2. Urubus e sabiás
(1) Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam...
(2) Os urubus, aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o canto,
decidiram que, mesmo contra a natureza, eles haveriam de se tornar grandes
cantores. (3) E para isto fundaram escolas e importaram professores,
gargarejaram dó-re-mi-fá, mandaram imprimir diplomas, e fizeram competições
entre si, para ver quais deles seriam os mais importantes e teriam a permissão de
mandar nos outros. (4) Foi assim que eles organizaram concursos e se deram
nomes pomposos, e o sonho de cada urubuzinho, instrutor em início de carreira, era
se tornar um respeitável urubu titular, a quem todos chamavam por
excelência. (5) Tudo ia muito bem até que a doce tranquilidade da hierarquia dos
urubus foi estremecida. (6) A floresta foi invadida por bandos de pintassilgos
tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas com os
sabiás... (7) Os velhos urubus entortaram os bicos, o rancor encrespou a testa, e
eles convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito. (8) “- Onde
estão os documentos dos seus concursos ?” (9) E as pobres aves se olharam
perplexas, porque nunca haviam imaginado que tais
coisas houvessem. (10) Não haviam passado por escolas de canto, porque o
canto nascera com elas. (11) E nunca apresentaram um diploma para provar que
sabiam cantar, mas cantavam, simplesmente... (12) “– Não, assim não pode ser.
Cantar sem titulação devida é desrespeito à ordem.” (13) E os urubus, em
uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás...(14)
MORAL: Em terra de urubus diplomados não se ouve canto de sabiá.
3. Pode-se comprovar, observando o texto anterior, que um texto não é apenas
uma soma ou sequência de frases isoladas. Veja-se o início:
• “Tudo aconteceu...” Que tudo é esse?
• O que foi que aconteceu numa terra distante, no tempo em que os
bichos falavam?
• Em (3) temos o termo isto: “E para isto fundaram escolas...” Isto o
quê?
• Ainda em (3), qual é o sujeito dos verbos fundaram, importaram,
gargarejaram, mandaram, fizeram?
• É o mesmo sujeito de "teriam"?
4. • Fala-se em quais deles: deles quem? E quem são os outros?
• Qual é o referente de eles em (4)?
• Em (5) tem-se novamente a palavra tudo: “Tudo ia muito
bem...” Será que essa segunda ocorrência do termo tem o
mesmo sentido da primeira?
• Em (7), a quem se refere o pronome eles? E seus em (8)?
• Quais são as pobres aves de que se fala em (9)?
• E as tais coisas?
• Elas, em (10), refere-se a pobres aves ou a tais coisas ? De
que passarinhos se fala em (13)?
•
5. Se as perguntas podem ser facilmente respondidas pelos eventuais leitores, é
porque os termos em questão são elementos da língua que têm por função
precípua estabelecer relações textuais: são recursos de coesão textual.
O uso de elementos coesivos dá ao texto maior legibilidade, explicitando os
tipos de relações estabelecidas entre os elementos linguísticos que o
compõem. Assim, em muitos tipos de textos – científicos, didáticos,
expositivos, opinativos, por exemplo – a coesão é altamente desejável,
como mecanismo de manifestação superficial da
coerência. .
6. Coesão é a conexão dos elementos do texto
de forma a criar harmonia entre eles.
Trata, basicamente, das articulações
gramaticais que existem entre as palavras,
frases e orações cuidando para que haja boa
sequência entre parágrafos, orações, períodos
e palavras.
7. Tipos de coesão
• Coesão referencial: é quando um termo ou expressão
substitui, refere-se a um outro pertencente ao
universo textual. Esse tipo de coesão ocorre quando
os elementos coesivos ou conectivos retomam ou
anunciam palavras, frases e sequências que
exprimem fatos ou conceitos.
• Coesão sequencial: ocorre por meio dos
componentes do texto que estabelecem relações
semânticas entre orações, períodos ou parágrafos à
medida que o texto progride.
8. Mecanismos de coesão referencial
• ANÁFORA – ocorre quando um termo já dito (referente) é recuperado
por meio de um item coesivo depois.
"Em tudo o que a natureza opera, ela nada o faz bruscamente”
"Aquele que recebe um benefício não deve jamais esquecê-lo; aquele que o
concede não deve jamais lembrá-lo.“
• CATÁFORA – é quando o termo pressuposto (referente) aparece após o termo
coesivo.
“Há três coisas que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada,
e a oportunidade perdida.” (Provérbio Chinês)
“Ela está no horizonte (...) Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos, e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe
jamais a alcançarei. Então para que serve a utopia? Para isso mesmo; para nos
fazer caminhar...” (Anônimo)
9. Mecanismos de coesão referencial
• ELIPSE – se dá quando algum elemento do texto é
retirado, evitando a repetição.
“É preciso viver, [é preciso] não apenas existir.” (Plutarco)
• REITERAÇÃO – é decorrente da repetição do mesmo
item lexical e de outros procedimentos já mencionados
acima como o emprego de sinônimos, hiperônimos etc.
"Questionar não é duvidar, questionar é querer saber
mais!"
"Coragem é resistir ao medo. Coragem não é a ausência
do medo."
10. A contiguidade é um mecanismo de coesão referencial que
CONSISTE NO USO DE TERMOS PERTENCENTES A UM
MESMO CAMPO SEMÂNTICO (sinônimos ou quase sinônimos)
no texto com o objetivo de:
Evitar a repetição de palavras no texto;
Fazer retomadas da ideia/tema central do texto;
Contribuir com a progressão textual.
EX.:
“À medida que o rio se afunila entre os paredões cada vez mais
verticais, a correnteza vai ganhando velocidade e companhia de
uma espuma branca, originada pelo choque violento
das águas contras as pedras.”
Observe que os substantivos destacados criam no texto um
campo semântico relacionado a rio. À medida que cada um
desses substantivos é utilizado, retoma o tema central e faz com que o
texto progrida.
11. EXEMPLOS
1. a. Os alunos foram advertidos pelo mau comportamento. Caso isso
volte a acontecer, eles serão suspensos.
Nesse texto, o termo alunos e a expressão mau comportamento foram
retomados pelos elementos coesivos “eles” e “isso”
b. Os alunos foram advertidos pelo mau comportamento. Caso isso
volte a acontecer, deverão ser suspensos.
Já nesse texto, optou-se pela omissão do pronome “eles”, havendo,
portanto, a coesão por elipse.
3. Os jornalistas protestaram após a decisão do STF quanto à não necessidade de
diploma para o exercício da profissão. Segundo o sindicado da categoria, essa
decisão é uma afronta à prática de um jornalismo profissional e eficiente.
Nesse texto, recorreu-se a coesão por contiguidade; categoria substitui jornalista
– há um quase sinônimo.
12. COESÃO SEQUENCIAL POR OPERADORES
ARGUMENTATIVOS
Esses elementos são responsáveis por evidenciar a intensidade
argumentativa do discurso e qual o caminho que o falante está
trilhando.
Do ponto de vista gramatical, as palavras que funcionam como
operadores argumentativos
são os conectivos (notadamente as conjunções),
os advérbios e outras palavras que, dependendo do contexto, não
se enquadram em nenhuma das dez categorias gramaticais (são
classificadas como palavras denotativas):
até, inclusive, também, afinal, então, é que, aliás, etc.
13. Tipos de operadores argumentativos
Os operadores argumentativos são utilizados
para introduzir variados tipos de argumentos.
Veja os mais comuns:
Operadores que introduzem argumentos que
se somam a outro tendo em vista uma
mesma conclusão: e, nem, também, não
só… mas também, não só… mas ainda, além
disso, etc.
EX.: Os efeitos danosos do trabalho infantil sobre a
escolarização são sentidos não só nas crianças
menores mas também nos adolescentes.
14. Operadores que introduzem enunciados que
exprimem conclusão em relação ao que foi
expresso anteriormente: logo, portanto, então, em
decorrência, consequentemente, etc.
Ex.: O trabalho infantil prejudica o
desenvolvimento físico, emocional e intelectual
da criança, portanto deve ser combatido.
15. •Operadores que introduzem argumento que se
contrapõe a outro visando a uma conclusão
contrária: mas, porém, todavia, embora, ainda
que, mesmo que, apesar de, etc.
Ex.: Muitas pessoas são contra a exploração de
crianças e adolescentes, mas poucas fazem
alguma coisa para evitar que isso aconteça.
