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Panorama da Pesquisa em Artes Visuais – 19 a 23 de agosto de 2008 – Florianópolis
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A Figura Humana Fragmentada na Pintura:
Tiradentes esquartejado em Pedro Américo e Adriana Varejão.
Regilene Sarzi-Ribeiro
FAAC-UNESP-Bauru/SP.
Resumo: O surgimento de uma nova configuração do olhar do homem sobre si
mesmo entre os séculos XVIII e XIX, altera o sistema de representação da figura
humana para uma fragmentação mais frequente. Este trabalho é parte dos resultados
obtidos pela dissertação da autora, cujo tema é a Figura Humana Fragmentada na
Pintura. Os objetivos da pesquisa foram: construção de um percurso histórico do tema,
identificação, comparação e discussão dos aspectos estéticos e iconográficos,
mediante análise iconográfica e comparativa. Os resultados apontam que o tema da
figura humana permanece sendo representado dentro da dualidade: figura-inteira
versus figura-fragmentada. Tiradentes esquartejado em Pedro Américo pode ser
relacionada com os elementos estéticos de obras-pormenor e em Adriana Varejão, de
obras-fragmento.
Palavras-Chave: figura humana; fragmento; pintura; história da arte; Tiradentes
esquartejado.
Abstract: The emergence of a new configuration of sight of the man on itself between
the 18th
and 19th
centuries, amending the system of representation of the human figure
to a more fragmented frequent. This work is part of the results obtained by the thesis of
the author, whose theme is the Human Figure Fragmented in Painting. The objectives
of the survey were construction of a route of the historic theme, identification,
comparison and discussion of the aspects aesthetic, iconographic through analysis,
and comparative iconographic. The results show that the theme of the Human Figure
remains represented in the duality: entire versus fragmented. “Tiradentes quarted” in
Pedro Américo relates to the aesthetic elements of works-detail and Adriana Varejão,
of fragments-work.
Key words: human figure; fragment; picture; art history; Tiradentes quarted.
A Figura Humana Fragmentada na Pintura.
No final do século XVIII, no momento em que a Arte Neoclássica
estabelecia o estudo das partes do corpo humano com a finalidade de
representar melhor o conjunto perfeito, era criada a guilhotina. Um instrumento
de punição e resguardo das leis sociais que garantia aos criminosos o mesmo
tipo de morte, já que antes os plebeus eram enforcados e os aristocratas
decapitados.
O estudo das partes do corpo e a guilhotina colocaram o cadáver
humano em evidência, junto com as guerras modernas do período napoleônico,
nas quais milhares de pessoas foram mortas e outras ficaram aleijadas.
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Na passagem do século XVIII para o XIX, surge uma nova configuração
do olhar humano sobre si mesmo, que altera sensivelmente o sistema de
representação da figura humana: de um sistema representativo, pautado na
tradição clássica, na inspiração religiosa, no respeito pelo corpo intacto, belo e
coeso, para a representação de um corpo exposto pela frieza e racionalidade
técnicas que paulatinamente expõem sua fragilidade e suas deformações.
Esse novo olhar torna a figura humana representada mais próxima do
real e não mais idealizada como sempre fora pela cultura clássica. Esse foco
sobre si mesmo desloca o olhar do homem, antes voltado para a divindade,
para o seu próprio ser, constituído de um corpo real, frágil e visceral.
Por volta de 1830, a invenção da Fotografia revela, por meio dos planos
de composições e da percepção mais detalhada de imagens, coisas que o
olhar humano, mais lento e menos preciso, não conseguia captar. O amplo
registro dos movimentos; a disposição e a iluminação dos objetos, bem como
os enquadramentos e os novos enfoques trazidos pela fotografia, possibilitaram
ao pintor mais dinamismo e riqueza de detalhes.
