil: entre passado e futuro” (Editora Intrínseca, 2018).

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Terceiro há a faixa do poder invisível, que pode assumir três formas: um poder invisível dirigido a lutar contra o Estado (organizações criminosas, associações de delinquência, terroristas, narcotraficantes...); um poder invisível formado e organizado não para combater o poder público, mas para extrair benefícios ilícitos e buscar vantagens que com uma ação feita à luz do sol não seria possível; e, finalmente, o poder invisível como instituição do Estado: os serviços secretos, "cuja degeneração pode dar vida a uma verdadeira forma de governo oculto". Os dois primeiros tipos de "poder invisível" mencionados, bem como parte das relações espúrias entre ambos e o poder "semissubmerso" a que se refere Bobbio, foram objeto de excelente livro de Moisés Naim intitulado Ilícito (2005). 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Mas o assalto “racional” ao erário é um fenômeno de tal magnitude no mundo que ganhou o nome de “efeito voracidade” na literatura teórica e empírica sobre problemas fiscais e crescimento econômico em sociedades caracterizadas por instituições legais e políticas menos robustas, marcada por conflitos entre múltiplos grupos de interesse com poder. A literatura e seus modelos sugerem que a taxa do crescimento nessas economias é menor do que poderia, dado o excesso de demandas conflitantes sobre transferências e gastos públicos, bem como a propensão à tributação excessiva sobre o setor formal e mais moderno da economia – aquele que tem a mais alta taxa de retorno – estimulando a informalidade e a ilicitude. Nunca será demais tentar aprofundar a discussão desses temas, especialmente em países como o nosso, em que correntes de opinião ainda expressivas e em posições de poder dizem, escrevem e repetem, com respaldo político expressivo, que o Estado brasileiro é "raquítico", "nanico", que "choque de gestão é contratar gente", que a "vitamina para o nanismo é a elevação do gasto público". Ou a elevação da carga tributária, que permitiria um Estado mais ativo na escolha de setores a serem beneficiados com o acesso privilegiado a recursos públicos escassos. Esse tema sempre será controvertido, porque tanto governos quanto Estados têm suas legítimas prioridades, que deveriam expressar-se de forma transparente nos orçamentos governamentais e nas visões do futuro de suas lideranças políticas. Mas, convenhamos, isso não é a mesma coisa que a pretensão de um governo em monitorar, simultaneamente e de forma centralizada, mais de 2 mil "ações de governo", das quais cerca de 60 % são "obras" e o restante são "estudos e projetos em andamento". Todos, diz o discurso, controlados pelo Palácio do Planalto como um grande projeto político e de comunicação social. Quando o Programa de Aceleração do Crescimento foi anunciado, eram 1.646 ações a serem monitoradas, das quais 912 obras e 734 "estudos e projetos em andamento". Na semana passada ficamos sabendo que são nada mais nada menos que 2.120 as ações de governo sendo monitoradas, das quais 1.290 seriam obras e 830 estudos e projetos em andamento. Uma verdadeira usina de ideias, ações, projetos, estudos, obras e debates. No PAC tudo cabe. Inclusive o efeito voracidade e os cupins do Naim. 1 Trecho (páginas 232 a 234) do livro “Uma certa ideia de Brasil: entre passado e futuro” (Editora Intrínseca, 2018).