A experiência do parto é um dos mais importantes
eventos na vida dos seres humanos. A Estratégia
Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis - primeiros passos para o desenvolvimento nacional é um projeto do Ministério da Saúde e Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz) dirigido à primeira infância. Objetiva destacar ações intersetoriais com foco no desenvolvimento emocional primitivo para garantia da vida com qualidade sustentada na potência dos vínculos estabelecidos entre os bebês, suas mães e cuidadores nos primórdios da vida. Nesta oportunidade, discute-se a importância da humanização do parto nesta concepção estratégica, apresentando seus marcos teóricos, incluindo os determinantes sociais da saúde e as contribuições de Donald Winnicott, sua metodologia, dispositivos inovadores e ações que desenvolve pela promoção da saúde, redução de iniqüidades e construção da cidadania, considerando-as como bases de uma política
pública de saúde voltada para os cuidados com a
primeira infância.
Artigo Parto Humanizado e Memória do Nascimento: uma reflexão sobre a produção de saúde desde os seus primórdios
1. HUMANIZAÇÃO: TRANSFORMANDO IDÉIAS EM POLÍTICAS
HUMANIZATION: TRANSFORMING IDEAS INTO POLICIES
HUMANIZACIÓN: TRANSFORMANDO IDEAS EN POLÍTICAS
Parto Humanizado e Memória do Nascimento:
uma reflexão sobre a produção de saúde desde
os seus primórdios
Humanized childbirth and the memory of birth:
reflections on the production of health from the
beginning
Parto Humanizado y Memoria del Nacimiento: una reflexión
sobre la producción de salud desde sus inicios
Liliane Penello1 ações que desenvolve pela promoção da saúde,
Liliana Lugarinho2 redução de iniqüidades e construção da cidadania,
Selma Eschenazi do Rosario3 considerando-as como bases de uma política
pública de saúde voltada para os cuidados com a
RESUMO primeira infância.
A experiência do parto é um dos mais importantes PALAVRAS-CHAVE:
eventos na vida dos seres humanos. A Estratégia
Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis - primeiros Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis.
passos para o desenvolvimento nacional é um projeto Saúde Pública. Primeira Infância.
do Ministério da Saúde e Instituto Fernandes
Figueira da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz) ABSTRACT
dirigido à primeira infância. Objetiva destacar
ações intersetoriais com foco no desenvolvimento The experience of birth is one of the most
emocional primitivo para garantia da vida com important events in the lives of human beings.
qualidade sustentada na potência dos vínculos The “Healthy Brazilian Kids Strategy – first steps
estabelecidos entre os bebês, suas mães e cuidadores for national development” is a Brazilian Ministry of
nos primórdios da vida. Nesta oportunidade, Health Project in partnership with Oswaldo Cruz
discute-se a importância da humanização do parto Foundation (Fiocruz) aimed at early childhood.
nesta concepção estratégica, apresentando seus Its main objective is to highlight intersectorial
marcos teóricos, incluindo os determinantes sociais initiatives focusing early childhood development, to
da saúde e as contribuições de Donald Winnicott, guarantee life and its quality, considering the special
sua metodologia, dispositivos inovadores e bonds between babies and their mothers or anyone
who plays the role of care-provider in this period
1 Médica. Mestre em saúde pública; Coordenadora Nacional of life. In this papper, we discuss the determinants
da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos saudáveis – pri-
meiros passos para o desenvolvimento nacional (MS/Fiocruz). of health surrounding a “good-enough” delivery,
ebbs@saude.gov.br using Donald Winnicott’s terminology, presenting
2 Médica. Mestre em saúde pública; Coordenadora Adjunta the theoretical and methodological aspects that
da Estratégia Brasileirinhas e Brasileirinhos saudáveis – pri-
meiros passos para o desenvolvimento nacional (MS/Fiocruz). guide this strategy, its innovative devices and
ebbs@saude.gov.br actions to promote health and reduce inequities for
3 Psicanalista. Mestre em estudos da subjetividade pela Uni- citizenship - the soil for the construction of an early
versidade Federal Fluminense; Consultora para assuntos em
desenvolvimento emocional infantil da Estratégia Brasilei- childhood public health policy.
rinhas e Brasileirinhos saudáveis – primeiros passos para o
desenvolvimento nacional (MS/Fiocruz). ebbs@saude.gov.br KEYWORDS: Healthy Brazilian Kids Strategy –
Rev Tempus Actas Saúde Col // 119
2. first steps for national development. Public Health. provê cuidados e que, desde então, passa a
Early childhood apresentar o mundo tal como o sente e como
nele intervém. A este conjunto de novas
RESUMEN experiências relacionais, sensoriais, motoras,
iremos chamar de primeiro território vivencial
La experiencia del parto es uno de los eventos externo do bebê3.
más importantes en la vida de los seres humanos.