16. Esses operadores são geralmente representados pelas
conjunções adversativas e concessivas. A opção por
determinado tipo de conjunção tem implicações na
estratégia argumentativa.
Por meio das adversativas (mas, porém, todavia, contudo,
etc.), introduz-se um argumento que leva o interlocutor a
uma conclusão contrária a que chegaria se prevalecesse
o argumento usado no enunciado anterior.
Com as concessivas (embora, se bem que, ainda que,
etc.), o locutor dá a conhecer previamente o argumento
que será invalidado.
17. Ex.: Milhões de crianças e adolescentes trabalham
no Brasil, mas isso é proibido pela Constituição.
Ex.: Embora a Constituição proíba, milhões de
crianças e adolescentes trabalham no Brasil.
18. • Operadores que introduzem argumentos
alternativos: ou, ou… ou, quer… quer, seja…
seja, etc.
EX.: Ou sensibilizamos a sociedade sobre os
efeitos danosos do trabalho infantil, ou o
problema persistirá.
•Operadores que estabelecem relações de
comparação: mais que, menos que, tão…
quanto, tão… como, etc.
EX.: O problema do trabalho infantil
é tão grave quanto o do desemprego.
19. •Operadores que estabelecem relação de
justificativa, explicação em relação a enunciado
anterior: pois, porque, que, etc.
Ex.: Devemos tomar uma decisão urgente, pois o
problema tende a se agravar.
•Operadores cuja função é introduzir enunciados
pressupostos: agora, ainda, já, até, etc.
Ex.: Até o papa manifestou sua indignação.
Nesse enunciado, pressupõe-se que outras
pessoas, além do papa, tenham manifestado
indignação.
20. A coerência está diretamente ligada a coesão
do texto, pois uma comunicação eficaz depende
da manutenção dessa relação.
Um texto coerente é aquele que possui sentido
único e trata de um mesmo tema do início ao
fim.
21. Princípios básicos devem ser seguidos para manter um
texto coerente, sendo eles:
•Princípio da Relevância: ideias precisam se relacionar
•Princípio da Não Tautologia: evitar ideias redundantes
•Princípio da Não Contradição: evitar ideias
contraditórias
•Princípio da Continuidade Temática: o texto deve seguir
dentro do mesmo assunto
•Princípio da Progressão Semântica: inserir informações
novas para seguir o todo.
22. Esses princípios são garantidos caso alguns fatores sejam
levados em consideração para garantir a coerência textual.
São eles:
Conhecimento de mundo (enciclopédico) – adquirido no
contato com o mundo que nos cerca.
- Conhecimento linguístico - utilização adequada da
gramática ou sistema da língua, em que o texto é
produzido.
- Conhecimento compartilhado – parcela de
conhecimentos comuns ao produtor e ao receptor do texto.
23. Referências
TERRA,E. Práticas de leitura e escrita. São Paulo.
Saraiva: educação 2019
KOCH, I.V; TRAVAGLIA, L.C. A coerência textual –
São Paulo. Editora Contexto.
https://www.ernaniterra.com.br/coesao/
24. Proposta de prática textual.
Identificar na crônica alguns recursos coesivos utilizados
pelo autor.
Texto - Furto de flor
Furtei uma flor daquele jardim. O porteiro do edifício
cochilava, e eu furtei a flor.
Trouxe-a para casa e coloquei-a no copo com água. Logo
senti que ela não estava feliz. O copo destina-se a beber, e
flor não é para ser bebida
Passei-a para o vaso, e notei que ela me agradecia,
revelando melhor sua delicada composição. Quantas
novidades há numa flor, se a contemplarmos bem.
25. Sendo autor do furto, eu assumira a obrigação de conservá-
la. Renovei a água do vaso, mas a flor empalidecia. Temi
por sua vida. Não adiantava restituí-la ao jardim. Nem
apelar para o médico de flores. Eu a furtara, eu a via
morrer.
Já murcha, e com a cor particular da morte, peguei-a
docemente e fui depositá-la no jardim onde
desabrochara. O porteiro estava atento e
repreendeu-me.
– Que ideia a sua, vir jogar lixo de sua casa neste
jardim!
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Rio de Janeiro, José Olympio, 1985. p. 80.