1. Urdimento: s.m. 1) urdume;
2)partesuperiordacaixadopalco,
onde se acomodam as roldanas,
molinetes, gornos e ganchos
destinados às manobras cênicas;
fig. urdidura, ideação, concepção.
etm. urdir + mento.
ISSN 1414-5731
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Número 12
Programa de Pós-Graduação em Teatro do CEART
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
2. URDIMENTO é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação
em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina.
As opiniões expressas nos artigos são de inteira responsabilidade dos autores.
A publicação de artigos, fotos e desenhos foi autorizada pelos responsáveis
ou seus representantes.
A revista está disponível online em www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento
FICHA TÉCNICA
Editores do número: Milton de Andrade e Valmor Nini Beltrame
Comitê editorial: André Carreira (responsável), Isabel Orofino e Vera Collaço
Secretário de Redação: Éder Sumariva Rodrigues (bolsa PROMOP)
Capa: Playing Othello (2009)
Direção: Brígida Miranda e Kerrie Sinclair
Atores: Oto Henrique e Kerrie Sinclair
Fotos: Daniel Yencken [danielyencken@gmail.com]
Impressão: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina - IOESC
Editoração eletrônica: Déborah Salves [salves.deborah@gmail.com] e
Maria Aparecida Silva Alves [aparecidasalves@gmail.com]
Design Gráfico: Israel Braglia [israelbraglia@gmail.com]
Coordenação de Editoração: Célia Penteado [celiapenteado@uol.com.br]
Editado pelo Núcleo de Comunicação do CEART/UDESC
Esta publicação foi realizada com o apoio da CAPES
Catalogação na fonte: Eliane Aparecida Junckes Pereira. CRB/SC 528
Biblioteca Setorial do CEART/UDESC
Urdimento - Revista de Estudos em Artes Cênicas /
Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de
Pós-Graduação em Teatro. - Vol 1, n.12 (Mar 2009) -
Florianópolis: UDESC/CEART
Semestral
ISSN 1414-5731
I. Teatro - periódicos.
II. Artes Cênicas - periódicos.
III. Programa de Pós-Graduação em Teatro.
Universidade do Estado de Santa Catarina
3. UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC
Reitor: Sebastião Iberes Lopes Melo
Vice Reitor: Antonio Heronaldo de Sousa
Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Antonio Pereira de Souza
Diretor do Centro de Artes: Milton de Andrade
Chefe do Departamento de Teatro: Sandra Meyer Nunes
Coordenador do Programa de Pós-Graduação: Vera Regina Martins Collaço
CONSELHO EDITORIAL
Ana Maria Bulhões de Carvalho Edlweiss (UNIRIO)
Cássia Navas Alves de Castro (UNICAMP)
Christine Greiner (PUC/SP)
Felisberto Sabino da Costa (ECA/USP)
Jerusa Pires Ferreira (PUC/SP)
João Roberto Faria (FFLCH/USP)
José Dias (UNIRIO)
José Roberto O’Shea (UFSC)
Luiz Fernando Ramos (ECA/USP)
Márcia Pompeo Nogueira (CEART/UDESC)
Maria Brígida de Miranda (CEART/UDESC)
Maria Lucia de Souza Barros Pupo (ECA/USP)
Mario Fernando Bolognesi (UNESP)
Marta Isaacsson de Souza e Silva (DAD/UFRGS)
Neyde Veneziano (UNICAMP)
Rosyane Trotta (UNIRIO)
Sérgio Coelho Farias (UFBA)
Sônia Machado Azevedo (Escola Superior de Artes Célia Helena)
Soraya Silva (UnB)
Tiago de Melo Gomes (UFRPE)
Walter Lima Torres (UFPR)
4. Conselho Assessor
Beti Rabetti (UNIRIO)
Ciane Fernandes (UFBA)
Eugenia Casini Ropa (Universidade de Bolonha - Ítalia)
Eugenio Barba (Odin Teatret)
Francisco Javier (Universidad de Buenos Aires)
Jacó Guinsburg (ECA/USP)
Juan Villegas (University of California)
Marcelo da Veiga (Universidade Alanus – Alemanha)
Óscar Cornago Bernal (Conselho Superior de Pesquisas Científicas – Espanha)
Osvaldo Pellettieri (Universidad de Buenos Aires)
Peta Tait (La Trobe University)
Roberto Romano (UNICAMP)
Silvana Garcia (EAD/USP)
Silvia Fernandes Telesi (ECA/USP)
Tânia Brandão (UNIRIO)
5. UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina
CEART - Centro de Artes
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO
O PPGT oferece formação em nível de Mestrado, implantado em 2001, e
Doutorado, em 2009.
PROFESSORES PERMANENTES
André Luiz Antunes Netto Carreira
Antonio Carlos Vargas Sant’anna
Beatriz Ângela Vieira Cabral
Edélcio Mostaço
José Ronaldo Faleiro
Márcia Pompeo Nogueira
Maria Brígida de Miranda
Maria Isabel Rodrigues Orofino
Milton de Andrade
Sandra Meyer Nunes
Stephan Arnulfi Baumgärtel
Valmor Beltrame
Vera Regina Collaço
PROFESSORES VISITANTES
Marcelo da Veiga - Universidade Alanus (Alemanha)
Óscar Cornago - Conselho Superior de Pesquisas Científicas (Espanha)
O PPGT abre inscrições anualmente para seleção de candidatos em nível
nacional e internacional. Para acesso ao calendário de atividades, linhas e
grupos de pesquisa, corpo docente e corpo discente, disserta-
ções e teses defendidas e outras informações, consulte o sítio virtual:
http://www.ceart.udesc.br/ppgt
6.
7. Sumário
Apresentação
Processos criativos e o trabalho do ator
Processos de trans – forma – ção nos atos criativos: uma poética na
troca de singularidades
Alexandre Mate
Os seres ficcionais: identidade e alteridade. Exploração-dissecação-
invenção de materiais de atuação
Matteo Bonfitto
Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores
Anne Bogart
Combate cênico e estética da violência no treinamento para a
performance
Kerrie Sinclair
Mitopoese, dramaturgia criativa e o trabalho do ator
Milton de Andrade
Dança, linguagens do corpo e teatralidade
O solo de dança no século XX: entre proposta ideológica e estratégia
de sobrevivência
Eugenia Casini Ropa
A instabilidade do sonho: os gestos da dança contemporânea
Rossella Mazzaglia
Mimo e pantomima
Thomas Leabhart
9
11
21
29
41
53
61
73
81
8. “Ser” um corpo: a impregnação da consciência pelo movimento
Sandra Meyer
Máscara, cena e pedagogia do ator
Copeau e a máscara
José Ronaldo Faleiro
A máscara-objeto no teatro de Bertolt Brecht
Valmor Beltrame
Teatro e gênero
Duas vezes Uma Mulher Só
Maria Brígida de Miranda
Corpo, corpus e corpa: da violência de Goody, de Vinegar Tom
Fátima Costa de Lima
Textos que fazem história
Laudatio de Doutorado honoris causa a Pina Bausch
Eugenia Casini Ropa
A encenação do drama wagneriano
Adolphe Appia
93
101
111
125
133
143
147
9. APRESENTAÇÃO
Este número da Revista Urdimento reúne uma série de textos
sobre temas e conteúdos que o Grupo de Pesquisa “Poéticas Teatrais” vem
desenvolvendo em pesquisas coordenadas por docentes do Departamento
de Artes Cênicas e do Programa de Pós-Graduação em Teatro (PPGT) do
Centro de Artes da UDESC.
Alguns autores, como Matteo Bonfitto e Kerrie Sinclair, estiveram
conosco no decorrer deste ano de 2009 em seminários teórico-práticos
oferecidos à comunidade acadêmica pelo PPGT, no esforço de fortalecer
os vínculos entre a pesquisa experimental, a criação cênica e a pedagogia
teatral. Todos os colaboradores externos, pela propriedade do conhecimento,
nos servem como referência na busca contínua de cooperação que nosso
Programa desenvolve nos últimos anos, tornando-se novos parceiros na
descoberta de uma compreensão viva da cultura teatral.
Os artigos são aqui agrupados de acordo com algumas áreas
de estudo de nosso Programa de Pós-Graduação: processos criativos, o
trabalho do ator, pedagogia teatral, linguagens do corpo, teatro e gênero.
Num espaço reservado a “textos que fazem história”, apresentamos
também nossa homenagem póstuma a Pina Bausch, com a publicação do
laudatio da professora e historiadora italiana Eugenia Casini Ropa, em
ocasião do Doutorado honoris causa concedido pela Universidade de Bolonha
à diretora e coreógrafa alemã, falecida em julho deste ano. Neste espaço de
memória, publicamos também o texto, inédito no Brasil, La mise en scène du
drama wagnérien (1895) do arquiteto e encenador suíço Adolphe Appia (1862-
1928), teórico fundamental no movimento de reteatralização no século XX.
Esperamos que os estudos aqui reunidos ampliem o debate em
torno dos temas abordados e estimulem a realização de novas pesquisas
na área das artes cênicas no Brasil.
Agradecemos a todos que colaboraram na organização deste
número, aos autores, tradutores e bolsistas do PPGT.
Boa leitura!
Milton de Andrade e
Valmor Nini Beltrame
Editores
Março 2009 - N° 12 Apresentação.
Urdimento
10.
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Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre MateMarço 2009 - N° 12
PROCESSOS DE TRANS – FORMA – ÇÃO
NOS ATOS CRIATIVOS: UMA POÉTICA
NA TROCA DE SINGULARIDADES
Alexandre Mate1
[...] quem sabe se o melhor das
obras de arte não surge do imperfeito
domínio do material como uma primícia,
uma aparição súbita, que se desfaz assim
que se torna tecnicamente disponível.
Theodor ADORNO. Palavras e sinais.
Segundo Faiga Ostrower, em Criatividade e processos de criação (1984),
o homem cria não porque quer, mas porque necessita. Em sendo intrínseca à
existência a necessidade de criação estética, afirma ainda a autora que nada
existe que não seja forma. Circundado e envolvido por formas (materiais ou
imateriais, artísticas ou não), o homem precisa, também, dar forma às suas
1
Professor do
Instituto de Artes
da Universidade
Estadual Paulista
Julio de Mesquita
Filho – Campus São
Paulo. Doutorado
em História Social
– FFLCH/USP.
Pesquisador de
teatro e do Núcleo
Nacional de Teatro
de Rua. Autor do livro
Buraco d’Oráculo:
uma trupe paulistana
de jogatores
desfraldando
espetáculos pelos
espaços públicos da
cidade. São Paulo:
publicação do Grupo,
2009. Trinta anos
da Cooperativa
Paulista de Teatro:
uma história de
tantos (ou mais
quantos, e sempre
juntos) trabalhadores
fazedores de teatro.
São Paulo: IMESP,
2009 (no prelo).
Resumo
A reflexão aqui desenvolvida acerca
do processo criativo apresenta algumas
especulações quanto: ao conceito da forma;
a algumas distinções entre símbolo e
alegoria;àimportânciadosacasosnacriação
artística; ao homem ser um ressignificador
(homo symbolicum e homo estheticus); à
sofisticação pressuposta pela forma teatral;
ao fato de a poética ocorrer no encontro
entre artistas e público, na junção de
múltiplas singularidades que concretizam
uma nova e irrepetível relação.
Palavras-chave: processo de criação
e teatro, símbolo/alegoria/forma na
criação, teatro como processo criativo.
Abstract
The present study on the creative
process develops some speculations: on
the concept of form; on a few distinctions
between symbol and allegory; on the
significance of hazard during artistic
creation; on man as a re-signifier (homo
symbolicum e homo estheticus); on the
presupposed sophistication of theatrical
form; on the occurrence of poetics at the
encounter between public and artists, at
the joint of multiple singularities which
realize new and singular rapports.
Keywords: creative process and
theater, symbol/allegory/way of
creation, theater as a creative process.