La Estrategia Brasileritas y Brasileritos Saludables A importância deste contexto ambiental
- primeros pasos para el desarrollo nacional es un inclui, portanto, as condições em que o parto
proyecto del Ministerio de Salud y el Instituto acontece e o modo como essa experiência será
Fernandes Figueira de la Fundação Oswaldo Cruz “registrada” e terá influência na vida do bebê,
(IFF/Fiocruz) dirigido a la primera infancia; busca de sua mãe e familiares. A qualidade dessa
destacar acciones intersectoriales con foco en ambiência pode ser definida como questão
el desarrollo emocional primitivo para garantía primordial na configuração da Estratégia
de la vida con calidad sustentada en la potencia Brasileirinhas e Brasileirinhos Saudáveis –
de los vínculos establecidos entre los bebés, sus Primeiros Passos para o Desenvolvimento
madres y cuidadores al inicio de la vida. En esta Nacional – EBBS, uma iniciativa do Ministério
oportunidad, se discute la importancia de la da Saúde com a coordenação técnica do
humanización del parto a partir de esta concepción Instituto Fernandes Figueira da Fundação
estratégica, presentando sus marcos teóricos, Oswaldo Cruz, voltada para cuidados com a
incluyendo los determinantes sociales de la salud primeira infância, etapa da vida compreendida
y las contribuciones de Donald Winnicott, su entre zero e seis anos em nosso país. Esta
metodología, dispositivos innovadores y acciones iniciativa vem se somar a um conjunto de
de promoción de la salud, reducción de inequidades esforços já realizados neste âmbito, desde o
y construcción de la ciudadanía, considerándolas próprio campo da saúde aos marcos legais mais
como bases de una política pública de salud para abrangentes como a Constituição Brasileira e o
los cuidados en la primera infancia. Estatuto da Criança e do Adolescente.
PALABRAS-CLAVE: Estrategia Brasileritas Entretanto, um dos eixos da EBBS diferencia-
y Brasileritos saludables. Salud Pública. Primera se pela importância que atribui aos fatores
Infancia. psíquicos e ao desenvolvimento emocional
na produção de saúde e na qualificação da
Memória e desenvolvimento emocional vida, com a lembrança de uma assertiva da
Organização Mundial da Saúde de que não
“Hoje...temos um acúmulo de dados existe saúde sem saúde mental. A tentativa
seguros sugerindo que a forma como nós de descrever o “ambiente emocional” ao qual
nascemos tem conseqüências duradouras temos nos referido, como primeiro território
por toda a vida”1 vivencial do bebê, mostra a enormidade
de fatores a interferir e a configurar o
Sabemos que um dos acontecimentos mais que Winnicott chamou de ambiente
importantes da vida de uma pessoa é, sem “suficientemente bom” ao desenvolvimento
dúvida, o momento do seu nascimento. As humano: podemos compreendê-lo como
circunstâncias em que esse acontecimento aquele ambiente que apesar das falhas, das
se dá inauguram o momento de um contato intromissões, dos limites e da falta deles, ainda
maior com o que reconheceremos futuramente assim, permite o desenvolvimento do indivíduo
como ambiência externa. Experiência que e seu crescimento saudável, livre das violências
adquire relevância porque diz respeito às que retardam, descontinuam, distorcem ou
primeiras vivências diante do outro, que lhe paralisam seu desenvolvimento. É desse modo
120 // Rev Tempus Actas Saúde Col
3. que queremos considerar essa ambiência íntimo suas experiências anteriores
também pela perspectiva da produção social e cujo comportamento no presente é
e da cidadania. Dela faz parte a realidade das profundamente afetado pelo que aconteceu
desigualdades sociais e iniqüidades, expressa antes”.
nas garantias, ou não, dos direitos do indivíduo
em sociedade, o acesso à educação e aos bens Também destacamos a contribuição trazida
culturais, as questões relacionadas ao trabalho, por D. W. Winnicott5 ao afirmar que indícios de
tais como geração de renda e emprego, dentre memórias dessas primeiras experiências podem
outros fatores. A capacidade de ampliação e ser observados em situações clínicas através das
usufruto destes novos territórios, como novos manifestações verbais e principalmente afetivas
círculos vivenciais, ainda segundo Winnicott, de determinados pacientes. A esse respeito ele
ocorrem como apropriação saudável do sujeito nos diz que:
ao se constituir para re-construir criativamente
o ambiente que se lhe apresenta – sempre “É raro encontrarmos médicos que
vinculado e em interação com outros humanos acreditam ser a experiência do nascimento
que dele cuidam. importante para o bebê, com implicações
significativas para o desenvolvimento
Com esta convicção, colocamos em emocional do indivíduo, e que os traços
discussão a relevância da apropriação destes mnemônicos da experiência poderiam
fatores no conjunto de determinantes sociais persistir e suscitar problemas mesmo na
da saúde, para construir as bases de uma vida do adulto”.
política pública voltada para os cuidados
com a primeira infância – momento especial Essas experiências são relevantes, mas
na conformação de padrões saudáveis poderão ficar numa espécie de adormecimento
individuais e sociais para a vida de cada um e psíquico, de modo invisível sempre que o
de todos os cidadãos. Ainda nesta perspectiva, nascimento se dá em condições favoráveis.
associamos o aspecto fundamental da natureza Nesse caso a separação física do corpo materno
intersetorial deste trabalho, para a construção – ainda que represente uma mudança radical
compartilhada das intervenções que podemos em termos ambientais – não é percebida
realizar a fim de minimizar os efeitos nocivos como ruptura. Freud6 afirma que “há muito
acarretados por uma ambiência desprovida mais continuidade entre a vida intrauterina e
de cuidados essenciais ao desenvolvimento a primeira infância do que nos permite saber a
emocional primitivo. Assim, no terreno dos impressionante cisura do nascimento”.
Direitos trabalha-se a garantia da vida da
mulher e da criança, com os conceitos de Winnicott7, sendo pediatra e psicanalista,
maternidade voluntária, segura, prazerosa e ratifica essa idéia de manutenção de uma
socialmente amparada. Compreende-se que linha de continuidade da existência iniciada
estes aspectos irão sedimentar o envolvimento na ambiência intrauterina. Se tudo corre bem
suficientemente bom da mãe com seu bebê. o bebê pode, então, “seguir sendo” porque as
mudanças são gradativamente experimentadas
Dentro do referencial teórico utilizado, como avanço de percurso de uma vida que
costumamos citar uma frase de John Bowlby4 se inicia. Ou seja, como conquista desse
que muito vem a calhar, em que ele diz: território vivencial e sem perda dessa linha
de continuidade. Em contrapartida, quando
“Bebês e crianças pequenas não são o parto-nascimento não ocorre em condições
lousas das quais o passado pode ser suficientemente boas, esse acontecimento
apagado com um espanador ou esponja, poderá se constituir como experiência
mas seres humanos que trazem em seu traumática exatamente porque pode haver
Rev Tempus Actas Saúde Col // 121
4. uma vivência de descontinuidade para o bebê por exemplo, anestesia para punção lombar) e
que nem sequer sabe que é um ser separado de que o esforço e os gastos requeridos para aliviar
sua mãe. A hipótese levantada é a de que “...o a dor não são justificados pelos resultados.
nascimento não é experimentado subjetivamente
como uma separação da mãe (...) simplesmente Ainda nessa linha de pensamento, que
porque o feto (...) sendo uma criatura minimiza os efeitos da dor e do sofrimento
inteiramente narcisista, não tem consciência no momento do nascimento e momentos
alguma da existência de um objeto”. subseqüentes, encontramos as seguintes
considerações que demonstram como alguns
Em síntese, Winnicott nos fala de uma profissionais da área de saúde estão longe de
memória do nascimento que não significa, chegar a um consenso sobre a dor e seu manejo.
