Germano nunca existiu, mas quem o criou deixou que sua história influenciasse os outros. Estes outros são personagens de seus próprios enredos. Enquanto Germano vive, ele vai tecendo uma teia de narrativas que envolvem três pessoas. Cada uma delas caminhará pela tenra e fina linha que Germano deixou como lastro.
No plano virtual, este três personagens vão vivendo suas vidas por esta herança: um escritor mais novo que já leu a história, um escritor mais velho que inventou esta história e uma mulher que viu a sua vida contada por esta mesma história.
Como essas vidas se entrelaçam? Como a teia de Germano capturou estas personagens?
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A teia de Germano (primeiro capítulo)
1. A Teia de Germano
(Roberto Muniz Dias)
Setembro 2014
2.
3. "Durante muito tempo,costumava deitar-me cedo.Às vezes
mal apagava a vela,meus olhos se fechavam tão depressa
que eu nem tinha tempo de pensar:'Adormeço'.E,meia hora
depois,despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar
dormir;queria largar o volume que imaginava ter ainda nas
mãos e soprar a vela;durante o sono não havia cessado de
refletir sobre o que acabara de ler,mas essas reflexões tinham
assumido uma feição um tanto particular;parecia-me que eu
era o assunto de que tratava o livro."
Marcel Proust (No caminho de Swan)
5. Prólogo
Erich,
Procuro na noite aquele silêncio que seria somente seu; não fosse
tua ausência. Aquela espera tola ao pé do telefone para ouvir a
confirmação: - Sim, estou a caminho. Então a procura para. Mas o
silêncio ainda impera sobre a forte vontade de dormir, ou talvez
fosse o sonho que precedia esta angústia por esperar. E ainda o
silêncio!
Queria te agradecer pelo terno gesto de me tocar a mão. Sentia-a
debaixo da mesa sem que os outros percebessem. E quando me
olhou bem perto de minha boca; e eu sem saber se te revidava o
beijo ou se entrava em teus olhos. Obrigado por me fazer sentir esse
arrepio na alma sem que ninguém observasse que você havia
sequer sussurrado algo. E quando senti seu forte peso sobre meu
corpo ainda que estivéssemos sentados um do lado do outro. Eu
não saberia como te agradecer.
Mas ainda é prenúncio de um sonho e a noite fica a embalar essa
embriaguez da razão. E fico a esperar teu cheiro na noite, invadindo
o quarto; pegando-me de costas, agarrando meu medo e destruindo
sua sombra. E eu podia jurar que você estava lá preenchendo
aquela, ou seria esta noite?
Não sei como te bendizer deste sorriso que me roubou. E agora me
pego rindo de sua palhaçada sem fim; de sua leve ligeireza das
mãos e os lábios finos a me repreender minha sisudez. E logo
estávamos rindo, mas ninguém sabia de nosso segredo. Não sei
como dizer que ontem eu me senti menos sozinha, mais mulher,
menos passarinho, mais solícita, menos apavorada com o silêncio
da noite.
6. O remédio me trazia a paz do sono. E fico antes disso tudo a te
beijar naquele intervalo entre o que se sente o que não se sente. É
muito tolo esse sorriso de nostálgica lembrança do que não houve,
da noite de ontem, do beijo que quase me beijou. Eu pude sentir
tudo ao mesmo tempo.
Não sei como dizer que te quero que te quero perto. E a distância de
nossos sonhos, em camas separadas me leva a ti de forma
contumaz. Fico a te querer alcançar com as pontas dos dedos ou
será com a ponta dos sonhos? Eu não sei o que dizer desse silêncio
que grita teu nome e somente eu te ouço: - Tô chegando, tô
chegando!
Isadora
Por muito tempo ele procurava o conhecimento, especialmente de si.
Depois de muito tempo também começou a pensar que talvez não precisasse
saber somente de si, mas especificamente do passado. A busca agora era pelo
passado.
A história que se segue é registro de todas as angústias de quem tenta
desvendar o que por muito tempo se ignorou; quem foi por muito tempo outro
e, de posse do passado, tornou-se um outro ainda. É uma história de histórias
dentro de outras. De pessoas que não queriam ser descobertas, pois suas
vidas lhes pertenceram de alguma forma restrita ao tempo pretérito. E quem a
encontra, depois de anos, também não está ciente de que este é um desejo
para o futuro.
E depois de muito tempo um reencontro muito estranho – está tudo
muito perdido entre o passado e a história –, há muito tempo, que não se sentia
desafiado. E quando passado e presente se misturavam, tudo parecia fazer um
sentido totalmente diferente.
7. Num quarto qualquer, outono de um dia do século XXI
(Meses após o encontro)
Lúcio aportou lá (ou retornou) naquele lugar há anos por conta própria.
De nada tinha do seu tal passado nacional. Não importava a ele se tinha sido
destituído de algum papel histórico do passado. Foi parar lá porque era um
estrangeiro para si mesmo. Só lhe interessava a busca.
(...)
Mas nem mesmo sabia o que o presente podia representar. Fosse talvez
um vagar do tempo em que o mesmo dia de ontem amanhecesse da mesma
forma que hoje. E o ligeiro amanhã parecesse intensamente com o
desaparecer de ontem. Dizia-se repetição, mas parecia que ele mesmo parava
com o tempo.
Desde a última vez que dormiu com alguém – fazia tempo – já não era
mais o mesmo, nem a cama, nem o espaço que os unia. Às vezes parecia
estranho à própria rotina: trocava o horário do café; a leitura matinal; os
horários de chegada e saída. Estava em desencontro e a ausência de um ao
outro começou a virar rotina; depois se desfazia estranhamente. Sabia de sua
passagem pela casa por meio de suas coisas desarrumadas; às vezes, a falta
de uma peça de roupa; o espaço do copo limpo e o perfume inodoro presente
por dentro daquele tempo. Mas tudo se parecia com um tempo presente, o
ontem ou o amanhã. De nada valeu a pena se distanciar; criar entre-lugares,
entre-tempos. Esquecia-se dos entre-eles-mesmos.
(...)
Mas isso parecia com a história do meio, porque o final ainda era sobre
ausência, o não-itinerário.
(...)
Lúcio veio atrás si, de um nós talvez, daquilo que deixou no ontem.
Fazia tanto tempo. Deveria fazer sim muito tempo. Veio atrás do seu road
8. movie no qual deixou rastros de sua vida mais nova. Veio seguindo tudo por
pequenas pistas. Estava tudo anotado. O que vinha depois ele ia lembrando
aos poucos. O rosto criado lhe lembrava de um leve sorriso e uma atenção a
cada palavra. Era muito mais próximo do que podia imaginar. Ele vinha com a
figura de outra pessoa, ou seriam pessoas? Sim, devia se atentar para as
anotações. Tinha de dar um rosto a Erich. Haveria de ser pelas palavras de
Isadora ou ele já poderia recriar o próprio Erich? A grafia se arredondava toda
vez que via Erich, se amortecia no papel. A impressão sobre o papel era sutil,
enquanto as outras amontoadas anotações se atropelavam. Tinha pressa nas
notas.
(...)
As cartas tentavam seguir uma cronologia afetiva.
“Um dia de sol e um piquenique. Recordo-me que adorava
piqueniques. Antes disso, lembro-me de que andávamos de mãos
dadas e soprava um vento limpo por entre nossos peitos abertos. Eu
queria correr. Eu sentia uma necessidade de sair correndo ao longo
do parque, me estender na grandeza da imensidão daquilo tudo.