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Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre Mate Março 2009 - Nº 12
necessidades, repeti-las ou romper com cadeias delas e a ele impostas pelos
mais variados modos e expedientes. Por esta senda, no indivíduo confrontam-
se, ainda segundo Ostrower “(...) dois pólos de uma mesma relação: a sua
criatividade que representa as potencialidades de um ser único, e sua criação
queseráarealizaçãodessaspotencialidadesjádentrodoquadrodedeterminada
cultura.” (OSTROWER, 1984, p. 5)
Toda criação pressupõe a ativação e realização de um processo
complexoquecompreendeotrânsitoentreoimaginareasuaoperacionalização
em forma, ou por meio de formas. Deflagrado pelo imaginar – uma ideia, uma
aparição (epifânica ou não), uma prefiguração –, a trilha criativa pressupõe a
transformação dos signos imaginados em símbolos e alegorias que precisam
se materializar, os quais, em seu deslocamento e errância (individual/
coletiva), abriguem o signo ou o conjunto inicial a partir do qual ele se
reformou ou se conformou.
Apalavra-conceitoremeteamuitosartistaseteóricos.Delestodos,para
descortinar terrenos e territórios, evocar uma obra de José Lino Grünewald,
sem nome, cujo assunto, imbricado à forma, pode ser surpreendente.
forma
reforma
disforma
transforma
conforma
informa
forma2
Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, em Procura da
poesia: “O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.” A criação, enquanto
processo, pressupõe a transformação do pensado em matéria, em linguagem
(ou forma) sígnica: visual, pictórica, sonora, corporal. Reiterando: o sonhado (e
internalizado apenas no ser) não basta, é preciso transformá-lo em fenômeno
comunicacional, em relação entre sujeitos distintos interrelacionados pela obra.
Novamente com Drummond, em outro momento do já citado poema: “Penetra
surdamente no reino das palavras [que são signos]./ Lá estão os poemas
[formas em potência] que esperam ser escritos./ Estão paralisados, mas não
há desespero,/ há calma e frescura na superfície intata./ Ei-los sós e mudos, em
estado de dicionário.” (DRUMMOND de ANDRADE, 1973, p. 138-9).
Com relação ao conceito de signo, símbolo e alegoria transito aqui,
fundamentalmente, com as reflexões do filólogo Mikhail Bakhtin (1992),
para quem todo signo é histórico e ideológico. O que se pensa, se manifesta,
2
Disponível em
www.jayrus.art.br/
Apostilas/
LiteraturaBrasileira/
VanguardasPoeticas/
Jose_Lino_
Grunewald_poesia.htm
Acesso em 21/07/2009,
às 12h01.
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Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre MateMarço 2009 - N° 12
se atribui, se representa, se comunica... é mediado por signos criados pelos
homens ao longo da História. No concernente, ainda, às questões sígnicas,
apesar de haver algumas diferenças, é bom apresentar algumas considerações
de Arnold Hauser (s/d) segundo as quais o símbolo representaria a expressão
indireta de um significado impossível de ser dado diretamente, posto sua
natureza ser próxima ao indefinível e ao inesgotável.
A arte e as relações humanas desenvolvem-se por intermédio dos
símbolos; entretanto, durante o movimento Simbolista francês, ocorrido na
França, em fins do século XIX, o trabalho com a imaginação simbólica foi
elevada ao paroxismo. Para Charles Baudelaire, no poema Correspondências a
natureza era “[...] um templo em que vivas pilastras/ deixam sair às vezes
obscuras palavras;/ o homem a percorre através de florestas de símbolos/
que o observam com olhares familiares.” (BAUDELAIRE, 1995, p. 12).
Para seu contemporâneo Stéphane Mallarmé (um dos chamados “três reis
magos da poética moderna”) a alegoria era concebida como tradução de
uma idéia abstrata apresentada por meio de uma imagem concreta. Assim,
segundo o poeta, ao se descobrir a idéia contida por “detrás” da alegoria
poder-se-ia lê-la e traduzi-la, posto que a traduzibilidade – diferentemente
do símbolo – seria intrínseca à sua constituição. Ainda segundo o conceito de
alegoria, afirma Antonio Candido (1987): “Considero alegórico o modo que
pressupõe a tradução da linguagem figurada por meio de chaves uniformes,
conscientemente definidas pelo autor e referidas a um sistema ideológico.
Uma vez traduzido, o texto se lê como um segundo texto, sob o primeiro,
e se torna tão claro quanto ele. Está visto portanto, que o deciframento do
código é altamente convencional, em relação a outros modos de ocultação de
sentido, como o simbólico”.3
Em oposição à alegoria, o símbolo reuniria a idéia e a imagem
resultada em uma unidade indivisível. Assim, a transformação da imagem
arrastaria consigo a metamorfose da idéia, na medida em que o conteúdo
de um símbolo não poderia ser traduzido de outro modo. Dentre
os vários textos que discutem o símbolo, nessa perspectiva, Hegel
(s/d, p. 16) afirma:
O símbolo é algo de exterior, um dado direto e que diretamente
se dirige à nossa intuição: todavia, este dado não pode ser considerado e
aceite tal como existe realmente, para si mesmo, mas num sentido muito
mais vasto e geral. É, assim, preciso distinguir no símbolo o sentido e a
expressão. Aquele refere-se a uma representação ou um objeto qualquer
que seja o seu conteúdo; esta constitui uma existência sensível ou uma
imagem qualquer.
3
CANDIDO, Antonio.
Educação pela noite.
São Paulo: Ática,
1987, p. 85.
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Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre Mate Março 2009 - Nº 12
Antes de tudo, o símbolo é um sinal. Mas na sua simples
presença, o laço que existe entre o sentido e a expressão é puramente
arbitrário. Esta expressão que aqui temos, esta imagem, esta coisa
sensível representa tão pouco por si mesma que desperta em nós a idéia
de um conteúdo que lhe é completamente alheio, com o qual ela não tem,
para falar com propriedade, nada de comum. (...) A arte implica, pelo
contrário, uma relação, um parentesco, uma interpenetração concreta
de significação e de forma.
Emsendooartistaumcriadordesímboloscujanaturezamanifestatória
fundamenta-se em um permanente processo de troca [simbólica], o que
dele emana intenta para se legitimar, enquanto fenômeno, o deslocamento
absolutamente necessário no sentido da busca para a formalização da coisa-
ideia (enquanto signo ou sinal). Michel de Certeau (1994) sobretudo em A
invenção do cotidiano, afirma que a andança ou o caminhar – em qualquer uma
de suas possibilidades de realização – expressam a falta de lugar. Concebido
como errância permanente, a materialidade do ato criativo – a partir do
ausente à procura de um próprio – converte permanentemente o não-lugar
em espaço praticado, em espaço de concretude do sonho, seja ele inalcançável,
alcançado, vislumbrado...
O homem recebe pela cultura um caudal de signos fixados, definidos,
ideológicos, mas, por necessidade de criar, ressignifica-os em partilha virtual
ou vislumbrando uma partilha real. Michel de Certeau, na obra já citada,
cria o conceito de re-employ (reutilização). Desse modo, ninguém, por mais
alienada que possa parecer sua atitude, deixa de recriar o recebido, inclusive
os signos artísticos.
A transformação da página em branco do escritor (hoje, basicamente,
substituída pela tela vazia do computador); a outra tela sem qualquer “mácula”,
traço ou risco do pintor; o bloco de pedra ou a resina informes para o escultor;
o palco (ou espaço) vazio do artista ligado às artes da representação; as
“palavras que esplendem na curva da noite” “palavras buscando canal” para o
poeta (mais uma vez parafraseando Drummond) intentam a errância do artista
por entre os caminhos da invenção, da criação, da imaginação, da troca...
O resultado dos processos de criação – a partir dos valores, da cultura,
de contextos amplos e restritos, compromissos e filiações estético-políticas...
– materializa e potencializa os sentidos, o trânsito com as metáforas, com o
caráterpolissêmicodaarte...Nessaperspectiva,oprocessocriativopotencializa
e harmoniza a necessidade e a errância do homo symbolicum – contemplando
o homo sapiens, o homo faber e o homo ludens – até o “tradutor de polissemias”
homo estheticus. Este último, mistura (in)orgânica dos anteriores, processa e
15. U
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rdimento
Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre MateMarço 2009 - N° 12
reinventa para comunicar-se, ainda que não seja de todo entendido. Aliás,
entender, por sua dialética intrínseca, pressupõe um afastar-se, para enxergar
melhor, a partir de novos ângulos, desopacizadamente. O processo criativo,
portanto, instaura cabal e formalmente novos modos de ver.4
O processo criativo pressupõe, além da capacidade de ver, o
desenvolvimento e ampliação da percepção de todo tipo de intercambiamento
possível entre o conceber, o produzir, o colocar em circulação e a recepção da
obra. Mesmo que não exista uma apreensão total de cada etapa percorrida
pelo criador, todo sujeito se faz na História, por meio da qual recebe, apreende
e modifica, permanentemente, a si mesmo e aos outros interrelacionalmente.
No concernente à arte propor mudanças, tanto na mentalidade quanto no
comportamento, não são poucos os teóricos que pensam a arte como uma
potência (tantas vezes vulcânica) que intenta a transformação e a mudança.
Do conjunto absolutamente significativo de reflexões de Mario Pedrosa, dois
textos de pequena extensão, são alegoricamente significativos nesse particular:
Crianças na Petite Galerie e Frade cético, crianças geniais.5
À luz do exposto, do mesmo modo que alguns critérios apriorísticos
deflagram e norteiam uma trajetória de andança, é fundamental que nesse
caminhar se esteja atento e aberto às potências das descobertas e dos
achados que vão se dando no sentido da construção, individual ou coletiva,
do objeto estético. Reformuladamente, se no processo de criação, a ideia tem
certa (i)materialidade ao nascer, no entrechoque de sua realização signica a
materialidade ocorre potencializada pelo acaso. No acaso dá-se aquilo que
pode ser nomeado como práxis vital. Intrínseco ao processo criativo não
fechado, mas permeável ao acolhimento das improvisações em percurso, a
manifestação da práxis vital é estimulada, buscada e mesmo provocada nas
artes coletivas, como a teatral.
Ainda com relação à prática da práxis vital, nos processos de ensaio,
independentemente do resultado final buscado, trata-se de um mecanismo que
concerne ao processo, mas cujo procedimento permanece apenas nas obras
performáticas ou populares. Acresça-se a isso, ainda, que a obra com partitura
aberta e repleta de interstícios preenchíveis em processo de troca explícita
ou absolutamente fechada, durante sua exibição (compreendendo o fenômeno
teatral), que é o espetáculo, compreende sempre imponderabilidades.
Intrínseco ao processo de criação, certa imponderabilidade é
necessária e inevitável. O não conseguir abarcar e organizar o ato criativo
cientificamente – donde sua distinção àqueles do cientificismo – implica o
trânsito com o poético. Nesse trânsito, a invenção – e a não subsunção do
artista aos normativismos, às modas, aos “diz que”, ao simulacro – caracteriza-
4
Expressão cunhada
por John BERGER.
Acerca do autor,
dentre outros,
cf. Modos de ver.
Barcelona: Editorial
Gustavo Gili, S.A., s/d.
5
PEDROSA,Mario. Dos
murais de Portinari
aos espaços de
Brasília.
São Paulo:
Perspectiva,
respectivamente,
p. 71; p. 75.
16. U
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Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre Mate Março 2009 - Nº 12
se em uma das únicas probabilidades do não arrebatamento da aura – de que
fala Benjamin (A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica) –, e que
se coloca no lugar do original... Segundo Ernst Fischer (1981), ao criar o
artista precisa também
(...) dominar, controlar e transformar a experiência em
memória, a memória em expressão, a matéria em forma. A emoção
para um artista não é tudo; ele precisa também saber tratá-la,
transmiti-la, precisa conhecer as regras, técnicas, recursos, formas
e convenções com que a natureza – esta provocadora – pode ser
dominada e sujeitada à concentração da arte. A paixão que consome
o diletante serve ao verdadeiro artista; o artista não é possuído pela
besta-fera, mas doma-a.