necessariamente, uma experiência vivenciada Chermont cita Schechter9 que, em 1989,
de forma traumática como apregoam alguns relatou que 25% dos cirurgiões entrevistados
autores que escreveram sobre o assunto, acreditavam que o neonato sente menos
porém considera inegável que experiências tão dor do que um adulto em situações clínicas
precoces sejam significativas. Esse é um dos semelhantes, contrastando com apenas 6%
motivos para que se promova a idéia de que a dos pediatras. Apesar dessa diferença, ambos
qualidade do cuidado na assistência oferecida os grupos utilizavam pouca ou nenhuma
nesse momento da vida é bastante relevante analgesia para a realização de procedimentos
para que aquele bebê dê os seus “primeiros potencialmente dolorosos.
passos” para o desenvolvimento em condições
saudáveis. Enquanto o conhecimento de que bebês e
lactentes sentem dor está atualmente melhor
O corpo como cenário de experiências estabelecido, o fato de que a expressão de
sensíveis para a mãe e para o bebê. desprazer do recém-nascido não é verbalizada
contribui ainda mais para a dificuldade em
Há pouco tempo atrás, ainda se acreditava reconhecer e tratar a dor de lactentes e neonatos.
que a criança, ao nascer, nem dor sentia,
quanto mais que podia guardar de algum Dessas considerações ainda inconclusivas,
modo memórias dessa experiência crucial. São nos chama a atenção o fato de alguns acharem
muitas concepções errôneas que contribuíram que a dor tem idade certa para se manifestar e
e contribuem para o tratamento inadequado mais ainda a afirmação de que a dor, caso sentida
da dor do recém-nascido. Muitos profissionais nessa fase da vida, não pode ser recordada.
acreditam que os bebês ainda não tem a Porém, para a psicanálise e especialmente
sensibilidade desperta para a dor. Podemos para aqueles que se interessam pelas questões
citar alguns exemplos, como o resultado da ligadas às manifestações psicossomáticas, essa
pesquisa de Chermont8 com médicos pediatras: perspectiva de uma memória que é produzida
os recém-nascidos e lactentes pré-verbais a partir do que foi vivido é perfeitamente
não sentem dor, apenas expressam ansiedade plausível desde sempre. São marcas mnêmicas
em situações que podem parecer dolorosas; que registram diretamente no corpo aquilo que
a dor, caso sentida, não é recordada e, por está sendo experimentado no ato do nascimento
ser subjetiva, não pode ser medida de forma mesmo antes de um ego existir, e tanto faz
confiável; acreditam também que a exposição que sejam experiências de prazer ou de dor,
a opióides predispõe as crianças a se tornarem pois os registros de nossa existência já estão
dependentes na vida adulta e que o risco de lá sendo feitos como uma espécie de biografia
depressão respiratória ultrapassa a importância psicossomática. Ainda que nada desse momento
do alívio da dor; a administração de uma seja lembrado conscientemente e, talvez,
medicação que alivia a dor provoca dor (como nem esteja representado inconscientemente,
122 // Rev Tempus Actas Saúde Col
5. essa memória existe não de forma explícita engrandecer seu florescimento”.
e nomeada como tal: alguns dos seus traços
podem estar presentes, por exemplo, em nossos Tudo isso diz respeito também ao modo como
sonhos, fantasias e brincadeiras no decorrer iniciamos os nossos contatos com o mundo,
de nossas vidas. São experiências que podem procurando, nesse momento inaugural, nos
ser expressas por essa memória corporal que expressar por outro tipo de linguagem que não
é constitutiva do psiquismo, ou seja, faz parte pode ser feita pelo uso das palavras, porque
do desenvolvimento emocional primitivo. estas são experimentadas em uma etapa da
São sensações e afetos presentes nas nossas vida em que ainda não adquiram o sentido de
vivências de prazer e de dor, nas expressões de expressão do que é vivenciado. Nesse tempo, a
fantasias e situações que nos angustiam e que memória é como se fosse “esculpida” em nosso
nos são aparentemente inexplicáveis, mas que corpo e será dessa forma que essas vivências
estão lá, registradas naquilo que reconhecemos irão se manifestar, através de uma corporeidade
como psicossoma. Experiências sensíveis que fala sem a mediação das palavras. Essas
que mesmo não estando plenamente visíveis, vivências fazem parte de nossa bagagem de
compõem uma espécie de fundo onde figuram vida e poderão ser determinantes no modo
as nossas experiências relacionais. como nos relacionarmos com o mundo.
