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O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO AUTORIDADE JUDICIÁRIA À
LUZ DO DIREITO EUROPEU
A vida de muitos de nós não se contém, hoje e já, nas fronteiras
dos nossos países.
Isto é assim tanto no que respeita à vida económica, social e
institucional, como, também, no que se refere às atividades
criminosas e aos problemas jurídicos e interceções judiciárias
que, devido àquelas, vão surgindo no dia-a-dia de magistrados e
advogados.
Porém, não só no nosso, mas em muitos países europeus, a
solução dos problemas da organização judiciária e do direito
continua a ser vista apenas numa perspetiva puramente
nacional.
Poucos são ainda, com efeito, os profissionais do foro que
ousam confrontar os problemas e as soluções legais e
jurisprudenciais nacionais com os indispensáveis contributos –
melhores ou piores – que o Tribunal de Justiça da União
Europeia (TJUE) vem encontrando para eles.
E, todavia, tais contributos são fundamentais para interpretar o
direito europeu e este, em muitos casos, sobrepõe-se ao direito
nacional ou, pelo menos, deve orientar a sua interpretação.
Procurador Geral-Adjunto
A N T Ó N I O C L U N Y
Vêm estas considerações a propósito de um conjunto de
acórdãos do TJUE relativos ao Mandado de Detenção Europeu
(MDE) e à Decisão de investigação Europeia (DEI).
Tais acórdãos obrigam, necessariamente, a repensar, hoje,
muitas das conceções existentes em diversos países sobre o
estatuto do Ministério Público (MP) enquanto autoridade
judiciária e o conceito de decisão judiciária a esta associada.
No que se refere à qualidade de autoridade judiciária do MP, o
TJUE veio, num conjunto de acórdãos recentes, afirmar que tal
conceito – o de autoridade judiciária – constitui um conceito de
direito europeu autónomo, que não pode, por isso, ser ignorado
pelo legislador nacional.
O TJUE assume que o MP só pode ser considerado, de acordo
com o direito europeu, uma autoridade judiciária quando o seu
estatuto nacional lhe confere independência e o obriga a uma
intervenção processual guiada sempre pelo princípio da
objetividade.
A este conceito de autoridade judiciária associou, também, o
TJUE um outro não menos importante: o de decisão judiciária.
O TJUE considerou, também, tal conceito uma noção própria de
direito europeu.
Por tal razão, as decisões do MP só devem ser consideradas
decisões judiciárias se, e quando, esta magistratura gozar do
estatuto de independência e exercer as suas competências
processuais, não como parte, mas guiado pelo princípio da
objetividade.
Caso se pretenda manter uma legislação processual penal que -
como acontece na maioria dos países europeus - atribui a esta
magistratura a direção da investigação criminal, a jurisprudência
europeia resolve, assim, uma já velha polémica política interna
em torno do estatuto e da autonomia do MP nacional.
Importante é, pois, que nos concentremos, agora, em problemas
reais, como o do controlo judicial e hierárquico das decisões dos
magistrados do MP e o da sua organização interna, tendo em
vista reforçar, simultaneamente, direitos dos cidadãos e
assegurar mais e mais bem-sucedidas investigações: enfim,
melhor e mais rápida Justiça.

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  • 1. O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO AUTORIDADE JUDICIÁRIA À LUZ DO DIREITO EUROPEU A vida de muitos de nós não se contém, hoje e já, nas fronteiras dos nossos países. Isto é assim tanto no que respeita à vida económica, social e institucional, como, também, no que se refere às atividades criminosas e aos problemas jurídicos e interceções judiciárias que, devido àquelas, vão surgindo no dia-a-dia de magistrados e advogados. Porém, não só no nosso, mas em muitos países europeus, a solução dos problemas da organização judiciária e do direito continua a ser vista apenas numa perspetiva puramente nacional. Poucos são ainda, com efeito, os profissionais do foro que ousam confrontar os problemas e as soluções legais e jurisprudenciais nacionais com os indispensáveis contributos – melhores ou piores – que o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) vem encontrando para eles. E, todavia, tais contributos são fundamentais para interpretar o direito europeu e este, em muitos casos, sobrepõe-se ao direito nacional ou, pelo menos, deve orientar a sua interpretação. Procurador Geral-Adjunto A N T Ó N I O C L U N Y
  • 2. Vêm estas considerações a propósito de um conjunto de acórdãos do TJUE relativos ao Mandado de Detenção Europeu (MDE) e à Decisão de investigação Europeia (DEI). Tais acórdãos obrigam, necessariamente, a repensar, hoje, muitas das conceções existentes em diversos países sobre o estatuto do Ministério Público (MP) enquanto autoridade judiciária e o conceito de decisão judiciária a esta associada. No que se refere à qualidade de autoridade judiciária do MP, o TJUE veio, num conjunto de acórdãos recentes, afirmar que tal conceito – o de autoridade judiciária – constitui um conceito de direito europeu autónomo, que não pode, por isso, ser ignorado pelo legislador nacional. O TJUE assume que o MP só pode ser considerado, de acordo com o direito europeu, uma autoridade judiciária quando o seu estatuto nacional lhe confere independência e o obriga a uma intervenção processual guiada sempre pelo princípio da objetividade. A este conceito de autoridade judiciária associou, também, o TJUE um outro não menos importante: o de decisão judiciária. O TJUE considerou, também, tal conceito uma noção própria de direito europeu. Por tal razão, as decisões do MP só devem ser consideradas decisões judiciárias se, e quando, esta magistratura gozar do estatuto de independência e exercer as suas competências processuais, não como parte, mas guiado pelo princípio da objetividade. Caso se pretenda manter uma legislação processual penal que - como acontece na maioria dos países europeus - atribui a esta magistratura a direção da investigação criminal, a jurisprudência europeia resolve, assim, uma já velha polémica política interna em torno do estatuto e da autonomia do MP nacional. Importante é, pois, que nos concentremos, agora, em problemas reais, como o do controlo judicial e hierárquico das decisões dos
  • 3. magistrados do MP e o da sua organização interna, tendo em vista reforçar, simultaneamente, direitos dos cidadãos e assegurar mais e mais bem-sucedidas investigações: enfim, melhor e mais rápida Justiça.