A tensão e a contradição dialética são inerentes à arte;
a arte não só precisa derivar de uma intensa experiência da
realidade como precisa ser construída, precisa tomar forma através
da objetividade.6
Em teatro, que é um trabalho coletivo por excelência, para criar
(ou dar forma a) um espetáculo, performance ou exercício, em qualquer
etapa da trajetória compreendida pelo processo de criação, é preciso estar
atento ao que é construído pelo conjunto de criadores. Na convergência
das singularidades, permeada por todo tipo de imprevistos, ocorre o
domínio da própria realidade, que se reconforma: parida e alimentada
no coletivo. De cada “máquina de imaginância”, as ideias individuais e
coletivas, materializam-se na insustentável leve-aspereza do grupo e ganha
no espetáculo sua função fenomênica. Cada dia, querendo transformar-se
em obra – repetido e ensaiado tantas vezes –, o espetáculo ganha novas
tessituras, dissonâncias, imprevisibilidades e a ele se atribui múltiplos e
diferenciados sentidos pelo conjunto de espectadores. Assim, a poética do
processo criativo em teatro realiza-se no e durante cada espetáculo. Poética
da efemeridade e do não repetível. Espécie de poética do “não-traduzível”.
Tradução (do latim translatio), palavra desafiante, cujas raízes semânticas
compreendem também traição e difamação (do inglês traduction) e aproxima-
se, ainda, das de tradição.
Na perspectiva defendida por Fayga Ostrower, e aqui já apontada,
o ato da criação – que compreende intuição, percepção e pressupõe o
estabelecimento de nexo intrínseco entre o sentir e o entender – corresponde
a um formar e a dar forma a alguma coisa (os signos). Forma é a expressão
resultante e materializada, por intermédio da unidade dialética – repleta de
tantas contradições –, entre aquele que cria e o criado. “Na mesma ordem de
6
FISCHER, Ernst.
A função da arte. In:
A necessidade da
arte. Rio de Janeiro:
Zahar Editores,
1980, p.14.
17. U
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rdimento
Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre MateMarço 2009 - N° 12
pensamento, entendemos o fazer e o configurar do homem como atuações de
caráter simbólico. Toda forma é forma de comunicação ao mesmo tempo em
que forma de realização.” (OSTROWER, 1984, p. 5)
Instaurar um fenômeno de comunicação e de troca, decorrente da junção
de diversos processos de criação individuais que se agrupam, por intermédio
da forma compreendida pelo espetáculo teatral, demanda, sobretudo do
criador, entender as maneiras pelas quais o conhecimento possa ser construído
e partilhado em sua dimensão fenomênica. Na criação artística, mas não
exclusivamente nela, o sujeito relaciona-se com outros sujeitos e com o objeto a
ser transformado. Na linguagem teatral o criado, decorrente de procedimentos
para contornar os embates, concerne à busca pela melhor forma, e este é repleto
de densos processos de pesquisa, que não se conclui jamais...
Mas o que vem a ser um espetáculo teatral?
Eletemmatériaporquefeitoporatores,quetantasvezesfingemseroque
não são; é iluminado de modo a buscar e evidenciar efeitos plásticos, emocionais
e psicológicos; ganha inserções musicais para instaurar climas emocionais, de
expectativa, para chamar a atenção de contextos históricos; conta uma história
repleta de iscas para “prender” o espectador, levá-lo a formular hipóteses, torná-
lo cúmplice... A sofisticação e complexidade da obra teatral – cujo resultado
é sempre inconcluso (posto que o espetáculo é sempre novo a cada dia) –,
dentre outras, pretende transportar emocionalmente, instigar racionalmente,
distender comicamente. O espetáculo criaria uma espécie de fratura, no tempo
e no espaço, na vida cotidiana. Por meio desse “aprisionamento libertatório”
(entra na obra ou deixa arrastar-se por ele quem quer), seu principal propósito
talvez fosse falar diretamente ao espírito racional, sensível. Assim como um
texto provocador, o espetáculo pode despertar sentimentos dos mais diversos
matizes e rigorosamente repleto de antagonismos.
Elaborar uma forma sofisticada, complexa e passível de tantas entradas
interpretativas requer certa epistemologia. Caio Prado Júnior, referindo-se
às linhas epistemológicas, em Dialética do conhecimento (1980) desenvolve
algumas reflexões, aqui apresentadas de modo esquemático, vislumbrando
essencialmente uma apreensão didática.
- O empirismo ou positivo lógico:
A prática condiciona o pensamento
e este dirige a prática.
Pelo fato de o conhecimento, de
certo modo, ser concebido como
neutro, o observador transforma o
conhecimento em realidade.
18. U
18
rdimento
Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre Mate Março 2009 - Nº 12
- O idealismo:
O pensamento elabora o
conhecimento, que informa o
pensamento.
Nessa perspectiva, o conhecimento
é carregado de abstração, é
valorativo, isto é: manifesta-se no
pensamento.
O conhecimento não é mais passível
de ser imaginado como neutro,
carrega ideologia.
- O dialético (práxis):
A prática condiciona o pensamento,
que elabora o conhecimento, que
informa o pensamento que dirige
a prática.
Nessa proposição, a prática é
concebida como ponto de partida
e de chegada da construção do
conhecimento.
Por sua natureza (junção de tantas outras linguagens para criação
do espetáculo) e “realidade” (apresentação de uma obra, com certo estatuto
de verdade e de substituição da vida), a criação de um espetáculo teatral
pressupõe, na condição de processo, certa epistemologia. Portanto, o poético
relaciona-se grandemente com os procedimentos adotados, que tendem a
dar suporte, não apenas material, à obra. Processos e procedimentos não
sendo abstrações são escolhidos e utilizados pelo conjunto que se organiza
para a criação da obra.
De modo bastante grosseiro, dentre tantas outras possibilidades,
a adoção de certa epistemologia pode estar rigorosamente plantada em
interesses comerciais; outra na tentativa de, por meio do simulacro e de
tratamento ilusionista, intentar primordial e essencialmente a identificação
emocional; uma última, em intentar a capacidade crítica e, por meio desta,
plantar necessidades de entender as relações que regem o “outro mundo”:
aquele para além da fratura proposta pela forma ficcional. Em outro
contexto, refletindo acerca das interrelações da história e da memória,
afirma Antonio Torres Montenegro:
Na tensão da necessidade de inventar outros lugares, sendas,
veredas, é que se criam formas de resistência, instituindo imaginários
capazes de estabelecer e desenvolver as potencialidades contidas nos
limites do engendramento dos desejos não-permitidos; é no próprio
labirinto da modernidade aprisionada que se busca tecer os fios,
resgatar outras formas de esculpir a realidade que se presentifica
cotidianamente.7
7
MONTENEGRO,
Antonio Torres.
"Memória e história",
In: MARTINS, Angela
Maria et alii. (coord.).
Revista Idéias – O
tempo e o cotidiano
na história. São
Paulo: FDE. Diretoria
Técnica, 1988, p.10.
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19
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Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre MateMarço 2009 - N° 12
Recentemente, participando de um processo de discussão acerca
de um determinado espetáculo, a diretora da obra, convencida de certos
procedimentos (bastante difundidos entre tantos criadores), afirma: “Quando
eu crio, me tranco na sala de ensaio, me isolo do mundo real. O mundo exterior
se apequena, deixa de existir... No processo de criação não importa a matéria
de que sou feita. Importa apenas aquilo que se cria na sala de ensaio. Para criar
é preciso isolar-se da vida, da realidade!” Evidentemente, teses dessa natureza
plantam-se e são defendidas por muitos. Acreditam estes que ao “apartar-se” do
mundo este já não está presentificado dentro do ser. Perpassa por tal estado de
alienação ideológica certa apologia àquilo que tantos afirmam ser um abstrato
“estado puro da criação”. Espécie de encontrar-se ao fugir de si (alusão a poema
Autopsicografia de Fernando Pessoa), a criação, como fratura do real, assenta-se
sobretudo no conceito de genialidade e alimenta-se de certo estado autista.
O poético na criação, penso, é exatamente a consciência de que por
meio também da arte é possível interferir no mundo, reiventando-o. Pelos
escaninhos de uma tal concepção, a obra que sai da vida, volta a ela estetizada;
portanto, no caso da linguagem teatral, a obra é apenas ponto de partida de
um processo repleto de tantos imprevistos...
À luz do exposto, e por absolutamente nada estar apartado do chão da
história, o estético pressupõe uma escolha, também, de natureza epistemológico-
política. Por meio das mediações que a arte propõe e dos processos adotados em
sua construtura e partilha, pode-se escolher o modo como se pensa o poético e
como este deva se expandir pelo mundo a partir das escolhas que se fez.
Para terminar, quando se vê tudo o que está por aí, sobretudo na
Universidade, aninho-me no universo abissal de Clarice Lispector, tão repleto
de múltiplos sentidos. Alimento-me, então de formas como:
Acontece que eu achava que nada mais tinha jeito. Então vi
um anúncio de uma água de colônia da Coty, chamada Imprevisto. O
perfume é barato. Mas me serviu para me lembrar que o inesperado
bom também acontece. E sempre que estou desanimada, ponho em mim
o Imprevisto. Me dá sorte.8
Referências bibliográficas
ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia completa e prosa – volume único. Rio de
Janeiro: Companhia José Aguilar Editora, 1973.
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. São Paulo: Círculo do Livro, 1995.
BERGER, John. Modos de ver. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, S.A., s/d.
8
LISPECTOR, Clarice.
Carta para Olga
Borelli. Rio de
Janeiro, 11 de
dezembro de 1970.
20. U
20
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Processos de trans - forma - ção nos atos criativos... Alexandre Mate Março 2009 - Nº 12
CANDIDO, Antonio. Educação pela noite. São Paulo: Ática, 1987.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes do fazer. 2a ed.
Petrópolis: Vozes, 1996.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 6ªed. São Paulo:
Hucitec, 1992.
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 8ªed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
HAUSER, Arnold. História social da literatura e das artes. São Paulo:
Mestre Jou, s/d, 2v.
HEGEL, Georg W.F. Estética: a arte simbólica. Lisboa: Guimarães Editores, s/d.
MONTENEGRO, Antonio Torres. “Memória e história”, In: MARTINS,
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São Paulo: FDE. Diretoria Técnica, 1988.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1984.
PRADO Junior, Caio. Dialética do conhecimento. 6ªed. São Paulo: Brasiliense, 1980.
21. U
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rdimento
Os seres ficcionais: identidade e alteridade... Matteo BonfittoMarço 2009 - N° 12
OS SERES FICCIONAIS: IDENTIDADE E ALTERIDADE –
EXPLORAÇÃO-DISSECAÇÃO-INVENÇÃO
DE MATERIAIS DE ATUAÇÃO
Matteo Bonfitto1
Semelhante às oscilações e flutuações que podem permear a dinâmica
do olhar, que se forma a partir da combinação muitas vezes instável, entre
percepção e cognição, o presente artigo envolverá, ao mesmo tempo, a
descrição de um seminário teórico-prático ministrado no Centro de Artes
(CEART)daUniversidadedoEstadodeSantaCatarina(UDESC)noprimeiro
semestre de 2009, elaborações geradas por outras, análogas experiências, e
percepções que emergirão do ato de escrever, que possibilitará, espero, uma
revisão do supostamente já sabido.
O referido seminário deveria relacionar a produção de seres ficcionais
com as tensões entre identidade e alteridade. A fim de tentar materializar a
consistência que permeou tal evento, percorrerei alguns fatos e elaborações que
serviram como suporte poético e conceitual nesse caso. Pois bem, comecemos
então pelos seres ficcionais.
Dos seres ficcionais à exploração de materiais
Em Pavis, por exemplo, nos deparamos com uma reflexão que tenta
abarcar as transformações históricas da assim chamada ‘personagem’, das
máscaras gregas até o seu funcionamento enquanto actante produtor de
Resumo
O presente artigo busca examinar
algumas conexões existentes entre
os seres ficcionais e as tensões entre
identidade e alteridade. Para esse fim,
diversas referências são utilizadas,
desde estudos teóricos até experiências
práticas vivenciadas em primeira pessoa.
Palavras-chave: atuação, identidade,
alteridade.
Abstract
This article tries to examine
some existent connections between
fictional beings, identity and
alterity. In order to do so, different
references are used, from theoretical
studies to first-hand practical
experiences.
Keywords: acting, identity,
alterity.
1
Matteo Bonfitto
é ator, diretor, e
pesquisador teatral.
Formado pela Escola
de Arte Dramática
da USP, pelo DAMS
(Departamento de Arte,
Música e Espetáculo)
da Universidade
de Bologna, Itália
(graduação), pela
Escola de
Comunicações e
Artes ECA - USP
(mestrado), e pela
Royal Holloway
University of London
(doutorado). Além
de vários artigos
sobre o trabalho
do ator, publicou
O Ator Compositor
(Perspectiva, 2002),
A Cinética do Invisível.