Assim, podemos pensar que, essa parturiente
Mais recentemente estas construções tendo sido um bebê, um dia, e experimentado
vem sendo fortalecidas pelas pesquisas sensações singulares a partir de sua própria
neurocientíficas, como podemos observar história de nascimento, ela também tem uma
nesta fala de Damásio 10: história pregressa a ser expressa na condição
que ocupa naquele momento: “a mulher
“é perfeitamente legítimo perguntar se preparando outra pessoa”11, nas palavras do
a tentativa de elucidar os sentimentos poeta.
tem qualquer espécie de valor além da
satisfação de nossa curiosidade... elucidar Winnicott fala que a gestante vai, conforme
a neurobiologia dos sentimentos, e das o avanço da gravidez, desenvolvendo
emoções que os percebem, altera a nossa gradativamente uma condição peculiar, onde
visão do problema mente-corpo, um o foco dos interesses fica concentrado na
problema cujo debate é central para díade mãe-bebê. É o que o autor chama de
nossa compreensão daquilo que somos. preocupação materna primária, um estado que
A emoção e as várias reações com elas perdura até algumas semanas após o parto e
relacionadas estão alinhadas com o corpo, que ele sugere que esteja ligado às memórias
enquanto os sentimentos estão alinhados de maternagem. É claro que a mãe exerce a
com a mente”. maternagem também sob a influência dos
cuidados que ela recebeu e que estão registrados
Esse autor segue dizendo que o principal em sua memória de bebê, como anteriormente
valor prático desta nova perspectiva diz respeito apontado, ainda que ela não tenha a menor
a uma razão simples: consciência disso.
“o êxito ou fracasso da humanidade Compreendemos que este é apenas um
depende em grande parte do modo como aspecto da questão e não defendemos uma
o público e as instituições que governam espécie de determinismo de causa e efeito.
a vida pública puderem incorporar essa Mas, se as vivências predominantes são as
nova perspectiva da natureza humana de desamparo ou de falhas significativas da
em princípios, métodos e leis... capazes provisão ambiental a mulher pode se sentir
de reduzir o sofrimento humano e insegura e desvalida para participar de
Rev Tempus Actas Saúde Col // 123
6. momento tão importante de sua vida e da seu mais nobre do que às vezes imaginamos: não só
filho que nasce. Daí a grande importância do fornecendo as melhores condições materiais ou
suprimento ambiental que a cerca. aplicando as melhores e mais avançadas técnicas
de procedimentos; nesse contexto tem grande
Dessa forma, fica claro que grande parte importância também o nosso gesto afetivo, o
da provisão ambiental deverá ser dirigida à acolhimento que evidencia o devido suporte
parturiente para que determinados fatos ou a ser fornecido junto com a nossa equipe, à
registros de memória não sejam a expressão família, ao conforto da mãe, para a melhor
de um destino imutável, na eventualidade das recepção ao bebê. E isto muitas vezes significa
experiências difíceis que porventura tenha apenas fazer silêncio, condicionar as luzes e
sofrido, tanto nos primórdios de sua existência a temperatura ambiental, agir referenciados
como ao longo do seu percurso de vida, ou pelas boas práticas e intervir apenas e quando a
venha sofrer no momento do parto. Assim, necessidade nos convocar.
percebemos que o contexto cultural também
tem a sua considerável parcela de contribuição Importa-nos também refletir sobre o lugar
para que tudo possa correr a contento, pelo que ocupa o filho que está sendo gestado em
menos no que diz respeito a esse tipo de determinada constelação familiar, pois do ponto
suprimento. A esse respeito Maldonado� afirma de vista da constituição do psiquismo daquele
que: ser que chega ao mundo é preciso compreender
o contexto em que o nascimento ocorre. Essa
“A internalização das histórias terríveis compreensão envolve entender, inicialmente,
com relação ao parto, o medo da morte as condições que o antecederam, considerando
simbolizado pela passagem da vida histórias pregressas das famílias, dos pais, além
intrauterina para a extrauterina, a das condições físicas, emocionais e desejantes
identificação com a imagem da mãe em que foi concebido. Para cada caso torna-
sofredora que padece para dar à luz se importante esclarecer questões que ajudam
são fatores que intensificam o medo e a composição dessas histórias de vida. No
contribuem para a tendência a lutar contra traçado desse histórico importa também a
as contrações, ao invés de acolhê-las como nossa atitude diante do outro, especialmente
um novo ritmo do corpo que se prepara a de saber ouvir privilegiando o protagonismo
para dar ao bebê a passagem para uma dos principais envolvidos de modo que a nossa
nova vida. O clássico circuito do medo- função seja a de coadjuvante.