Dessa forma, desde os pintores Théodore Géricault (1791-1824) e Jean
Dominique Ingres (1780-1867), passando por Edgar Degas (1834 - 1917),
Pablo Picasso (1881-1973) e Marcel Duchamp (1887-1968), até Francis Bacon
(1909-1992) e Andy Wahrol (1930-1987), bem como na arte brasileira nas
obras de Vitor Meireles (1832-1903) e Pedro Américo (1843-1905), José Ferraz
de Almeida Jr. (1850-1899), Ismael Nery (1900-1934) até Carlos Vergara
(1941) e Iberê Camargo (1914-1994), a representação da Figura Humana
sofreu alterações não apenas nos aspectos formais, mas, sobretudo, no âmbito
conceitual.
Tais transformações conceituais sofridas pelo tema da figura humana,
fez com que paulatinamente ele fosse também representado por meio da
fragmentação e de partes do corpo, com valor de inteiro.
Diante deste contexto e da necessidade de compreensão deste
fenômeno, foi realizada uma pesquisa visando à construção de um percurso
histórico do tema da figura humana fragmentada na pintura, na História da Arte
e na História da Arte Brasileira, que resultou, de acordo com o recorte
proposto, sua identificação, comparação e discussão, na dissertação intitulada
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A Figura Humana Fragmentada na Pintura: Tiradentes esquartejado em Pedro
Américo e Adriana Varejão (SARZI-RIBEIRO, 2007).
Este ensaio apresenta parte dos resultados obtidos pela referida
pesquisa, realizada sob a orientação do Prof. Dr. José Leonardo do
Nascimento, junto ao Programa de Pós Graduação do Instituto de Artes da
Unesp de São Paulo.
O procedimento metodológico empregado foi análise comparativa entre
os aspectos históricos, estéticos e iconográficos das obras escolhidas para o
estudo, a fim de confrontar suas características formais.
Após a contextualização da figura humana fragmentada na história da
arte no primeiro capítulo da dissertação, a pesquisa destacou a figura de
Tiradentes, cujo corpo esquartejado é tema de diversas obras de artes visuais
brasileiras, compondo dessa forma o segundo capítulo, intitulado: A Iconografia
de Tiradentes.
Ao final, no terceiro capítulo, procederam-se à análise estética e
comparativa das obras Tiradentes esquartejado e Reflexos de Sonhos no
Sonho de Outro Espelho (Estudo sobre o Tiradentes de Pedro Américo), de
Pedro Américo e Adriana Varejão, respectivamente.
As análises comparativas, realizadas nos primeiros dois capítulos da
pesquisa, buscaram uma compreensão mais efetiva da relação dialética entre o
todo e a parte, naquilo que se aproximam e se distinguem dentro do tema da
Figura Humana na Pintura e Tiradentes esquartejado.
Sendo assim, este artigo é composto de parte dos resultados que
constam no terceiro capítulo da pesquisa em questão.
Tiradentes esquartejado em Pedro Américo.
O tema da pintura de Pedro Américo é Tiradentes e seu corpo
esquartejado [fig.01]. No alto, a primeira parte do corpo de Tiradentes é sua
cabeça esquartejada, bem aos pés da forca, sobre um tecido branco. O sangue
escorre do pescoço. Á direita tem-se um crucifixo e uma corda com os nós
afrouxados, sinalizando o ato do enforcamento, as correntes e algemas do
prisioneiro. Mais abaixo e à esquerda está um dos pés do corpo esquartejado.
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Figura 01 - Pedro Américo
Tiradentes esquartejado (1893)
Óleo sobre tela - 262 x 162 cm
Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora – MG.
Deste membro, vemos a planta dos pés, os tornozelos e uma pequena
parte das canelas. A propósito do elemento sangue na pintura de Pedro
Américo, analisa Christo (2005, p.284):
O sangue de Tiradentes aparece com grande parcimônia, em
lugares estratégicos, não manchando a pele, revelando-se, por
vezes, em quase imperceptíveis filetes, cuja, função plástica é
delimitar a superfície do corpo. Se o quadro surpreende ao
apresentar um herói aos pedaços, a sua assepsia causa igual
estranheza.
