1. Quem quer viver na Venezuela?
Passaram 25 anos desde que assisti a um animado debate universitário sobre a revisão constitucional.
Estávamos em 1996 e o “tema quente” era a relevância do alargamento do âmbito do referendo.
O painel integrava os então líderes das bancadas parlamentares do PS e do PSD. Quem os ouvisse, ficava
convencido de que havia na rua um clamor popular por uma maior participação na política.
Ao mesmo tempo, quem, na altura, questionava se a participação dos cidadãos não devia ser incentivada
antes com medidas de combate à abstenção – nas legislativas de 1995 a taxa de abstenção atingiu 33,7%
- através, por exemplo, da introdução do voto obrigatário, ouviu que: “Faz-me lembrar o Prof. Marcello
Caetano quando dizia que os Portugueses não tinham democracia porque não estão preparados para a
ter”. Nunca encontrei a fonte dessa citação.
Ora, desde então, realizaram-se três referendos, tendo as taxas de abstenção variado entre os 51,8% e
os 68,11%. Nas eleições legislativas, a taxa de abstenção não pára de aumentar, tendo em 2019 atingido
os 51,4%.
A abstenção é, porventura, um dos maiores desafios civilizacionais com que nos deparamos. Agora, como
em 1996, pouco ou nada se faz para a combater.
O direito ao voto é um direito fundamental consagrado, designadamente, pela Declaração Universal dos
Direitos do Homem no n.º 3 do seu artigo 21.º onde se estabelece que: “A vontade do povo é o
fundamento da autoridade dos poderes políticos; e deve exprimir-se através de eleições honestas a
realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente
que salvaguarde a liberdade de voto”.
Trata-se de um direito pessoal, inalienável e irrenunciável, que brota da concepção de dignidade de
pessoa humana herdada da matriz cultural judaico cristã, mas não é divino, nem eterno.
Em Portugal, a vontade do povo é essencial, pelo menos, desde as Cortes de Coimbra de 1385 onde,
numa Europa dominada pelo feudalismo, o “Terceiro Estado” foi chamado a participar nos assuntos da
governação da res publica. Por cá, foi o fim da Idade Média.
No período da democracia constitucional, entre 1820 e 1910, ainda que sem sufrágio universal e/ou
directo, os portugueses foram chamados a pronunciar-se em eleições para o Parlamento mais de 40
vezes.
2. Não somos, por isso, propriamente novatos nesta coisa de ir a votos. É falso que a Democracia só tenha
chegado a Portugal em 25 de novembro de 1975 e perigosamente redutor considerar que tudo não passa de
dores de crescimento.
Curiosamente, parece que, quanto mais instruídos somos, menos vontade temos de votar. Em 1975, a taxa
de analfabetismo em Portugal era de 26% e a de abstenção nas eleições para a Assembleia Constituinte foi de
8,5%. Em 2019, a taxa de analfabetismo é inferior a 5% e a de abstenção nas legislativas foi de 51,4%.
Já dizia Churchill que: “No one pretends that democracy is perfect or all-wise. Indeed it has been said that
democracy is the worst form of Government except for all those other forms that have been tried from time
to time”. É justamente esta imperfeição, a par da consciencialização da fragilidade, que deve motivar os
cidadãos a participar nas eleições. A Democracia é um meio, não é um fim, vai-se conquistando, não foi
conquistada e se não for cuidada, morrerá.
Em 1998, enquanto aqui se faziam referendos, na Venezuela, Hugo Chavez vencia as eleições presidenciais
por pouco mais de 1.000.000 de votos. 36,55% dos eleitores inscritos, cerca de 4.000.000 de pessoas, não
exerceram o seu direito. O que será que pensam hoje em dia aqueles que tiveram a oportunidade de votar e
escolheram não o fazer?
Impõe-se uma reflexão (cada vez mais) urgente sobre o tema e a Ordem dos Advogados, no contexto da sua
missão de defesa do Estado de Direito e dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, tem um papel
essencial a cumprir.