tensão-dor se realimenta continuamente,
gerando intenso desconforto e muita Essa investigação envolve questões que,
angústia”. quando esclarecidas, ajudam a configurar
aquele contexto familiar e se for o caso, traçar
O contexto ambiental e os cuidados um plano específico de cuidado. Trata-se,
oferecidos por exemplo, de observar se naquele cenário
lidamos: com um casal que em algum momento
Podemos, então, compreender o quanto e por algum motivo se encontrou, se amou e
é relevante o cuidado que se deve ter com teve prazer? Esse encontro gerou uma criança
a ambiência em que a experiência do parto desejada? Há uma mulher que engravidou
acontece. Na realidade, nós, enquanto numa relação amorosa/conjugal estável? Ou
profissionais cuidadores e envolvidos uma mulher que decidiu ter seu filho sem a
diretamente com essas questões, fazemos parte presença do pai – porque este não habita seu
desse ambiente. Especialmente para o bebê que universo? Ou alguém que foi abandonada pelo
não se vê separado do mundo, somos também companheiro? Ou uma mulher que tendo sido
parte desse universo. Estamos com uma missão estuprada e não desejasse aquele filho, não
124 // Rev Tempus Actas Saúde Col
7. conseguiu abortar? Ou ainda uma mulher construção ousada como tentativa de resposta.
ou um casal que consegue engravidar após Como vimos, nesta perspectiva a garantia
inúmeras tentativas de inseminação artificial? da vida biológica e psíquica de um novo ser
Essas são apenas algumas das inúmeras humano e suas possibilidades de saúde e
questões cujas respostas contribuem para o bem estar não se iniciam no momento do
delineamento desse contexto ambiental e que parto. Considera-se que ao lado do potencial
serve como cenário para os acontecimentos genético e da hereditariedade, alinham-
da concepção, gestação e nascimento de se inúmeros outros determinantes não só
brasileirinhas e brasileirinhos. de saúde, mas de vida com qualidade. E é a
interação absolutamente singular de todos
Embora a sistematização dos procedimentos estes determinantes, conduzida de forma mais
adotados na assistência à gestante/puérpera ou menos criativa pelo bebê e a criança nestes
tenha o objetivo de oferecer a todas que estejam primeiros anos de vida, que erigirá os padrões
nessa condição uma rede de cuidados, é preciso em torno dos quais irá responder aos desafios
não perder de vista esse olhar que diferencia e de construção de seu caminho no mundo.
singulariza as histórias. Da perspectiva que
estamos considerando, o acompanhamento A nossa contribuição maior consiste em lançar
de uma gestante pode envolver, portanto, a luz sobre os fatores psíquicos e emocionais aí
delicadeza de cada uma das possibilidades presentes, indissociáveis da história pregressa
acima referidas, dentre tantas outras e atual da mulher, que ao aproximar-se das
envolvendo aspectos socioafetivos tais como: questões da maternidade certamente revisitará
sua identidade feminina, o exercício da sua história como bebê, seu desenvolvimento
sexualidade, ou o momento do ciclo de vida em físico e emocional, sua condição desejante,
que a gestação acontece (adolescência, jovem e a construção que se apercebeu fazendo (ou
adulta, maturidade). Além disso, temos que não) de uma “morada” imaterial para seu
considerar as circunstâncias socioeconômicas, filho, dentro de si, assim como projeções que
diferenças de ordem cultural, dentre outros sustentem um vir-a ser e a ocupação de um
tantos determinantes de qualidade de vida e lugar no mundo real, compartilhado. Claro
saúde que impactam também sobre o bebê que a rede composta (ou não) pela presença
que essa mulher carrega no interior de seu do pai desde o universo da mãe, dos membros
corpo e na sua mente. E o profissional de saúde da família de origem da mãe e do pai, do
envolvido na prestação desse tipo de assistência arranjo conjugal ou familiar monoparental ou
sabe que é necessário observar cuidadosamente ampliado, onde o bebê e a criança irão “com-
cada contexto para que possa identificar as viver” são de absoluta importância em termos
reais necessidades de cada qual. Neste aspecto, de continente e sustentação deste território
destaquemos o papel das doulas, mulheres que vivencial, adicionando uma contribuição
se disponibilizam, assentadas em suas próprias geográfica ao eixo histórico -social do novo
experiências de vida, a oferecer suporte àquelas ser, que expande, com seu desenvolvimento,
outras que dele necessitam para garantir, por seus limites .