Processos de Atuação
no Teatro de Peter Brook
(Perspectiva, 2009),
e é um dos autores
de O Pós-Dramático
(Perspectiva, 2009).
Leciona atualmente no
Depto de Artes Cênicas
da Universidade
Estadual de
Campinas
(UNICAMP).
22. U
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Os seres ficcionais: identidade e alteridade... Matteo Bonfitto Março 2009 - Nº 12
signos, passando por sua individualização na dramaturgia burguesa, por sua
tipificação na Commedia Dell’Arte, por sua dissolução nos dramas simbolistas,
pela desmontagem da personagem em Brecht, pelo seu recentramento no
surrealismo, etc... .2
Dessa forma, o estudioso francês aborda a personagem
em sua dimensão semântica assim como em sua dimensão semiótica. Sem
pretender desconsiderar ou minimizar a importância de tal abordagem, creio,
como pesquisador e como artista, que há outros modos de apreensão dos seres
ficcionais que podem gerar estímulos consistentes em termos criativos.
Em O Ator Compositor,3
proponho, a partir da noção de actante – tudo
aquilo que age, atua – a diferenciação entre três categorias de seres ficcionais.
A utilização do termo ‘seres ficcionais’ nesse caso não é absolutamente casual.
Tal escolha pretende atingir um horizonte mais amplo do que aquele associado
ao termo ‘personagem’, frequentemente relacionado a indivíduos ou tipos
humanos. De fato, quando pensamos em seres ficcionais, podemos considerar
a possibilidade de lidar com ‘seres’ que não são simplesmente indivíduos ou
tipos, mas também com criações-composições poéticas que são funcionais
às estruturas narrativas produzidas em cada processo criativo. Bastaria
escolher como referência, por exemplo, fragmentos de textos dramatúrgicos
produzidos pelo dadaísmo, surrealismo ou pelo expressionismo para constatar
tal fato. Ou poderíamos ainda considerar exemplos extraídos de uma grande
variedade de manifestações cênicas contemporâneas, do teatro experimental
ao teatro-dança e à performance. Foi o contato com tais manifestações, somado
às experiências vividas como ator que propiciaram a elaboração das categorias
mencionadas acima, nomeadas, respectivamente, actante-máscara, actante-
estado, e actante-texto.4
Seguindo tal elaboração, o actante-máscara envolve o que podemos
chamar de personagem-indivíduo e personagem-tipo, as quais têm como
característica o fato de serem referencializadas e temporalizadas. Ou
seja, tais personagens são claramente situadas e oferecem parâmetros
contextuais, psicológicos e sociológicos de reconhecimento. Na medida em
que tais seres ficcionais sofrem processos de modalização, passando assim
a serem definidos não somente a partir do que eles ‘fazem’, mas também a
partir do que ‘querem fazer’, ‘podem fazer’, ‘sabem fazer’ e ‘devem fazer’,
eles podem ser destemporalizados e ter, assim, a própria funcionalidade
comprometida. O actante-estado, segunda categoria referida acima, seria
um produto de tais processos. Já o actante-texto emergiria de modalizações
ainda mais acentuadas, que podem provocar o desaparecimento da intriga
e a transferência para o texto dos predicados que contribuem para a
constituição da personagem enquanto sujeito. As manifestações cênicas
contemporâneas, assim como a dramaturgia produzida nas últimas décadas
oferecem inúmeros exemplos de actantes-estado e actantes-texto. Enquanto
2
Ver Pavis,
Patrice; verbete
‘Personagem’,
in Dicionário de
Teatro. São Paulo:
Perspectiva, 2007,
pp. 285-289.
3
Bonfitto, Matteo.
O Ator Compositor.
São Paulo:
Perspectiva, 2002.
4
Ver Bonfitto, obra
citada, pp. 127-137.
23. U
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Os seres ficcionais: identidade e alteridade... Matteo BonfittoMarço 2009 - N° 12
Uma Noite Antes da Floresta (La Nuit Juste Avant Les Forêts) de Bernard-
Marie Koltès pode ser vista como uma obra que tem como eixo um actante-
estado, Auto-Acusação (Self-Accusation) de Peter Handke contém aspectos
que estão relacionados ao actante-texto.
As elaborações descritas acima foram mais tarde desdobradas e
ampliadas. Entre 2002 e 2006, graças a uma bolsa concedida pela CAPES,
puder viver experiências criativas com três atores de Peter Brook - Yoshi
Oida, Sotigui Kouyaté e Tapa Sudana. Foi através do contato direto com as
abordagens desenvolvidas por esses atores sobre a Storytelling (Arte de Contar
Histórias) que a ampliação mencionada acima se deu. Longe de ser uma forma
expressiva restrita ao universo infantil, as explorações da storytelling feitas por
eles e por Brook envolvem práticas interculturais que geram possibilidades de
criação de seres ficcionais, as quais representam uma ampliação do horizonte
criativo presente no assim chamado Ocidente, onde ainda prevalece de maneira
consistente as abordagens construídas por Stanislavski, Brecht, Artaud,
Grotowski e Barba.
As práticas desenvolvidas por Brook e seus atores associam de maneira
intrínseca os seres ficcionais aos materiais de atuação. Tal associação busca
materializar, por sua vez, de diversos modos e em vários níveis - experiências - e
nesse sentido pode-se reconhecer uma analogia entre as práticas desenvolvidas
no CICT5
e qualidades apontadas, por exemplo, por Walter Benjamin em O
Narrador.6
Independentemente das especificidades históricas e contextuais, a
produção de experiências representa o elo que une esse escrito de Benjamin
e as explorações da storytelling, tal como desenvolvida pelo diretor inglês
e seus atores. No caso de Brook e de seus atores, no entanto, a experiência
não é examinada a partir de seus resultados expressivos, mas sim como um
objetivo que deve ser gradualmente perseguido de maneira específica em
cada processo criativo, e que emerge da ligação entre os seres ficcionais e os
materiais de atuação. A fim de desdobrar a reflexão em curso, examinemos
agora alguns aspectos envolvidos nessa ligação para em seguida tecer algumas
considerações sobre a experiência.
Em Brook os seres ficcionais têm um caráter absolutamente
processual e tal fato abre espaço para um campo aberto de exploração de
materiais. Em O Ator Compositor reconheço a importância dos materiais
e nesse sentido proponho uma diferenciação entre material primário
(corpo), material secundário (ação física) e materiais terciários (elementos
constitutivos da ação física).7
Os materiais terciários envolvem tanto aspectos
do aparato psicofísico do ator (memória, imaginação, etc...) quanto estímulos
que podem ser utilizados no processos criativo, tal como imagens, textos,
objetos, sonoridades, etc... . Os modos de exploração e de articulação de tais
5
CICT (Centre
Internacional de
Création Théâtrale)
é o nome dado ao
centro de pesquisas
teatrais dirigido por
Brook em Paris
desde 1974.
6
Benjamin, Walter;
‘O Narrador.
Considerações
sobre a obra de
Nikolai Leskov’, in
Magia e Técnica, Arte
e Política: ensaios
sobre literatura
e história da cultura.
São Paulo: Brasiliense,
1994, pp. 197-221.
7
Ver Bonfitto, obra
citada, pp. 1-20.
24. U
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Os seres ficcionais: identidade e alteridade... Matteo Bonfitto Março 2009 - Nº 12
materiais constituem o modus operandi do ator. Desse modo, as experiências
com os atores de Brook geraram uma ampliação de possibilidades, na medida
em que revelaram diferentes percursos de articulação desses materiais.
Considerando os limites deste ensaio, não cabe aqui uma descrição
detalhada de tais processos. De qualquer forma, pode-se dizer que os modos
de exploração dos materiais colocados em prática pelos atores de Brook
atravessam um percurso constituído por várias etapas, dentre elas a de
‘ruptura’, ‘re-composição’, e ‘naturalização de materiais’8
. A ampliação referida
acima está relacionada sobretudo às múltiplas funções que os materiais podem
exercer na criação de seres ficcionais. A percepção dessas múltiplas funções
fez com que eu reconhecesse em termos práticos que os materiais de atuação
– me refiro aqui aos materiais terciários e mais especificamente aos estímulos
utilizados durante os processos criativos – não têm necessariamente um valor
em si, mas podem ser desdobrados, dissecados, re-significados, inventados,
a partir das abordagens, a partir dos olhares que são lançados sobre eles, a
partir da atitude que temos ao ‘escavar’ tais materiais. E aqui chegamos na
tensão entre identidade e alteridade.
A construção de experiências: identidade e alteridade
Tomemos como exemplo um bastão. Posso explorar esse material
fazendo com que ele adquira diferentes significados. Ou seja, posso re-
significá-lo fazendo com que ele se ‘transforme’ em uma espada, em uma
caneta, em um varal, um cavalo, etc... . Mas, ao mesmo tempo, posso fazer
com que ele seja um elemento que me faça assumir posturas inusitadas,
que me faça experienciar tensões não-familiares, e assim, me faça perceber
possibilidades expressivas antes desconhecidas. Tais processos foram
vivenciados em um workshop dirigido pelo ator balinês Tapa Sudana, que
será brevemente descrito a seguir.
Os bastões, nessa ocasião, eram utilizados em determinados
momentos como objetos vazios, e podiam, assim, ser continuamente
transformados. De qualquer maneira, um outro tipo de exploração foi
crescentemente desenvolvida durante esse processo. Inicialmente o trabalho
com o bastão gerou muitas dificuldades, uma vez que nós, os participantes,
deveríamos repetir seqüências fixas de movimentos. Além de funcionarem
como mediadores entre o corpo e o espaço, nesse caso uma sala de ensaios,
os bastões agiram como ‘mestres’, tal como referido por Sudana. Em outras
palavras, os bastões representaram um meio através do qual o indivíduo
pode crescer fisicamente, espiritualmente, e intelectualmente. De fato, corpo,
emoção e pensamento constituem o ‘TRI BUANA’ (‘três mundos’) conceito
explorado por Sudana em seu trabalho como ator.
8
Descrevo a
exploração de
materiais, tal como
desenvolvida por
Brook e seus atores,
em A Cinética do
Invisível. Processos
de Atuação no Teatro
de Peter Brook, 2009.
25. U
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Os seres ficcionais: identidade e alteridade... Matteo BonfittoMarço 2009 - N° 12
Conforme as sequências de movimentos eram praticadas, diferentes
níveis de dificuldade emergiram. Dessa forma, o bastão se tornou
progressivamente um catalisador de processos psicofísicos, através dos quais
a correlação entre respiração, postura e tensão muscular pode gerar diferentes
níveis de conexão entre processos interiores e exteriores. Movimentos
executados com o bastão produziram gradualmente tensões musculares
específicas e geraram a necessidade de explorar diferentes modos de respiração.
Sudana frequentemente chamou a nossa atenção para a percepção dos impulsos
e para o respeito que deveríamos demonstrar ao trabalhar com o bastão.
Mais do que executar desenhos de movimentos, nós éramos estimulados a
dirigir nossa atenção para as tensões existentes entre processos interiores
e exteriores. Sudana nos pediu para não buscarmos ‘executar ações’ com o
bastão. Nós deveríamos aprender, a partir do contato com o bastão, a não
guiá-lo, a não impor a nossa vontade. Mas ao mesmo tempo nós deveríamos
cultivar uma atitude ativa. Com o passar dos dias notei que o bastão estava me
levando a assumir posturas não familiares, as quais eu não imaginava que fosse
capaz de executar. Aos poucos, comecei a perceber a diferença entre ‘guiar’
e ‘ser guiado’, entre o conduzir um processo voluntariamente e o fazer com
que a condução seja um catalisador de vários estímulos que podem ocorrer
simultaneamente. Além disso, os bastões eram utilizados durante as nossas
conversas em grupo. Nesses casos, eles eram deixados sobre o chão em frente
a cada membro do grupo, apontando para o centro do círculo. Sudana nessas
ocasiões nos pedia para não olharmos para a pessoa que estava falando, mas
para o centro do círculo, para onde todos os bastões convergiam.
