Aula de atualidades do Cursinho FGV sobre a polêmica envolvendo o cancelamento da exposição Queermuseu, de curadoria de Gaudêncio Fidelis, em Porto Alegre
2. Efeito Santander
A intolerância voltou a assombrar a
arte.
Com curadoria de Gaudêncio Fidelis, que foi curador da Bienal do Mercosul de 2015, a
exposição "Queermuseu" tinha como mote a diversidade e as questões LGBT, aos moldes de
exposições estrangeiras como a Queer British Art (1861-1967, Londres - Inglaterra), e
a Hide/Seek: Difference and Desire in American Portraiture (Washington - EUA).
Porém a mostra foi cancelada no último domingo, um mês antes do previsto, depois que os
movimentos apontaram que a exposição fazia apologia à pedofilia e zoofilia. Os
movimentos também fizeram campanhas virtuais para que os correntistas do Banco
Santander, que mantém o centro, cancelassem suas contas como forma de boicote.
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3. Efeito Santander
Diferentes pontos de vista
Depois do cancelamento da mostra Queermuseu, o debate sobre qual tipo de arte pode ser
exibida ao público ganhou novos episódios na última semana.
Uma decisão proibiu que a peça teatral "O Evangelho segundo Jesus, rainha do céu",
estreasse no Sesc de Jundiaí (SP). O espetáculo retrata Jesus Cristo como uma mulher
transgênero nos dias atuais. Para o juiz Luiz Antonio de Campos Júnior, da 1ª Vara Cível da
cidade, figuras religiosas e sagradas não podem ser "expostas ao ridículo".
No dia 14/9, a polícia de Campo Grande apreendeu o quadro Pedofilia, da artista plástica
mineira, Alessandra Cunha, que denuncia a prática e integrava, desde junho deste ano, a
exposição Cadafalso, no Museu de Arte Contemporânea da cidade. De acordo com
deputados do MS e o delegado do caso, a obra incentiva relações sexuais com crianças.
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4. “ACREDITO QUE O TEMA
É TÃO TABU, QUE NÃO
PODEMOS NEM TOCAR
NO NOME. NÃO SE PODE
NEM USAR A PALAVRA
‘PEDOFILIA’ PARA DAR
TÍTULO A UMA PINTURA
QUE VÃO SE OFENDER,
JÁ QUE NA PINTURA EM
SI NÃO HÁ NENHUMA
IMAGEM DE VIOLÊNCIA
EM SI, ELA APENAS
DENUNCIA QUE ISSO
EXISTE EM NOSSA
SOCIEDADE”
ALESSANDRA CUNHA
5. Efeito Santander
Perseguição a arte
Segundo denúncia do jornalista Marcelo Mena Barreto, do site www.extraclasse.org.br,
membros da Frente Parlamentar Evangélica foram ao Museu Nacional Honestino Guimarães
(Museu Nacional da República), em Brasília, nesta quarta-feira, dia 13, para “inspecionar” a
exposição “Não Matarás”.
A exposição contem obras do artista brasileiro-catalão José Zaragoza (o Z da agência DPZ
Propaganda), falecido em maio deste ano em São Paulo.
O grupo foi capitaneado pelo coordenador da Frente Parlamentar, Takayama (PSC-PR), e
pelo Pastor Marco Feliciano (PSC-SP) e decidiu visitar o museu depois de receber “denúncia”
pelo WhatsApp de uma mãe que alegou ter ficado incomodada ao levar o filho menor de
idade ao centro cultural e se deparar com imagens de corpos nus.
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6.
7. SOBRE ALGUMAS DAS OBRAS
DA EXPOSIÇÃO
"Queermuseu - Cartografias da
Diferença na Arte Brasileira"
8. Uma das obras que causou
revolta foi a que faz
referência ao meme “Criança
Viada”, conhecido e
apreciado pela comunidade
LGBT. A obra “Travesti da
lambada e deusa das
águas”, de 2013, de autoria
de Bia Leite, “desmascara o
preconceito e a homofobia
através de uma iconografia
da cultura pop”, diz o curador
no texto explicativo do
catálogo da mostra.
10. A obra “Cruzando Jesus
Cristo com Deusa Shiva”,
de 1996, de Fernando
Baril, (abaixo) retrata “as
inúmeras pernas e braços
da figura que reverberam
pela superfície da pintura,
exibindo objetos de toda
ordem nas mãos e pés,
muitos deles relacionados
à história da arte e à
cultura pop”, explica o
curador da exposição no
catálogo.
11. “OLHA O SATANÁS
NO MEIO”,
FALA DE RAFINHA BK, DO M.B.L. DE PORTO ALEGRE.