sua vez, acolhimento e afetos suficientemente
bons aos pequenos cidadãos que chegam, por Assim, ao iniciarmos este artigo fazendo
seu intermédio, ao mundo. uma reflexão sobre o parto humanizado e a
importância dos cuidados neste momento
Conclusão da vida para a produção de saúde, é porque
entendemos com Michel Odent, que para viver
Podemos nos perguntar afinal, o que uma vida com qualidade, é preciso modificar
entendemos como uma brasileirinha ou a forma de nascer. E por acreditarmos nessa
brasileirinho saudável? A EBBS sugere uma assertiva, e no quanto podemos trabalhar
Rev Tempus Actas Saúde Col // 125
8. por um projeto civilizatório favorecendo sua uma das unidades ou equipes de saúde da
construção a partir do campo da saúde, é que família destes municípios.
decidimos por tomar os seus determinantes
sociais e especialmente a vertente de Promoção Humanizar este caminho de chegada
da Saúde, para a construção da EBBS. ao mundo de um novo brasileiro consiste,
portanto, em intervir no processo de produção
O manejo destes inúmeros determinantes de sua saúde favorecendo a associação de novas
mostra o quanto esse trabalho demanda, ofertas clínicas de cuidado com uma gestão de
para sua efetividade, dispositivos inovadores responsabilidades compartilhadas em equipes
capazes de sustentar ações intersetoriais, sejam de referência e com espaço para a singularização
elas voltadas para a articulação com Educação, da atenção - permitindo oferecer ao diferente,
Assistência Social, Justiça, Políticas para as a necessária diferença para a promoção do seu
Mulheres, Direitos Humanos, Esportes, entre bem estar. Isto pode evidenciar-se, e é apenas
outras, como internas à própria área da saúde um exemplo, com a conquista aparentemente
nos diferentes níveis, ou seja, para dentro do simples de efetivamente vincular a mulher, a
Ministério da Saúde, ou desenvolvidas nos partir da atenção pré-natal, à maternidade em
estados e municípios. Dada a grandiosidade do que seu parto deverá ocorrer: quanta ansiedade
desafio, a EBBS objetiva contemplá-las numa aliviada... quantas crianças chegando ao
proposta piloto, tendo definido com o CONASS mundo de forma mais segura...quantos direitos
e a CONASEMS seis municípios pólos no país garantidos! Neste sentido, concordamos com
para seu início: Rio Branco (AC), Rio de Janeiro Ayres12 quando diz:
(RJ), Campo Grande (MS), Florianópolis (SC)
e Araripina e Santa Filomena no Sertão do “Assistimos em tempos recentes à
Araripe (PE). emergência de uma série de novos discursos
no campo da saúde pública, mundial e
Compreendendo o nosso Sistema Único nacionalmente, tais como a da promoção
de Saúde como a principal política social da da saúde, saúde da família, entre outros.
