1. Elísio Estanque*
Jornal PÚBLICO, 14.04.2014
Ambivalências da sociologia portuguesa
Na altura em que se reúne em Évora o VIII Congresso da Sociologia Portuguesa,
pode justificar-se um breve balanço em torno da disciplina, das suas promessas e
dilemas. A sociologia nasceu no século XIX quando a “questão social” e a miséria da
classe operária ameaçavam o capitalismo emergente no mundo ocidental: com Marx,
ela quis ser uma ferramenta para “mudar” a sociedade; com Durkheim, um instrumento
“terapêutico” para curá-la da “anomia” social; e com Weber um meio de compreender a
racionalidade das instituições, da economia e dos indivíduos.
A explicação do social através do social é a vocação principal da sociologia, mas
como o social tende a insinuar-se nas zonas mais recônditas da estrutura da
sociedade, a tarefa de lhe dar visibilidade obriga a romper com as aparências, ou seja,
com as ideologias “oficiais” e os estereótipos do senso comum. Mais do que a rutura
bachelardiana ou a descoberta da “verdade”, a sua missão é a de fazer com que certos
fenómenos da vida social tidos como “naturais” sejam vistos como fruto da própria
sociedade e, desse modo, passem a ser questionáveis. A sociedade está em nós e ao
mesmo tempo constrói-se e reproduz-se a partir da dinâmica intersubjetiva, o que dá
razão a Marcel Proust quando afirmou que “o social é a criação do pensamento dos
outros”. Porém, mais do que a simples interação, importa olhar as estruturas. É
fundamental entende-las não enquanto forças deterministas mas enquanto processos
com poder de resiliência cuja inércia tende a impor-se aos indivíduos, condicionando a
sua consciência e muitas vezes anulando a sua capacidade de ação. É por isso que,
olhando as atuais sociedades, cujas relações sociais são estruturadas sob assimetrias
de poder e desigualdades tão flagrantes, a objetividade e o rigor teórico e metodológico
da sociologia não podem confundir-se com “neutralidade”.
Em Portugal, foi o prof. Adérito Sedas Nunes que fundou a sociologia portuguesa, a
partir do ex-GIS/ Gabinete de Investigações Sociais (fundado em 1962) e, logo depois,
a Revista Análise Social (1963), a primeira publicação periódica da nossa sociologia,
seguindo-se-lhe, já em 1978, a Revista Crítica de Ciências Sociais, em Coimbra e mais
2. tarde a Sociologia – Problemas e Práticas (1986 – ligada ao ISCTE), ainda hoje
consideradas as mais importantes revistas desta área. Só após o período agitado da
Revolução dos Cravos, este campo académico se consolidou e desenvolveu. Depois
de ter sido uma ciência “maldita”, tornou-se para alguns sinónimo de “socialismo”.
Curiosamente, a primeira geração de sociólogos portugueses não foi licenciada em
sociologia. Em muitos casos, a sua formação foi obtida em áreas afins nas
universidades europeias na década de 1960, quando Portugal estava ainda
mergulhado no obscurantismo e a Europa despertava para as primeiras rebeliões da
juventude. Entre as convulsões sociais e a sociologia como ciência sempre existiu uma
relação ambivalente: no maio de 68 em Paris a sociologia foi acusada de ter “uma
prática racionalista ao serviço de fins burgueses” (Daniel Cohn-Bendit e outros
«Pourquoi des sociologues?»), mas muitos dos que viriam a engrossar a geração
seguinte da sociologia também passaram pelos campi de Nanterre e da Sorbonne.
Estima-se que existam, hoje em dia, cerca de 30 mil sociólogos em Portugal,
saídos dos cursos que entretanto floresceram no país (Lisboa, Porto, Coimbra, Évora,
Braga, Covilhã, Faro), a maioria deles licenciados na última década. Segundo um
inquérito recente realizado pela APS – Associação Portuguesa de Sociologia, 86,6%
dos licenciados estão empregados e 63,8% deles consideram que a sua formação é
adequada às tarefas que desempenham. No entanto, os setores que mais absorvem
sociólogos inserem-se na área das políticas públicas (educação, investigação,
administração pública e segurança social) enquanto a componente de mercado é ainda
praticamente residual, o que é bem revelador da fraca sensibilidade do tecido
empresarial para contratar sociólogos. Os municípios, o ensino e formação, e o campo
associativo e do desenvolvimento local absorvem o que resta da atividade da
sociologia portuguesa, na vertente “técnica” ou profissional.
Talvez a própria sociologia pudesse ter feito mais pelo seu reconhecimento no
plano profissional, mas aí reside outra das suas ambivalências, ou seja, o facto dela
continuar, quase duzentos anos depois, a querer, por um lado, agir no seio das
instituições para “olear” o sistema e, por outro lado, a participar da dinâmica da
sociedade civil e a acompanhar os movimentos e as forças que denunciam os poderes
e as iniquidades da estrutura social no seu conjunto. Sempre que as rebeliões sociais e
a conflitualidade “aquecem” a sociedade, a sociologia debate-se com o dilema entre
“aperfeiçoar” a “ordem” ou estimular a mudança radical. O conhecimento do social
pode, portanto, ser mais instrumental ou mais reflexivo; e, dependendo do cruzamento
entre eles e os tipos de público a que se dirigem (académico ou extra-académico),
assim a sociologia será mais funcionalista ou mais crítica, mais virada para as
instituições, para si própria ou para uma sociologia pública dirigida aos cidadãos e aos
grupos subalternos.
Num momento em que as instituições voltaram a bloquear e a sociedade volta a
dar sinais de “anomia”, quando o sistema capitalista exibe de novo a sua vocação mais
3. desumana – cujo efeito é uma nova barbárie que está a esgaçar o tecido social e a
arruinar a coesão, construída, a custo, na segunda metade do século passado –,
precisamos decidir, enquanto sociólogos, se ainda há espaço para a “reforma” deste
sistema, ou se devemos reinventar uma teoria crítica que promova novas utopias e
ajude a abrir caminhos alternativos ao atual modelo de “sociedade ocidental”.
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* Professor da Faculdade de Economia e investigador do Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra.