1. ESCOLA SECUNDÁRIA ARTÍSTICA ANTÓNIO ARROIO
Francisca Salema 11ºF
TANTAS CARTAS
Cartas, tantas cartas, que foram já escritas e reescritas. Pilhas de cartas. Não
te minto quando o digo, sabes que não gosto de desperdiçar papel.
E, apesar de tudo, as folhas do meu caderno estão já todas
irremediavelmente borradas de tinta, cheias de palavras que não sei juntar. É
domingo e não sei se é desta que arranjarei desfecho para o que não te sei
dizer. Dizes tu que não percebes nada, que não me percebes,
nada.
Pedes-me respostas que não tenho e falas em ter a mania. Dizes tu que a
tens e que a tenho eu também. E às vezes, mais que uma.
Escrevo-te enquanto dormes ao meu lado, neste preciso momento, afogado
nessa sesta tardia, no arrasto de um domingo que veio cedo. E tu sabes,
assim como eu sei, que só num domingo saberia escrevê-la, esta carta.
Porém, mesmo num domingo, quando cai sobre mim a vontade da escrita,
continua a ser tão difícil arranjar frases para te escrever…
Para nos escrever.
No fundo, para (d)escrever a ironia das coincidências que nos juntaram e que
nos juntam, como se não as soubesses já de cor.. Porém, não; não acredito
em coincidências. E talvez por isso ande a sentir-me tão estranha
ultimamente, quase como se finalmente tivesse a confirmação de que tudo
está interligado num ciclo interminável. Infinitas as combinações possíveis
seriam, não fosse tudo tão bem suposto e premeditado. Eu acho. E tu?
Ao mesmo tempo, reprime-me, essa ausência de liberdade. Sabes do que
falo? Dessa dependência que criaste. Não é por isso que quero estar contigo,
por precisares de mim. E sei que, de qualquer forma, tu sabes isso. Estive
apaixonada durante muito tempo por uma pessoa que não eras tu e isso
também tu sabes. Para ser sincera, no primeiro rascunho que borrei de tinta,
até dei por mim a hesitar sobre qual seria o destinatário desta carta, imagina,
como se, nesta altura das coisas, fizesse ainda algum sentido dividir-me.
Não sei quanto tempo já passou desde que apareceste cá em casa, perdido,
vindo de nem sei onde, sem óculos, sem nexo, sem nada. Sem ti mesmo até,
jurando-me a pés juntos que não eras tu. Não consegui falar. Sussurraste
apenas e, de seguida, puxaste-me para o fundo do jardim, deitando-me na
relva. Num só abraço entendi que, de facto, não eras tu quem ali estava.
E sim, eu sempre soube que, contigo, era tudo do avesso. Que tu próprio
eras o meu avesso, mas nunca pensei que ficasses, por momentos,
verdadeiramente louco. E é tão ténue a linha que nos separa da loucura, que
distingue a sanidade da insanidade…
Até eu já me sinto louca só de te imaginar às voltas nesse manicómio de
ideias. Novelos de ideias que te percorrem até à ponta dos pés, numa
confusão de linhas, cheias de nós.
E nós? Nós estamos a crescer, apenas. A mudar, talvez.
2. Já não estás ao meu lado a dormir ou então não sei onde ficaste. A loucura
tem dessas coisas e há muito tempo que percebi que as coisas entre nós só
poderiam surgir da forma mais invulgar. E quando, há noite, me perguntas
baixinho se me podes amar, a resposta que te dou é o silêncio de não o
saber. Aliás, se o soubesse, se de facto soubesse ou percebesse a mínima
palavra escrita aqui, seria esta uma carta para apenas tu leres e não uma
composição para ser avaliada pela minha professora de português.
hoje, domingo sem estrelas,
um grito já não é segredo
o que no meu peito estremece
é o que a ti te enlouquece
a estupefacta conclusão
na infinitude do medo
“chove chuva.”