área, a proposta é fortalecê-lo e aprimorá-lo Tais discursos revelam a vitalidade
investindo em inovações também de natureza conceitual da saúde pública deste início de
relacional, privilegiando a atenção ao vínculo milênio e traz ao debate diversos convites
estabelecido entre seus principais atores: à renovação das práticas sanitárias... que
gestores, profissionais de saúde e usuários e seus parecem depender de transformações
familiares. A idéia de cuidado com o cuidador bastante radicais no nosso modo de pensar
atravessa este trabalho, consistindo também e fazer saúde, especialmente em seus
em apoiar as equipes de Saúde da Família e pressupostos e fundamentos”.
profissionais dos Núcleos de Atenção à Saúde da
Família (NASFs), com o auxílio de apoiadores Busca-se, assim, manter em movimento e
locais, por sua vez sustentados e alimentados aprimorar a cada dia o conjunto de ofertas
pelo dispositivo de apoio matricial, uma oferta construídas com, para e pelo público,
da Política Nacional de Humanização do SUS, disponibilizadas através de diretrizes,
que aposta em novas formas de fazer e novas dispositivos e ações do SUS, neste consolidado
práticas de atenção e gestão da clínica e dos resultante das reformas sanitária e psiquiátrica
serviços. É neste sentido que sustentamos os brasileiras. Temporão et al13 afirmam,
dispositivos aglutinadores, e a transversalidade entretanto, que:
na comunicação, incentivando a experiência
grupal, existente ou oportunamente concebida “não se constrói um projeto político
para os cuidados nas ações de planejamento nesta área que assegure de forma
familiar, pré-natal, parto e puerpério em cada sustentável e permanente o acesso
126 // Rev Tempus Actas Saúde Col
9. universal aos bens e serviços, e que 15-16.
garanta os direitos do cidadão, sem a 10. Carlos R. Força estranha. 1968.
decisão política de assegurar os recursos 11. Maldonado MT. Psicossomática e obstetrícia. In:
Mello Filho, et al. Psicossomática hoje. Porto Alegre:
necessários ao financiamento do sistema Artes Médicas; 1992. p. 208–14.
de saúde que possibilite investimentos 12. Ayres JRCM. Cuidado e reconstrução das práticas
na infraestrutura, na aplicação de novas de saúde. Interface – Comunic Saúde Educ 2003–
tecnologias, na manutenção de quadros 2004;8(14):73-92.
profissionais de qualidade e no fomento ao 13. Temporão JG, Penello LM. Determinação social
da saúde e ambiente emocional facilitador: conceitos
desenvolvimento científico e tecnológico. e proposição estratégica para uma política pública
Para alcançar este objetivo, é preciso voltada para a primeira infância: política de saúde para a
primeira infância. Saúde em Debate, Revista do Centro
que a saúde seja pensada e priorizada Brasileiro de Estudos de Saúde. 2010;34(85):198-8.
nos planos de desenvolvimento como
componente estratégico e não como um
agente secundário. Tal posição recoloca as
bases sobre as quais os determinantes de
Artigo apresentado em 12/07/2010
saúde devem ser equacionados”.
Aprovado em 30/08/2010
A ousadia consiste então não só em trabalhar
pela inclusão da saúde como componente
estratégico dos planos de desenvolvimento, como
em lançar as bases para a construção de uma
política de Estado voltada para os cuidados com
a primeira infância, tomando-a efetivamente
como os primeiros passos do desenvolvimento
nacional.
Referências
1. Odent M. Parto e nascimento no mundo
contemporâneo: conferência de abertura. Seminário BH
pelo Parto Normal. Belo Horizonte: Rona; 2008.
2. Guattari F, Rolnik S. Micropolítica: cartografias do
desejo. Petrópolis: Vozes; 1996. p. 323-4.
3. Bowlby J. Maternal care and mental health.
Genebra; 1961.
4. Winnicott DW. Memórias do nascimento, trauma
do nascimento e ansiedade. Rio de Janeiro: Imago; 2000.
p. 254–76.
5. Freud S. Inibições, sintomas e angústia (1926). In:
ESB das obras completas. Rio de Janeiro: Imago; 1976.
6. Winnicott DW. Memórias do nascimento, trauma
do nascimento e ansiedade. Rio de Janeiro: Imago; 2000.
p. 254–76.
7. Chermont AG. O que os pediatras conhecem
sobre avaliação e tratamento da dor no recém-nascido. J
Pediatr. 2003;79(3):265-72.
8. Schechter NL. The undertreatment of pain
in children: an overview. Pediatr Clin North Am.
1989;36:781-93.
9. Damásio A. Em busca de Espinosa: prazer e dor na
ciência dos sentimentos. São Paulo: Schwarcz; 2004. p.
Rev Tempus Actas Saúde Col // 127