12. “HÁ POUCO TINHA
CRIANÇAS OLHANDO
ESSA ‘ARTE’
ESCARNECENDO A
CRISTO”
FALA DE FELIPE DIEHL, BLOGUEIRO, DURANTE O VÍDEO EM
QUE ELE CIRCULA PELA EXPOSIÇÃO E CRITICA AS OBRAS
13. A cena “Cena de Interior
II”, de Adriana Varejão, mostra
o avanço da pintura brasileira
como manifestação crítica
diante do processo de
colonização do país. Trata-se
de uma pintura que cobre um
considerável território entre
sexualidade e história,
revirando (literalmente) as
hierarquias de raça,
influências, miscigenação,
explica o curador Gaudêncio
Fidelis em texto do catálogo
da obra.
14. “SÓ TEM PUTARIA, SÓ
TEM SACANAGEM”
FALA DE FELIPE DIEHL, BLOGUEIRO, DURANTE O VÍDEO EM
QUE ELE CIRCULA PELA EXPOSIÇÃO E CRITICA AS OBRAS
16. M Á R I O R Ö H N E L T , A R T I S T A
C O M O B R A E M E X I B I Ç Ã O
"É lamentável que o Santander Cultural tenha tomado
como solução, à menor levantada de tom do discurso
conservador, a pior via possível: o cancelamento da
mostra. Isto acarreta no desgaste da instituição, na
dúvida gerada sobre as verdadeiras intenções do banco
na produção de cultura. Os indivíduos têm o direito de
verem o que quiserem. O Banco poderia avisar que a
mostra pode conter material ofensivo a determinadas
crenças e comportamentos. Mas fechar as portas,
nunca. É dar o braço à torcer para os histéricos de
plantão. Por sinal, é bom lembrar que a mostra é linda!
E de altíssimo nível. A montagem é ótima e eu não
encontrei nenhum apelo às práticas da pedofilia e da
zoofilia."
17. S A N D R O K A , A R T I S T A
V I S U A L , Q U E T A M B É M
P A R T I C I P A D A
Q U E E R M U S E U
"É lamentável que essa onda conservadora
motivada por posições equivocadas e
ignorantes tenha forçado uma instituição
cultural a tomar essa posição de
fechamento de uma exposição que traz
uma temática importante para se pensar
no mundo hoje é nas relações de poder
entre grupos hegemônicos e grupos
vulneráveis. A heteronorma se afirma da
pior forma possível. Todos e todas
perdemos com isso."
18. G I L B E R T O S C H W A R T S M A N N ,
P R E S I D E N T E D A F U N D A Ç Ã O
B I E N A L D O M E R C O S U L , O
M A I O R E V E N T O D E A R T E
L A T I N O - A M E R I C A N A D O
M U N D O
“Fiquei triste. As pessoas têm o direito de
gostar e de não gostar, de querer e de
não querer. Mas precisam respeitar. O que
a gente precisa é de uma lição de
tolerância. Entendo todos os lados. As
pessoas não estão preparadas para certas
coisas. Isso aconteceu muito na história.
Coisas que nos assustam em 2020, não
nos assustam em 2040”,
19. L U C I A N O
A L A B A R S E ,
S E C R E T Á R I O
M U N I C I P A L D A
C U L T U R A D E
P O R T O A L E G R E
"Eu sempre fui contra a censura e
continuo."
20. L U I Z A M E L L ,
A P R E S E N T A D O R A
E A T I V I S T A P E L A
C A U S A A N I M A L
"Uma arte de péssimo
gosto"
21. “ E N T E N D E M O S Q U E A L G U M A S D A S
O B R A S D A E X P O S I Ç Ã O Q U E E R M U S E U
D E S R E S P E I T A V A M S Í M B O L O S , C R E N Ç A S
E P E S S O A S , O Q U E N Ã O E S T Á E M L I N H A
C O M A N O S S A V I S Ã O D E M U N D O ”
“Pedimos sinceras desculpas a todos os que se sentiram
ofendidos por alguma obra que fazia parte da mostra”
23. Brasileiro não vai em museus
Segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), 15% da população vai a
uma ampla categoria que engloba “eventos/centro culturais/museus”.
1 Ninguém é obrigado a visitar uma
exposição
Tratava-se de uma exposição que ninguém era obrigado a visitar. E quem compareceu
tinha todo o direito de manifestar sua queixa, desagrado ou entusiasmo.
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O Brasil ainda é um país livre
Não se pode, num país livre, querer censurar ou proibir uma manifestação artística. A fronteira
entre a crítica e a censura é muito sutil e perigosa. Todas as intolerâncias costumam ter origem
no “não gosto disso”. A crítica a uma obra de arte, até mesmo a mais ferina, não pode nunca
chegar ao extremo de boicotá-la pela força. Isso é fascismo.