Esta assepsia reforça o aspecto do fragmento, ou seja, da parte, pois ao
não apresentar o sangue humano em demasia, Pedro Américo tira de cena um
elemento que caracteriza o ato do corte entre as partes do corpo. A limpeza
dos cortes e o sangue ausente, ou, colocado apenas em algumas regiões
muito especificas da composição, dificulta o rompimento visual do corpo e
possibilita sua reconstituição.
Ao centro, está o tronco, com pescoço, tórax e abdômen e um dos
braços, inteiro, com as mãos, intacto, junto ao tronco. Nesta parte do corpo não
há sinais de sangue e a limpeza afasta a cena de certo grau de realismo. A
pele clara e rosada de Tiradentes e os detalhes, dos pelos do peito, por
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exemplo, dão forte tom de realismo à imagem e conferem naturalismo à cena,
conforme aduz Milliet (2001, p.169): “O que importa é representar o corpo
dilacerado, associando o desenho preciso ao discreto modelado. A carne
torturada parece ter sido pintada com a objetividade de quem ilustra um topos
da ciência.”
À direita da pintura, a farda azul do alferes foi disposta sobre o tronco
impedindo a visualização de suas vísceras e do corpo fragmentado pelo corte
na altura da cintura, ocasionado pelo esquartejamento.
A perna esquartejada e disposta à direita da tela é um pormenor que
contém as coxas, a perna e os pés. Está fincada numa lança e foi amarrada
com cordas, numa espécie de cruz, como um estandarte para ser fixado
separado do corpo. O contraste entre o horror da imagem e a objetividade da
representação do corte do membro, da amarração da coxa e do pé estendido
na lança, torna este fragmento, de todos os outros da pintura, o mais bem
resolvido plasticamente.
O primeiro plano da pintura, portanto, é tomado pela presença do corpo
esquartejado e suas partes dispostas do alto a baixo, bem como da esquerda
para a direita da tela.
Como cenário para este corpo orgânico, cuja pele pálida, ora
acinzentada ora esverdeada demonstra sinais da perda da vida, tem-se o palco
da forca. Palco da morte versus palco da vida. Um conjunto geométrico de
linhas verticais, horizontais e perpendiculares caracterizado por pilares, caibros
e tábuas de madeira, que sustentam o palco e contrastam em tonalidade.
A representação do corpo recebeu tratamento realístico, limpo, com
atenção para detalhes anatômicos como a cor da pele, unhas, musculaturas e
proporção. Mesmo representando o corpo por partes e inclusive por separá-las
em diferentes estruturas, o artista mantém uma relação de proporção entre
elas.
O corpo, portanto, está representado em partes, por meio de
fragmentos. Cada parte poderia ser representada sozinha, em particular e seria
perfeitamente identificada como uma parte de um corpo, porém, podem ser
perfeitamente reunidas para formar novamente um todo.
A cabeça e a perna espetada na lança podem reconstituir-se ao
restante do corpo para representar a figura humana.
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Todas as partes estão representadas separadas e, portanto, não
configuram um corpo inteiro, intacto. Contudo o nosso olhar pode unir as partes
reconstruindo visualmente um corpo inteiro. Apenas o tronco, com um dos
braços representado, permanece inteiro, junto ao ombro e ao tórax, por
estratégia de composição. Deste fragmento não vemos as extremidades, pois a
posição da farda impede que suas vísceras fiquem à mostra, como enfatiza
Christo (2005, p.286):
Em Tiradentes esquartejado o tronco, pousado sobre o
cadafalso, não foi fracionado em dois. Pedro Américo preferiu
ignorar o texto da sentença, que ordenava ser, após o
enforcamento, a cabeça cortada e o corpo dividido em quatro
partes. O artista não só manteve o tronco intacto, impedindo que
fosse reduzido a um pedaço de carne cortada, como obstruiu a
visão do corte do quadril com a túnica azul.