Mas eu segurava minha vontade refreada pela mão que me dizia
algo sobre estar junto. Sentamos sobre a grama em cima de uma
toalha quadriculada. Tinha que ser linhas avermelhadas que se
entrançavam como preto e um branco no fundo. Deveria ser assim,
eu imaginava a toalha de piquenique. Lembro-me de ser alimentado
por suas mãos: ora um pedaço de damasco, ora um pão fino
adocicado com geleia. Ríamos. Lembro-me também dos risos que
invadiam a tarde ensolarada. Às vezes o silêncio invadia também
aquele nosso espaço e apenas me preocupava o olhar perdido; às
vezes o olhar vinha me perguntar algo que eu não tinha noção do
que seria, mas parecia que queria confirmação de nossos planos
anteriores. Embora, às vezes, me parecesse um escape, uma
tentativa de fuga ou seria uma tentativa de desvendar meu real
desejo? Eu não sabia por enquanto. Animava-me essa ideia de
estarmos juntos, de ficarmos juntos. E apesar dos sorrisos eu me
9. calava diante de seu olhar que não queria acreditar tão sério. Aí me
aninhava em suas pernas e procurava ler um livro qualquer, um livro
que me tirasse daquela tensão momentânea e que pudesse – essa
minha indiferença ao seu olhar –, convidar-nos a perguntar sobre os
personagens, a história em si e o autor. Por um instante, poucos
minutos, meu plano daria certo, e lá estávamos falando sobre essas
coisas. O olhar de outrora sumira e os risos fechavam a tarde dessa
lembrança que fixava o meu olhar perdido aqui dentro desta sala.”
(...)
A porta rangeu logo atrás dele. Fechou-a com mais cuidado porque
havia uma pessoa em casa. E para não incomodá-la, vez que ainda era muito
cedo pela manhã, foi preparar um café sem despertar-lhe pelo cheiro. O
engraçado é que algumas coisas não se deixavam esquecer. E para o café as
medidas sempre eram respeitadas, o pó, a água; o mecanismo de ajeitar os
objetos como a garrafa: limpar a garrafa, usar um coador velho. Tudo
superposto. A água a ferver sem que milhares de bolhas se fizessem
necessárias – não se podia cozinhar o pó. O ponto certo. O derramar do café
por entre o coador e o alvo certo do fundo da garrafa. Logo tomaria sua xícara,
voltaria para o livro deixado na página de ontem e leves sopros e bebericos
tomariam seu dia.
A visita, ao acordar, logo o interpelaria sobre frugalidades, mas ele
automaticamente responderia como se não prestasse atenção as suas
perguntas. E passaria o dia a responder reiteradamente àquelas perguntas
como se fosse fácil responder a um monte de coisa sobre presente e passado.
Não lhe importava interagir. Estava mais interessado em ler a história de
ontem, onde parou com as personagens, embora ele soubesse que logo logo
mudaria aquilo tudo. Mas o café estava lá, a visita e sua constante presença.
Poderia ler dois, três livros por dia e rever ad infinitum suas anotações.
Isto de certa forma lhe ajudava a entender levemente o porquê daquilo tudo.
Os livros sempre lhe pareciam antigos, emprestados. Um cheiro familiar invadia
sua memória a cada página lida. Ele queria lê-los de qualquer forma. Leituras
atentas eram importantes para um escritor. Lembrava que em todas as
10. conversas poderia falar-lhe sobre todas as histórias e parecia, às vezes, que a
visita vinha apenas para ouvi-lo resumir algumas histórias ou apenas roçar-lhe
os pés. E ele se achava, por esta razão, importante.
(...)
A partir dali, ele não sabia mais o que fazer. Apenas se reservava a
alguns sentimentos que haviam de ter sentido com a solidão. Sim, esta parecia
uma resposta para o absurdo de tudo. A partir dali, parecia que teria que
enfrentá-la com certo estoicismo para alguma perda ou seria ausência, mesmo
que fosse dele mesmo.
(...)
O policial, então, sentou-se ao seu lado e procurou tranquilizá-lo. Ele
estava em estado de choque. As notícias do biografado sabiam da sua
existência. Mesmo que estivesse ainda tudo em segredo, a polícia saberia
onde encontrá-lo. Nem precisou das informações da agente literária. Ele
aparentemente não queria acreditar no que havia acontecido. Perder naquele
momento os encontros com Erich interromperia todo o processo. Erich
interrompeu tudo. E ainda havia muito para saber e entender.
