1. A POPULAÇÃO NEGRA NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Candida Soares da Costa – Doutoranda
Profa. Dra. Iolanda de Oliveira – Orientadora
Universidade Federal Fluminense – UFF
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT
Núcleo de Est. e Pesquisas Sobre Rel. Raciais e Educação – NEPRE
RESUMO
Sabe-se que o racismo no Brasil tem sido difuso e intenso, causando drásticos danos nas
relações e nas condições sociais vivenciados por determinados grupos étnico-raciais. As
conseqüências desses prejuízos atingem, diretamente, a parcela negra da população
brasileira com prejuízos singulares para toda a nação. Uma das causas desses danos
advém do mito de que os índices inferiores em média de anos de estudos para a
população negra são conseqüências de seu desinteresse pela escola, desconsiderando,
portanto processos históricos de exclusão desse segmento populacional da educação
formal. O presente texto é o resultado de uma pesquisa bibliográfica, sobre a educação
do negro no Brasil numa perspectiva histórico-social da Educação Brasileira. Faz uma
abordagem sobre artifícios legais utilizados como impedimentos à escolarização da
população negra e apresenta elementos que contribuem para a desconfiguração do mito
sobre o desinteresse dessa população pela educação escolar.
Palavras-Chave: História da Educação – População Negra – Racismo.
O racismo no Brasil tem sido difuso e intenso, causando drásticos danos nas
relações e nas condições sociais vivenciados por determinados grupos étnico-raciais. As
conseqüências desses prejuízos atingem, diretamente, a parcela negra da população
brasileira no que se refere ao seu ser e estar no mundo: problemas relativos a
identidades1, condições precárias e até subumanas de vida2, com prejuízos singulares
para toda a nação. O presente texto, portanto, é o resultado de uma pesquisa
bibliográfica sobre a educação do negro no Brasil numa perspectiva histórico-social.
Muitos são os autores que vêm empreendendo estudos sobre essa questão,
disponibilizando
trabalhos que têm fornecido
argumentos sólidos sobre as
conseqüências da discriminação racial na sociedade brasileira, que embora não haja
1
2
Cf. COSTA, Jurandir Freire. Prefácio “Da cor ao corpo: a violência do racismo. In: SOUSA, 1983.
Cf. Oliveira, 1999.
2. 2
formalmente um apart-heid entre negros e brancos, a cor da pele dos sujeitos vêm sendo
elemento determinante de estratificação social, pois o acesso e usufruto dos bens
socialmente produzidos, inclusive a educação, tem acontecido de forma mais favoráveis
para aqueles, cuja tez se apresenta com menor concentração de melanina. Análise
cuidadosa dos dados oficiais (HASENBALG, VALLE SILVA E LIMA, 1999), de
livros didáticos (SILVA, 1995 e 2001, COSTA, 2004) do pensamento social brasileiro,
especialmente os do final do século XIX e início do XX que serviram de base aos
ideários de nação e de povo brasileiro (CARRARA, 1996), bem como das funções e
papel da escola na construção desses ideários (MÜLLER, 1999), permitem compreender
como se fabricou e se mantém a imagem da parcela populacional negra brasileira como
um tipo de outsiders3 em uma nação que por ela, também, é construída.
Para início de conversa
O emprego do conceito cidadão não é recente no Brasil. Formalmente, a
Constituição de 1824, a primeira do país, já o utilizava, afirmando que o “Império do
Brazil é a associação política de todos os Cidadãos Brazileiros. Elles formam uma
Nação livre, e independente, que não admitte com qualquer outra laço algum de união,
ou federação, que se opponha á sua Independência” (Art. 1).
O artigo 6º classificou como brasileiros os que no Brasil tivessem nascido,
fossem ingênuos4 ou libertos5, ainda que o pai fosse estrangeiro, visto não residir por
serviço de sua nação; os filhos de pai brasileiro e os ilegítimos de mãe brasileira,
nascidos em país estrangeiro que viessem estabelecer domicílio no império; os filhos de
pai brasileiro em serviço no exterior, embora não viessem a estabelecer domicílio no
Brasil; os portugueses residentes no Brasil por ocasião da proclamação da
independência e que aqui permaneceram; e os estrangeiros naturalizados.