Os bastões, portanto, exerceram múltiplas funções durante a
experiência guiada por Sudana. Além de funcionar como um ‘objeto vazio’ e
como um instrumento utilizado para trabalhar fisicamente, ele foi explorado
a fim de expandir as potencialidades expressivas dos atores, processo este que
envolveu por sua vez a produção de experiências cinéticas e o desenvolvimento
da auto-consciência. Auto-consciência aqui não diz respeito somente às
ocorrências individuais subjetivas mas também à interação dinâmica entre o
indivíduo e estímulos sócio-culturais e/ou ambientais. Além disso, a relação
entre o ator e o bastão gerou implicações associadas com processos de
individuação, de acordo com as quais o indivíduo pode ampliar as próprias
referências intelectuais e afetivas.
Baseado em tais considerações, é possível perceber que a exploração
de materiais, nesse caso o bastão, pode representar um elemento que catalisa
a tensão entre as dimensões de identidade e de alteridade. De fato, o bastão é
aqui considerado como um ‘mestre’, como Outro que, sendo Outro, desencadeia
uma revisão do Eu em muitos níveis, e é exatamente nesse ponto que podemos
retomar a reflexão sobre a experiência.
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Os seres ficcionais: identidade e alteridade... Matteo Bonfitto Março 2009 - Nº 12
Muitas são as abordagens possíveis sobre a experiência, conceito
esse que permeia o pensamento de muitos estudiosos. Nesse ensaio
utilizaremos alguns aspectos colocados nesse âmbito por Jorge Larossa
Bondía. O pesquisador espanhol, ao falar sobre experiência, a coloca como
“tudo aquilo que nos passa”, “nos acontece”. Desse modo, reconhece alguns
fatores que podem funcionar como obstáculos da experiência, tais como o
excesso de informação, o excesso de opinião, de trabalho, e a falta de tempo.
A experiência, segundo ele,
[...] requer um gesto de interrupção [...] requer parar para
pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar,
olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir
mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender
o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar
a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que
nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do
encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.9
Se refletirmos sobre o processo de trabalho descrito com os bastões,
podemos fazer uma conexão direta com os aspectos apontados por Bondía.
No trabalho dos atores de Brook, podemos transpor a exploração dos
bastões para uma grande variedade de materiais, mas o que é importante
perceber nesse ponto é a relação existente entre tal exploração, a criação
de seres ficcionais e a noção de experiência apontada acima. O trabalho com
os bastões, sendo gerador de experiência que se dá a partir da tensão entre
identidade e alteridade, representa uma fonte de estímulos que pode ser
geradora de qualidades que contribuirão para a criação de seres ficcionais em
muitos níveis. A percepção de tensões musculares não-familiares, o assumir
posturas inusitadas, etc..., podem fornecer muitos elementos nesse sentido.
Cabe ressaltar, por fim, que os seres ficcionais no trabalho de Brook não são
resultantes de uma projeção da identidade do ator, mas sim de processos de
tensão entre identidade e alteridade, os quais geram uma transformação, uma
ampliação do horizonte perceptivo do ator. Os seres ficcionais, portanto, são
resultantes de experiências, tal como apontado por Bondía.
Assim, esses foram alguns dos pressupostos que nortearam a proposta
de trabalho com os estudantes do CEART. Como teríamos um tempo restrito,
somente três encontros, propus que partíssemos de alguns materiais. Em
função de tais limitações, achei que poderia ser mais adequado não propor,
por exemplo, o trabalho com os bastões, que requer um tempo bem maior
de execução. Partimos, então, de textos não-dramáticos (Manoel de Barros,
Guimarães Rosa, Machado de Assis), de imagens (Francis Bacon), e de
9
Bondía, Jorge
Larossa; Notas Sobre
a Experiência e o
Saber de Experiência,
em Revista Brasileira
de Educação, n°
19, pp. 20-28, Jan/
Fev/Mar/Abr 2002.
Disponível em
http://www.
anped.org.br/rbe/
rbedigital/RBDE19/
RBDE19_04_JORGE_
LARROSA_BONDIA.pdf
Acesso em
02/07/2009, 18:30.
27. U
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Os seres ficcionais: identidade e alteridade... Matteo BonfittoMarço 2009 - N° 12
experiências pessoais. Após uma breve experimentação de algumas práticas
(exploração do espaço, do contato com o outro, ações vocais, etc...), iniciamos
e exploração dos referidos materiais. Atuando como um dramaturg, percorri
os grupos fornecendo alguns estímulos, perguntas e provocações. Ou seja, não
houve uma interferência direta na exploração cênica dos materiais, mas na
atitude, no olhar através do qual eles poderiam ser explorados, escavados.
O trabalho prático foi acompanhado de discussões de textos e do
exame de alguns fragmentos extraídos de vídeos. Tanto os textos como os
vídeos tiveram como função fornecer referências intelectuais e poéticas que
pudessem enriquecer a moldura do seminário: “seres ficcionais: identidade e
alteridade”. De qualquer forma, o percurso seguido privilegiou uma relação
entre prática e elaboração dessa prática, em que a segunda deveria sempre
seguir a primeira, e não antecipá-la.
No último encontro, o material cênico produzido pelos grupos foi
organizado, e desse modo, algumas perguntas que haviam sido levantadas
durante o seminário, associadas a algumas ações vocais, funcionaram como
elementos de transição entre as cenas. A relação entre as ações vocais, descritas
abaixo entre parênteses, e as perguntas, foi definida como segue:
- (Flutuar): Como você sabe se está vivendo uma experiência ou não?
- (Furar): Qual a relação entre um princípio e uma técnica?
- (Escorregar): Como fazer de alguma coisa um material?
- (Rasgar): Se não existem técnicas universalizantes, como inventar
técnicas a partir da exploração dos materiais?
- (Amassar): Qual a distância que existe entre eu e o meu material?
- (Gotejar): Como lidar com o outro que não está fora de mim?
- (Derreter): Identidade... Alteridade ... 2 ... Palavrões!
- (Acariciar): Informo? Demonstro? Penso ... penso o que não falo...
Falo o que não sinto ... Sinto o que não penso ... Experiencio!
A inserção de tais transições, mais do que buscar fornecer uma
unidade ao todo, funcionou como um elemento de resgate de qualidades
produzidas durante os encontros.
Tentar descrever a importância desses encontros representa um
esforço árduo, pois as palavras escritas aqui não poderão materializar as
impressões, as surpresas, o não-dito que deles emergiu. Dentre as surpresas
significativas, fui tocado, dentre outras coisas, pela relatividade do tempo. Esses
encontros me fizeram perceber, de maneira palpável, que o tempo ‘real’ é o
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Os seres ficcionais: identidade e alteridade... Matteo Bonfitto Março 2009 - Nº 12
tempo da experiência, e que portanto poucas horas de relógio podem produzir
momentos de qualidade, materiais ‘pregnantes’, que se trabalhados, podem
fazer emanar centelhas potentes, capazes de nos remapear cognitivamente.
Referências bibliográficas
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura
e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BONDÍA, Jorge Larossa. Notas Sobre a Experiência e o Saber de Experiência,
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PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2007.
29. U
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Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne BogartMarço 2009 - N° 12
SEIS COISAS QUE SEI SOBRE O
TREINAMENTO DE ATORES
Anne Bogart1
Tradução de Carolina Paganine2
Não se pode treinar atores ou diretores para que sejam criativos, mas
podemos ajudá-los a cultivarem seu eu artístico. Os jovens artistas precisam
desenvolver uma relação bastante especial com o próprio trabalho. Se um
programa de formação de ator não produz grandes atores, pode, através da
prática e do exemplo, prepará-los para a vida de artista. O treinamento teatral
pode estimular as seguintes qualidades necessárias a cada indivíduo:
1. Atitude
2. Atenção
3. Violência necessária
Resumo
A partir da experiência de Anne
Bogart como diretora, a pesquisadora
propõe seis aspectos fundamentais que
deveriam ser estimulados nos atores
em um curso de interpretação. São eles:
atitude, atenção, violência necessária,
controle físico e expansão das emoções,
desequilíbrio e desorientação, e interesse.
Aoexplicarcadaumdestesaspectos,Bogart
questiona de que maneira eles podem ser
ensinados a atores e mostra como são de
uma importância crucial para o processo
de criação de uma obra artística.
Palavras-chave: teatro, treinamento
de atores, qualidades necessárias.
Abstract
From Anne Bogart’s experience as
a director, she proposes six necessary
qualities that should be encouraged in
actors in an acting program. They are
attitude, attention, necessary violence,
physical containment and emotional
expansion, imbalance and disorientation,
and interest. By explaining each one of
them, Bogart questions how an actor
can be taught those qualities and she
also illustrates why they have a crucial
importance to the process of creating an
artistic work.
Keywords: theater, actor training,
necessary qualities.
1
Anne Bogart é
diretora artística
da SITI Company,
fundada juntamente
com o diretor japonês
Tadashi Suzuki em
1992. É professora da
Columbia University,
onde leciona no
Graduate Directing
Program.
2
Carolina Paganine
é tradutora formada
pela Universidade
de Brasília (2004),
doutoranda em
Estudos da Tradução
na Universidade
Federal de Santa
Catarina.
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Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne Bogart Março 2009 - Nº 12
4. Controle físico e expansão das emoções
5. Desequilíbrio e desorientação
6. Interesse
1) Atitude
A atitude de uma pessoa frente a qualquer tarefa é determinante para
que haja bons resultados. Atitude é fundamental. Como diz o artista plástico
Christo,“nãoexistemproblemas,apenassituações”.Chamaralgodeproblemadá
origem a uma relação equivocada com o que está acontecendo, predeterminando
uma atitude pessimista e de início derrotista. É muito importante a atitude que
trazemos para uma peça, um papel, um ensaio ou um relacionamento.
Podemos treinar atitudes? Podemos treinar a atitude que um ator traz
para um ensaio ou para sua própria carreira?
Recentemente, comecei a entender o conceito de gestus de Bertolt
Brecht. Gestus não é um gesto, como pensava antes, mas, na verdade, parece
que gestus se refere à atitude. Brecht acreditava que o ator deveria se preocupar
em não expressar sentimentos, mas “mostrar atitudes” ou gesten.
Uma atitude é uma energia direcionada ao exterior. Se me sinto atraída
por alguém, minha energia direcionada ao exterior é bastante específica e
minhas respostas flutuam de acordo com a maneira que esta pessoa se relaciona
comigo. Todas as minhas escolhas físicas, vocais e temporais são feitas em
relação ao meu objeto de interesse. Quando o interesse acaba, a atitude muda.
Em qualquer ocasião, minha atitude revela intenção e finalidade.
Os japoneses possuem uma palavra para descrever a qualidade de
espaço e tempo entre as pessoas: ma’ai. Nas artes marciais, o ma’ai é de
fundamental importância por causa do perigo de um ataque mortal. No
palco, o espaço entre os atores também deveria ser continuamente dotado
de qualidade, atenção, potencial e até mesmo perigo. O ma’ai deve ser
cultivado, respeitado e estimulado. As linhas de tensão entre os atores no
palco nunca deveriam se afrouxar.
Uma vez conversei com um ator que interpretava Nick em Quem tem
medo de Virginia Woolf? com Glenda Jackson representando o papel de Martha.
Ele disse que a atriz nunca, nunca mesmo, deixou a linha entre ela e os outros
três atores se afrouxar. A tendência com um ator menor, interpretando um
personagem alcoólico e libertino, próximo ao caos, seria atenuar a tensão e se
afundar no sofá. Mas com Jackson, as linhas de tensão entre ela e os outros
tinham que ser produzidas a cada momento. Somente quando ela deixava o
palco é que essas linhas se soltavam.
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Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne BogartMarço 2009 - N° 12
Os alemães usam a palavra Haltung ou seu plural Haltungen para
descrever as posturas em constante mudança que tomamos em relação a uma
pessoa, uma tarefa ou um objetivo. Em inglês, a palavra attitude é, em geral,
vista como negativa — “I don’t have an attitude” (“Eu não sou prepotente”)3
.
As pessoas querem evitar que sejam vistas como “sendo prepotentes”. Gostaria
de sugerir que todo trabalho começa com uma atitude frente a esse trabalho.
Cada personagem e cada situação se tornam especiais através de uma sinfonia
de atitudes que se modificam.
2) Atenção
Eu ensino direção teatral na Universidade de Columbia. A única coisa
que sei sobre dirigir é que dirigir diz respeito a escutar. Como ensinar a escuta?