Tudo aquilo parecia um pouco com ele e se confundia de uma forma
misteriosa e, ao mesmo tempo, reveladora. Sabia dos diagnósticos, mas sentia
que teria tempo para ouvir uma última piada, uma revelação ou até mesmo
uma bobagem qualquer. Os encontros, as cartas terminariam. Será que havia
mais cartas? Teria perguntado a alguém, mas quem seria? Demorou a
entender o passar das horas. Espalhou tudo pelo chão. Pensava que poderia
finalizar o processo sem o todo. Naquela tarde não se recuperaria, nunca
preencheria aquele dia vazio. Mas ainda havia Isadora.
(...)
Repousava então em suas mãos alguns diários, fotos em que por,
alguma razão, Erich e Isadora não sairiam tão cedo daquelas lembranças.
Havia nele uma grande excitação, embora não soubesse o que de fato
impulsionava aqueles amantes. Nada parecia ter sentido, a não ser uma
11. sensação premonitória que invadia sua alma, mas que justamente pela falta de
clareza esta sensação causava-lhe uma completa dispersão das coisas.
(...)
A porta rangeu logo atrás dele. Fechou-a porque havia outra pessoa em
casa. E para não incomodá-la, vez que ainda era muito cedo pela manhã, foi
preparar um café sem despertá-lo pelo cheiro. O engraçado é que algumas
coisas não se deixavam esquecer. E para o café as medidas sempre eram
respeitadas, o pó, a água; o mecanismo de ajeitar os objetos como a garrafa:
limpar a garrafa, usar um coador velho. Tudo superposto. A água a ferver sem
que milhares de bolhas se fizessem necessárias – não se podia cozinhar o pó.
O ponto certo. O derramar do café por entre o coador e o alvo certo do fundo
da garrafa. Logo tomaria outra xícara, voltaria para o livro deixado na página de
minutos atrás. Sôfregos bebericos tomariam seu dia. De repente, a xícara caiu
no chão. O som não despertou a visita, mas a peça de porcelana tinha perdido
a asa.
...Ali estava de novo a visita, sentada a perguntar algumas coisas. Mas
seria diferente o dia de hoje ele presumia. Passou a noite anterior lendo o bloco
de anotações. Por algum motivo passava horas lendo e relendo as anotações,
nomes de lugares, situações e a repetição do nome de Isadora; as fotos de
Isadora.
– Qual a leitura de hoje? – e continuava – Kafka, Hegel...? – a visita
interpelava-o. Ele saberia o que dizer se fosse sobre o Estrangeiro ou se fosse
sobre Morte em Veneza. Mas ele se silenciava por alguns minutos. Na verdade
não queria falar. Entregou-lhe o diário para que ele mesmo achasse algumas
respostas.
– É seu? Andou escrevendo? – Ele não respondeu.
Esperava que ele falasse alguma coisa. Deteve-se por mais de meia
hora lendo as anotações.
(...)
12. Os barulhos noturnos se espalhavam no silêncio do quarto; agora
sozinho. Entravam já quase moribundos. Pareciam convidar, mas não diziam
pra onde ir. Uma música quase se percebia; ficava mesmo só na melodia.
Também não convidava pra dançar. Aliás, tudo parecia sem vontade. Existia
apenas porque combinavam com silêncio e solidão.
Ele continuava em seu quarto, tentando entender a morte. O seu
coração ainda tinha vida própria; não dependia dele. Vivia, embora a vontade
desistisse. E ele nunca sabia se estava entre o sonho e o real. Tudo lhe vinha
estranhamente, até mesmo a consciência. Há tempos não sabia o que era isto.
Tinha apelado para o subconsciente – aquilo que estava além de tudo o quanto
sentira neste exato momento destas tentativas descritivas.