A definição de cidadão brasileiro, naquele contexto escravocrata, sinalizava para
uma perspectiva não somente de exclusão social, como de eliminação do segmento
negro da população brasileira, tanto no aspecto físico quanto no que se refere, também,
3
Sobre essa temática, vide Elias, 2000.
Arethuza Helena Zero define ingênuos como “crianças nascidas livres de mães escravas após a ‘Lei do
Ventre Livre’”. Essa afirmação se apresenta dissonante, haja vista de a Lei do Ventre Livre fora
promulgada em 1871, 47 anos após a Constituição de 1824, quando esse conceito já havia sido
empregado.
5
Segundo Souza: “ libertos eram os escravos alforriados, ou, usando-se a linguagem do direito romano,
manumissos, e ingênuos eram os filhos dos ex-escravos”.
4
3. 3
ao simbólico. Embora a maioria da população fosse composta por negros6, Azevedo
(1975) argumenta sobre a dificuldade em precisar a quantidade de negros africanos
submetidos ao regime de escravidão no Brasil, em virtude da medida do governo
brasileiro em ordenar a destruição dos documentos relacionados ao regime escravocrata
em 1891, sob a alegação de “por honra da pátria, e em homenagem aos nossos deveres
de fraternidade e solidariedade para com a grande massa de cidadãos que pela abolição
do elemento servil entraram na comunhão brasileira” (p. 12)7.
Se no que tange ao aspecto conceitual, cidadão brasileiro alcançava, entre os
negros, somente os ingênuos e os libertos, abria prerrogativas para práticas sociais e
elaboração de políticas para a nação sem a preocupação de se incluir a totalidade de sua
população, deixando excluída a sua maior parcela. Isso ficou evidente na contradição
instaurada na mesma Constituição de 1824: ao mesmo tempo em que assegurava aos
ingênuos e libertos o título de cidadão, formalizou-lhes a exclusão. Em seu artigo 94,
inciso II, impediu, formalmente, que todo o segmento populacional negro tivesse acesso
a direitos básicos como, por exemplo, o de votar e de ser votado. Os legisladores
definiram, constitucionalmente, três grupos de cidadãos que estariam impedidos de
exercer o direito de participar, mediante os pleitos eleitorais das decisões do país dentre
os quais estavam incluídos os negros. Não experienciariam, portanto, a materialização
simbólica do seu exercício de cidadania: “aqueles que não tivessem renda líquida anual
de duzentos mil réis por bens de raiz, indústria, comércio, ou emprego; os libertos; e os
criminosos pronunciados em querela, ou devassa”. Eliminavam-se, desse modo,
qualquer possibilidade de participação. Caso rompessem o impedimento econômico,
estariam amarados pelo racial e pelo. Embora apenas a instrução pública primária
estivesse legalmente assegurada às camadas populares, ao segmento negro da população
nem isso estava assegurado.
O Decreto nº 1.331, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecia que nas escolas públicas
do país não seriam admitidos escravos, e a previsão de instrução para adultos negros
dependia da disponibilidade de professores. Mais adiante, O Decreto nº 7.031-A, de
6 de setembro de 1878, estabelecia que os negros só podiam estudar no período
noturno e diversas estratégias foram montadas no sentido de impedir o acesso pleno
dessa população aos bancos escolares (BRASIL, 2004, p. 7).
6
Considero nesta discussão o conceito negro como uma categoria política que abarca pretos e pardos,
categorias utilizadas pelo IBGE, no que se refere à composição populacional brasileira.
7
Segundos dados do IBGE, em 1872, o ‘Recenseamento Geral do Império, primeiro censo demográfico
do Brasil’, demonstrou que do contingente da população brasileira os submetidos ao regime de
escravidão, na época, somavam-se apenas 15% de um universo populacional de 9.930.478 pessoas, sendo
1.510.806 ainda sob o regime de escravidão e 8.419.672 livres. Por cor, a população brasileira ficou assim
classificada: brancos, 3.787.289; pretos, 1.954.452; e pardos, 4.188.737.
4. 4
Tais medidas, bem como as que as sucederam, refletiram um ideal de
metamorfosear a população nacional em todos os aspectos, físico e culturalmente, de
modo a se distanciar de suas heranças negras e indígenas. No que se refere à população
negra, componente desta discussão, não é difícil constatar que, se não completamente,
tais medida foram de eficiência comprovada no que se refere, atualmente, ao
quantitativo de negros (pretos e pardos) no contingente populacional do país. Os dados
estatísticos têm demonstrado isso ao longo dos séculos, conforme pode se observar nas
tabelas 1 e 2, mediante as quais é possível efetuar comparações no que diz respeito aos
aspectos quantitativos entre os componentes da população brasileira, por cor, no
decorrer do período decorrido entre 1872 a 2000, tendo como base os dados censitários:
Tabela 1
Evolução da população brasileira, segundo a cor - 1872/1991
Cor
1872
1890
Brancos
3787289
6302198
Pretos
1954452
Pardos
1980
1991
26171778 32027661 42838639
64540467
75704927
2097426
6035869
5692657
6116848
7046906
7335136
4188737
5934291
8744365
13786742 20706431
46233531
62316064
Amarelos
...
...
242320
329082
482848
672251
630656
Sem declaração
...
...
41983
108255
46604
517897
534878
Total
1940
1950
1960
9930478 14333915 41236315 51944397 70191370 119011052 146521661
Disponível em http://www.ibge.gov.br/brasil500/negros/popnegra.html. Acessado em 26/08/2007.
Tabela 2
População brasileira, segundo a cor – 2000
Cor
2000
Brancos
91 298 042
Pretos
10 554 336
Pardos
65 318 092
Amarelos
761 583
Indígenas
734 127
Sem declaração
Total
1 206 675
169 872 856
Disponível em http://www.ibge.gov.br/brasil500/negros/popnegra.html. Acessado em 26/08/2007.
Do mesmo modo como esse ideário brasileiro de nação produziu efeitos
significativos na composição numérica por cor da população, também exerceu uma
eficiente produção de desigualdades sociais, gerando uma gama de não escolarizados
composta em sua maioria por negros. A reforma educacional de 1827, bem como as que
5. 5
a sucederam, incluindo as leis de diretrizes e bases da educação nacional, vão impingir
uma perspectiva educacional que não leva em conta as desigualdades, historicamente
construídas no país, propiciando, cada vez mais, insucessos escolares da parcela
populacional menos afortunada pelas políticas nacionais, configurando-se ao segmento
negro estigmas de inaptidão intelectual e de desinteressados pela educação formal.
A educação escolar brasileira
A primeira lei sobre instrução pública no Brasil data de 1827, portanto três anos
após a promulgação da Primeira Carta Magna do País, mediante a qual já se assegurava
a todos os cidadãos o direito à instrução primária e gratuita.
No século XIX, a imprensa era palco dos debates recorrentes sobre a
escolarização ou não das classes populares, bem como das finalidades da educação
escolar destina a esses segmentos populacionais. Faria Filho (2003) anuncia que “as
propostas educativas e de instrução para as classes populares”, vistas pelas elites como
classes inferiores, estavam relacionadas às “propostas de constituição de uma nação
civilizada nos trópicos”. Revestiam-se de uma perspectiva “autoritária e excludente do
outro: os pobres, os negros, as mulheres e os povos indígenas” (p. 171). O projeto de
desenvolvimento da nação tecido naquele período se pautavam em princípios advindos
do positivismo, do darwinismo social, do evolucionismo, associados aos ideais
eugênicos e higienistas. Como as elites intelectuais brasileiras tinham como objetivo a
extinção dos pretos no Brasil e vislumbravam os mestiços como etapa intermediária
necessária no processo de branqueamento da nação, mas que também desapareceriam
em no máximo um século8, não é difícil compreender o porquê do seu extremo interesse
em relegar a população negra a enfáticos patamares de excludência. A intelectualidade
científica brasileira se incumbiu, no final do século XIX e início dos vinte, de soluções
aos problemas nacionais, tomando como referência a diversidade racial9 da nação.
Se por um lado, buscavam-se soluções aos problemas sociais que mantinham
estritamente relacionados à raça, tendo-a sob a perspectiva biológica, por outro, a elite
brasileira tinha como preocupação a construção de um ideário de nação. Para muitos
intelectuais “essa questão estava relacionada à instrução. [...] Assim, no legislativo, na
imprensa e em diversas outras instâncias sociais discutia-se a necessidade de educar e
8
Sobre a política de branqueamento, idealizada para tornar o Brasil um país branco, acabando assim com
os pretos e mestiços, portanto os negros, vide Skidmore, 1976.
9
Considera-se aqui o emprego do conceito de raça não como uma categoria biológica, mas como uma
construção social, que tem sido usada, a partir da percepção das características fenotípicas dos sujeitos,
como critério de definição de lugares e de direitos nas interações sociais.
6. 6
instruir o povo para garantir a ordem social.” (FARIA FILHO, 2003, p. 172). Isso, no
entanto, não significava a garantia de acesso a uma educação de qualidade a todos; mas
assegurar um mínimo de instrução, sem que isso implicasse em ascensão social às
camadas populares, posto que as propostas de massificação da instrução elementar a
todas as camadas populares se enraizavam em princípios de predestinação dos
indivíduos ou grupos aos lugares de maior ou menor prestígio social. Representava, na
verdade, para muitos, oportunidade de se fazer chegar a todos, indistintamente, os
ideários de pátria, bem como a legitimação das hierarquias entre as raças; a
naturalização das diferenças fenotípicas como sinônimo de superioridade/inferioridade
no imaginário social da nação, como um eficiente instrumento de controle social.
Ao longo de um século, no entanto, não se deu conta de se efetivar no país uma
educação inclusiva e de qualidade. Vidigal e Faria Filho (2005) anunciam que,
juntamente às celebrações do “Centenário do ensino primário” (p.7), foram aprovadas,
em 1927, as reformas educacionais propostas por Francisco Campos, em Minas Gerais,
e Fernando de Azevedo, no Rio de Janeiro, que se justificavam pelo insucesso no qual
se encontrava mergulhada a educação. Ocupavam-se os debates de temas sobre o tipo de
educação que se operava no país. O analfabetismo ocupava índices alarmantes, que
atingiam cerca de 80% da população. Esses índices preocupavam deveras parte da elite
intelectual local, haja vista que via na escolarização mínima do povo uma necessidade
exigida pelos ideais desenvolvimentistas da nação.
A escola primária e os livros de leitura
No decorrer da primeira república, procurou-se expandir a escola pública
primária. A escola primária e os livros de leitura ocuparam papel importante na difusão
e legitimação dos ideais desse novo momento histórico do país. Essa expansão,
portanto, originou a criação de demandas para a produção de livro didático10. Duas
temáticas se faziam presentes no cotidiano escolar e nos livros didáticos, denominados,
então de livros de leitura: 1) as belezas naturais do Brasil e 2) o povo brasileiro. Sobre a
população, a questão racial foi enfaticamente tratada. As imagens de negros e negras
foram focalizadas em perspectivas intensamente negativas, dando sustentação às
práticas sociais discriminatórias que na atualidade ainda persistem na sociedade
10
Cf. Razzini, 2005.
7. 7
brasileira. Foi um intenso processo de fabricação11 de uma sociedade que rejeita sua
ancestralidade negra em favor do desenvolvimento de um ideal branco12 .
Dentre os livros publicados naquele período, Muller (1999) analisa os adotados
em escolas de Mato Grosso, Minas gerais e Distrito Federal. No que se refere à natureza
brasileira, destaca Por que ufano meu país, de autoria do Conde de Afonso Celso, o
qual classifica como o mais popular dos livros de leitura.