Como se aprende sobre atenção?
Como diretora, minha maior contribuição para uma produção, a
única coisa que posso oferecer de verdade a um ator, é a minha atenção. O
que mais conta é a qualidade desta atenção. Com que parte de mim estou
assistindo? Estou assistindo desejando bons resultados da peça ou assisto
interessada no momento presente? Espero o melhor do ator ou quero
provar minha superioridade? Um bom ator pode rapidamente discernir a
qualidade da minha atenção, do meu interesse. Há uma linha de vida sensível
entre nós. Se esta linha é comprometida, o ator sente. Se for depreciada
pelo meu próprio ego, desejos ou falta de paciência, a linha entre nós
estará deteriorada.
Ensaiar não é forçar que as coisas aconteçam, mas sim escutá-las.
O diretor escuta os atores. Os atores escutam uns aos outros. Escuta-se
coletivamente o texto. Escutamos em busca de indícios. Mantemos as coisas
em movimento. Investigamos. Não se ameniza os momentos como se tudo
estivesse entendido. Nada ficou entendido. Trazemos nossa atenção para a
situação enquanto esta se desenrola. Penso que o ensaio é como brincar com o
Tabuleiro Ouija em que todos colocam as mãos sobre uma pergunta e depois
seguem o movimento quando este começa a se revelar. Segue-se o movimento
até que a cena libere seu segredo.
Atenção significa tensão — uma tensão entre um objeto e um
observador ou tensão entre pessoas. É um modo de escutar. Atenção é uma
tensão sobre tempo.
3) Violência necessária
O treinamento deveria ensinar ao ator a necessidade de violência em
um ato criativo.
3 Em inglês, a
palavra attitude
pode conter uma
acepção negativa
de exacerbada
autoconfiança. Já em
português, é preciso
adjetivar o cognato
"atitude" como em
"atitude ruim, hostil"
ou substituí-la
por outra palavra
como "arrogante"
ou "prepotente",
de acordo com o
contexto. (N. da T.)
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Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne Bogart Março 2009 - Nº 12
A arte é violenta. Tomar uma decisão é um ato violento. Antonin
Artaud definiu a crueldade como “uma determinação, uma persistência, um
rigor incansáveis”. Colocar uma cadeira em uma posição específica no palco
acaba com todas as outras escolhas possíveis, todas as outras opções. Quando
um ator atinge um momento espontâneo, intuitivo ou passional no ensaio, o
diretor profere as palavras fatídicas: “guarda isso” , eliminando todas as outras
soluções em potencial. Estas duas palavras cruéis, “guarda isso”4,
enfiam uma
faca no coração do ator que sabe que a próxima tentativa de recriar aquele
resultado será falsa, afetada ou sem vida. Mas, bem no fundo, o ator também
sabe que a improvisação ainda não é arte. Somente quando algo foi decidido
que o trabalho pode realmente começar. A determinação e a crueldade, que
extinguiram a espontaneidade do momento, exigem que o ator comece um
trabalho extraordinário: ressuscitar os mortos. O ator deve agora encontrar
uma espontaneidade nova e mais profunda dentro desta forma estabelecida.
Para mim, é por isto que os atores são heróis. Eles aceitam esta violência e
trabalham com ela, trazendo habilidade e imaginação à arte da repetição.
É significativo que a palavra francesa para ensaio seja repetition.
Decerto, pode-se argumentar que a arte teatral é a arte da repetição. (A
palavra inglesa rehearsal / “ensaio”, ou re-hear, propõe “ouvir de novo”. A
alemã Probe sugere investigação. Em japonês, keiko se traduz como prática. E
por aí vai. Um estudo sobre as palavras para “ensaio” nas diferentes línguas
é infinitamente fascinante.) No ensaio, o ator busca por formas que podem
ser repetidas. Juntos, atores e diretores constroem uma estrutura que dará
margem a infinitas novas correntes de força vital, vicissitudes emocionais e
conexão com os outros atores. Gosto de pensar sobre a encenação, ou sobre
o bloqueio, como um veículo em que os atores podem se mover e crescer.
Paradoxalmente, são as restrições, a precisão e a exatidão que permitem a
possibilidade de liberdade. A forma se torna um recipiente no qual o ator
encontra variações infinitas e liberdade interpretativa.
Para o ator, esta violência necessária ao criar um personagem
para o teatro é bastante diferente da violência necessária ao atuar para
a câmera. Na atuação para o cinema, o ator pode se permitir fazer algo
impulsivo sem se preocupar em repeti-lo inúmeras vezes. O essencial
para a câmera é que o momento seja espontâneo e fotogênico. No teatro,
é preciso que seja repetível.
Percebi pela primeira vez a necessidade de violência no ato
criativoenquantoassistiaodiretorRobertWilsonensaiarHamletmachine
de Heiner Müller com estudantes de graduação de Artes Cênicas na
Universidade de Nova Iorque. O ensaio estava marcado para começar
às 19h. Cheguei mais cedo e me deparei com um clima alegre. Na última
4
Em inglês, keep
it, que pode ser
traduzido também por
outras expressões
equivalentes usadas
no Brasil como: "é
isto", "esta é a cena",
ou "mantenha isto".
(N. da T.)
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Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne BogartMarço 2009 - N° 12
fileira do teatro, estudantes de pós-graduação e outros pesquisadores
esperavam ansiosos, com as canetas na mão, pela chegada de Wilson.
No palco, os jovens atores se aqueciam. Uma equipe de administração
cênica estava sentada atrás de um batalhão de mesas compridas, colocadas
na extremidade do palco. Wilson chegou às 19h15. Sentou-se no centro da
arquibancada em meio ao alvoroço e ao barulho e começou a olhar atentamente
para o palco. Aos poucos, todos no teatro se aquietaram até que o silêncio fosse
cortante. Depois de cerca de cinco minutos torturantes em completa quietude,
Wilson se levantou, caminhou até uma cadeira no palco e ficou encarando-a.
Depois do que me pareceu uma eternidade, ele se abaixou, tocou a cadeira e
a moveu menos de três centímetros. Quando ele deu um passo para trás para
olhar a cadeira de novo, percebi que eu estava com dificuldade para respirar.
A tensão no recinto era palpável, quase insuportável. Em seguida, Wilson
acenou para que uma atriz se aproximasse a fim de lhe mostrar o que queria
que ela fizesse. Fez uma demonstração sentando na cadeira, se inclinando para
frente e movendo ligeiramente os dedos. Então, ela assumiu o lugar dele e
copiou, de modo preciso, a inclinação e os gestos com a mão. Percebi que me
curvava para a frente na minha própria cadeira, profundamente angustiada.
Senti-me como se estivesse assistindo outras pessoas em uma situação privada
e íntima. Naquela noite, reconheci a crueldade necessária da decisão.
O ato determinado de posicionar um objeto em uma posição precisa
no palco, ou o gesto de mão de um ator, me parecia quase um ato de violação.
Para mim, isto era perturbador. Entretanto, no fundo eu sabia que este ato
violento é uma condição necessária para todos os atores.
A violência começa com a tomada de decisão, com um comprometimento
com alguma coisa. A palavra commit5
vem do Latim committere, que significa
“inflamar uma ação, unir, juntar, confiar e fazer”. Comprometer-se com uma
escolha parece violento. É como a sensação de pular de um enorme trampolim.
Parece violento porque tomar uma decisão é uma agressão contra a natureza e a
inércia. Mesmo uma escolha aparentemente tão pequena quanto decidir a posição
precisa de uma cadeira parece uma violação do fluxo livre e do curso da vida.
Para gerar a excitação indispensável, é preciso que haja algo em
jogo, em risco, algo momentâneo e incerto. A certeza não nos estimula
emocionalmente.
Grandes interpretações exalam exatidão e uma sensação poderosa de
liberdade. Esta liberdade só pode ser encontrada dentro de certas limitações
escolhidas. As limitações servem como uma lente para focar e ampliar o evento
para o público, bem como para dar aos atores algo com o que se compararem.
Uma limitação pode ser algo simples como permanecer na luz correta e falar
o texto exatamente como está escrito ou tão difícil quanto interpretar uma
5
Dependendo
do contexto,
commit pode ser
"comprometer-se"
ou "cometer" em
português. (N. da T.)
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Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne Bogart Março 2009 - Nº 12
coreografia complexa ao mesmo tempo em que se canta uma ária. Estas
limitações convidam o ator a conhecê-las, a perturbá-las, a transcendê-las. O
público presencia o ator testando seus próprios limites, expressando algo além
do banal apesar das limitações.
Ser bem articulado diante das limitações é o lugar onde a violência se
instaura. Este ato de violência necessária, que à primeira vista parece limitar a
liberdade e reduzir as opções, por sua vez, abre muito mais opções e demanda
do artista um sentido mais profundo de liberdade.
A resistência fortalece e intensifica o esforço. Encontrar resistência,
confrontarumobstáculoousuperarumadificuldadesempredemandacriatividade
e intuição. No centro do conflito, tem-se que apelar para novas reservas de
energia e de imaginação. Desenvolvemos os músculos no ato de superar a
resistência — nossos músculos artísticos. Como um bailarino, é preciso exercitar
regularmente para manter a musculatura. A magnitude das resistências que se
escolhe empregar determina a progressão e a profundidade do trabalho. Quanto
maiores os obstáculos, mais coisas poderemos transformar com o esforço.
4) Controle físico e expansão das emoções
Um grande ator, assim como uma excelente dançarina de striptease, se
refreia mais do que mostra. Com a maturidade, os artistas se aproximam da
grande sabedoria encontrada na combinação poderosa entre o controle físico
e a expansão das emoções. O refreamento é fundamental. Pegue o momento e
todas as suas complexidades, concentre-o, deixe-o acontecer e, então, o guarde.
Concentrar e refrear geram energia no ator e interesse no público. Zeami, o
criador japonês do teatro Nô, sugeria que o ator deveria sempre conter um certo
percentual de suas emoções: “Quando sentir dez no coração, expresse sete...”.
O talento mais especial de um ator é a capacidade de resistir, de conter,
de domar, de conservar a energia em si, de concentrar. Com esta compressão,
o ator brinca com a sensibilidade cinestésica dos espectadores e evita que eles
prevejam o que está para acontecer. A cada instante, o objetivo é esconder do
espectador a estrutura predeterminada e o desfecho.
Pouco tempo atrás, ao visitar o Museu de Arte Moderna de São
Francisco, me deparei com uma pintura gigantesca de Anselm Kiefer, intitulada
Osiris and Isis. Meus planos de visitar todo o museu naquele dia foram por
água abaixo. Não conseguia dar as costas a este quadro intenso, belo, vibrante,
perturbador e inabandonável. Fui confrontada pela magnitude de suas idéias,
formas, violência, movimento e perspectivas infinitas que se abriram quando
me deparei com este trabalho. Detida no meu caminho, não podia passar pelo
quadro e prosseguir para as outras pinturas. Tinha que conhecê-lo, lidar com
ele. Fui desafiada e isto me transformou.
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Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne BogartMarço 2009 - N° 12
O que nos detém no caminho? É raro que eu seja detida por alguma
coisa ou por alguém que consigo compreender de imediato. Na verdade,
sempre me senti atraída pelo desafio de passar a compreender aquilo que não
consigo categorizar ou abandonar rapidamente, seja a presença de um ator,
uma pintura, uma música ou uma relação pessoal. É a jornada em direção ao
objeto de atração que me interessa. Vivemos em relação uns com os outros.
Ansiamos pelos relacionamentos que mudarão nossas perspectivas. A atração
pelo outro é um convite a uma jornada que mudará nossas vidas, a um novo
modo de experienciar a vida ou perceber a realidade.
Uma obra de arte autêntica incorpora uma energia intensa. Exige uma
resposta. Pode-se tanto evitá-la ou trancá-la, quanto encará-la e confrontá-la.
Ela contém campos de energia atraentes e complicados, além de uma lógica
própria. Não gera desejo ou movimento no receptor, mas produz o que James
Joyce chamou de “imobilização estética”. No meio do caminho, você é detido.
Não se pode passar facilmente por ela e dar continuidade à vida. Você se
encontra em relação com algo que não consegue abandonar de imediato.
Em Retrato do artista quando jovem, James Joyce diferencia a arte
estática da cinética. Ele aprecia a arte estática e despreza a arte cinética.
