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N U N O S A N C H E S D E B A E N A
E N N E S
O VOTO: DIREITO, DEVER OU DIREITO-DEVER?
A República Portuguesa baseia-se na vontade popular e é um Estado de
Direito democrático, no qual o voto (ou sufrágio) é a principal das formas
previstas na Constituição para a manifestação pelo Povo da sua
vontade, isto é, para o exercício do poder político pelo Povo.
O voto é uma declaração de vontade política; uma escolha entre várias
alternativas, seja em eleição, seja em referendo; e está sujeito às regras
que estão previstas na lei: depende do recenseamento eleitoral, é
oficioso, obrigatório, permanente e único; para além disso, podem votar
os cidadãos maiores de 18 anos, e o voto é, universal, igual, directo,
secreto, periódico e pessoal.
A 30 de Janeiro de 2022 tiveram lugar, como previsto, as eleições
legislativas, e novamente a abstenção saiu à rua num dia assim, tendo-se
cifrado em 48,6% (Fonte: Pordata).
A abstenção é o não exercício, voluntário ou não, do direito de voto; a
diferença entre aquele que seria o valor máximo de participação se
todos votassem (100%) e a taxa de participação real. E em Portugal,
desde 1975, a tendência generalizada é de queda dos níveis de
participação, tendo-se tornado frequente falar do voto obrigatório como
um dos remédios possíveis e eficazes para contrariar essa tendência.
O voto é obrigatório quando o eleitor tem um dever que não é apenas
moral de se deslocar ao local de voto e colocar na urna o boletim
respectivo (independentemente de votar numa das opções apresentadas,
votar branco ou nulo). Para que o voto seja obrigatório basta que esteja
previsto como tal, não tendo de ter associadas sanções.
Vinte e sete países praticam esta modalidade de voto, três dos quais são
fundadores do que é hoje a União Europeia: a Bélgica, a França e o
Luxemburgo.
Em Portugal, qualificado como dever cívico e previsto na Constituição entre
os direitos, liberdades e garantias de participação política, o voto começou
por ser obrigatório, em 1976, e com sanções associadas ao seu não
exercício, assente na ideia de dever fundamental (como o de defesa da
Pátria). Paulatinamente, e sem que tenha havido alteração do texto da
Constituição, aquela ideia foi, porém, dando o lugar à do voto como direito
fundamental, que hoje predomina.
Mas, considerados os valores que a abstenção passou a atingir em
Portugal, faz sentido que continue a ser visto apenas como um direito? Não
faria sentido que se recuperasse em Portugal o sentido originário do voto,
de 1976? Sendo o voto de protesto possível através do voto branco ou nulo,
não deveria a não deslocação à mesa de voto ser vista como desinteresse
pelo sistema democrático, pela vida pública e pelos problemas nacionais, e
como expressão de falta do sentido da verdadeira liberdade, que não
dispensa a responsabilidade e que se tenha em vista o Bem Comum?
Em conclusão, não deve o voto ser considerado um direito, mas também
um dever (direito-dever) fundamental?
Lisboa, 15 de Abril de 2022.

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  • 1. Advogado N U N O S A N C H E S D E B A E N A E N N E S O VOTO: DIREITO, DEVER OU DIREITO-DEVER? A República Portuguesa baseia-se na vontade popular e é um Estado de Direito democrático, no qual o voto (ou sufrágio) é a principal das formas previstas na Constituição para a manifestação pelo Povo da sua vontade, isto é, para o exercício do poder político pelo Povo. O voto é uma declaração de vontade política; uma escolha entre várias alternativas, seja em eleição, seja em referendo; e está sujeito às regras que estão previstas na lei: depende do recenseamento eleitoral, é oficioso, obrigatório, permanente e único; para além disso, podem votar os cidadãos maiores de 18 anos, e o voto é, universal, igual, directo, secreto, periódico e pessoal. A 30 de Janeiro de 2022 tiveram lugar, como previsto, as eleições legislativas, e novamente a abstenção saiu à rua num dia assim, tendo-se cifrado em 48,6% (Fonte: Pordata). A abstenção é o não exercício, voluntário ou não, do direito de voto; a diferença entre aquele que seria o valor máximo de participação se todos votassem (100%) e a taxa de participação real. E em Portugal, desde 1975, a tendência generalizada é de queda dos níveis de participação, tendo-se tornado frequente falar do voto obrigatório como um dos remédios possíveis e eficazes para contrariar essa tendência.
  • 2. O voto é obrigatório quando o eleitor tem um dever que não é apenas moral de se deslocar ao local de voto e colocar na urna o boletim respectivo (independentemente de votar numa das opções apresentadas, votar branco ou nulo). Para que o voto seja obrigatório basta que esteja previsto como tal, não tendo de ter associadas sanções. Vinte e sete países praticam esta modalidade de voto, três dos quais são fundadores do que é hoje a União Europeia: a Bélgica, a França e o Luxemburgo. Em Portugal, qualificado como dever cívico e previsto na Constituição entre os direitos, liberdades e garantias de participação política, o voto começou por ser obrigatório, em 1976, e com sanções associadas ao seu não exercício, assente na ideia de dever fundamental (como o de defesa da Pátria). Paulatinamente, e sem que tenha havido alteração do texto da Constituição, aquela ideia foi, porém, dando o lugar à do voto como direito fundamental, que hoje predomina. Mas, considerados os valores que a abstenção passou a atingir em Portugal, faz sentido que continue a ser visto apenas como um direito? Não faria sentido que se recuperasse em Portugal o sentido originário do voto, de 1976? Sendo o voto de protesto possível através do voto branco ou nulo, não deveria a não deslocação à mesa de voto ser vista como desinteresse pelo sistema democrático, pela vida pública e pelos problemas nacionais, e como expressão de falta do sentido da verdadeira liberdade, que não dispensa a responsabilidade e que se tenha em vista o Bem Comum? Em conclusão, não deve o voto ser considerado um direito, mas também um dever (direito-dever) fundamental? Lisboa, 15 de Abril de 2022.