Sua primeira edição é de 1901 e teve ampla difusão nas escolas brasileiras até o
início da década de 30. O texto é quase todo referente às bondades do clima e da
nossa geografia. Quando se refere à população do país, privilegia os feitos dos
colonizadores e bandeirantes [...] (p. 72).
Um outro livro apontado por Muller e Minha terra e minha gente de Afrânio
Peixoto, médico higienista. Esse livro foi editado pela primeira vez em 1914. Segundo a
autora, nele Peixoto se demonstra muito “rigoroso e pessimista com a composição
étnica da população, principalmente com nossa mestiçagem” (p. 73). Evidencia seu
desprezo pelos negros e mulatos e sua descrença no povo devido às suas características
mestiças. No entanto “Acredita na força da educação para conformar as mentalidades,
ainda que estivesse convencido da ‘inferioridade’ dos brasileiros” (p. 74), mas confia no
branqueamento como solução para os problemas do país.
Estudos recentemente realizados (COSTA, 2007) dão conta de que a escola
continua servindo de mediação aos ideais racistas que imperaram no pensamento social
brasileiro entre as últimas décadas do século XIX e grande parte do século XX, tanto
mediante práticas docentes que desconsideram os efeitos da discriminação racial na
sociedade brasileira, quanto por intermédio dos materiais e conteúdos didáticos
escolhidos para subsidiar as práticas educativas escolares. Ainda persistem, nos livros
didáticos, enfoques depreciativos da população negra semelhante aos apontados por
Muller, embora em formas de apresentação menos evidentes.
Novos horizontes e perspectivas
As lutas empreendidas pelo Movimento Negro têm sido das mais complexas,
dentre as quais as de reconstruir o imaginário social sobre a importância da população
negra que também constitui este país e por ele é, ao mesmo tempo, constituída. Entre as
conseqüências mais recentes desse movimento, podem ser apontadas o reconhecimento
oficial da existência de práticas racistas no Brasil e da equiparação dessas práticas a
11
Tomo esse termo de empréstimo do título do livro de Peter Burke, A fabricação do Rei, 1994, no qual
o autor analisa o processo de criação da imagem pública de Luís XIV no decorrer do seu reinado, e que o
transformou no Rei Sol.
12
Sobre os efeitos da violência social racista sobre o sujeito negro cf. Costa, 1983.
8. 8
crimes puníveis pela lei13 e, mais recentemente, a alteração das Leis de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, mediante a Lei nº. 10.639/2003, “[...] para incluir no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura
Afro-Brasileira" e no calendário escolar o 20 de Novembro como “Dia Nacional da
Consciência Negra”, dando como conseqüência mais imediata, a instituição das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. A Resolução nº
001/CNE/CP/2004, que institui as diretrizes, regulamentam a alteração mencionada,
visando a assegurar o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, mediante
a garantia do direito de acesso às múltiplas fontes de histórias e culturas de que o Brasil
se compõe. O Art. 3º, Parágrafo 3º dessa resolução, em consonância com o disposto na
Lei objeto de sua regulamentação, assegura que:
O ensino sistemático de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na
Educação Básica, nos termos da Lei 10639/2003, refere-se, em especial, aos
componentes curriculares de Educação Artística, Literatura e História do
Brasil.
Embora a expressão em especial retire a exclusividade dessas disciplinas sobre a
matéria em pauta, é inegável que é sobre elas que recai a responsabilidade pela
materialização, na práxis escolar, do que, a partir da alteração, passa a integrar a LDB nº
9394/1996. Pode-se afirmar que a indicação dessas disciplinas constitui uma restrição
lamentável, pois, constituindo o racismo um problema nacional, o seu combate deve
constituir-se uma política educativa e, como tal, integrar todo o currículo educacional
em todas as esferas de ensino.