Contudo os dois principais fragmentos compostos na pintura: a cabeça e
a perna presa à lança à esquerda, possuem os cortes do esquartejamento à
mostra e expõem suas extremidades.
Tiradentes esquartejado em Adriana Varejão.
A obra de Adriana Varejão, por sua vez, tem como tema Tiradentes
esquartejado, mas no formato de uma releitura da pintura de Pedro Américo.
Trata-se da obra Reflexo de Sonhos no Sonho de outro espelho (Estudo
sobre o Tiradentes de Pedro Américo), de 1998, que é uma instalação
constituída de uma sala branca que mede 3x3x3m, com 21 pinturas a óleo de
diferentes tamanhos e formatos.
As 21 pequenas telas foram criadas a partir de um processo criativo
inusitado, que consistiu nos seguintes procedimentos: a artista pintou de negro
um quarto do seu atelier e o preparou na medida de um cubo com 3m
quadrados.
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Figura 02 - Adriana Varejão.
Projeto para Instalação - Reflexo de Sonhos no
Sonho de Outro espelho (Estudos sobre o
Tiradentes de Pedro Américo) –
(1998). Detalhe – manequins
Coleção Ricard Akagawa – São Paulo, SP.
Figura 03 - Adriana Varejão
Reflexo de Sonhos no Sonho de Outro espelho
(Estudos sobre o Tiradentes de Pedro Américo) -
(1998). Detalhe – Fragmentos
Coleção Ricard Akagawa – São Paulo, SP.
A seguir, criou um manequim tendo como molde o corpo em partes do
esquartejado da pintura de Pedro Américo. Pintou estas partes do corpo de
branco e as distribuiu pela sala, dependurando-as no teto [fig. 02]. Conforme
esclarece Adriana Varejão (1999, p.31):
O trabalho que estou preparando para a XXIV Bienal de São
Paulo baseia-se no quadro de Pedro Américo, o seu Tiradentes,
que também estará presente na Bienal. Meu interesse nessa
pintura é mais de ordem semântica do que pictórica. É um
quadro com que muitos de nós estamos familiarizados, pois está
presente nos livros de História que costumamos estudar no
colégio. Além disso, interessou-me a representação da
fragmentação do corpo e do corpo em pedaços, algo que está
em Géricault, que também estará na Bienal. Construí um
manequim e o desmembrei justamente como no quadro a que
me referi: duas pernas, um tronco com um braço, uma cabeça.
Dispus as partes especialmente dentro de quarto seguindo a
mesma composição da pintura de Pedro Américo. Era como se
o quadro estivesse em terceira dimensão. Coloquei vários
espelhos nas paredes num total de 21, que refletiam as partes
do corpo e também se refletiam uns aos outros. Partindo de um
mesmo ponto de vista, fotografei cada espelho e reproduzi as
imagens em pintura. Os quadros estarão dispostos no lugar dos
espelhos, tendo as mesmas dimensões.
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Deste processo criativo podemos abstrair várias relações perante a obra
de Pedro Américo, quanto ao tema da Inconfidência Mineira, bem como com os
aspectos estéticos envolvidos na produção da obra.
O processo de criação escolhido por Adriana para realização da obra
pode ser relacionado com o fato da Inconfidência Mineira e a imagem do
enforcamento como algo consumado e já fragmentado pela historiografia.
Quando reproduz as partes do corpo do esquartejado em terceira dimensão e o
fotografa, como num registro do volume e dos cortes em evidência do
retalhado, Adriana procura novos enquadramentos e cortes antes escondido
pelo bidimensional.