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24. Crianças e classificação indicativa
Não se trata aqui nem de fazer uma censura às obras. Existe, porém, uma classificação
indicativa para qualquer produto cultural. Se os museus querem atrair mais público,
precisam estar atentos a isso.4
Dinheiro público
A renúncia fiscal é um instrumento legítimo para fomentar a produção cultural. Mas chega a
ser imoral um banco que lucrou R$ 2,3 bilhões nos últimos três meses pleitear dinheiro do
contribuinte — pediu R$903.560, teve aprovado o valor de R$850.560 e captou efetivamente
R$800.000.
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Religião
Existe uma tendência a relativizar qualquer ataque à religião cristã no Brasil, já que o país é
composto em sua maioria por católicos e evangélicos. As obras expostas no Santander Cultural
não foram as primeiras e nem serão as últimas a usar a religião como trampolim para a
polêmica.
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25. Boicote X Censura
O boicote promovido contra o Santander tem toda a validade e mostra a maturidade de uma
democracia na qual as pessoas podem se manifestar pelo que acreditam. Além disso, o
Santander, por sua vez, tinha a possibilidade plena de continuar com a exposição, se assim
quisesse. Já contra a censura promovida pelo Estado não há nada a ser feito.
Existe outro ponto que diferencia a censura do boicote. Quando o estado censura, é arbitrário.
Quando qualquer grupo promove um boicote, sabe que pode dar errado, não existe garantia
prévia de que o boicote funcionará. Há vários exemplos do lado oposto ter se movimentado e ter
sido bem-sucedido no contra-ataque.
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Cultura do repúdio e o politicamente correto
A arte muitas vezes aborda temas sensíveis ou nos apresenta a diferentes pontos de vista, muitas
vezes desconfortáveis. Os conservadores precisam tomar cuidado para não enxergarem o
mundo com um viés proibitivo. Já houve grupos de esquerda querendo banir livros e obras de
arte não adequadamente alinhadas com seu modo de pensar.
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26. ARTE é ARTE
Definir o que é arte pode ser extremamente difícil. Ou fácil, depende. Desde que
a Marcel Duchamp pendurou um urinol em um museu há cem anos, os limites se
expandiram. Basicamente o que ele quis enfatizar foi a prevalência da ideia
sobre a técnica. Por isso a discussão sobre se o que compõe a exposição do
Santander é arte ou não pode ser bastante infrutífera. A partir do momento que
um curador decidiu colocar aquilo dentro de um museu, pode-se dizer que é
arte. Cabe discutir se é arte boa ou ruim.
Havia ali obras de Cândido Portinari e Ligia Clark — reconhecidas
internacionalmente e que não estão envolvidas na polêmica. Mas, em se
tratando das obras que despertaram todo o ultraje, o expediente é antiquíssimo,
até reacionário. Nada mais velho que obras que atacam a religião, o capitalismo,
a “sociedade”, o “homem médio”, a “normatividade”. Chegaram com um atraso
de alguns séculos.
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28. A encenação de Romeu e Julieta pelo Ballet Bolshoi seria transmitida pela TV em 1976, mas foi vetada
pelo ministro da Justiça da época, Armando Falcão. A explicação: o Bolshoi era uma companhia russa, e
a Rússia fazia parte da União Soviética, que era comunista. Logo, a peça podia ser comunista também.
Falecida em 2002, Cassandra Rios é a escritora mais censurada do Brasil. Em 1976, ela teve 33 de seus
36 livros proibidos pela ditadura. Os censores alegavam “temas atentatórios à moralidade pública” para
vetar livros apimentados, como O Prazer de Pecar. Homossexual, Cassandra chegou a ser condenada à
prisão.
A música Pra Não Dizer que Não Falei das Flores (Caminhando) foi proibida por causa do conteúdo
subversivo. O autor, Geraldo Vandré, foi para o exílio e por muito tempo acreditou-se que ele tivesse
sido torturado pelos militares, o que o artista negou há pouco. A canção virou um símbolo da oposição à
ditadura.
Dirigido por Stanley Kubrick, Laranja Mecânica foi lançado em 1971 e duramente censurado em vários
países. Barrado pelo governo Médici, o filme só conseguiu liberação por aqui em 1978. Mesmo assim,
bolinhas pretas cobriam os seios e a genitália dos atores nas cenas de nudez do filme.
29. REFLEXÃO
Ao longo da História, já existiram aqueles que não gostavam
da democracia e suas liberdades – e as cancelaram. Aqueles
que não gostavam dos judeus e os exterminaram. Aqueles
que não gostavam dos livros e jornais e os queimaram nas
fogueiras da Inquisição. Hoje, há pessoas que continuam
matando os gays porque não gostam deles. Ou que
apedrejam templos religiosos que não estão de acordo com
sua fé – como aconteceu com uma mãe de santo, obrigada à
força a destruir seu próprio terreiro em Nova Iguaçu, no
estado do Rio.