A promulgação da Constituição de 1988 trouxe novas perspectivas, embora se
saiba que, na história do Brasil, marcadamente no que se refere à primeira constituição,
pode haver uma significativa distância entre a forma, as políticas e as práticas sociais.
Apontou para possibilidades de novos rumos nas formas como se configuram as
relações sócio-raciais no Brasil.
No que se refere especificamente à educação, os legisladores da Lei nº 9394/96
que instituiu as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional parecem não terem
levado em conta o fato de, mediante a Constituição de 1988, o Brasil reconhecer-se um
país racista, sinalizando para a necessidade de se lidar com as problemáticas
relacionadas à discriminação racial como um problema a ser enfrentado pela nação. Em
nenhum momento essa questão foi diretamente focalizada, exigindo mais quase uma
13
Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.
9. 9
década de luta do Movimento Negro para, em 2003, ter-se aprovada no país a Lei nº
10.639/03.
A LDB vigente, ao incorporar essas modificações, aponta para novos ângulos na
produção de conhecimentos ao que tange à Educação no Brasil, numa perspectiva em
que o negro também possa figurar como agente na história, contribuindo para a
desconstrução dos estigmas que lhe foram impostos.
Embora por muito tempo foram atribuídos aos negro supostos desinteresse e
inaptidão pela educação escolar, a história social da educação brasileira vem oferecendo
elementos que desqualificam esses mitos. Um exemplo de estudos nessa perspectiva são
os realizados por Silva (2000). Dão conta de que, em meados do século XIX, um
professor negro, Pretextato dos Passos Silva, reivindicava, às autoridades competentes,
reconhecimento de uma escola para meninos pretos, que fora criada por reivindicação
de famílias negras desejosas de um ambiente onde seus filhos pudessem estudar sem
serem coagidos pelo racismo corrente nas escolas da corte.
Isso demonstra quão infundáveis são os estigmas impingidos aos negros e às
negras no Brasil. Tais estigmas têm sido, favorecidos pelo fato de os currículos
escolares não contemplarem a história e a cultura do povo negro. Os conteúdos, quando
muito, fazem rápidas alusões sobre o tema, sem aprofundamento ou problematizações
consistentes. As problemáticas relacionadas à educação de negros e negras no Brasil
têm, quando muito, sido timidamente abordadas.
Geralmente, tais currículos têm
ignorado ou diluído as questões relacionadas à luta da população negra por acesso e
permanência no sistema educativo de modo a obter educação de qualidade, justa a todos
os brasileiros.
Embora haja estudos que ofereçam elementos para melhor compreensão de
como se tem construído a exclusão da população negra do sistema de educação formal,
e de como, apesar dos entraves essa população tem insistido na busca pela educação
escolar, esses estudos não vêm sendo contemplados em cursos de formação de
professores em âmbito de graduação ou de pós graduação. Também aí, as questões
relacionadas à discriminação racial continuam sendo vistas como um problema de
negros, não como um problema nacional e que, como tal, compete a busca de soluções
por todos os segmentos sociais, especialmente às instituições educativas14 que tanto
contribuiram para a construção da realidade de discriminação corrente no país. No
14
Sobre o papel das instituições na consolidação dos ideários racistas no imaginário social brasileiro, cf.
SCHWARCZ, 1993.
10. 10
entanto, podem contribuir, eficientemente, para a sua desconstrução. Para tanto, faz-se
necessário compreender que os efeitos da racionalidade científica sobre a composição
da humanidade em raças diversas, desenvolvida, mais enfaticamente no século XIX,
ainda tem encontrado lugar nas práticas cotidianas, tendo a educação seu maior palco. A
atualidade, no entanto, exige um “processo de descolonização epistêmica e de
socialização do conhecimento” (MIGNOLO, 2004, p. 668) e nesse contexto, do
abandono tanto de um tipo de educação que, historicamente, vem se demonstrando
excludente; quanto de um modo de produção de conhecimento que não considera ambos
os lados de uma mesma “moeda”, sem levar em conta os seres humanos negros no que
se refere a sua história, suas produções culturais, enfim, seu ser e estar no mundo.
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