Contudo, ao pintar o esquartejado a artista retoma o pictórico e perpetua
o corpo fragmentado por meio de imagens retalhadas pelos reflexos dos
espelhos e que são, em função do seu processo de produção, impossíveis de
reconstituição. Reflexos de um corpo sem identidade, destituído de
informações suficientes para que o reconhecimento do corpo do alferes mineiro
pudesse ser reconhecido pelo espectador. Não há nenhuma possibilidade do
espectador se reconhecer como corpo naquelas imagens, muito menos como o
corpo de um cidadão brasileiro.
Ademais, o acabamento dado às imagens por Adriana Varejão é realista
e possui cor, mesmo depois de fotografar os reflexos dos manequins em
branco. E retoma a cor da pele, o vermelho do sangue e da carne assim como
das vísceras e os cortes dos membros esquartejados. Mesmo reafirmando a
condição de esquartejado do corpo de forma a não permitir a sua
reconstituição, o tratamento tonal e pictórico que Adriana Varejão imprime em
suas imagens pintadas é realista, algo que identifica o corpo, o sangue e as
vísceras e o relaciona com a realidade [fig.03].
As pinturas de diferentes tamanhos ao mesmo tempo em que
reinterpretam a obra de Pedro Américo sustentam um processo de
desconstrução da mesma e reforçam seu caráter asséptico e fragmentário,
conforme vimos no relato da artista.
A introdução destes múltiplos Tiradentes dentro de um espaço fechado
de uma sala de medidas exatas aprisiona o corpo do esquartejado à sua
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condição de fragmentado, pois dificulta a observação de modo ampliado,
mediante certo distanciamento.
A disposição dos pedaços do corpo do esquartejado no espaço recluso
da instalação, parece querer nos dizer algo a despeito da condição
estabelecida pelo fato histórico e político da Inconfidência Mineira. Seja pela
total impossibilidade de liberdade de Tiradentes, condenado e esquartejado,
seja pela clausura causada pela afirmação da imagem do líder revolucionário
como um herói nacional. O corpo além de permanecer esquartejado,
permanece aprisionado.
Cabe por oportuno relatar a análise, a despeito da sedução pelo
fragmento que Adriana Varejão experimentou ao criar esta obra, feita por
Christo (2005, p. 38):
Adriana Varejão viu no quadro de Pedro Américo a
fragmentação. Fragmentou o manequim. Fragmentou a própria
imagem dos fragmentos suspensos no ar ao refleti-los nos
espelhos. Fragmentou o processo criativo (escultura, espelho,
fotografia, pintura, instalação). Fragmentou o espaço (ateliê e
Bienal). Fragmentou o tempo (o esquartejamento de Tiradentes
em 1792, a pintura de Pedro Américo em 1893, a
reinterpretação em 1998).
As pinturas repletas de membros cortados com suas carnes à mostra,
revelam ângulos mais cruéis que a pintura de Pedro Américo e atualizam um
fato histórico cristalizado no imaginário brasileiro.
O espectador ao adentrar a sala branca e asséptica de Adriana Varejão,
repleta de imagens de um único corpo em pedaços, pode experimentar a
sensação de não conseguir se projetar na pintura, já que se trata de uma sala
que reflete um corpo em pedaços. Estes fragmentos são difíceis de serem
identificados como partes de um corpo. Isto poderia ser relacionado como o
corpo social e político brasileiro destroçado, que o espectador não pode ver
nem mesmo por meio dos reflexos de seu próprio corpo ao se aproximar dos
espelhos espalhados pela sala.
O caráter fragmentário da obra de Adriana Varejão; seu processo
criativo, bem como o resultado plástico, fortalece o significado da figura de
Tiradentes esquartejado de Pedro Américo, um ícone da pintura histórica
brasileira.
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Tiradentes esquartejado em Pedro Américo e Adriana Varejão.
Ao realizar um percurso histórico da Figura Humana, contrapondo à
representação da figura inteira versus a fragmentada mediante leitura estética
e comparativa, o estudo demonstrou que as transformações estéticas e formais
sofridas pela temática significaram alterações na iconografia do corpo e da
figura humana.