Já não lhe importava o tipo de dose que era aplicada ao seu corpo;
qualquer coisa parecia apropriada para o confronto ou o acordo com a seu
inconsciente. A visita aprendera a deixá-lo num estado neutro. Ele queria
apenas uma ligeira sensação de não estar ali. Era assim que encontrava certo
objetivo para aquele corpo aventureiro. Ele tentava se desvencilhar das
lembranças do homem que poderia ter sido. Sua viagem de agora era rumo ao
adiante. Nada de passado. Sua tentativa de sair de si era para encontrar o seu
outro, que não era um outro dele, mas um outro campo de luz num anteparo
longínquo deste universo presente. Era por demais sóbria esta existência.
Queria ser apenas uma sensação sem as percepções tácteis de uma parede
enrugada, por exemplo.
Ele tocava certa coisa como se fosse real. O que era real? Tateava com
cuidado. Não era vidro, porém era sólida. Não deixava que seus olhos a
vissem, não queria impressões visuais. Tentava a imanência desta coisa. O
que era?
Ouvia alguém balbuciar. Não queria ouvir. Tampava seus ouvidos.
Sentia um calor, mas que não queimava a alma. Assim ficava difícil. Qual era a
essência desta coisa?
A abstração o traía. Não podia ir além do que não via e sentia. Sofria,
mas não era dor. Apelava para os Deuses ou um Deus: “Meu ( ) o que será?”
13. Esta coisa não dialogava com ele, portanto não falava e estava proibido
de ouvi-la. Desistia. Estava difícil esta essência pura. Tentava se livrar do que
sabia antes, mas sem o antes, o que ela seria? Não fazia mais nenhum
esforço. Apenas aceitava-a. “Bem-vinda ao meu mundo!”, dizia.
(...)
A música era parte de sua ritualística ao autoconsciente; o modus
operandi. Era um estágio anterior ao seu momento de busca fora do corpo. Às
vezes atrevia-se a entender um pouco do eu, ainda implorando para um
diálogo consigo mesmo; ia então a uma filosofia pura; como se fosse uma
página em branco pronto pra descobrir mais um meando de sua ascendência
humana. Aquela que pensava em si como um outro e somente nessa
percepção de outridade, ele conseguiria entender um pouco dele mesmo. E
ainda que soubesse do que poderia seu corpo ou objetivo dele se tratar,
mesmo assim, pensava-se ainda incompleto, sem propósito.
Comprara uma vitrola como se pudesse recuperar ou resgatar a
memória do pai ao escutar as músicas de um tempo atrás. Ouvia-as sem saber
de suas letras, mas ouvia porque o pai o fazia ouvir. E assim sua memória
pedia um pouco mais daquele tempo. Fazia parte de sua recuperação humana
este tratado com o passado, esta lembrança de perscrutar o que se tornou. O
volume do som se adequava ao espaço e aquele tempo parecia realmente se
igualar a ligeira lembrança do seu pai. Lentamente a agulha tocava o disco
naquele som que parecia com o prelúdio de tudo; todas as músicas tinham
aquele prelúdio riscando o corpo rígido como se atritasse à matéria para lhe
tirar a vida; uma mágica que ficava observando: o atrito virar música.
Sua busca agora era pela essência das coisas. A agulha então riscava o
disco e, por alguns segundos, aquele som já fazia todo sentido. Uma espera
que principiava seu esboço de felicidade – ou o que poderia ser a lembrança
de tempos bons. O sorriso no rosto dele era gradativo, candente, poderia até
abrir com luz um dia nublado. E enquanto seu sorriso se expandia naquele
rosto sem busca, a alegria momentânea confundia-se com as lembranças do
passado. Ainda que fosse apenas uma lembrança passageira, daquelas que
reconstrói mais vultos do que feições nítidas e cheias de ternura, o
14. apaziguamento das angústias era nítido. Enchia-se de uma esperança vazia,
mas era um prenúncio de esperança. Ele queria acreditar em esperança,
qualquer ação em busca do passado é uma tentava de encontrar uma saída
para a angústia do presente insolúvel. E felicidade, mesmo que momentânea,
tinha a ver com o estado de graça daquele minúsculo tempo; mal a música se
iniciou e já se perdera no entre-tempo saboroso do atingido. Nem precisava
ouvir a música por completo, a imitação daquele tempo lhe dava cores e os
contornos de uma vida ideal, sem muitos avanços e nem perda da
ingenuidade. Ele se dizia navegar num barquinho que flutuava sobre águas
claras, que não pareciam de mar, mas de um rio bem extenso, numa paisagem
bucólica, que repetia diversas vezes naquele princípio da agulha sobre o disco.