Acredito que este conceito de estático e cinético seja desafiador e útil para
se pensar sobre o que colocamos no palco. A arte cinética o faz mover. A
arte estática o faz parar. A pornografia, por exemplo, é cinética — ela pode
te excitar sexualmente. A publicidade é uma arte cinética — pode induzi-lo
a comprar. A arte política é cinética — pode movê-lo para a ação política.
Por outro lado, a arte estática o detém. Causa uma parada. Assim como a
pintura de Anselm Kiefer, não o deixará passar tranquilamente por ela. A
arte estática oferece um universo auto-suficiente, unificado somente em seus
campos complexos e contraditórios. Não o fará lembrar-se de nenhuma outra
coisa. Não desperta desejos e não o move de uma maneira tranquila. Você
é detido em seu caminho por este poder extraordinário. Ao se confrontar
com as maravilhosas pinturas de maçãs de Cézanne, por exemplo, não se
deseja comer as maçãs. Você, ao contrário, é confrontado pela maçanidade das
maçãs! Elas o detêm em seu caminho.
Com Osiris and Isis, fui detida pela magnitude do drama interior
específico desta pintura. Ela me convidou a lidar com ela. Fui chamada para a
aventura que é uma relação.
Um bom ator me detém em meu caminho. É difícil não considerar a
qualidade de seu silêncio, movimento ou fala. Embora eu não esteja consciente
do que é isso que eles fazem para produzir essa presença magnética, sei que
não consigo desviar os olhos. Não posso seguir adiante.
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Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne Bogart Março 2009 - Nº 12
O que o ator faz para me deter em meu caminho? Como treinamos um
ator para que monte os campos de energia necessários para nos deter? O que
eu de fato sei é que um ator estrutura uma paisagem interna complexa e tenta
permanecer presente dentro dela. O ator põe em prática, simultaneamente, as
muitas linguagens do palco, incluindo o tempo, espaço, texto, ação, personagem
e história. A realização disso tudo é um feito extraordinário de malabarismo
com diversas coisas ao mesmo tempo. A fala se torna dramática por causa
da mudança que ocorre dentro da pessoa que está presente, no momento,
envolvida com o discurso. E eu também estou presente ali, em relação com
esta pessoa fazendo malabarismos.
A vitalidade na arte é o resultado da articulação, da energia e da
diferenciação. Toda grande arte é uma arte diferenciada. O ofício do ator está
na diferenciação de um momento do outro que se segue. Um grande ator
aparenta ser perigoso, imprevisível, cheio de vida e diferenciação.
A qualquer momento um ator se depara com um dilema em particular:
escolher entre desfazer-se da experiência ou concentrá-la. É fácil se desfazer.
É só deixar ir, deixar fluir sempre que se sentir cheio. Mas acredito que é
importante para um ator aprender a necessidade de concentrar as irritações,
os sentimentos aleatórios, as dificuldades, as paixões, tudo que acontece
de momento a momento, para depois comprimi-los, deixá-los acontecer e
encontrar os momentos adequados para a expressão clara e articulada. O
resultado será uma expressão e não um desfazimento aleatório.
Os americanos foram infestados pela doença da concordância. No
teatro, supomos frequentemente que colaborar significa concordar. Acredito
que concordância demais resulta numa falta de vitalidade. Concordar sem
refletir esfria a energia no ensaio. Não acredito que colaboração implica em
fazer mecanicamente o que o diretor manda. Sem resistência não há fogo. Os
alemães têm uma palavra bastante útil que não tem um equivalente adequado
em inglês: auseinandersetzung. A palavra, que literalmente quer dizer “colocar-
se em oposição a outra pessoa”, é em geral traduzida para o inglês como
argument6
, por via de regra uma palavra de conotações negativas. Embora um
ambiente descontraído e agradável no ensaio me deixe bastante feliz, meu
melhor trabalho emana do auseinandersetzung, o que significa para mim que
durante o ato criativo precisamos nos colocar em oposição uns aos outros.
Significa que nos atacamos mutuamente de maneira produtiva, que talvez
entremos em embate; significa que poderemos discutir, discordar um do outro,
oferecer alternativas. Significa que conviveremos com uma discordância
irritante e uma atmosfera animada.
6
Neste caso,
"discussão",
"confrontação" em
português. (N. da T.).
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Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne BogartMarço 2009 - N° 12
É nossa obrigação treinar o ator para que preserve presença e
intensidade suficientes para colidir em vez de concordar com tudo no ensaio.
Em lugar de seguir cegamente as instruções, o ator deveria trazer seu próprio
calor, inteligência, sensibilidade estética e intuição para o processo. Descobri
que os atores de teatro alemães tendem a trabalhar com auseinandersetzung
em demasia, o que se torna debilitante e pode originar produções estáticas e
impetuosas. Os americanos tendem mais para a concordância, o que pode dar
margem a uma arte superficial, não-investigativa e simplista.
5) Desequilíbrio e desorientação
Todo ato criativo requer um salto no vazio. O salto tem que ocorrer
no momento certo e, no entanto, a hora de saltar nunca será estabelecida de
antemão. Não há garantias quando se está no meio do salto. Em geral, saltar
causa uma perplexidade extrema. A perplexidade é uma parceira no ato criativo
—umacolaboradorafundamental.Seoseutrabalhonãoodeixasuficientemente
perplexo, então é bastante provável que não comoverá ninguém.
Podemos instilar em um jovem ator a consciência da necessidade
imperativa de desequilíbrio e desorientação no processo criativo?
A maioria das pessoas se torna altamente criativa em meio a uma
situação de emergência. No momento do desequilíbrio e da pressão, precisamos
encontrar soluções rápidas e satisfatórias para grandes problemas repentinos.
São nestes momentos de crise que a inteligência inata e a imaginação intuitiva
entram em jogo: a mulher que levanta um carro porque seu filho está preso
embaixo, uma escolha estratégica e inspirada durante a crise de uma batalha,
decisões rápidas no calor de um ensaio final antes da estréia para o público.
Tenho descoberto que, do ponto de vista da criação, o desequilíbrio é mais
frutífero que a estabilidade.
A arte começa na luta por equilíbrio. Não se consegue criar em um
estado de harmonia. Estar fora do equilíbrio produz um estado que é sempre
interessante no palco. No momento do desequilíbrio, nossos instintos animais
nos impelem a lutar pelo equilíbrio e esta luta é infinitamente cativante e
proveitosa. Quando passar a acolher o desequilíbrio em seu trabalho, você
ficará imediatamente cara a cara com sua própria propensão ao hábito. O hábito
é um adversário do artista. Em arte, a repetição inconsciente de um território
familiar nunca é vital ou estimulante. Precisamos tentar permanecer atentos
e vivos ao nos depararmos com nossas propensões ao hábito. Encontrar-
se em situação de desequilíbrio lhe apresenta um convite à desorientação
e à dificuldade. Não é uma situação confortável. De repente, você se sente
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Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne Bogart Março 2009 - Nº 12
deslocado e fora de controle. É aqui que a aventura começa. Quando se
acolhe o desequilíbrio, você entrará imediatamente em um território novo e
desconhecido onde se sentirá pequeno e inadequado em relação à tarefa por
fazer. Mas os frutos deste compromisso serão abundantes.
Toda grande jornada começa com desorientação. As crianças
naturalmente giram umas as outras, de olhos vendados, antes de uma
brincadeira. Alice cai no buraco do coelho e muda de tamanho ou viaja por
um espelho para chegar ao País das Maravilhas. Nós todos, público e artistas,
temos que dar chance a um pouco de desorientação pessoal a fim de abrir
caminho para a experiência.
Tenho medo de cair. Passei anos estudando a arte marcial japonesa
Aikido por causa da quantidade de tempo que se passa de cabeça para baixo
durante a prática. Tento acolher a desorientação como uma prática necessária ao
meu trabalho nos ensaios. Sei que tenho que aprender a acolher a desorientação
e o desequilíbrio. Sei que a tentativa de encontrar equilíbrio a partir de um
estado de desequilíbrio será sempre produtiva e interessante e renderá ótimos
resultados. Tento acolher a desorientação para dar chance ao amor verdadeiro.
Apaixonar-se é desorientador porque os limites entre os recém-
enamorados não foram demarcados. Para nos apaixonar, temos que nos
desapegar de hábitos cotidianos. Para sermos tocados, temos que estar
dispostos a não saber como será a sensação do toque. Um grande espetáculo
de teatro também é desorientador porque as fronteiras entre quem dá e
quem recebe não são claras. Um artista que emociona joga com as nossas
expectativas e com nossa memória. Este intercâmbio possibilita uma
experiência artística interativa e viva.
No ensaio e na apresentação, é necessário saltar a cada momento.
Toda vez que um ator pisa no palco, ele precisa estar preparado para saltar
inesperadamente. Sem esta predisposição, o palco continuará a ser um
lugar monótono e convencional. Se ficar preparado para saltar no momento
adequado, nunca saberá quando será este momento. A porta se abre e você tem
que passar por ela sem pensar nas consequências. Você salta. Mas também
terá que aceitar que o salto, por si mesmo, não é garantia de nada. Ele não
suaviza a perplexidade, mas sim a acentua.
De acordo com Rollo May em seu livro The courage to create (A coragem
para criar), durante toda a história artistas e cientistas concordaram que, em
seus melhores momentos, eles sentem como se algo se manifestasse através
deles. De alguma maneira, conseguiram desembaraçar o próprio caminho.
Alguns dizem que Deus se manifesta através deles. De maneira mais modesta,
outros afirmam que, a fim de desembaraçar o próprio caminho e desviar do
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Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne BogartMarço 2009 - N° 12
lobo frontal do cérebro, saem para dar uma volta na floresta ou tiram um
cochilo. Eles têm que desligar a mente do que estão tentando fazer para que
possam produzir conexões mais inspiradas. A mente está sempre preparada
para emboscar o processo. As descobertas e inovações acontecem quando você
consegue desembaraçar o próprio caminho.
Os encontros com a resistência e a compressão de emoções geram uma
das condições mais cruciais para o teatro: energia. A energia é gerada quando
se assume a responsabilidade com a cara e a coragem e se supera o obstáculo.
O êxito de um ator é proporcional à qualidade da interação com a resistência
inesperada da situação. A oposição entre uma força que impele para a ação e
outra força que a retém é traduzida pela energia visível e sensível no espaço e
no tempo. Esta luta pessoal com o obstáculo, por sua vez, leva ao desacordo e
ao desequilíbrio. A tentativa de restabelecer a harmonia a partir deste estado de
agitação gera ainda mais energia. Esta batalha é, em sim mesma, o ato criativo.
É natural e humano buscar a união e restabelecer o equilíbrio após
o desequilíbrio do compromisso com a discordância. Recite um solilóquio
inteiro de Shakespeare a partir de um estado físico de desequilíbrio. Na
tentativa de manter o equilíbrio e não cair enquanto fala, cada pedaço de seu
ser busca o equilíbrio, a harmonia e a união. Esta luta é positiva e produtiva.
De súbito, o corpo fala com uma clareza e uma necessidade surpreendentes.
A luta exige precisão e articulação.
Um eu artístico é aquele que acolhe o desequilíbrio e a desorientação.
6) Interesse
O interesse é a ferramenta fundamental no processo criativo. Para
ser fiel a um interesse e persegui-lo, o melhor barômetro é o corpo. O
coração acelera. A pulsação fica apressada. O interesse pode ser o seu guia.
Sempre apontará para a direção certa. Ele define a qualidade, a energia e o
conteúdo do trabalho. Não se pode fingir ou dissimular o interesse ou mesmo
escolher sentir-se interessado por alguma coisa só porque foi recomendado.
O interesse nunca poderá ser recomendado. Ele é uma descoberta. Quando
sentir esta aceleração, você tem que agir de imediato. Terá que seguir este
interesse e segurá-lo firme.
Nos momentos em que o interesse desperta, quando você se
encontra detido em seu caminho, perceberá imediatamente que está em
uma encruzilhada. Nestas encruzilhadas, as definições e os princípios que o
formaram e o guiaram até o momento presente se desintegram; o que fica é
um sentimento de desorientação, uma animação descontrolada, uma sensação
de falar livre e espontaneamente, um interesse.