Tal procedimento encerrou como pano de fundo a História da Arte e da
Pintura Brasileira, testemunhas das variações da temática, bem como das
contradições e do surgimento do fragmento com valor de inteiro e autônomo,
sobretudo, na Arte Moderna.
Em suma, observou-se que o tema da Figura Humana ao longo da
História da Arte e da Pintura permanece sendo representado por meio dessa
dualidade: figura-inteira versus figura-fragmentada, já que ambas as
concepções de representação do corpo humano são essenciais à expressão
artística e pictórica.
Dado o exposto o que distingui ou aproxima as diferentes obras de
pintura observadas no percurso histórico por meio da análise da figura humana
nos diferentes movimentos artísticos é o tratamento conceitual que se
manifesta na forma, caracterizada por aspectos estéticos da representação do
inteiro ou do fragmento.
A obra Tiradentes esquartejado (1893) de Pedro Américo representa
mimeticamente o tema da figura humana, explora a temática por meio das
partes do corpo e se constitui numa imagem composta de fragmentos que
permitem, em alguns momentos, a reconstrução do conjunto. Constatou-se que
os elementos estéticos que podem ser destacados em uma obra-pormenor
(CALABRESE, 1988), podem ser observados quando da análise do tema da
figura humana na obra Tiradentes esquartejado de Pedro Américo.
Ao passo que na obra de Adriana Varejão, Reflexo de Sonhos no Sonho
de outro espelho (Estudo sobre Tiradentes de Pedro Américo) (1998), a análise
da apropriação da imagem de Tiradentes esquartejado de Pedro Américo pela
artista, encontrou elementos, cujo tratamento estético dado à figura humana,
favorece o uso de fragmentos. Contudo, tais fragmentos impossibilitam a
reunião das partes.
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Assim, observamos que as características formais integrantes de uma
obra-fragmento (CALABRESE, 1988) podem ser observadas em parte das
informações estéticas desta obra de Adriana Varejão.
O percurso histórico se mostrou eclético e dinâmico no tocante à
representação da figura humana mesmo se mantendo fiel à observação da
figura humana fragmentada.
O estudo das referidas obras de Pedro Américo e Adriana Varejão
apontou que embora tenham o mesmo assunto, Tiradentes esquartejado,
ambas são caracterizadas por maneiras totalmente distintas quanto à
representação do tema da figura humana fragmentada.
E que Adriana Varejão, embora não confirme esta intenção, ao fazer
uma releitura de Pedro Américo estabelece um diálogo temático e temporal
entre as obras promovendo uma reflexão contemporânea para o fato histórico.
Referências Bibliográficas
CALABRESE, O. A Idade Neobarroca. São Paulo: Martins Fontes. 1988.
CHRISTO, M. de C. V. Pintura, história e heróis no século XIX: Pedro Américo e
“Tiradentes esquartejado”. 2005. 465p. Tese (Doutorado) - UNICAMP, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP.
MILLIET, M. A. Tiradentes: o corpo do herói. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
SARZI-RIBEIRO, R. A. A Figura Humana Fragmentada na Pintura: Tiradentes
esquartejado em Pedro Américo e Adriana Varejão. 2007. 138p. Dissertação
(Mestrado) – UNESP – Instituto de Artes, São Paulo, SP.
VAREJÃO, A. Trabalhos e referências 1992-1999. São Paulo: Galeria Camargo
Vilaça, 1999.
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Currículo Resumido
Mestre em Artes pelo Instituto de Artes/UNESP/SP. Licenciatura Plena em
Educação Artística – Hab. Artes Plásticas – FAAC/UNESP/Bauru/SP. Docente
no curso de Educação Artística e Coordenadora do Grupo de Estudos “O
Corpo na Arte Contemporânea” - FAAC/UNESP/Bauru/SP. Artista Plástica –
aquarelista, gravadora e arte digital. Colunista de Artes Visuais para Internet.