Ele precisava apenas de um início, do início.
Seu ritual estava no fim.
De fato, sua vontade não era de reconstruir por si só seu passado; ou o
passado que dos outros pudesse sentir seu. Ele queria solucionar um problema
prático: deixar de lado toda esta tentativa de genealogia da dor, do medo em
superá-los. Ele queria paz, dizia procurar uma paz da forma mais autêntica e
isto tinha também a ver com o passado, com o ruído da agulha; com o presente
também. Tinha a ver com seu pai.
(...)
E sua memória alcançava lá no passado.
A roupa repetia o desenho na borda superior direita, a altura de um
bolso de contornos arredondados, e lá embaixo, na parte inferior direita do
short, a mesma figura um pouco maior. Assim ele era vestido toda vez que
esperava pelo pai chegar do trabalho. Durante a semana, o abraço e o beijo
sobre a testa se repetiam. O abraço era mais demorado que o beijo, que se
disfarçava de um leve roçar dos lábios. Mas sua alegria se fantasiava naquele
momento, sempre vinculou sua higiene e as roupas limpinhas ao carinho do
pai. O ritual se repetira por muitos anos, mas depois de alguns acontecimentos
ainda alheios a ele, o pai deixara de cumprir sua parte e ele começara e se
15. culpar pela a ausência do demorado abraço e do singelo beijo. Não era pelo
cuidado de si, nem pelas roupas limpas que seu pai tinha aquele ritual.
A agulha às vezes não ficava na linha certa. Demorava a vir aquele
barulho de um ruído característico que não sabia repetir em nenhum lugar,
senão ali pelas mãos do pai. Às vezes, hesitava aquele ruído, saindo logo
depois que seu pai alinhava, apurando a vista para acertar a altura das linhas
concêntricas. E demorava um bom tempo até que o barulho voltasse.
Lembrava que enquanto isso uma melodia invadia o ar, embalada pela voz
grave do pai imitando a do disco. E ficava esperando o pai dar-lhe atenção.
Mas tinha que dividir a atenção dele com a música e a bebida que era servida
sem parar. Os olhos ainda o alcançavam timidamente, enquanto segurava
algum brinquedo contra o peito, talvez um carrinho, ou apenas os punhos
fechados contra o peito desolado, mas esperançoso.
(...)
A agulha havia emperrado. Suspendeu rapidamente, colocando cabo no
suporte. Ele pegava o disco que nem seu pai fazia, ainda que as mãos
estivessem desajeitadas, colocava o líquido no pano e limpava o grande vinil.
Então com o disco devidamente limpo, colocava novamente e preparava-se
para ouvir aquele ruído. Demorava-se em acertar as linhas, mas não era pelo
mesma causa de seu pai, era um descuido proposital. Ele ouvia então
trezentos vinis ou mais. Interrompia os que não conhecia apenas para iniciar
todo o processo.
(...)
O livro inacabado lhe tomava tempo. Saber detalhes do grande escritor
fazia-o pensar em si mesmo. Como eram solitários aqueles dias, se não fosse
sua companhia diária da visita – ou era quase isso – estaria louco. A loucura
quase lhe fazia companhia também, ou a quase loucura. Ele estava certo de
que as duas (solidão e loucura) seriam filhas dos mesmos deuses, talvez os
mesmos pais, dois pais loucos, diferentes; por diferentes razões seduziram a
mesma mulher – esta seria pura, como todos seduzidos são – e usaram