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Seis coisas que sei sobre o treinamento de atores. Anne Bogart Março 2009 - Nº 12
Se o interesse for genuíno e grande o bastante e se for perseguido com
tenacidade e generosidade, o efeito bumerangue será evidente. O interesse
devolve a bola sem deixá-la cair no chão, afetando sua vida e a alterando de
maneira inevitável. É preciso que se esteja disponível e atento às portas que se
abrem de repente. Não se pode demorar. As portas se fecham rápido. Mudará
a sua vida. Surgirão aventuras que você nunca imaginou. Terá que ser fiel ao
interesse e ele lhe será fiel.
O maior inimigo do artista é a PRESSUPOSIÇÃO, que é, talvez, o
oposto do interesse. A primeira coisa que acabará com a obra de um artista é a
pressuposição de saber o que está fazendo, de saber como andar e como falar,
de que o que ele “quer dizer” significará a mesma coisa para os receptores. No
instante em que você pressupõe quem é o público ou qual é o momento, este
mesmo momento estará dormente.
Como diretora, sei que não é minha responsabilidade produzir
resultados, mas sim criar as circunstâncias para que algo possa ocorrer. Os
resultados virão por si mesmos. Sinto que isto é verdadeiro para todos os
artistas criadores. Cuide bem da atitude, da atenção, da violência necessária, do
controle físico e da expansão das emoções, do desequilíbrio e da desorientação,
e do interesse. Depois, comece a trabalhar.
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Combate cênico e estética da violência no treinamento... Kerrie SinclairMarço 2009 - N° 12
COMBATE CÊNICO E ESTÉTICA DA
VIOLÊNCIA NO TREINAMENTO
PARA A PERFORMANCE1
Kerrie Sinclair2
Tradução de Cláudia Sachs3
As origens do combate cênico
Combate cênico é uma combinação de técnicas especializadas que
foram desenvolvidas especificamente tanto para teatro quanto para cinema
e que criam a ilusão de combate físico sem causar dano aos atores. Atores
que executam técnicas de combate cênico são chamados de ator-combatente
e as técnicas são comumente praticadas juntamente com o trabalho de
dublês. Combate cênico é uma arte performática não diferente da dança,
mas voltada para o uso de movimentos de combate derivadas de várias
tradições de artes marciais.
Resumo
O artigo trata de combate
cênico, que é uma combinação de
técnicas especializadas desenvolvidas
especificamente para teatro e cinema,
que criam a ilusão de combate físico sem
causar dano aos atores. Os movimentos
de combate cênico têm suas origens em
técnicas medievais baseadas em tradições
celtas, da La Tene, romanas, gregas e
dos vikings. As armas usadas variavam
de região para região, prevalecendo
a popularidade de muitas armas
apresentadas aqui.
Palavras-chave: armas, combate
cênico, técnicas medievais.
Abstract
This article deals with stage combat,
which is a combination of specialized
techniques designed specifically for use
in theater and film productions and that
create the illusion of physical combat
without causing harm to the performers.
Theoriginsof themovementsinthestage
combat date back to medieval techniques
based on Celtic traditions, from La Tene,
and also Roman, Greek and Viking
traditions. The weapons used in combat
may vary from region to region, and this
article presents the most popular ones.
Keywords: weapons, stage combat,
medieval techniques.
1
Palestra proferida
no Centro de Artes
da Universidade
do Estado de Santa
Catarina (UDESC),
Florianópolis,
Abril 2009.
2
Kerrie Sinclair é
Doutora em Teatro
(Ph.D.) pela La Trobe
University, Melbourne
(Austrália). Tem
formação na London
Contemporary Dance
School e Diploma em
Dança pela National
Ballet School.
É Instrutora de Kung
Fu (Faixa Dourada),
discípula de Sifu Dana
Wong e Grão-Mestre
William Cheung.
3
Cláudia Sachs é
atriz e professora
de teatro, mestre e
doutoranda em teatro
pela UDESC, lecionou
interpretação na
UFRGS, tem formação
na Escola de Jacques
Lecoq (França).
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Combate cênico e estética da violência no treinamento... Kerrie Sinclair Março 2009 - Nº 12
Lutasencenadas,atuadasousimuladasemperformancesservirampara
propósitos rituais, educacionais e estéticos. Exibições de combates simulados
foram relacionadas a danças de guerra e apresentações teatrais que detalharam
eventos históricos e imaginativos (WOLFRAM, 1962, p. 186-187). Exibições
de antigos combates ritualizados incluem eventos de gladiadores no Coliseu
de Roma (WILKINSON, 2002, p. 97) e os “duelos judiciais” da Idade Média
européia (BILLACOIS, 1990, p. 5).
Os movimentos de combate cênico têm suas origens em técnicas
medievais de espada que são baseadas em tradições das culturas do Hallstat
célticoedaLaTene,eapresentavammétodosoriginadosdetécnicascombativas
romanas (espada longa (gladius / spatha), gregas (xiphos / makhaira) e dos
vikings (antigo heirloom). Depois da queda do Império Romano as espadas
foram desenvolvidas pelos vikings e pelos celtas (PEIRCE, 2004, p. 6) e
evoluíram para armas maiores e mais pesadas para penetrarem armaduras.
Técnicas combativas também mudaram do estilo natural de cortar para serem
substituídas por uma nova técnica de empurrar. O novo estilo de empurrar do
jogo de espada desencadeou uma moda dentro da sociedade civil que evoluiu
até o duelo. Os duelos envolveram participantes que lutavam com floretes e
seguiam regras que eram baseadas em códigos de cavalheiros. O duelo se
tornou a forma predominante de resolução de disputa ao longo do período do
Renascimento (FREVERT, 1995, p. 11).
Durante o período do fim da Idade Média (107-1485) na Europa,
competições de esgrima encenadas, frequentemente coreografadas, tornaram-
se populares nas escolas de esgrima e encontraram platéias para técnicas
extravagantes que não eram práticas para situações de “combate real”, mas
que podem ter influenciado tanto as técnicas de esgrima moderna como as de
combate cênico (WIKIPEDIA, 2009).
As técnicas de combate cênico modernas parecem ter suas origens
no drama Elisabetano. Durante o período Elisabetano (1485-1603) as peças
de Shakespeare estavam entre as mais populares apresentadas. Acredita-se
que um ator chamado Richard Tarleton, que era um membro da companhia
de atores de William Shakespeare e também um sócio da associação de armas
de Defesa de Londres (The London Masters of Defense), combinou estes dois
talentos para se tornar o primeiro “diretor de luta” (WOLF, 2009, p. 1).
A recente popularidade do cinema de ação e de Hong Kong, além
de exibições de violência extrema em entretenimentos executados ao vivo,
inspiraram uma maior demanda para artistas que são treinados nestas técnicas
de violência ilusória e encenada. O desempenho destes métodos e técnicas,
embora encenado, ainda requer uma atitude altamente concentrada dos artistas
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para que durante as coreografias de luta seja assegurada a segurança de
todos os participantes. Isto conduziu ao desenvolvimento de técnicas que são
específicas para o desempenho da violência estetizada. Embora estas técnicas
tenham frequentemente derivado de métodos de arte marciais, as qualidades
mentais e emocionais exigidas para executar técnicas de combate cênico
com sucesso são imensamente diferentes dos preceitos mentais e emocionais
exigidos para ser um bom artista marcial. Uma das grandes dificuldades de
executar técnicas de combate cênico é que a ilusão de violência real deve ser
sustentada enquanto a segurança dos colegas atores é mantida.
Armas populares de combate cênico européias incluem o que é
conhecido como “espada única” (normalmente baseada nas técnicas de florete,
espada e sabre de esgrima), espada pequena, espada larga (normalmente
baseada no estilo de cortar e partir das antigas formas das espadas dos vikings
e dos celtas), espada de punho duplo ou mão-e-meia4
, florete e punhal, florete e
escudo, bastão e corda. Recentemente, tradições de armamento de arte marciais
históricas estão sendo integradas no treinamento de combate cênico. Grupos
de reconstrução de cenas históricas (incluindo HEMA, CLEMENTS etc.)
estão na vanguarda das reconstruções que estão acontecendo e estão usando
manuais históricos para reavivarem as tradições de arte marciais ocidentais.
Algumas das fontes históricas mais populares incluem um documento
conhecido como I. 33 que é um manual alemão de 1295 que detalha o uso
da espada e do escudo, o texto de espada longa de Johannes Liechtenauer de
1389, o Manuscrito 39564, um texto sobre espada inglesa do Século XV, o
“Flos Duellatorum in Armis” de Fiore Dei Liberi de 1410, o Código Guelf,
um manuscrito alemão do fim do SéculoXV, Joseph Swetnam, que era um dos
grandes Mestres da Defesa inglesa em espada renascentista, staff e florete,
além de vários outros textos e manuscritos.
Formas de lutas e armas europeias antigas e recentes
Guerreiros gregos, romanos, vikings, celtas e árabes se ocuparam
frequentemente de combates corpo-a-corpo e luta próxima usando uma
variedade de armas pesadas. (BENNET et al, 2005) As armas usadas variavam
de região para região, mas como os guerreiros viajavam e as técnicas e designs
de armas eram trocados, a popularidade de muitas armas prevaleceu.
A lança é uma das mais velhas e mais importantes de todas as armas
de mão usadas pelos celtas e outros combatentes europeus. Ela é uma arma
relativamente simples visto que evoluiu de uma vara que tinha sido afiada
em forma de ponta em uma extremidade. A ponta pode ter sido endurecida
com fogo, mas foi finalmente substituída por um osso, uma pedra ou uma
4
Em inglês,
hand-and-a-half sword.
(N. da T.)
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ponteira de metal. A função principal da lança era a de perfurar a armadura
ou tecido do corpo e dessa forma os movimentos de combate associados com a
lança refletem isto. As lanças eram usadas tanto sendo atiradas de cima de um
cavalo, como de paredes ou em um melle (batalha a pé).
Facas e punhais eram armas de reserva que eram usadas a queima
roupa para serem empurradas em áreas fracas da armadura, para cortar um
oponente, cortar gargantas e apunhalar o corpo. Elas ficaram populares no
fim da Idade Média e eram usadas principalmente pelos francos, vikings e
anglo-saxões (BRADBURY, 2004, p. 250). Facas e punhais podem ter uma
lâmina dupla ou simples e podem ser tradicionalmente usadas para fatiar e
empurrar. Historicamente elas eram feitas de cobre, latão e bronze, entretanto,
evoluíram para serem feitas de ferro e aço (CLEMENTS, 2006, p. 2). Punhais
são uma arma padrão estudada em combate cênico e são normalmente usados
juntamente com o florete para formar a base da técnica do “florete e punhal”.
A espada curta desenvolveu-se como uma progressão natural da
faca longa. Espadas curtas eram usadas principalmente para empurrar, mas
suas extremidades eram afiadas em ambos os lados para tornar possível
também cortar (CLEMENTS e HERTZ, 2009). As espadas continuaram
desenvolvendo-se em uma variedade de tamanhos, pesos e formas de lâminas.
Ao longo dos séculos as espadas progrediram desde a simples forma de
uma lâmina de bronze para a moderna forma de lâmina curta e rápida, bem
apropriada para o combate corpo a corpo.
As formas mais populares de espada incluem o sabre ou cimitarra
(derivada da palavra persa Shamshir), que são espadas com um único gume
usadas principalmente para cortar e picar. Acredita-se que a espada de forma
curva originou-se no Oriente Médio, possivelmente na Arábia, Turquia ou
Pérsia durante o Império Otomano (COWPER, 2008, p. 134). Estas espadas
eram particularmente úteis quando montando cavalos, visto que a velocidade
e impulso do deslocamento aumentavam muito a sua capacidade para
perfurar armaduras. A cimitarra, que se parece com um machete grande, foi
primeiramente usada na Inglaterra, França e Alemanha para penetrar coletes
de metal. Ela apresentava uma lâmina curva que, semelhante ao sabre, tornou-
se útil para cavalaria.
Lâminas do tipo Bastarda ou Mão-e-meia são frequentemente
conhecidas como “espadas longas” ou “espadas de lâmina larga”, porém
“espada de lâmina larga” é um termo que vem sendo aplicado erroneamente às
diferentes armas classificadas como tendo uma lâmina mais larga e mais longa
do que as armas de empurrar usadas pelos espadachins do século XVII. John
Clements (2009, p. 2) escreve: