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A teia de Germano
Primeiro capítulo
A Teia de Germano
(Roberto Muniz Dias)








                  Setembro 2014



























"Durante muito tempo,costumava deitar-me cedo.Às vezes mal apagava a vela,meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar:'Adormeço'.E,meia hora depois,despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir;queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela;durante o sono não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler,mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular;parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro."
Marcel Proust (No caminho de Swan)



































In memoriam de meu pai
 José Antônio Dias da Silva
























Prólogo
Erich,
Procuro na noite aquele silêncio que seria somente seu; não fosse tua ausência. Aquela espera tola ao pé do telefone para ouvir a confirmação: - Sim, estou a caminho. Então a procura para. Mas o silêncio ainda impera sobre a forte vontade de dormir, ou talvez fosse o sonho que precedia esta angústia por esperar. E ainda o silêncio!

Queria te agradecer pelo terno gesto de me tocar a mão. Sentia-a debaixo da mesa sem que os outros percebessem. E quando me olhou bem perto de minha boca; e eu sem saber se te revidava o beijo ou se entrava em teus olhos. Obrigado por me fazer sentir esse arrepio na alma sem que ninguém observasse que você havia sequer sussurrado algo. E quando senti seu forte peso sobre meu corpo ainda que estivéssemos sentados um do lado do outro. Eu não saberia como te agradecer.

Mas ainda é prenúncio de um sonho e a noite fica a embalar essa embriaguez da razão. E fico a esperar teu cheiro na noite, invadindo o quarto; pegando-me de costas, agarrando meu medo e destruindo sua sombra. E eu podia jurar que você estava lá preenchendo aquela, ou seria esta noite?
Não sei como te bendizer deste sorriso que me roubou. E agora me pego rindo de sua palhaçada sem fim; de sua leve ligeireza das mãos e os lábios finos a me repreender minha sisudez. E logo estávamos rindo, mas ninguém sabia de nosso segredo. Não sei como dizer que ontem eu me senti menos sozinha, mais mulher, menos passarinho, mais solícita, menos apavorada com o silêncio da noite.

O remédio me trazia a paz do sono. E fico antes disso tudo a te beijar naquele intervalo entre o que se sente o que não se sente. É muito tolo esse sorriso de nostálgica lembrança do que não houve, da noite de ontem, do beijo que quase me beijou. Eu pude sentir tudo ao mesmo tempo.

Não sei como dizer que te quero que te quero perto. E a distância de nossos sonhos, em camas separadas me leva a ti de forma contumaz. Fico a te querer alcançar com as pontas dos dedos ou será com a ponta dos sonhos? Eu não sei o que dizer desse silêncio que grita teu nome e somente eu te ouço: - Tô chegando, tô chegando!

Isadora
 Por muito tempo ele procurava o conhecimento, especialmente de si. Depois de muito tempo também começou a pensar que talvez não precisasse saber somente de si, mas especificamente do passado. A busca agora era pelo passado.
 A história que se segue é registro de todas as angústias de quem tenta desvendar o que por muito tempo se ignorou; quem foi por muito tempo outro e, de posse do passado, tornou-se um outro ainda. É uma história de histórias dentro de outras. De pessoas que não queriam ser descobertas, pois suas vidas lhes pertenceram de alguma forma restrita ao tempo pretérito. E quem a encontra, depois de anos, também não está ciente de que este é um desejo para o futuro.
 E depois de muito tempo um reencontro muito estranho – está tudo muito perdido entre o passado e a história –, há muito tempo, que não se sentia desafiado. E quando passado e presente se misturavam, tudo parecia fazer um sentido totalmente diferente. 
  






Num quarto qualquer, outono de um dia do século XXI
(Meses após o encontro)

 Lúcio aportou lá (ou retornou) naquele lugar há anos por conta própria. De nada tinha do seu tal passado nacional. Não importava a ele se tinha sido destituído de algum papel histórico do passado. Foi parar lá porque era um estrangeiro para si mesmo. Só lhe interessava a busca.
(...)
 Mas nem mesmo sabia o que o presente podia representar. Fosse talvez um vagar do tempo em que o mesmo dia de ontem amanhecesse da mesma forma que hoje. E o ligeiro amanhã parecesse intensamente com o desaparecer de ontem. Dizia-se repetição, mas parecia que ele mesmo parava com o tempo.
 Desde a última vez que dormiu com alguém – fazia tempo – já não era mais o mesmo, nem a cama, nem o espaço que os unia. Às vezes parecia estranho à própria rotina: trocava o horário do café; a leitura matinal; os horários de chegada e saída. Estava em desencontro e a ausência de um ao outro começou a virar rotina; depois se desfazia estranhamente. Sabia de sua passagem pela casa por meio de suas coisas desarrumadas; às vezes, a falta de uma peça de roupa; o espaço do copo limpo e o perfume inodoro presente por dentro daquele tempo. Mas tudo se parecia com um tempo presente, o ontem ou o amanhã. De nada valeu a pena se distanciar; criar entre-lugares, entre-tempos. Esquecia-se dos entre-eles-mesmos.
(...)
 Mas isso parecia com a história do meio, porque o final ainda era sobre ausência, o não-itinerário.
(...)
 Lúcio veio atrás si, de um nós talvez, daquilo que deixou no ontem. Fazia tanto tempo. Deveria fazer sim muito tempo. Veio atrás do seu road movie no qual deixou rastros de sua vida mais nova. Veio seguindo tudo por pequenas pistas. Estava tudo anotado. O que vinha depois ele ia lembrando aos poucos. O rosto criado lhe lembrava de um leve sorriso e uma atenção a cada palavra. Era muito mais próximo do que podia imaginar. Ele vinha com a figura de outra pessoa, ou seriam pessoas? Sim, devia se atentar para as anotações. Tinha de dar um rosto a Erich. Haveria de ser pelas palavras de Isadora ou ele já poderia recriar o próprio Erich?  A grafia se arredondava toda vez que via Erich, se amortecia no papel. A impressão sobre o papel era sutil, enquanto as outras amontoadas anotações se atropelavam. Tinha pressa nas notas.
(...)
 As cartas tentavam seguir uma cronologia afetiva.
“Um dia de sol e um piquenique. Recordo-me que adorava piqueniques. Antes disso, lembro-me de que andávamos de mãos dadas e soprava um vento limpo por entre nossos peitos abertos. Eu queria correr. Eu sentia uma necessidade de sair correndo ao longo do parque, me estender na grandeza da imensidão daquilo tudo. Mas eu segurava minha vontade refreada pela mão que me dizia algo sobre estar junto. Sentamos sobre a grama em cima de uma toalha quadriculada. Tinha que ser linhas avermelhadas que se entrançavam como preto e um branco no fundo. Deveria ser assim, eu imaginava a toalha de piquenique. Lembro-me de ser alimentado por suas mãos: ora um pedaço de damasco, ora um pão fino adocicado com geleia. Ríamos. Lembro-me também dos risos que invadiam a tarde ensolarada. Às vezes o silêncio invadia também aquele nosso espaço e apenas me preocupava o olhar perdido; às vezes o olhar vinha me perguntar algo que eu não tinha noção do que seria, mas parecia que queria confirmação de nossos planos anteriores. Embora, às vezes, me parecesse um escape, uma tentativa de fuga ou seria uma tentativa de desvendar meu real desejo? Eu não sabia por enquanto. Animava-me essa ideia de estarmos juntos, de ficarmos juntos. E apesar dos sorrisos eu me calava diante de seu olhar que não queria acreditar tão sério. Aí me aninhava em suas pernas e procurava ler um livro qualquer, um livro que me tirasse daquela tensão momentânea e que pudesse – essa minha indiferença ao seu olhar –, convidar-nos a perguntar sobre os personagens, a história em si e o autor. Por um instante, poucos minutos, meu plano daria certo, e lá estávamos falando sobre essas coisas. O olhar de outrora sumira e os risos fechavam a tarde dessa lembrança que fixava o meu olhar perdido aqui dentro desta sala.”
(...)
 A porta rangeu logo atrás dele. Fechou-a com mais cuidado porque havia uma pessoa em casa. E para não incomodá-la, vez que ainda era muito cedo pela manhã, foi preparar um café sem despertar-lhe pelo cheiro. O engraçado é que algumas coisas não se deixavam esquecer. E para o café as medidas sempre eram respeitadas, o pó, a água; o mecanismo de ajeitar os objetos como a garrafa: limpar a garrafa, usar um coador velho. Tudo superposto. A água a ferver sem que milhares de bolhas se fizessem necessárias – não se podia cozinhar o pó. O ponto certo. O derramar do café por entre o coador e o alvo certo do fundo da garrafa. Logo tomaria sua xícara, voltaria para o livro deixado na página de ontem e leves sopros e bebericos tomariam seu dia.
 A visita, ao acordar, logo o interpelaria sobre frugalidades, mas ele automaticamente responderia como se não prestasse atenção as suas perguntas. E passaria o dia a responder reiteradamente àquelas perguntas como se fosse fácil responder a um monte de coisa sobre presente e passado. Não lhe importava interagir. Estava mais interessado em ler a história de ontem, onde parou com as personagens, embora ele soubesse que logo logo mudaria aquilo tudo. Mas o café estava lá, a visita e sua constante presença.
 Poderia ler dois, três livros por dia e rever ad infinitum suas anotações. Isto de certa forma lhe ajudava a entender levemente o porquê daquilo tudo. Os livros sempre lhe pareciam antigos, emprestados. Um cheiro familiar invadia sua memória a cada página lida. Ele queria lê-los de qualquer forma.  Leituras atentas eram importantes para um escritor. Lembrava que em todas as conversas poderia falar-lhe sobre todas as histórias e parecia, às vezes, que a visita vinha apenas para ouvi-lo resumir algumas histórias ou apenas roçar-lhe os pés. E ele se achava, por esta razão, importante.
(...)
 A partir dali, ele não sabia mais o que fazer. Apenas se reservava a alguns sentimentos que haviam de ter sentido com a solidão. Sim, esta parecia uma resposta para o absurdo de tudo. A partir dali, parecia que teria que enfrentá-la com certo estoicismo para alguma perda ou seria ausência, mesmo que fosse dele mesmo.
(...)
 O policial, então, sentou-se ao seu lado e procurou tranquilizá-lo. Ele estava em estado de choque. As notícias do biografado sabiam da sua existência. Mesmo que estivesse ainda tudo em segredo, a polícia saberia onde encontrá-lo. Nem precisou das informações da agente literária. Ele aparentemente não queria acreditar no que havia acontecido. Perder naquele momento os encontros com Erich interromperia todo o processo. Erich interrompeu tudo. E ainda havia muito para saber e entender.
 Tudo aquilo parecia um pouco com ele e se confundia de uma forma misteriosa e, ao mesmo tempo, reveladora. Sabia dos diagnósticos, mas sentia que teria tempo para ouvir uma última piada, uma revelação ou até mesmo uma bobagem qualquer. Os encontros, as cartas terminariam. Será que havia mais cartas? Teria perguntado a alguém, mas quem seria? Demorou a entender o passar das horas. Espalhou tudo pelo chão. Pensava que poderia finalizar o processo sem o todo. Naquela tarde não se recuperaria, nunca preencheria aquele dia vazio. Mas ainda havia Isadora.
(...)
 Repousava então em suas mãos alguns diários, fotos em que por, alguma razão, Erich e Isadora não sairiam tão cedo daquelas lembranças. Havia nele uma grande excitação, embora não soubesse o que de fato impulsionava aqueles amantes. Nada parecia ter sentido, a não ser uma sensação premonitória que invadia sua alma, mas que justamente pela falta de clareza esta sensação causava-lhe uma completa dispersão das coisas.
(...)
 A porta rangeu logo atrás dele. Fechou-a porque havia outra pessoa em casa. E para não incomodá-la, vez que ainda era muito cedo pela manhã, foi preparar um café sem despertá-lo pelo cheiro. O engraçado é que algumas coisas não se deixavam esquecer. E para o café as medidas sempre eram respeitadas, o pó, a água; o mecanismo de ajeitar os objetos como a garrafa: limpar a garrafa, usar um coador velho. Tudo superposto. A água a ferver sem que milhares de bolhas se fizessem necessárias – não se podia cozinhar o pó. O ponto certo. O derramar do café por entre o coador e o alvo certo do fundo da garrafa. Logo tomaria outra xícara, voltaria para o livro deixado na página de minutos atrás. Sôfregos bebericos tomariam seu dia. De repente, a xícara caiu no chão. O som não despertou a visita, mas a peça de porcelana tinha perdido a asa.
 ...Ali estava de novo a visita, sentada a perguntar algumas coisas. Mas seria diferente o dia de hoje ele presumia. Passou a noite anterior lendo o bloco de anotações. Por algum motivo passava horas lendo e relendo as anotações, nomes de lugares, situações e a repetição do nome de Isadora; as fotos de Isadora.
 – Qual a leitura de hoje? – e continuava – Kafka, Hegel...? – a visita interpelava-o. Ele saberia o que dizer se fosse sobre o Estrangeiro ou se fosse sobre Morte em Veneza. Mas ele se silenciava por alguns minutos. Na verdade não queria falar. Entregou-lhe o diário para que ele mesmo achasse algumas respostas. 
 – É seu? Andou escrevendo? – Ele não respondeu.
 Esperava que ele falasse alguma coisa. Deteve-se por mais de meia hora lendo as anotações.
(...)
 Os barulhos noturnos se espalhavam no silêncio do quarto; agora sozinho. Entravam já quase moribundos. Pareciam convidar, mas não diziam pra onde ir. Uma música quase se percebia; ficava mesmo só na melodia. Também não convidava pra dançar. Aliás, tudo parecia sem vontade. Existia apenas porque combinavam com silêncio e solidão.
 Ele continuava em seu quarto, tentando entender a morte. O seu coração ainda tinha vida própria; não dependia dele. Vivia, embora a vontade desistisse. E ele nunca sabia se estava entre o sonho e o real. Tudo lhe vinha estranhamente, até mesmo a consciência. Há tempos não sabia o que era isto. Tinha apelado para o subconsciente – aquilo que estava além de tudo o quanto sentira neste exato momento destas tentativas descritivas.
 Já não lhe importava o tipo de dose que era aplicada ao seu corpo; qualquer coisa parecia apropriada para o confronto ou o acordo com a seu inconsciente. A visita aprendera a deixá-lo num estado neutro. Ele queria apenas uma ligeira sensação de não estar ali. Era assim que encontrava certo objetivo para aquele corpo aventureiro. Ele tentava se desvencilhar das lembranças do homem que poderia ter sido. Sua viagem de agora era rumo ao adiante. Nada de passado. Sua tentativa de sair de si era para encontrar o seu outro, que não era um outro dele, mas um outro campo de luz num anteparo longínquo deste universo presente. Era por demais sóbria esta existência. Queria ser apenas uma sensação sem as percepções tácteis de uma parede enrugada, por exemplo.
 Ele tocava certa coisa como se fosse real. O que era real? Tateava com cuidado. Não era vidro, porém era sólida. Não deixava que seus olhos a vissem, não queria impressões visuais. Tentava a imanência desta coisa. O que era?
 Ouvia alguém balbuciar. Não queria ouvir. Tampava seus ouvidos. Sentia um calor, mas que não queimava a alma. Assim ficava difícil. Qual era a essência desta coisa?
 A abstração o traía. Não podia ir além do que não via e sentia. Sofria, mas não era dor. Apelava para os Deuses ou um Deus: “Meu ( ) o que será?”
 Esta coisa não dialogava com ele, portanto não falava e estava proibido de ouvi-la. Desistia. Estava difícil esta essência pura. Tentava se livrar do que sabia antes, mas sem o antes, o que ela seria? Não fazia mais nenhum esforço. Apenas aceitava-a. “Bem-vinda ao meu mundo!”, dizia. 
(...)
 A música era parte de sua ritualística ao autoconsciente; o modus operandi. Era um estágio anterior ao seu momento de busca fora do corpo. Às vezes atrevia-se a entender um pouco do eu, ainda implorando para um diálogo consigo mesmo; ia então a uma filosofia pura; como se fosse uma página em branco pronto pra descobrir mais um meando de sua ascendência humana. Aquela que pensava em si como um outro e somente nessa percepção de outridade, ele conseguiria entender um pouco dele mesmo. E ainda que soubesse do que poderia seu corpo ou objetivo dele se tratar, mesmo assim, pensava-se ainda incompleto, sem propósito.
 Comprara uma vitrola como se pudesse recuperar ou resgatar a memória do pai ao escutar as músicas de um tempo atrás. Ouvia-as sem saber de suas letras, mas ouvia porque o pai o fazia ouvir. E assim sua memória pedia um pouco mais daquele tempo. Fazia parte de sua recuperação humana este tratado com o passado, esta lembrança de perscrutar o que se tornou. O volume do som se adequava ao espaço e aquele tempo parecia realmente se igualar a ligeira lembrança do seu pai. Lentamente a agulha tocava o disco naquele som que parecia com o prelúdio de tudo; todas as músicas tinham aquele prelúdio riscando o corpo rígido como se atritasse à matéria para lhe tirar a vida; uma mágica que ficava observando: o atrito virar música.
 Sua busca agora era pela essência das coisas. A agulha então riscava o disco e, por alguns segundos, aquele som já fazia todo sentido. Uma espera que principiava seu esboço de felicidade – ou o que poderia ser a lembrança de tempos bons. O sorriso no rosto dele era gradativo, candente, poderia até abrir com luz um dia nublado. E enquanto seu sorriso se expandia naquele rosto sem busca, a alegria momentânea confundia-se com as lembranças do passado. Ainda que fosse apenas uma lembrança passageira, daquelas que reconstrói mais vultos do que feições nítidas e cheias de ternura, o apaziguamento das angústias era nítido. Enchia-se de uma esperança vazia, mas era um prenúncio de esperança. Ele queria acreditar em esperança, qualquer ação em busca do passado é uma tentava de encontrar uma saída para a angústia do presente insolúvel. E felicidade, mesmo que momentânea, tinha a ver com o estado de graça daquele minúsculo tempo; mal a música se iniciou e já se perdera no entre-tempo saboroso do atingido. Nem precisava ouvir a música por completo, a imitação daquele tempo lhe dava cores e os contornos de uma vida ideal, sem muitos avanços e nem perda da ingenuidade. Ele se dizia navegar num barquinho que flutuava sobre águas claras, que não pareciam de mar, mas de um rio bem extenso, numa paisagem bucólica, que repetia diversas vezes naquele princípio da agulha sobre o disco. Ele precisava apenas de um início, do início. 
 Seu ritual estava no fim.
 De fato, sua vontade não era de reconstruir por si só seu passado; ou o passado que dos outros pudesse sentir seu. Ele queria solucionar um problema prático: deixar de lado toda esta tentativa de genealogia da dor, do medo em superá-los. Ele queria paz, dizia procurar uma paz da forma mais autêntica e isto tinha também a ver com o passado, com o ruído da agulha; com o presente também. Tinha a ver com seu pai.
(...)
 E sua memória alcançava lá no passado.
 A roupa repetia o desenho na borda superior direita, a altura de um bolso de contornos arredondados, e lá embaixo, na parte inferior direita do short, a mesma figura um pouco maior. Assim ele era vestido toda vez que esperava pelo pai chegar do trabalho. Durante a semana, o abraço e o beijo sobre a testa se repetiam. O abraço era mais demorado que o beijo, que se disfarçava de um leve roçar dos lábios. Mas sua alegria se fantasiava naquele momento, sempre vinculou sua higiene e as roupas limpinhas ao carinho do pai. O ritual se repetira por muitos anos, mas depois de alguns acontecimentos ainda alheios a ele, o pai deixara de cumprir sua parte e ele começara e se culpar pela a ausência do demorado abraço e do singelo beijo. Não era pelo cuidado de si, nem pelas roupas limpas que seu pai tinha aquele ritual.
 A agulha às vezes não ficava na linha certa. Demorava a vir aquele barulho de um ruído característico que não sabia repetir em nenhum lugar, senão ali pelas mãos do pai. Às vezes, hesitava aquele ruído, saindo logo depois que seu pai alinhava, apurando a vista para acertar a altura das linhas concêntricas. E demorava um bom tempo até que o barulho voltasse. Lembrava que enquanto isso uma melodia invadia o ar, embalada pela voz grave do pai imitando a do disco. E ficava esperando o pai dar-lhe atenção. Mas tinha que dividir a atenção dele com a música e a bebida que era servida sem parar. Os olhos ainda o alcançavam timidamente, enquanto segurava algum brinquedo contra o peito, talvez um carrinho, ou apenas os punhos fechados contra o peito desolado, mas esperançoso.
(...)
 A agulha havia emperrado. Suspendeu rapidamente, colocando cabo no suporte. Ele pegava o disco que nem seu pai fazia, ainda que as mãos estivessem desajeitadas, colocava o líquido no pano e limpava o grande vinil. Então com o disco devidamente limpo, colocava novamente e preparava-se para ouvir aquele ruído. Demorava-se em acertar as linhas, mas não era pelo mesma causa de seu pai, era um descuido proposital. Ele ouvia então trezentos vinis ou mais. Interrompia os que não conhecia apenas para iniciar todo o processo.
(...)
 O livro inacabado lhe tomava tempo. Saber detalhes do grande escritor fazia-o pensar em si mesmo. Como eram solitários aqueles dias, se não fosse sua companhia diária da visita – ou era quase isso – estaria louco. A loucura quase lhe fazia companhia também, ou a quase loucura. Ele estava certo de que as duas (solidão e loucura) seriam filhas dos mesmos deuses, talvez os mesmos pais, dois pais loucos, diferentes; por diferentes razões seduziram a mesma mulher – esta seria pura, como todos seduzidos são – e usaram artifícios diferentes também para seduzi-la. “Como seria esta mulher?”, ele se perguntava.















A Teia de Germano
(Roberto Muniz Dias)








                  Setembro 2014



























"Durante muito tempo,costumava deitar-me cedo.Às vezes mal apagava a vela,meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar:'Adormeço'.E,meia hora depois,despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir;queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela;durante o sono não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler,mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular;parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro."
Marcel Proust (No caminho de Swan)



































In memoriam de meu pai
 José Antônio Dias da Silva
























Prólogo
Erich,
Procuro na noite aquele silêncio que seria somente seu; não fosse tua ausência. Aquela espera tola ao pé do telefone para ouvir a confirmação: - Sim, estou a caminho. Então a procura para. Mas o silêncio ainda impera sobre a forte vontade de dormir, ou talvez fosse o sonho que precedia esta angústia por esperar. E ainda o silêncio!

Queria te agradecer pelo terno gesto de me tocar a mão. Sentia-a debaixo da mesa sem que os outros percebessem. E quando me olhou bem perto de minha boca; e eu sem saber se te revidava o beijo ou se entrava em teus olhos. Obrigado por me fazer sentir esse arrepio na alma sem que ninguém observasse que você havia sequer sussurrado algo. E quando senti seu forte peso sobre meu corpo ainda que estivéssemos sentados um do lado do outro. Eu não saberia como te agradecer.

Mas ainda é prenúncio de um sonho e a noite fica a embalar essa embriaguez da razão. E fico a esperar teu cheiro na noite, invadindo o quarto; pegando-me de costas, agarrando meu medo e destruindo sua sombra. E eu podia jurar que você estava lá preenchendo aquela, ou seria esta noite?
Não sei como te bendizer deste sorriso que me roubou. E agora me pego rindo de sua palhaçada sem fim; de sua leve ligeireza das mãos e os lábios finos a me repreender minha sisudez. E logo estávamos rindo, mas ninguém sabia de nosso segredo. Não sei como dizer que ontem eu me senti menos sozinha, mais mulher, menos passarinho, mais solícita, menos apavorada com o silêncio da noite.

O remédio me trazia a paz do sono. E fico antes disso tudo a te beijar naquele intervalo entre o que se sente o que não se sente. É muito tolo esse sorriso de nostálgica lembrança do que não houve, da noite de ontem, do beijo que quase me beijou. Eu pude sentir tudo ao mesmo tempo.

Não sei como dizer que te quero que te quero perto. E a distância de nossos sonhos, em camas separadas me leva a ti de forma contumaz. Fico a te querer alcançar com as pontas dos dedos ou será com a ponta dos sonhos? Eu não sei o que dizer desse silêncio que grita teu nome e somente eu te ouço: - Tô chegando, tô chegando!

Isadora
 Por muito tempo ele procurava o conhecimento, especialmente de si. Depois de muito tempo também começou a pensar que talvez não precisasse saber somente de si, mas especificamente do passado. A busca agora era pelo passado.
 A história que se segue é registro de todas as angústias de quem tenta desvendar o que por muito tempo se ignorou; quem foi por muito tempo outro e, de posse do passado, tornou-se um outro ainda. É uma história de histórias dentro de outras. De pessoas que não queriam ser descobertas, pois suas vidas lhes pertenceram de alguma forma restrita ao tempo pretérito. E quem a encontra, depois de anos, também não está ciente de que este é um desejo para o futuro.
 E depois de muito tempo um reencontro muito estranho – está tudo muito perdido entre o passado e a história –, há muito tempo, que não se sentia desafiado. E quando passado e presente se misturavam, tudo parecia fazer um sentido totalmente diferente. 
  






Num quarto qualquer, outono de um dia do século XXI
(Meses após o encontro)

 Lúcio aportou lá (ou retornou) naquele lugar há anos por conta própria. De nada tinha do seu tal passado nacional. Não importava a ele se tinha sido destituído de algum papel histórico do passado. Foi parar lá porque era um estrangeiro para si mesmo. Só lhe interessava a busca.
(...)
 Mas nem mesmo sabia o que o presente podia representar. Fosse talvez um vagar do tempo em que o mesmo dia de ontem amanhecesse da mesma forma que hoje. E o ligeiro amanhã parecesse intensamente com o desaparecer de ontem. Dizia-se repetição, mas parecia que ele mesmo parava com o tempo.
 Desde a última vez que dormiu com alguém – fazia tempo – já não era mais o mesmo, nem a cama, nem o espaço que os unia. Às vezes parecia estranho à própria rotina: trocava o horário do café; a leitura matinal; os horários de chegada e saída. Estava em desencontro e a ausência de um ao outro começou a virar rotina; depois se desfazia estranhamente. Sabia de sua passagem pela casa por meio de suas coisas desarrumadas; às vezes, a falta de uma peça de roupa; o espaço do copo limpo e o perfume inodoro presente por dentro daquele tempo. Mas tudo se parecia com um tempo presente, o ontem ou o amanhã. De nada valeu a pena se distanciar; criar entre-lugares, entre-tempos. Esquecia-se dos entre-eles-mesmos.
(...)
 Mas isso parecia com a história do meio, porque o final ainda era sobre ausência, o não-itinerário.
(...)
 Lúcio veio atrás si, de um nós talvez, daquilo que deixou no ontem. Fazia tanto tempo. Deveria fazer sim muito tempo. Veio atrás do seu road movie no qual deixou rastros de sua vida mais nova. Veio seguindo tudo por pequenas pistas. Estava tudo anotado. O que vinha depois ele ia lembrando aos poucos. O rosto criado lhe lembrava de um leve sorriso e uma atenção a cada palavra. Era muito mais próximo do que podia imaginar. Ele vinha com a figura de outra pessoa, ou seriam pessoas? Sim, devia se atentar para as anotações. Tinha de dar um rosto a Erich. Haveria de ser pelas palavras de Isadora ou ele já poderia recriar o próprio Erich?  A grafia se arredondava toda vez que via Erich, se amortecia no papel. A impressão sobre o papel era sutil, enquanto as outras amontoadas anotações se atropelavam. Tinha pressa nas notas.
(...)
 As cartas tentavam seguir uma cronologia afetiva.
“Um dia de sol e um piquenique. Recordo-me que adorava piqueniques. Antes disso, lembro-me de que andávamos de mãos dadas e soprava um vento limpo por entre nossos peitos abertos. Eu queria correr. Eu sentia uma necessidade de sair correndo ao longo do parque, me estender na grandeza da imensidão daquilo tudo. Mas eu segurava minha vontade refreada pela mão que me dizia algo sobre estar junto. Sentamos sobre a grama em cima de uma toalha quadriculada. Tinha que ser linhas avermelhadas que se entrançavam como preto e um branco no fundo. Deveria ser assim, eu imaginava a toalha de piquenique. Lembro-me de ser alimentado por suas mãos: ora um pedaço de damasco, ora um pão fino adocicado com geleia. Ríamos. Lembro-me também dos risos que invadiam a tarde ensolarada. Às vezes o silêncio invadia também aquele nosso espaço e apenas me preocupava o olhar perdido; às vezes o olhar vinha me perguntar algo que eu não tinha noção do que seria, mas parecia que queria confirmação de nossos planos anteriores. Embora, às vezes, me parecesse um escape, uma tentativa de fuga ou seria uma tentativa de desvendar meu real desejo? Eu não sabia por enquanto. Animava-me essa ideia de estarmos juntos, de ficarmos juntos. E apesar dos sorrisos eu me calava diante de seu olhar que não queria acreditar tão sério. Aí me aninhava em suas pernas e procurava ler um livro qualquer, um livro que me tirasse daquela tensão momentânea e que pudesse – essa minha indiferença ao seu olhar –, convidar-nos a perguntar sobre os personagens, a história em si e o autor. Por um instante, poucos minutos, meu plano daria certo, e lá estávamos falando sobre essas coisas. O olhar de outrora sumira e os risos fechavam a tarde dessa lembrança que fixava o meu olhar perdido aqui dentro desta sala.”
(...)
 A porta rangeu logo atrás dele. Fechou-a com mais cuidado porque havia uma pessoa em casa. E para não incomodá-la, vez que ainda era muito cedo pela manhã, foi preparar um café sem despertar-lhe pelo cheiro. O engraçado é que algumas coisas não se deixavam esquecer. E para o café as medidas sempre eram respeitadas, o pó, a água; o mecanismo de ajeitar os objetos como a garrafa: limpar a garrafa, usar um coador velho. Tudo superposto. A água a ferver sem que milhares de bolhas se fizessem necessárias – não se podia cozinhar o pó. O ponto certo. O derramar do café por entre o coador e o alvo certo do fundo da garrafa. Logo tomaria sua xícara, voltaria para o livro deixado na página de ontem e leves sopros e bebericos tomariam seu dia.
 A visita, ao acordar, logo o interpelaria sobre frugalidades, mas ele automaticamente responderia como se não prestasse atenção as suas perguntas. E passaria o dia a responder reiteradamente àquelas perguntas como se fosse fácil responder a um monte de coisa sobre presente e passado. Não lhe importava interagir. Estava mais interessado em ler a história de ontem, onde parou com as personagens, embora ele soubesse que logo logo mudaria aquilo tudo. Mas o café estava lá, a visita e sua constante presença.
 Poderia ler dois, três livros por dia e rever ad infinitum suas anotações. Isto de certa forma lhe ajudava a entender levemente o porquê daquilo tudo. Os livros sempre lhe pareciam antigos, emprestados. Um cheiro familiar invadia sua memória a cada página lida. Ele queria lê-los de qualquer forma.  Leituras atentas eram importantes para um escritor. Lembrava que em todas as conversas poderia falar-lhe sobre todas as histórias e parecia, às vezes, que a visita vinha apenas para ouvi-lo resumir algumas histórias ou apenas roçar-lhe os pés. E ele se achava, por esta razão, importante.
(...)
 A partir dali, ele não sabia mais o que fazer. Apenas se reservava a alguns sentimentos que haviam de ter sentido com a solidão. Sim, esta parecia uma resposta para o absurdo de tudo. A partir dali, parecia que teria que enfrentá-la com certo estoicismo para alguma perda ou seria ausência, mesmo que fosse dele mesmo.
(...)
 O policial, então, sentou-se ao seu lado e procurou tranquilizá-lo. Ele estava em estado de choque. As notícias do biografado sabiam da sua existência. Mesmo que estivesse ainda tudo em segredo, a polícia saberia onde encontrá-lo. Nem precisou das informações da agente literária. Ele aparentemente não queria acreditar no que havia acontecido. Perder naquele momento os encontros com Erich interromperia todo o processo. Erich interrompeu tudo. E ainda havia muito para saber e entender.
 Tudo aquilo parecia um pouco com ele e se confundia de uma forma misteriosa e, ao mesmo tempo, reveladora. Sabia dos diagnósticos, mas sentia que teria tempo para ouvir uma última piada, uma revelação ou até mesmo uma bobagem qualquer. Os encontros, as cartas terminariam. Será que havia mais cartas? Teria perguntado a alguém, mas quem seria? Demorou a entender o passar das horas. Espalhou tudo pelo chão. Pensava que poderia finalizar o processo sem o todo. Naquela tarde não se recuperaria, nunca preencheria aquele dia vazio. Mas ainda havia Isadora.
(...)
 Repousava então em suas mãos alguns diários, fotos em que por, alguma razão, Erich e Isadora não sairiam tão cedo daquelas lembranças. Havia nele uma grande excitação, embora não soubesse o que de fato impulsionava aqueles amantes. Nada parecia ter sentido, a não ser uma sensação premonitória que invadia sua alma, mas que justamente pela falta de clareza esta sensação causava-lhe uma completa dispersão das coisas.
(...)
 A porta rangeu logo atrás dele. Fechou-a porque havia outra pessoa em casa. E para não incomodá-la, vez que ainda era muito cedo pela manhã, foi preparar um café sem despertá-lo pelo cheiro. O engraçado é que algumas coisas não se deixavam esquecer. E para o café as medidas sempre eram respeitadas, o pó, a água; o mecanismo de ajeitar os objetos como a garrafa: limpar a garrafa, usar um coador velho. Tudo superposto. A água a ferver sem que milhares de bolhas se fizessem necessárias – não se podia cozinhar o pó. O ponto certo. O derramar do café por entre o coador e o alvo certo do fundo da garrafa. Logo tomaria outra xícara, voltaria para o livro deixado na página de minutos atrás. Sôfregos bebericos tomariam seu dia. De repente, a xícara caiu no chão. O som não despertou a visita, mas a peça de porcelana tinha perdido a asa.
 ...Ali estava de novo a visita, sentada a perguntar algumas coisas. Mas seria diferente o dia de hoje ele presumia. Passou a noite anterior lendo o bloco de anotações. Por algum motivo passava horas lendo e relendo as anotações, nomes de lugares, situações e a repetição do nome de Isadora; as fotos de Isadora.
 – Qual a leitura de hoje? – e continuava – Kafka, Hegel...? – a visita interpelava-o. Ele saberia o que dizer se fosse sobre o Estrangeiro ou se fosse sobre Morte em Veneza. Mas ele se silenciava por alguns minutos. Na verdade não queria falar. Entregou-lhe o diário para que ele mesmo achasse algumas respostas. 
 – É seu? Andou escrevendo? – Ele não respondeu.
 Esperava que ele falasse alguma coisa. Deteve-se por mais de meia hora lendo as anotações.
(...)
 Os barulhos noturnos se espalhavam no silêncio do quarto; agora sozinho. Entravam já quase moribundos. Pareciam convidar, mas não diziam pra onde ir. Uma música quase se percebia; ficava mesmo só na melodia. Também não convidava pra dançar. Aliás, tudo parecia sem vontade. Existia apenas porque combinavam com silêncio e solidão.
 Ele continuava em seu quarto, tentando entender a morte. O seu coração ainda tinha vida própria; não dependia dele. Vivia, embora a vontade desistisse. E ele nunca sabia se estava entre o sonho e o real. Tudo lhe vinha estranhamente, até mesmo a consciência. Há tempos não sabia o que era isto. Tinha apelado para o subconsciente – aquilo que estava além de tudo o quanto sentira neste exato momento destas tentativas descritivas.
 Já não lhe importava o tipo de dose que era aplicada ao seu corpo; qualquer coisa parecia apropriada para o confronto ou o acordo com a seu inconsciente. A visita aprendera a deixá-lo num estado neutro. Ele queria apenas uma ligeira sensação de não estar ali. Era assim que encontrava certo objetivo para aquele corpo aventureiro. Ele tentava se desvencilhar das lembranças do homem que poderia ter sido. Sua viagem de agora era rumo ao adiante. Nada de passado. Sua tentativa de sair de si era para encontrar o seu outro, que não era um outro dele, mas um outro campo de luz num anteparo longínquo deste universo presente. Era por demais sóbria esta existência. Queria ser apenas uma sensação sem as percepções tácteis de uma parede enrugada, por exemplo.
 Ele tocava certa coisa como se fosse real. O que era real? Tateava com cuidado. Não era vidro, porém era sólida. Não deixava que seus olhos a vissem, não queria impressões visuais. Tentava a imanência desta coisa. O que era?
 Ouvia alguém balbuciar. Não queria ouvir. Tampava seus ouvidos. Sentia um calor, mas que não queimava a alma. Assim ficava difícil. Qual era a essência desta coisa?
 A abstração o traía. Não podia ir além do que não via e sentia. Sofria, mas não era dor. Apelava para os Deuses ou um Deus: “Meu ( ) o que será?”
 Esta coisa não dialogava com ele, portanto não falava e estava proibido de ouvi-la. Desistia. Estava difícil esta essência pura. Tentava se livrar do que sabia antes, mas sem o antes, o que ela seria? Não fazia mais nenhum esforço. Apenas aceitava-a. “Bem-vinda ao meu mundo!”, dizia. 
(...)
 A música era parte de sua ritualística ao autoconsciente; o modus operandi. Era um estágio anterior ao seu momento de busca fora do corpo. Às vezes atrevia-se a entender um pouco do eu, ainda implorando para um diálogo consigo mesmo; ia então a uma filosofia pura; como se fosse uma página em branco pronto pra descobrir mais um meando de sua ascendência humana. Aquela que pensava em si como um outro e somente nessa percepção de outridade, ele conseguiria entender um pouco dele mesmo. E ainda que soubesse do que poderia seu corpo ou objetivo dele se tratar, mesmo assim, pensava-se ainda incompleto, sem propósito.
 Comprara uma vitrola como se pudesse recuperar ou resgatar a memória do pai ao escutar as músicas de um tempo atrás. Ouvia-as sem saber de suas letras, mas ouvia porque o pai o fazia ouvir. E assim sua memória pedia um pouco mais daquele tempo. Fazia parte de sua recuperação humana este tratado com o passado, esta lembrança de perscrutar o que se tornou. O volume do som se adequava ao espaço e aquele tempo parecia realmente se igualar a ligeira lembrança do seu pai. Lentamente a agulha tocava o disco naquele som que parecia com o prelúdio de tudo; todas as músicas tinham aquele prelúdio riscando o corpo rígido como se atritasse à matéria para lhe tirar a vida; uma mágica que ficava observando: o atrito virar música.
 Sua busca agora era pela essência das coisas. A agulha então riscava o disco e, por alguns segundos, aquele som já fazia todo sentido. Uma espera que principiava seu esboço de felicidade – ou o que poderia ser a lembrança de tempos bons. O sorriso no rosto dele era gradativo, candente, poderia até abrir com luz um dia nublado. E enquanto seu sorriso se expandia naquele rosto sem busca, a alegria momentânea confundia-se com as lembranças do passado. Ainda que fosse apenas uma lembrança passageira, daquelas que reconstrói mais vultos do que feições nítidas e cheias de ternura, o apaziguamento das angústias era nítido. Enchia-se de uma esperança vazia, mas era um prenúncio de esperança. Ele queria acreditar em esperança, qualquer ação em busca do passado é uma tentava de encontrar uma saída para a angústia do presente insolúvel. E felicidade, mesmo que momentânea, tinha a ver com o estado de graça daquele minúsculo tempo; mal a música se iniciou e já se perdera no entre-tempo saboroso do atingido. Nem precisava ouvir a música por completo, a imitação daquele tempo lhe dava cores e os contornos de uma vida ideal, sem muitos avanços e nem perda da ingenuidade. Ele se dizia navegar num barquinho que flutuava sobre águas claras, que não pareciam de mar, mas de um rio bem extenso, numa paisagem bucólica, que repetia diversas vezes naquele princípio da agulha sobre o disco. Ele precisava apenas de um início, do início. 
 Seu ritual estava no fim.
 De fato, sua vontade não era de reconstruir por si só seu passado; ou o passado que dos outros pudesse sentir seu. Ele queria solucionar um problema prático: deixar de lado toda esta tentativa de genealogia da dor, do medo em superá-los. Ele queria paz, dizia procurar uma paz da forma mais autêntica e isto tinha também a ver com o passado, com o ruído da agulha; com o presente também. Tinha a ver com seu pai.
(...)
 E sua memória alcançava lá no passado.
 A roupa repetia o desenho na borda superior direita, a altura de um bolso de contornos arredondados, e lá embaixo, na parte inferior direita do short, a mesma figura um pouco maior. Assim ele era vestido toda vez que esperava pelo pai chegar do trabalho. Durante a semana, o abraço e o beijo sobre a testa se repetiam. O abraço era mais demorado que o beijo, que se disfarçava de um leve roçar dos lábios. Mas sua alegria se fantasiava naquele momento, sempre vinculou sua higiene e as roupas limpinhas ao carinho do pai. O ritual se repetira por muitos anos, mas depois de alguns acontecimentos ainda alheios a ele, o pai deixara de cumprir sua parte e ele começara e se culpar pela a ausência do demorado abraço e do singelo beijo. Não era pelo cuidado de si, nem pelas roupas limpas que seu pai tinha aquele ritual.
 A agulha às vezes não ficava na linha certa. Demorava a vir aquele barulho de um ruído característico que não sabia repetir em nenhum lugar, senão ali pelas mãos do pai. Às vezes, hesitava aquele ruído, saindo logo depois que seu pai alinhava, apurando a vista para acertar a altura das linhas concêntricas. E demorava um bom tempo até que o barulho voltasse. Lembrava que enquanto isso uma melodia invadia o ar, embalada pela voz grave do pai imitando a do disco. E ficava esperando o pai dar-lhe atenção. Mas tinha que dividir a atenção dele com a música e a bebida que era servida sem parar. Os olhos ainda o alcançavam timidamente, enquanto segurava algum brinquedo contra o peito, talvez um carrinho, ou apenas os punhos fechados contra o peito desolado, mas esperançoso.
(...)
 A agulha havia emperrado. Suspendeu rapidamente, colocando cabo no suporte. Ele pegava o disco que nem seu pai fazia, ainda que as mãos estivessem desajeitadas, colocava o líquido no pano e limpava o grande vinil. Então com o disco devidamente limpo, colocava novamente e preparava-se para ouvir aquele ruído. Demorava-se em acertar as linhas, mas não era pelo mesma causa de seu pai, era um descuido proposital. Ele ouvia então trezentos vinis ou mais. Interrompia os que não conhecia apenas para iniciar todo o processo.
(...)
 O livro inacabado lhe tomava tempo. Saber detalhes do grande escritor fazia-o pensar em si mesmo. Como eram solitários aqueles dias, se não fosse sua companhia diária da visita – ou era quase isso – estaria louco. A loucura quase lhe fazia companhia também, ou a quase loucura. Ele estava certo de que as duas (solidão e loucura) seriam filhas dos mesmos deuses, talvez os mesmos pais, dois pais loucos, diferentes; por diferentes razões seduziram a mesma mulher – esta seria pura, como todos seduzidos são – e usaram artifícios diferentes também para seduzi-la. “Como seria esta mulher?”, ele se perguntava.  Click 





A Teia de Germano
(Roberto Muniz Dias)








                  Setembro 2014



























"Durante muito tempo,costumava deitar-me cedo.Às vezes mal apagava a vela,meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar:'Adormeço'.E,meia hora depois,despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir;queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela;durante o sono não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler,mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular;parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro."
Marcel Proust (No caminho de Swan)



































In memoriam de meu pai
 José Antônio Dias da Silva
























Prólogo
Erich,
Procuro na noite aquele silêncio que seria somente seu; não fosse tua ausência. Aquela espera tola ao pé do telefone para ouvir a confirmação: - Sim, estou a caminho. Então a procura para. Mas o silêncio ainda impera sobre a forte vontade de dormir, ou talvez fosse o sonho que precedia esta angústia por esperar. E ainda o silêncio!

Queria te agradecer pelo terno gesto de me tocar a mão. Sentia-a debaixo da mesa sem que os outros percebessem. E quando me olhou bem perto de minha boca; e eu sem saber se te revidava o beijo ou se entrava em teus olhos. Obrigado por me fazer sentir esse arrepio na alma sem que ninguém observasse que você havia sequer sussurrado algo. E quando senti seu forte peso sobre meu corpo ainda que estivéssemos sentados um do lado do outro. Eu não saberia como te agradecer.

Mas ainda é prenúncio de um sonho e a noite fica a embalar essa embriaguez da razão. E fico a esperar teu cheiro na noite, invadindo o quarto; pegando-me de costas, agarrando meu medo e destruindo sua sombra. E eu podia jurar que você estava lá preenchendo aquela, ou seria esta noite?
Não sei como te bendizer deste sorriso que me roubou. E agora me pego rindo de sua palhaçada sem fim; de sua leve ligeireza das mãos e os lábios finos a me repreender minha sisudez. E logo estávamos rindo, mas ninguém sabia de nosso segredo. Não sei como dizer que ontem eu me senti menos sozinha, mais mulher, menos passarinho, mais solícita, menos apavorada com o silêncio da noite.

O remédio me trazia a paz do sono. E fico antes disso tudo a te beijar naquele intervalo entre o que se sente o que não se sente. É muito tolo esse sorriso de nostálgica lembrança do que não houve, da noite de ontem, do beijo que quase me beijou. Eu pude sentir tudo ao mesmo tempo.

Não sei como dizer que te quero que te quero perto. E a distância de nossos sonhos, em camas separadas me leva a ti de forma contumaz. Fico a te querer alcançar com as pontas dos dedos ou será com a ponta dos sonhos? Eu não sei o que dizer desse silêncio que grita teu nome e somente eu te ouço: - Tô chegando, tô chegando!

Isadora
 Por muito tempo ele procurava o conhecimento, especialmente de si. Depois de muito tempo também começou a pensar que talvez não precisasse saber somente de si, mas especificamente do passado. A busca agora era pelo passado.
 A história que se segue é registro de todas as angústias de quem tenta desvendar o que por muito tempo se ignorou; quem foi por muito tempo outro e, de posse do passado, tornou-se um outro ainda. É uma história de histórias dentro de outras. De pessoas que não queriam ser descobertas, pois suas vidas lhes pertenceram de alguma forma restrita ao tempo pretérito. E quem a encontra, depois de anos, também não está ciente de que este é um desejo para o futuro.
 E depois de muito tempo um reencontro muito estranho – está tudo muito perdido entre o passado e a história –, há muito tempo, que não se sentia desafiado. E quando passado e presente se misturavam, tudo parecia fazer um sentido totalmente diferente. 
  






Num quarto qualquer, outono de um dia do século XXI
(Meses após o encontro)

 Lúcio aportou lá (ou retornou) naquele lugar há anos por conta própria. De nada tinha do seu tal passado nacional. Não importava a ele se tinha sido destituído de algum papel histórico do passado. Foi parar lá porque era um estrangeiro para si mesmo. Só lhe interessava a busca.
(...)
 Mas nem mesmo sabia o que o presente podia representar. Fosse talvez um vagar do tempo em que o mesmo dia de ontem amanhecesse da mesma forma que hoje. E o ligeiro amanhã parecesse intensamente com o desaparecer de ontem. Dizia-se repetição, mas parecia que ele mesmo parava com o tempo.
 Desde a última vez que dormiu com alguém – fazia tempo – já não era mais o mesmo, nem a cama, nem o espaço que os unia. Às vezes parecia estranho à própria rotina: trocava o horário do café; a leitura matinal; os horários de chegada e saída. Estava em desencontro e a ausência de um ao outro começou a virar rotina; depois se desfazia estranhamente. Sabia de sua passagem pela casa por meio de suas coisas desarrumadas; às vezes, a falta de uma peça de roupa; o espaço do copo limpo e o perfume inodoro presente por dentro daquele tempo. Mas tudo se parecia com um tempo presente, o ontem ou o amanhã. De nada valeu a pena se distanciar; criar entre-lugares, entre-tempos. Esquecia-se dos entre-eles-mesmos.
(...)
 Mas isso parecia com a história do meio, porque o final ainda era sobre ausência, o não-itinerário.
(...)
 Lúcio veio atrás si, de um nós talvez, daquilo que deixou no ontem. Fazia tanto tempo. Deveria fazer sim muito tempo. Veio atrás do seu road movie no qual deixou rastros de sua vida mais nova. Veio seguindo tudo por pequenas pistas. Estava tudo anotado. O que vinha depois ele ia lembrando aos poucos. O rosto criado lhe lembrava de um leve sorriso e uma atenção a cada palavra. Era muito mais próximo do que podia imaginar. Ele vinha com a figura de outra pessoa, ou seriam pessoas? Sim, devia se atentar para as anotações. Tinha de dar um rosto a Erich. Haveria de ser pelas palavras de Isadora ou ele já poderia recriar o próprio Erich?  A grafia se arredondava toda vez que via Erich, se amortecia no papel. A impressão sobre o papel era sutil, enquanto as outras amontoadas anotações se atropelavam. Tinha pressa nas notas.
(...)
 As cartas tentavam seguir uma cronologia afetiva.
“Um dia de sol e um piquenique. Recordo-me que adorava piqueniques. Antes disso, lembro-me de que andávamos de mãos dadas e soprava um vento limpo por entre nossos peitos abertos. Eu queria correr. Eu sentia uma necessidade de sair correndo ao longo do parque, me estender na grandeza da imensidão daquilo tudo. Mas eu segurava minha vontade refreada pela mão que me dizia algo sobre estar junto. Sentamos sobre a grama em cima de uma toalha quadriculada. Tinha que ser linhas avermelhadas que se entrançavam como preto e um branco no fundo. Deveria ser assim, eu imaginava a toalha de piquenique. Lembro-me de ser alimentado por suas mãos: ora um pedaço de damasco, ora um pão fino adocicado com geleia. Ríamos. Lembro-me também dos risos que invadiam a tarde ensolarada. Às vezes o silêncio invadia também aquele nosso espaço e apenas me preocupava o olhar perdido; às vezes o olhar vinha me perguntar algo que eu não tinha noção do que seria, mas parecia que queria confirmação de nossos planos anteriores. Embora, às vezes, me parecesse um escape, uma tentativa de fuga ou seria uma tentativa de desvendar meu real desejo? Eu não sabia por enquanto. Animava-me essa ideia de estarmos juntos, de ficarmos juntos. E apesar dos sorrisos eu me calava diante de seu olhar que não queria acreditar tão sério. Aí me aninhava em suas pernas e procurava ler um livro qualquer, um livro que me tirasse daquela tensão momentânea e que pudesse – essa minha indiferença ao seu olhar –, convidar-nos a perguntar sobre os personagens, a história em si e o autor. Por um instante, poucos minutos, meu plano daria certo, e lá estávamos falando sobre essas coisas. O olhar de outrora sumira e os risos fechavam a tarde dessa lembrança que fixava o meu olhar perdido aqui dentro desta sala.”
(...)
 A porta rangeu logo atrás dele. Fechou-a com mais cuidado porque havia uma pessoa em casa. E para não incomodá-la, vez que ainda era muito cedo pela manhã, foi preparar um café sem despertar-lhe pelo cheiro. O engraçado é que algumas coisas não se deixavam esquecer. E para o café as medidas sempre eram respeitadas, o pó, a água; o mecanismo de ajeitar os objetos como a garrafa: limpar a garrafa, usar um coador velho. Tudo superposto. A água a ferver sem que milhares de bolhas se fizessem necessárias – não se podia cozinhar o pó. O ponto certo. O derramar do café por entre o coador e o alvo certo do fundo da garrafa. Logo tomaria sua xícara, voltaria para o livro deixado na página de ontem e leves sopros e bebericos tomariam seu dia.
 A visita, ao acordar, logo o interpelaria sobre frugalidades, mas ele automaticamente responderia como se não prestasse atenção as suas perguntas. E passaria o dia a responder reiteradamente àquelas perguntas como se fosse fácil responder a um monte de coisa sobre presente e passado. Não lhe importava interagir. Estava mais interessado em ler a história de ontem, onde parou com as personagens, embora ele soubesse que logo logo mudaria aquilo tudo. Mas o café estava lá, a visita e sua constante presença.
 Poderia ler dois, três livros por dia e rever ad infinitum suas anotações. Isto de certa forma lhe ajudava a entender levemente o porquê daquilo tudo. Os livros sempre lhe pareciam antigos, emprestados. Um cheiro familiar invadia sua memória a cada página lida. Ele queria lê-los de qualquer forma.  Leituras atentas eram importantes para um escritor. Lembrava que em todas as conversas poderia falar-lhe sobre todas as histórias e parecia, às vezes, que a visita vinha apenas para ouvi-lo resumir algumas histórias ou apenas roçar-lhe os pés. E ele se achava, por esta razão, importante.
(...)
 A partir dali, ele não sabia mais o que fazer. Apenas se reservava a alguns sentimentos que haviam de ter sentido com a solidão. Sim, esta parecia uma resposta para o absurdo de tudo. A partir dali, parecia que teria que enfrentá-la com certo estoicismo para alguma perda ou seria ausência, mesmo que fosse dele mesmo.
(...)
 O policial, então, sentou-se ao seu lado e procurou tranquilizá-lo. Ele estava em estado de choque. As notícias do biografado sabiam da sua existência. Mesmo que estivesse ainda tudo em segredo, a polícia saberia onde encontrá-lo. Nem precisou das informações da agente literária. Ele aparentemente não queria acreditar no que havia acontecido. Perder naquele momento os encontros com Erich interromperia todo o processo. Erich interrompeu tudo. E ainda havia muito para saber e entender.
 Tudo aquilo parecia um pouco com ele e se confundia de uma forma misteriosa e, ao mesmo tempo, reveladora. Sabia dos diagnósticos, mas sentia que teria tempo para ouvir uma última piada, uma revelação ou até mesmo uma bobagem qualquer. Os encontros, as cartas terminariam. Será que havia mais cartas? Teria perguntado a alguém, mas quem seria? Demorou a entender o passar das horas. Espalhou tudo pelo chão. Pensava que poderia finalizar o processo sem o todo. Naquela tarde não se recuperaria, nunca preencheria aquele dia vazio. Mas ainda havia Isadora.
(...)
 Repousava então em suas mãos alguns diários, fotos em que por, alguma razão, Erich e Isadora não sairiam tão cedo daquelas lembranças. Havia nele uma grande excitação, embora não soubesse o que de fato impulsionava aqueles amantes. Nada parecia ter sentido, a não ser uma sensação premonitória que invadia sua alma, mas que justamente pela falta de clareza esta sensação causava-lhe uma completa dispersão das coisas.
(...)
 A porta rangeu logo atrás dele. Fechou-a porque havia outra pessoa em casa. E para não incomodá-la, vez que ainda era muito cedo pela manhã, foi preparar um café sem despertá-lo pelo cheiro. O engraçado é que algumas coisas não se deixavam esquecer. E para o café as medidas sempre eram respeitadas, o pó, a água; o mecanismo de ajeitar os objetos como a garrafa: limpar a garrafa, usar um coador velho. Tudo superposto. A água a ferver sem que milhares de bolhas se fizessem necessárias – não se podia cozinhar o pó. O ponto certo. O derramar do café por entre o coador e o alvo certo do fundo da garrafa. Logo tomaria outra xícara, voltaria para o livro deixado na página de minutos atrás. Sôfregos bebericos tomariam seu dia. De repente, a xícara caiu no chão. O som não despertou a visita, mas a peça de porcelana tinha perdido a asa.
 ...Ali estava de novo a visita, sentada a perguntar algumas coisas. Mas seria diferente o dia de hoje ele presumia. Passou a noite anterior lendo o bloco de anotações. Por algum motivo passava horas lendo e relendo as anotações, nomes de lugares, situações e a repetição do nome de Isadora; as fotos de Isadora.
 – Qual a leitura de hoje? – e continuava – Kafka, Hegel...? – a visita interpelava-o. Ele saberia o que dizer se fosse sobre o Estrangeiro ou se fosse sobre Morte em Veneza. Mas ele se silenciava por alguns minutos. Na verdade não queria falar. Entregou-lhe o diário para que ele mesmo achasse algumas respostas. 
 – É seu? Andou escrevendo? – Ele não respondeu.
 Esperava que ele falasse alguma coisa. Deteve-se por mais de meia hora lendo as anotações.
(...)
 Os barulhos noturnos se espalhavam no silêncio do quarto; agora sozinho. Entravam já quase moribundos. Pareciam convidar, mas não diziam pra onde ir. Uma música quase se percebia; ficava mesmo só na melodia. Também não convidava pra dançar. Aliás, tudo parecia sem vontade. Existia apenas porque combinavam com silêncio e solidão.
 Ele continuava em seu quarto, tentando entender a morte. O seu coração ainda tinha vida própria; não dependia dele. Vivia, embora a vontade desistisse. E ele nunca sabia se estava entre o sonho e o real. Tudo lhe vinha estranhamente, até mesmo a consciência. Há tempos não sabia o que era isto. Tinha apelado para o subconsciente – aquilo que estava além de tudo o quanto sentira neste exato momento destas tentativas descritivas.
 Já não lhe importava o tipo de dose que era aplicada ao seu corpo; qualquer coisa parecia apropriada para o confronto ou o acordo com a seu inconsciente. A visita aprendera a deixá-lo num estado neutro. Ele queria apenas uma ligeira sensação de não estar ali. Era assim que encontrava certo objetivo para aquele corpo aventureiro. Ele tentava se desvencilhar das lembranças do homem que poderia ter sido. Sua viagem de agora era rumo ao adiante. Nada de passado. Sua tentativa de sair de si era para encontrar o seu outro, que não era um outro dele, mas um outro campo de luz num anteparo longínquo deste universo presente. Era por demais sóbria esta existência. Queria ser apenas uma sensação sem as percepções tácteis de uma parede enrugada, por exemplo.
 Ele tocava certa coisa como se fosse real. O que era real? Tateava com cuidado. Não era vidro, porém era sólida. Não deixava que seus olhos a vissem, não queria impressões visuais. Tentava a imanência desta coisa. O que era?
 Ouvia alguém balbuciar. Não queria ouvir. Tampava seus ouvidos. Sentia um calor, mas que não queimava a alma. Assim ficava difícil. Qual era a essência desta coisa?
 A abstração o traía. Não podia ir além do que não via e sentia. Sofria, mas não era dor. Apelava para os Deuses ou um Deus: “Meu ( ) o que será?”
 Esta coisa não dialogava com ele, portanto não falava e estava proibido de ouvi-la. Desistia. Estava difícil esta essência pura. Tentava se livrar do que sabia antes, mas sem o antes, o que ela seria? Não fazia mais nenhum esforço. Apenas aceitava-a. “Bem-vinda ao meu mundo!”, dizia. 
(...)
 A música era parte de sua ritualística ao autoconsciente; o modus operandi. Era um estágio anterior ao seu momento de busca fora do corpo. Às vezes atrevia-se a entender um pouco do eu, ainda implorando para um diálogo consigo mesmo; ia então a uma filosofia pura; como se fosse uma página em branco pronto pra descobrir mais um meando de sua ascendência humana. Aquela que pensava em si como um outro e somente nessa percepção de outridade, ele conseguiria entender um pouco dele mesmo. E ainda que soubesse do que poderia seu corpo ou objetivo dele se tratar, mesmo assim, pensava-se ainda incompleto, sem propósito.
 Comprara uma vitrola como se pudesse recuperar ou resgatar a memória do pai ao escutar as músicas de um tempo atrás. Ouvia-as sem saber de suas letras, mas ouvia porque o pai o fazia ouvir. E assim sua memória pedia um pouco mais daquele tempo. Fazia parte de sua recuperação humana este tratado com o passado, esta lembrança de perscrutar o que se tornou. O volume do som se adequava ao espaço e aquele tempo parecia realmente se igualar a ligeira lembrança do seu pai. Lentamente a agulha tocava o disco naquele som que parecia com o prelúdio de tudo; todas as músicas tinham aquele prelúdio riscando o corpo rígido como se atritasse à matéria para lhe tirar a vida; uma mágica que ficava observando: o atrito virar música.
 Sua busca agora era pela essência das coisas. A agulha então riscava o disco e, por alguns segundos, aquele som já fazia todo sentido. Uma espera que principiava seu esboço de felicidade – ou o que poderia ser a lembrança de tempos bons. O sorriso no rosto dele era gradativo, candente, poderia até abrir com luz um dia nublado. E enquanto seu sorriso se expandia naquele rosto sem busca, a alegria momentânea confundia-se com as lembranças do passado. Ainda que fosse apenas uma lembrança passageira, daquelas que reconstrói mais vultos do que feições nítidas e cheias de ternura, o apaziguamento das angústias era nítido. Enchia-se de uma esperança vazia, mas era um prenúncio de esperança. Ele queria acreditar em esperança, qualquer ação em busca do passado é uma tentava de encontrar uma saída para a angústia do presente insolúvel. E felicidade, mesmo que momentânea, tinha a ver com o estado de graça daquele minúsculo tempo; mal a música se iniciou e já se perdera no entre-tempo saboroso do atingido. Nem precisava ouvir a música por completo, a imitação daquele tempo lhe dava cores e os contornos de uma vida ideal, sem muitos avanços e nem perda da ingenuidade. Ele se dizia navegar num barquinho que flutuava sobre águas claras, que não pareciam de mar, mas de um rio bem extenso, numa paisagem bucólica, que repetia diversas vezes naquele princípio da agulha sobre o disco. Ele precisava apenas de um início, do início. 
 Seu ritual estava no fim.
 De fato, sua vontade não era de reconstruir por si só seu passado; ou o passado que dos outros pudesse sentir seu. Ele queria solucionar um problema prático: deixar de lado toda esta tentativa de genealogia da dor, do medo em superá-los. Ele queria paz, dizia procurar uma paz da forma mais autêntica e isto tinha também a ver com o passado, com o ruído da agulha; com o presente também. Tinha a ver com seu pai.
(...)
 E sua memória alcançava lá no passado.
 A roupa repetia o desenho na borda superior direita, a altura de um bolso de contornos arredondados, e lá embaixo, na parte inferior direita do short, a mesma figura um pouco maior. Assim ele era vestido toda vez que esperava pelo pai chegar do trabalho. Durante a semana, o abraço e o beijo sobre a testa se repetiam. O abraço era mais demorado que o beijo, que se disfarçava de um leve roçar dos lábios. Mas sua alegria se fantasiava naquele momento, sempre vinculou sua higiene e as roupas limpinhas ao carinho do pai. O ritual se repetira por muitos anos, mas depois de alguns acontecimentos ainda alheios a ele, o pai deixara de cumprir sua parte e ele começara e se culpar pela a ausência do demorado abraço e do singelo beijo. Não era pelo cuidado de si, nem pelas roupas limpas que seu pai tinha aquele ritual.
 A agulha às vezes não ficava na linha certa. Demorava a vir aquele barulho de um ruído característico que não sabia repetir em nenhum lugar, senão ali pelas mãos do pai. Às vezes, hesitava aquele ruído, saindo logo depois que seu pai alinhava, apurando a vista para acertar a altura das linhas concêntricas. E demorava um bom tempo até que o barulho voltasse. Lembrava que enquanto isso uma melodia invadia o ar, embalada pela voz grave do pai imitando a do disco. E ficava esperando o pai dar-lhe atenção. Mas tinha que dividir a atenção dele com a música e a bebida que era servida sem parar. Os olhos ainda o alcançavam timidamente, enquanto segurava algum brinquedo contra o peito, talvez um carrinho, ou apenas os punhos fechados contra o peito desolado, mas esperançoso.
(...)
 A agulha havia emperrado. Suspendeu rapidamente, colocando cabo no suporte. Ele pegava o disco que nem seu pai fazia, ainda que as mãos estivessem desajeitadas, colocava o líquido no pano e limpava o grande vinil. Então com o disco devidamente limpo, colocava novamente e preparava-se para ouvir aquele ruído. Demorava-se em acertar as linhas, mas não era pelo mesma causa de seu pai, era um descuido proposital. Ele ouvia então trezentos vinis ou mais. Interrompia os que não conhecia apenas para iniciar todo o processo.
(...)
 O livro inacabado lhe tomava tempo. Saber detalhes do grande escritor fazia-o pensar em si mesmo. Como eram solitários aqueles dias, se não fosse sua companhia diária da visita – ou era quase isso – estaria louco. A loucura quase lhe fazia companhia também, ou a quase loucura. Ele estava certo de que as duas (solidão e loucura) seriam filhas dos mesmos deuses, talvez os mesmos pais, dois pais loucos, diferentes; por diferentes razões seduziram a mesma mulher – esta seria pura, como todos seduzidos são – e usaram artifícios diferentes também para seduzi-la. “Como seria esta mulher?”, ele se perguntava.









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E ainda o silêncio! Queria te agradecer pelo terno gesto de me tocar a mão. Sentia-a debaixo da mesa sem que os outros percebessem. E quando me olhou bem perto de minha boca; e eu sem saber se te revidava o beijo ou se entrava em teus olhos. Obrigado por me fazer sentir esse arrepio na alma sem que ninguém observasse que você havia sequer sussurrado algo. E quando senti seu forte peso sobre meu corpo ainda que estivéssemos sentados um do lado do outro. Eu não saberia como te agradecer. Mas ainda é prenúncio de um sonho e a noite fica a embalar essa embriaguez da razão. E fico a esperar teu cheiro na noite, invadindo o quarto; pegando-me de costas, agarrando meu medo e destruindo sua sombra. E eu podia jurar que você estava lá preenchendo aquela, ou seria esta noite? Não sei como te bendizer deste sorriso que me roubou. E agora me pego rindo de sua palhaçada sem fim; de sua leve ligeireza das mãos e os lábios finos a me repreender minha sisudez. E logo estávamos rindo, mas ninguém sabia de nosso segredo. Não sei como dizer que ontem eu me senti menos sozinha, mais mulher, menos passarinho, mais solícita, menos apavorada com o silêncio da noite. O remédio me trazia a paz do sono. E fico antes disso tudo a te beijar naquele intervalo entre o que se sente o que não se sente. É muito tolo esse sorriso de nostálgica lembrança do que não houve, da noite de ontem, do beijo que quase me beijou. Eu pude sentir tudo ao mesmo tempo. Não sei como dizer que te quero que te quero perto. E a distância de nossos sonhos, em camas separadas me leva a ti de forma contumaz. Fico a te querer alcançar com as pontas dos dedos ou será com a ponta dos sonhos? Eu não sei o que dizer desse silêncio que grita teu nome e somente eu te ouço: - Tô chegando, tô chegando! Isadora Por muito tempo ele procurava o conhecimento, especialmente de si. Depois de muito tempo também começou a pensar que talvez não precisasse saber somente de si, mas especificamente do passado. A busca agora era pelo passado. A história que se segue é registro de todas as angústias de quem tenta desvendar o que por muito tempo se ignorou; quem foi por muito tempo outro e, de posse do passado, tornou-se um outro ainda. É uma história de histórias dentro de outras. De pessoas que não queriam ser descobertas, pois suas vidas lhes pertenceram de alguma forma restrita ao tempo pretérito. E quem a encontra, depois de anos, também não está ciente de que este é um desejo para o futuro. E depois de muito tempo um reencontro muito estranho – está tudo muito perdido entre o passado e a história –, há muito tempo, que não se sentia desafiado. E quando passado e presente se misturavam, tudo parecia fazer um sentido totalmente diferente.   Num quarto qualquer, outono de um dia do século XXI (Meses após o encontro) Lúcio aportou lá (ou retornou) naquele lugar há anos por conta própria. De nada tinha do seu tal passado nacional. Não importava a ele se tinha sido destituído de algum papel histórico do passado. Foi parar lá porque era um estrangeiro para si mesmo. Só lhe interessava a busca. (...) Mas nem mesmo sabia o que o presente podia representar. Fosse talvez um vagar do tempo em que o mesmo dia de ontem amanhecesse da mesma forma que hoje. E o ligeiro amanhã parecesse intensamente com o desaparecer de ontem. Dizia-se repetição, mas parecia que ele mesmo parava com o tempo. Desde a última vez que dormiu com alguém – fazia tempo – já não era mais o mesmo, nem a cama, nem o espaço que os unia. Às vezes parecia estranho à própria rotina: trocava o horário do café; a leitura matinal; os horários de chegada e saída. Estava em desencontro e a ausência de um ao outro começou a virar rotina; depois se desfazia estranhamente. Sabia de sua passagem pela casa por meio de suas coisas desarrumadas; às vezes, a falta de uma peça de roupa; o espaço do copo limpo e o perfume inodoro presente por dentro daquele tempo. Mas tudo se parecia com um tempo presente, o ontem ou o amanhã. De nada valeu a pena se distanciar; criar entre-lugares, entre-tempos. Esquecia-se dos entre-eles-mesmos. (...) Mas isso parecia com a história do meio, porque o final ainda era sobre ausência, o não-itinerário. (...) Lúcio veio atrás si, de um nós talvez, daquilo que deixou no ontem. Fazia tanto tempo. Deveria fazer sim muito tempo. Veio atrás do seu road movie no qual deixou rastros de sua vida mais nova. Veio seguindo tudo por pequenas pistas. Estava tudo anotado. O que vinha depois ele ia lembrando aos poucos. O rosto criado lhe lembrava de um leve sorriso e uma atenção a cada palavra. Era muito mais próximo do que podia imaginar. Ele vinha com a figura de outra pessoa, ou seriam pessoas? Sim, devia se atentar para as anotações. Tinha de dar um rosto a Erich. Haveria de ser pelas palavras de Isadora ou ele já poderia recriar o próprio Erich? A grafia se arredondava toda vez que via Erich, se amortecia no papel. A impressão sobre o papel era sutil, enquanto as outras amontoadas anotações se atropelavam. Tinha pressa nas notas. (...) As cartas tentavam seguir uma cronologia afetiva. “Um dia de sol e um piquenique. Recordo-me que adorava piqueniques. Antes disso, lembro-me de que andávamos de mãos dadas e soprava um vento limpo por entre nossos peitos abertos. Eu queria correr. Eu sentia uma necessidade de sair correndo ao longo do parque, me estender na grandeza da imensidão daquilo tudo. Mas eu segurava minha vontade refreada pela mão que me dizia algo sobre estar junto. Sentamos sobre a grama em cima de uma toalha quadriculada. Tinha que ser linhas avermelhadas que se entrançavam como preto e um branco no fundo. Deveria ser assim, eu imaginava a toalha de piquenique. Lembro-me de ser alimentado por suas mãos: ora um pedaço de damasco, ora um pão fino adocicado com geleia. Ríamos. Lembro-me também dos risos que invadiam a tarde ensolarada. Às vezes o silêncio invadia também aquele nosso espaço e apenas me preocupava o olhar perdido; às vezes o olhar vinha me perguntar algo que eu não tinha noção do que seria, mas parecia que queria confirmação de nossos planos anteriores. Embora, às vezes, me parecesse um escape, uma tentativa de fuga ou seria uma tentativa de desvendar meu real desejo? Eu não sabia por enquanto. Animava-me essa ideia de estarmos juntos, de ficarmos juntos. E apesar dos sorrisos eu me calava diante de seu olhar que não queria acreditar tão sério. Aí me aninhava em suas pernas e procurava ler um livro qualquer, um livro que me tirasse daquela tensão momentânea e que pudesse – essa minha indiferença ao seu olhar –, convidar-nos a perguntar sobre os personagens, a história em si e o autor. Por um instante, poucos minutos, meu plano daria certo, e lá estávamos falando sobre essas coisas. O olhar de outrora sumira e os risos fechavam a tarde dessa lembrança que fixava o meu olhar perdido aqui dentro desta sala.” (...) A porta rangeu logo atrás dele. Fechou-a com mais cuidado porque havia uma pessoa em casa. E para não incomodá-la, vez que ainda era muito cedo pela manhã, foi preparar um café sem despertar-lhe pelo cheiro. O engraçado é que algumas coisas não se deixavam esquecer. E para o café as medidas sempre eram respeitadas, o pó, a água; o mecanismo de ajeitar os objetos como a garrafa: limpar a garrafa, usar um coador velho. Tudo superposto. A água a ferver sem que milhares de bolhas se fizessem necessárias – não se podia cozinhar o pó. O ponto certo. O derramar do café por entre o coador e o alvo certo do fundo da garrafa. Logo tomaria sua xícara, voltaria para o livro deixado na página de ontem e leves sopros e bebericos tomariam seu dia. A visita, ao acordar, logo o interpelaria sobre frugalidades, mas ele automaticamente responderia como se não prestasse atenção as suas perguntas. E passaria o dia a responder reiteradamente àquelas perguntas como se fosse fácil responder a um monte de coisa sobre presente e passado. Não lhe importava interagir. Estava mais interessado em ler a história de ontem, onde parou com as personagens, embora ele soubesse que logo logo mudaria aquilo tudo. Mas o café estava lá, a visita e sua constante presença. Poderia ler dois, três livros por dia e rever ad infinitum suas anotações. Isto de certa forma lhe ajudava a entender levemente o porquê daquilo tudo. Os livros sempre lhe pareciam antigos, emprestados. Um cheiro familiar invadia sua memória a cada página lida. Ele queria lê-los de qualquer forma. Leituras atentas eram importantes para um escritor. Lembrava que em todas as conversas poderia falar-lhe sobre todas as histórias e parecia, às vezes, que a visita vinha apenas para ouvi-lo resumir algumas histórias ou apenas roçar-lhe os pés. E ele se achava, por esta razão, importante. (...) A partir dali, ele não sabia mais o que fazer. Apenas se reservava a alguns sentimentos que haviam de ter sentido com a solidão. Sim, esta parecia uma resposta para o absurdo de tudo. A partir dali, parecia que teria que enfrentá-la com certo estoicismo para alguma perda ou seria ausência, mesmo que fosse dele mesmo. (...) O policial, então, sentou-se ao seu lado e procurou tranquilizá-lo. Ele estava em estado de choque. As notícias do biografado sabiam da sua existência. Mesmo que estivesse ainda tudo em segredo, a polícia saberia onde encontrá-lo. Nem precisou das informações da agente literária. Ele aparentemente não queria acreditar no que havia acontecido. Perder naquele momento os encontros com Erich interromperia todo o processo. Erich interrompeu tudo. E ainda havia muito para saber e entender. Tudo aquilo parecia um pouco com ele e se confundia de uma forma misteriosa e, ao mesmo tempo, reveladora. Sabia dos diagnósticos, mas sentia que teria tempo para ouvir uma última piada, uma revelação ou até mesmo uma bobagem qualquer. Os encontros, as cartas terminariam. Será que havia mais cartas? Teria perguntado a alguém, mas quem seria? Demorou a entender o passar das horas. Espalhou tudo pelo chão. Pensava que poderia finalizar o processo sem o todo. Naquela tarde não se recuperaria, nunca preencheria aquele dia vazio. Mas ainda havia Isadora. (...) Repousava então em suas mãos alguns diários, fotos em que por, alguma razão, Erich e Isadora não sairiam tão cedo daquelas lembranças. Havia nele uma grande excitação, embora não soubesse o que de fato impulsionava aqueles amantes. Nada parecia ter sentido, a não ser uma sensação premonitória que invadia sua alma, mas que justamente pela falta de clareza esta sensação causava-lhe uma completa dispersão das coisas. (...) A porta rangeu logo atrás dele. Fechou-a porque havia outra pessoa em casa. E para não incomodá-la, vez que ainda era muito cedo pela manhã, foi preparar um café sem despertá-lo pelo cheiro. O engraçado é que algumas coisas não se deixavam esquecer. E para o café as medidas sempre eram respeitadas, o pó, a água; o mecanismo de ajeitar os objetos como a garrafa: limpar a garrafa, usar um coador velho. Tudo superposto. A água a ferver sem que milhares de bolhas se fizessem necessárias – não se podia cozinhar o pó. O ponto certo. O derramar do café por entre o coador e o alvo certo do fundo da garrafa. Logo tomaria outra xícara, voltaria para o livro deixado na página de minutos atrás. Sôfregos bebericos tomariam seu dia. De repente, a xícara caiu no chão. O som não despertou a visita, mas a peça de porcelana tinha perdido a asa. ...Ali estava de novo a visita, sentada a perguntar algumas coisas. Mas seria diferente o dia de hoje ele presumia. Passou a noite anterior lendo o bloco de anotações. Por algum motivo passava horas lendo e relendo as anotações, nomes de lugares, situações e a repetição do nome de Isadora; as fotos de Isadora. – Qual a leitura de hoje? – e continuava – Kafka, Hegel...? – a visita interpelava-o. Ele saberia o que dizer se fosse sobre o Estrangeiro ou se fosse sobre Morte em Veneza. Mas ele se silenciava por alguns minutos. Na verdade não queria falar. Entregou-lhe o diário para que ele mesmo achasse algumas respostas. – É seu? Andou escrevendo? – Ele não respondeu. Esperava que ele falasse alguma coisa. Deteve-se por mais de meia hora lendo as anotações. (...) Os barulhos noturnos se espalhavam no silêncio do quarto; agora sozinho. Entravam já quase moribundos. Pareciam convidar, mas não diziam pra onde ir. Uma música quase se percebia; ficava mesmo só na melodia. Também não convidava pra dançar. Aliás, tudo parecia sem vontade. Existia apenas porque combinavam com silêncio e solidão. Ele continuava em seu quarto, tentando entender a morte. O seu coração ainda tinha vida própria; não dependia dele. Vivia, embora a vontade desistisse. E ele nunca sabia se estava entre o sonho e o real. Tudo lhe vinha estranhamente, até mesmo a consciência. Há tempos não sabia o que era isto. Tinha apelado para o subconsciente – aquilo que estava além de tudo o quanto sentira neste exato momento destas tentativas descritivas. Já não lhe importava o tipo de dose que era aplicada ao seu corpo; qualquer coisa parecia apropriada para o confronto ou o acordo com a seu inconsciente. A visita aprendera a deixá-lo num estado neutro. Ele queria apenas uma ligeira sensação de não estar ali. Era assim que encontrava certo objetivo para aquele corpo aventureiro. Ele tentava se desvencilhar das lembranças do homem que poderia ter sido. Sua viagem de agora era rumo ao adiante. Nada de passado. Sua tentativa de sair de si era para encontrar o seu outro, que não era um outro dele, mas um outro campo de luz num anteparo longínquo deste universo presente. Era por demais sóbria esta existência. Queria ser apenas uma sensação sem as percepções tácteis de uma parede enrugada, por exemplo. Ele tocava certa coisa como se fosse real. O que era real? Tateava com cuidado. Não era vidro, porém era sólida. Não deixava que seus olhos a vissem, não queria impressões visuais. Tentava a imanência desta coisa. O que era? Ouvia alguém balbuciar. Não queria ouvir. Tampava seus ouvidos. Sentia um calor, mas que não queimava a alma. Assim ficava difícil. Qual era a essência desta coisa? A abstração o traía. Não podia ir além do que não via e sentia. Sofria, mas não era dor. Apelava para os Deuses ou um Deus: “Meu ( ) o que será?” Esta coisa não dialogava com ele, portanto não falava e estava proibido de ouvi-la. Desistia. Estava difícil esta essência pura. Tentava se livrar do que sabia antes, mas sem o antes, o que ela seria? Não fazia mais nenhum esforço. Apenas aceitava-a. “Bem-vinda ao meu mundo!”, dizia. (...) A música era parte de sua ritualística ao autoconsciente; o modus operandi. Era um estágio anterior ao seu momento de busca fora do corpo. Às vezes atrevia-se a entender um pouco do eu, ainda implorando para um diálogo consigo mesmo; ia então a uma filosofia pura; como se fosse uma página em branco pronto pra descobrir mais um meando de sua ascendência humana. Aquela que pensava em si como um outro e somente nessa percepção de outridade, ele conseguiria entender um pouco dele mesmo. E ainda que soubesse do que poderia seu corpo ou objetivo dele se tratar, mesmo assim, pensava-se ainda incompleto, sem propósito. Comprara uma vitrola como se pudesse recuperar ou resgatar a memória do pai ao escutar as músicas de um tempo atrás. Ouvia-as sem saber de suas letras, mas ouvia porque o pai o fazia ouvir. E assim sua memória pedia um pouco mais daquele tempo. Fazia parte de sua recuperação humana este tratado com o passado, esta lembrança de perscrutar o que se tornou. O volume do som se adequava ao espaço e aquele tempo parecia realmente se igualar a ligeira lembrança do seu pai. Lentamente a agulha tocava o disco naquele som que parecia com o prelúdio de tudo; todas as músicas tinham aquele prelúdio riscando o corpo rígido como se atritasse à matéria para lhe tirar a vida; uma mágica que ficava observando: o atrito virar música. Sua busca agora era pela essência das coisas. A agulha então riscava o disco e, por alguns segundos, aquele som já fazia todo sentido. Uma espera que principiava seu esboço de felicidade – ou o que poderia ser a lembrança de tempos bons. O sorriso no rosto dele era gradativo, candente, poderia até abrir com luz um dia nublado. E enquanto seu sorriso se expandia naquele rosto sem busca, a alegria momentânea confundia-se com as lembranças do passado. Ainda que fosse apenas uma lembrança passageira, daquelas que reconstrói mais vultos do que feições nítidas e cheias de ternura, o apaziguamento das angústias era nítido. Enchia-se de uma esperança vazia, mas era um prenúncio de esperança. Ele queria acreditar em esperança, qualquer ação em busca do passado é uma tentava de encontrar uma saída para a angústia do presente insolúvel. E felicidade, mesmo que momentânea, tinha a ver com o estado de graça daquele minúsculo tempo; mal a música se iniciou e já se perdera no entre-tempo saboroso do atingido. Nem precisava ouvir a música por completo, a imitação daquele tempo lhe dava cores e os contornos de uma vida ideal, sem muitos avanços e nem perda da ingenuidade. Ele se dizia navegar num barquinho que flutuava sobre águas claras, que não pareciam de mar, mas de um rio bem extenso, numa paisagem bucólica, que repetia diversas vezes naquele princípio da agulha sobre o disco. Ele precisava apenas de um início, do início. Seu ritual estava no fim. De fato, sua vontade não era de reconstruir por si só seu passado; ou o passado que dos outros pudesse sentir seu. Ele queria solucionar um problema prático: deixar de lado toda esta tentativa de genealogia da dor, do medo em superá-los. Ele queria paz, dizia procurar uma paz da forma mais autêntica e isto tinha também a ver com o passado, com o ruído da agulha; com o presente também. Tinha a ver com seu pai. (...) E sua memória alcançava lá no passado. A roupa repetia o desenho na borda superior direita, a altura de um bolso de contornos arredondados, e lá embaixo, na parte inferior direita do short, a mesma figura um pouco maior. Assim ele era vestido toda vez que esperava pelo pai chegar do trabalho. Durante a semana, o abraço e o beijo sobre a testa se repetiam. O abraço era mais demorado que o beijo, que se disfarçava de um leve roçar dos lábios. Mas sua alegria se fantasiava naquele momento, sempre vinculou sua higiene e as roupas limpinhas ao carinho do pai. O ritual se repetira por muitos anos, mas depois de alguns acontecimentos ainda alheios a ele, o pai deixara de cumprir sua parte e ele começara e se culpar pela a ausência do demorado abraço e do singelo beijo. Não era pelo cuidado de si, nem pelas roupas limpas que seu pai tinha aquele ritual. A agulha às vezes não ficava na linha certa. Demorava a vir aquele barulho de um ruído característico que não sabia repetir em nenhum lugar, senão ali pelas mãos do pai. Às vezes, hesitava aquele ruído, saindo logo depois que seu pai alinhava, apurando a vista para acertar a altura das linhas concêntricas. E demorava um bom tempo até que o barulho voltasse. Lembrava que enquanto isso uma melodia invadia o ar, embalada pela voz grave do pai imitando a do disco. E ficava esperando o pai dar-lhe atenção. Mas tinha que dividir a atenção dele com a música e a bebida que era servida sem parar. Os olhos ainda o alcançavam timidamente, enquanto segurava algum brinquedo contra o peito, talvez um carrinho, ou apenas os punhos fechados contra o peito desolado, mas esperançoso. (...) A agulha havia emperrado. Suspendeu rapidamente, colocando cabo no suporte. Ele pegava o disco que nem seu pai fazia, ainda que as mãos estivessem desajeitadas, colocava o líquido no pano e limpava o grande vinil. Então com o disco devidamente limpo, colocava novamente e preparava-se para ouvir aquele ruído. Demorava-se em acertar as linhas, mas não era pelo mesma causa de seu pai, era um descuido proposital. Ele ouvia então trezentos vinis ou mais. Interrompia os que não conhecia apenas para iniciar todo o processo. (...) O livro inacabado lhe tomava tempo. Saber detalhes do grande escritor fazia-o pensar em si mesmo. Como eram solitários aqueles dias, se não fosse sua companhia diária da visita – ou era quase isso – estaria louco. A loucura quase lhe fazia companhia também, ou a quase loucura. Ele estava certo de que as duas (solidão e loucura) seriam filhas dos mesmos deuses, talvez os mesmos pais, dois pais loucos, diferentes; por diferentes razões seduziram a mesma mulher – esta seria pura, como todos seduzidos são – e usaram artifícios diferentes também para seduzi-la. “Como seria esta mulher?”, ele se perguntava. A Teia de Germano (Roberto Muniz Dias)                  Setembro 2014 "Durante muito tempo,costumava deitar-me cedo.Às vezes mal apagava a vela,meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar:'Adormeço'.E,meia hora depois,despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir;queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela;durante o sono não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler,mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular;parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro." Marcel Proust (No caminho de Swan) In memoriam de meu pai José Antônio Dias da Silva Prólogo Erich, Procuro na noite aquele silêncio que seria somente seu; não fosse tua ausência. Aquela espera tola ao pé do telefone para ouvir a confirmação: - Sim, estou a caminho. Então a procura para. Mas o silêncio ainda impera sobre a forte vontade de dormir, ou talvez fosse o sonho que precedia esta angústia por esperar. E ainda o silêncio! Queria te agradecer pelo terno gesto de me tocar a mão. Sentia-a debaixo da mesa sem que os outros percebessem. E quando me olhou bem perto de minha boca; e eu sem saber se te revidava o beijo ou se entrava em teus olhos. Obrigado por me fazer sentir esse arrepio na alma sem que ninguém observasse que você havia sequer sussurrado algo. E quando senti seu forte peso sobre meu corpo ainda que estivéssemos sentados um do lado do outro. Eu não saberia como te agradecer. Mas ainda é prenúncio de um sonho e a noite fica a embalar essa embriaguez da razão. E fico a esperar teu cheiro na noite, invadindo o quarto; pegando-me de costas, agarrando meu medo e destruindo sua sombra. E eu podia jurar que você estava lá preenchendo aquela, ou seria esta noite? Não sei como te bendizer deste sorriso que me roubou. E agora me pego rindo de sua palhaçada sem fim; de sua leve ligeireza das mãos e os lábios finos a me repreender minha sisudez. E logo estávamos rindo, mas ninguém sabia de nosso segredo. Não sei como dizer que ontem eu me senti menos sozinha, mais mulher, menos passarinho, mais solícita, menos apavorada com o silêncio da noite. O remédio me trazia a paz do sono. E fico antes disso tudo a te beijar naquele intervalo entre o que se sente o que não se sente. É muito tolo esse sorriso de nostálgica lembrança do que não houve, da noite de ontem, do beijo que quase me beijou. Eu pude sentir tudo ao mesmo tempo. Não sei como dizer que te quero que te quero perto. E a distância de nossos sonhos, em camas separadas me leva a ti de forma contumaz. Fico a te querer alcançar com as pontas dos dedos ou será com a ponta dos sonhos? Eu não sei o que dizer desse silêncio que grita teu nome e somente eu te ouço: - Tô chegando, tô chegando! Isadora Por muito tempo ele procurava o conhecimento, especialmente de si. Depois de muito tempo também começou a pensar que talvez não precisasse saber somente de si, mas especificamente do passado. A busca agora era pelo passado. A história que se segue é registro de todas as angústias de quem tenta desvendar o que por muito tempo se ignorou; quem foi por muito tempo outro e, de posse do passado, tornou-se um outro ainda. É uma história de histórias dentro de outras. De pessoas que não queriam ser descobertas, pois suas vidas lhes pertenceram de alguma forma restrita ao tempo pretérito. E quem a encontra, depois de anos, também não está ciente de que este é um desejo para o futuro. E depois de muito tempo um reencontro muito estranho – está tudo muito perdido entre o passado e a história –, há muito tempo, que não se sentia desafiado. E quando passado e presente se misturavam, tudo parecia fazer um sentido totalmente diferente.   Num quarto qualquer, outono de um dia do século XXI (Meses após o encontro) Lúcio aportou lá (ou retornou) naquele lugar há anos por conta própria. De nada tinha do seu tal passado nacional. Não importava a ele se tinha sido destituído de algum papel histórico do passado. Foi parar lá porque era um estrangeiro para si mesmo. Só lhe interessava a busca. (...) Mas nem mesmo sabia o que o presente podia representar. Fosse talvez um vagar do tempo em que o mesmo dia de ontem amanhecesse da mesma forma que hoje. E o ligeiro amanhã parecesse intensamente com o desaparecer de ontem. Dizia-se repetição, mas parecia que ele mesmo parava com o tempo. Desde a última vez que dormiu com alguém – fazia tempo – já não era mais o mesmo, nem a cama, nem o espaço que os unia. Às vezes parecia estranho à própria rotina: trocava o horário do café; a leitura matinal; os horários de chegada e saída. Estava em desencontro e a ausência de um ao outro começou a virar rotina; depois se desfazia estranhamente. Sabia de sua passagem pela casa por meio de suas coisas desarrumadas; às vezes, a falta de uma peça de roupa; o espaço do copo limpo e o perfume inodoro presente por dentro daquele tempo. Mas tudo se parecia com um tempo presente, o ontem ou o amanhã. De nada valeu a pena se distanciar; criar entre-lugares, entre-tempos. Esquecia-se dos entre-eles-mesmos. (...) Mas isso parecia com a história do meio, porque o final ainda era sobre ausência, o não-itinerário. (...) Lúcio veio atrás si, de um nós talvez, daquilo que deixou no ontem. Fazia tanto tempo. Deveria fazer sim muito tempo. Veio atrás do seu road movie no qual deixou rastros de sua vida mais nova. Veio seguindo tudo por pequenas pistas. Estava tudo anotado. O que vinha depois ele ia lembrando aos poucos. O rosto criado lhe lembrava de um leve sorriso e uma atenção a cada palavra. Era muito mais próximo do que podia imaginar. Ele vinha com a figura de outra pessoa, ou seriam pessoas? Sim, devia se atentar para as anotações. Tinha de dar um rosto a Erich. Haveria de ser pelas palavras de Isadora ou ele já poderia recriar o próprio Erich? A grafia se arredondava toda vez que via Erich, se amortecia no papel. A impressão sobre o papel era sutil, enquanto as outras amontoadas anotações se atropelavam. Tinha pressa nas notas. (...) As cartas tentavam seguir uma cronologia afetiva. “Um dia de sol e um piquenique. Recordo-me que adorava piqueniques. Antes disso, lembro-me de que andávamos de mãos dadas e soprava um vento limpo por entre nossos peitos abertos. Eu queria correr. Eu sentia uma necessidade de sair correndo ao longo do parque, me estender na grandeza da imensidão daquilo tudo. Mas eu segurava minha vontade refreada pela mão que me dizia algo sobre estar junto. Sentamos sobre a grama em cima de uma toalha quadriculada. Tinha que ser linhas avermelhadas que se entrançavam como preto e um branco no fundo. Deveria ser assim, eu imaginava a toalha de piquenique. Lembro-me de ser alimentado por suas mãos: ora um pedaço de damasco, ora um pão fino adocicado com geleia. Ríamos. Lembro-me também dos risos que invadiam a tarde ensolarada. Às vezes o silêncio invadia também aquele nosso espaço e apenas me preocupava o olhar perdido; às vezes o olhar vinha me perguntar algo que eu não tinha noção do que seria, mas parecia que queria confirmação de nossos planos anteriores. Embora, às vezes, me parecesse um escape, uma tentativa de fuga ou seria uma tentativa de desvendar meu real desejo? Eu não sabia por enquanto. Animava-me essa ideia de estarmos juntos, de ficarmos juntos. E apesar dos sorrisos eu me calava diante de seu olhar que não queria acreditar tão sério. Aí me aninhava em suas pernas e procurava ler um livro qualquer, um livro que me tirasse daquela tensão momentânea e que pudesse – essa minha indiferença ao seu olhar –, convidar-nos a perguntar sobre os personagens, a história em si e o autor. Por um instante, poucos minutos, meu plano daria certo, e lá estávamos falando sobre essas coisas. O olhar de outrora sumira e os risos fechavam a tarde dessa lembrança que fixava o meu olhar perdido aqui dentro desta sala.” (...) A porta rangeu logo atrás dele. Fechou-a com mais cuidado porque havia uma pessoa em casa. E para não incomodá-la, vez que ainda era muito cedo pela manhã, foi preparar um café sem despertar-lhe pelo cheiro. O engraçado é que algumas coisas não se deixavam esquecer. E para o café as medidas sempre eram respeitadas, o pó, a água; o mecanismo de ajeitar os objetos como a garrafa: limpar a garrafa, usar um coador velho. Tudo superposto. A água a ferver sem que milhares de bolhas se fizessem necessárias – não se podia cozinhar o pó. O ponto certo. O derramar do café por entre o coador e o alvo certo do fundo da garrafa. Logo tomaria sua xícara, voltaria para o livro deixado na página de ontem e leves sopros e bebericos tomariam seu dia. A visita, ao acordar, logo o interpelaria sobre frugalidades, mas ele automaticamente responderia como se não prestasse atenção as suas perguntas. E passaria o dia a responder reiteradamente àquelas perguntas como se fosse fácil responder a um monte de coisa sobre presente e passado. Não lhe importava interagir. Estava mais interessado em ler a história de ontem, onde parou com as personagens, embora ele soubesse que logo logo mudaria aquilo tudo. Mas o café estava lá, a visita e sua constante presença. Poderia ler dois, três livros por dia e rever ad infinitum suas anotações. Isto de certa forma lhe ajudava a entender levemente o porquê daquilo tudo. Os livros sempre lhe pareciam antigos, emprestados. Um cheiro familiar invadia sua memória a cada página lida. Ele queria lê-los de qualquer forma. Leituras atentas eram importantes para um escritor. Lembrava que em todas as conversas poderia falar-lhe sobre todas as histórias e parecia, às vezes, que a visita vinha apenas para ouvi-lo resumir algumas histórias ou apenas roçar-lhe os pés. E ele se achava, por esta razão, importante. (...) A partir dali, ele não sabia mais o que fazer. Apenas se reservava a alguns sentimentos que haviam de ter sentido com a solidão. Sim, esta parecia uma resposta para o absurdo de tudo. A partir dali, parecia que teria que enfrentá-la com certo estoicismo para alguma perda ou seria ausência, mesmo que fosse dele mesmo. (...) O policial, então, sentou-se ao seu lado e procurou tranquilizá-lo. Ele estava em estado de choque. As notícias do biografado sabiam da sua existência. Mesmo que estivesse ainda tudo em segredo, a polícia saberia onde encontrá-lo. Nem precisou das informações da agente literária. Ele aparentemente não queria acreditar no que havia acontecido. Perder naquele momento os encontros com Erich interromperia todo o processo. Erich interrompeu tudo. E ainda havia muito para saber e entender. Tudo aquilo parecia um pouco com ele e se confundia de uma forma misteriosa e, ao mesmo tempo, reveladora. Sabia dos diagnósticos, mas sentia que teria tempo para ouvir uma última piada, uma revelação ou até mesmo uma bobagem qualquer. Os encontros, as cartas terminariam. Será que havia mais cartas? Teria perguntado a alguém, mas quem seria? Demorou a entender o passar das horas. Espalhou tudo pelo chão. Pensava que poderia finalizar o processo sem o todo. Naquela tarde não se recuperaria, nunca preencheria aquele dia vazio. Mas ainda havia Isadora. (...) Repousava então em suas mãos alguns diários, fotos em que por, alguma razão, Erich e Isadora não sairiam tão cedo daquelas lembranças. Havia nele uma grande excitação, embora não soubesse o que de fato impulsionava aqueles amantes. Nada parecia ter sentido, a não ser uma sensação premonitória que invadia sua alma, mas que justamente pela falta de clareza esta sensação causava-lhe uma completa dispersão das coisas. (...) A porta rangeu logo atrás dele. Fechou-a porque havia outra pessoa em casa. E para não incomodá-la, vez que ainda era muito cedo pela manhã, foi preparar um café sem despertá-lo pelo cheiro. O engraçado é que algumas coisas não se deixavam esquecer. E para o café as medidas sempre eram respeitadas, o pó, a água; o mecanismo de ajeitar os objetos como a garrafa: limpar a garrafa, usar um coador velho. Tudo superposto. A água a ferver sem que milhares de bolhas se fizessem necessárias – não se podia cozinhar o pó. O ponto certo. O derramar do café por entre o coador e o alvo certo do fundo da garrafa. Logo tomaria outra xícara, voltaria para o livro deixado na página de minutos atrás. Sôfregos bebericos tomariam seu dia. De repente, a xícara caiu no chão. O som não despertou a visita, mas a peça de porcelana tinha perdido a asa. ...Ali estava de novo a visita, sentada a perguntar algumas coisas. Mas seria diferente o dia de hoje ele presumia. Passou a noite anterior lendo o bloco de anotações. Por algum motivo passava horas lendo e relendo as anotações, nomes de lugares, situações e a repetição do nome de Isadora; as fotos de Isadora. – Qual a leitura de hoje? – e continuava – Kafka, Hegel...? – a visita interpelava-o. Ele saberia o que dizer se fosse sobre o Estrangeiro ou se fosse sobre Morte em Veneza. Mas ele se silenciava por alguns minutos. Na verdade não queria falar. Entregou-lhe o diário para que ele mesmo achasse algumas respostas. – É seu? Andou escrevendo? – Ele não respondeu. Esperava que ele falasse alguma coisa. Deteve-se por mais de meia hora lendo as anotações. (...) Os barulhos noturnos se espalhavam no silêncio do quarto; agora sozinho. Entravam já quase moribundos. Pareciam convidar, mas não diziam pra onde ir. Uma música quase se percebia; ficava mesmo só na melodia. Também não convidava pra dançar. Aliás, tudo parecia sem vontade. Existia apenas porque combinavam com silêncio e solidão. Ele continuava em seu quarto, tentando entender a morte. O seu coração ainda tinha vida própria; não dependia dele. Vivia, embora a vontade desistisse. E ele nunca sabia se estava entre o sonho e o real. Tudo lhe vinha estranhamente, até mesmo a consciência. Há tempos não sabia o que era isto. Tinha apelado para o subconsciente – aquilo que estava além de tudo o quanto sentira neste exato momento destas tentativas descritivas. Já não lhe importava o tipo de dose que era aplicada ao seu corpo; qualquer coisa parecia apropriada para o confronto ou o acordo com a seu inconsciente. A visita aprendera a deixá-lo num estado neutro. Ele queria apenas uma ligeira sensação de não estar ali. Era assim que encontrava certo objetivo para aquele corpo aventureiro. Ele tentava se desvencilhar das lembranças do homem que poderia ter sido. Sua viagem de agora era rumo ao adiante. Nada de passado. Sua tentativa de sair de si era para encontrar o seu outro, que não era um outro dele, mas um outro campo de luz num anteparo longínquo deste universo presente. Era por demais sóbria esta existência. Queria ser apenas uma sensação sem as percepções tácteis de uma parede enrugada, por exemplo. Ele tocava certa coisa como se fosse real. O que era real? Tateava com cuidado. Não era vidro, porém era sólida. Não deixava que seus olhos a vissem, não queria impressões visuais. Tentava a imanência desta coisa. O que era? Ouvia alguém balbuciar. Não queria ouvir. Tampava seus ouvidos. Sentia um calor, mas que não queimava a alma. Assim ficava difícil. Qual era a essência desta coisa? A abstração o traía. Não podia ir além do que não via e sentia. Sofria, mas não era dor. Apelava para os Deuses ou um Deus: “Meu ( ) o que será?” Esta coisa não dialogava com ele, portanto não falava e estava proibido de ouvi-la. Desistia. Estava difícil esta essência pura. Tentava se livrar do que sabia antes, mas sem o antes, o que ela seria? Não fazia mais nenhum esforço. Apenas aceitava-a. “Bem-vinda ao meu mundo!”, dizia. (...) A música era parte de sua ritualística ao autoconsciente; o modus operandi. Era um estágio anterior ao seu momento de busca fora do corpo. Às vezes atrevia-se a entender um pouco do eu, ainda implorando para um diálogo consigo mesmo; ia então a uma filosofia pura; como se fosse uma página em branco pronto pra descobrir mais um meando de sua ascendência humana. Aquela que pensava em si como um outro e somente nessa percepção de outridade, ele conseguiria entender um pouco dele mesmo. E ainda que soubesse do que poderia seu corpo ou objetivo dele se tratar, mesmo assim, pensava-se ainda incompleto, sem propósito. Comprara uma vitrola como se pudesse recuperar ou resgatar a memória do pai ao escutar as músicas de um tempo atrás. Ouvia-as sem saber de suas letras, mas ouvia porque o pai o fazia ouvir. E assim sua memória pedia um pouco mais daquele tempo. Fazia parte de sua recuperação humana este tratado com o passado, esta lembrança de perscrutar o que se tornou. O volume do som se adequava ao espaço e aquele tempo parecia realmente se igualar a ligeira lembrança do seu pai. Lentamente a agulha tocava o disco naquele som que parecia com o prelúdio de tudo; todas as músicas tinham aquele prelúdio riscando o corpo rígido como se atritasse à matéria para lhe tirar a vida; uma mágica que ficava observando: o atrito virar música. Sua busca agora era pela essência das coisas. A agulha então riscava o disco e, por alguns segundos, aquele som já fazia todo sentido. Uma espera que principiava seu esboço de felicidade – ou o que poderia ser a lembrança de tempos bons. O sorriso no rosto dele era gradativo, candente, poderia até abrir com luz um dia nublado. E enquanto seu sorriso se expandia naquele rosto sem busca, a alegria momentânea confundia-se com as lembranças do passado. Ainda que fosse apenas uma lembrança passageira, daquelas que reconstrói mais vultos do que feições nítidas e cheias de ternura, o apaziguamento das angústias era nítido. Enchia-se de uma esperança vazia, mas era um prenúncio de esperança. Ele queria acreditar em esperança, qualquer ação em busca do passado é uma tentava de encontrar uma saída para a angústia do presente insolúvel. E felicidade, mesmo que momentânea, tinha a ver com o estado de graça daquele minúsculo tempo; mal a música se iniciou e já se perdera no entre-tempo saboroso do atingido. Nem precisava ouvir a música por completo, a imitação daquele tempo lhe dava cores e os contornos de uma vida ideal, sem muitos avanços e nem perda da ingenuidade. Ele se dizia navegar num barquinho que flutuava sobre águas claras, que não pareciam de mar, mas de um rio bem extenso, numa paisagem bucólica, que repetia diversas vezes naquele princípio da agulha sobre o disco. Ele precisava apenas de um início, do início. Seu ritual estava no fim. De fato, sua vontade não era de reconstruir por si só seu passado; ou o passado que dos outros pudesse sentir seu. Ele queria solucionar um problema prático: deixar de lado toda esta tentativa de genealogia da dor, do medo em superá-los. Ele queria paz, dizia procurar uma paz da forma mais autêntica e isto tinha também a ver com o passado, com o ruído da agulha; com o presente também. Tinha a ver com seu pai. (...) E sua memória alcançava lá no passado. A roupa repetia o desenho na borda superior direita, a altura de um bolso de contornos arredondados, e lá embaixo, na parte inferior direita do short, a mesma figura um pouco maior. Assim ele era vestido toda vez que esperava pelo pai chegar do trabalho. Durante a semana, o abraço e o beijo sobre a testa se repetiam. O abraço era mais demorado que o beijo, que se disfarçava de um leve roçar dos lábios. Mas sua alegria se fantasiava naquele momento, sempre vinculou sua higiene e as roupas limpinhas ao carinho do pai. O ritual se repetira por muitos anos, mas depois de alguns acontecimentos ainda alheios a ele, o pai deixara de cumprir sua parte e ele começara e se culpar pela a ausência do demorado abraço e do singelo beijo. Não era pelo cuidado de si, nem pelas roupas limpas que seu pai tinha aquele ritual. A agulha às vezes não ficava na linha certa. Demorava a vir aquele barulho de um ruído característico que não sabia repetir em nenhum lugar, senão ali pelas mãos do pai. Às vezes, hesitava aquele ruído, saindo logo depois que seu pai alinhava, apurando a vista para acertar a altura das linhas concêntricas. E demorava um bom tempo até que o barulho voltasse. Lembrava que enquanto isso uma melodia invadia o ar, embalada pela voz grave do pai imitando a do disco. E ficava esperando o pai dar-lhe atenção. Mas tinha que dividir a atenção dele com a música e a bebida que era servida sem parar. Os olhos ainda o alcançavam timidamente, enquanto segurava algum brinquedo contra o peito, talvez um carrinho, ou apenas os punhos fechados contra o peito desolado, mas esperançoso. (...) A agulha havia emperrado. Suspendeu rapidamente, colocando cabo no suporte. Ele pegava o disco que nem seu pai fazia, ainda que as mãos estivessem desajeitadas, colocava o líquido no pano e limpava o grande vinil. Então com o disco devidamente limpo, colocava novamente e preparava-se para ouvir aquele ruído. Demorava-se em acertar as linhas, mas não era pelo mesma causa de seu pai, era um descuido proposital. Ele ouvia então trezentos vinis ou mais. Interrompia os que não conhecia apenas para iniciar todo o processo. (...) O livro inacabado lhe tomava tempo. Saber detalhes do grande escritor fazia-o pensar em si mesmo. Como eram solitários aqueles dias, se não fosse sua companhia diária da visita – ou era quase isso – estaria louco. A loucura quase lhe fazia companhia também, ou a quase loucura. Ele estava certo de que as duas (solidão e loucura) seriam filhas dos mesmos deuses, talvez os mesmos pais, dois pais loucos, diferentes; por diferentes razões seduziram a mesma mulher – esta seria pura, como todos seduzidos são – e usaram artifícios diferentes também para seduzi-la. “Como seria esta mulher?”, ele se perguntava. Click A Teia de Germano (Roberto Muniz Dias)                  Setembro 2014 "Durante muito tempo,costumava deitar-me cedo.Às vezes mal apagava a vela,meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar:'Adormeço'.E,meia hora depois,despertava-me a idéia de que já era tempo de procurar dormir;queria largar o volume que imaginava ter ainda nas mãos e soprar a vela;durante o sono não havia cessado de refletir sobre o que acabara de ler,mas essas reflexões tinham assumido uma feição um tanto particular;parecia-me que eu era o assunto de que tratava o livro." Marcel Proust (No caminho de Swan) In memoriam de meu pai José Antônio Dias da Silva Prólogo Erich, Procuro na noite aquele silêncio que seria somente seu; não fosse tua ausência. Aquela espera tola ao pé do telefone para ouvir a confirmação: - Sim, estou a caminho. Então a procura para. Mas o silêncio ainda impera sobre a forte vontade de dormir, ou talvez fosse o sonho que precedia esta angústia por esperar. E ainda o silêncio! Queria te agradecer pelo terno gesto de me tocar a mão. Sentia-a debaixo da mesa sem que os outros percebessem. E quando me olhou bem perto de minha boca; e eu sem saber se te revidava o beijo ou se entrava em teus olhos. Obrigado por me fazer sentir esse arrepio na alma sem que ninguém observasse que você havia sequer sussurrado algo. E quando senti seu forte peso sobre meu corpo ainda que estivéssemos sentados um do lado do outro. Eu não saberia como te agradecer. Mas ainda é prenúncio de um sonho e a noite fica a embalar essa embriaguez da razão. E fico a esperar teu cheiro na noite, invadindo o quarto; pegando-me de costas, agarrando meu medo e destruindo sua sombra. E eu podia jurar que você estava lá preenchendo aquela, ou seria esta noite? Não sei como te bendizer deste sorriso que me roubou. E agora me pego rindo de sua palhaçada sem fim; de sua leve ligeireza das mãos e os lábios finos a me repreender minha sisudez. E logo estávamos rindo, mas ninguém sabia de nosso segredo. Não sei como dizer que ontem eu me senti menos sozinha, mais mulher, menos passarinho, mais solícita, menos apavorada com o silêncio da noite. O remédio me trazia a paz do sono. E fico antes disso tudo a te beijar naquele intervalo entre o que se sente o que não se sente. É muito tolo esse sorriso de nostálgica lembrança do que não houve, da noite de ontem, do beijo que quase me beijou. Eu pude sentir tudo ao mesmo tempo. Não sei como dizer que te quero que te quero perto. E a distância de nossos sonhos, em camas separadas me leva a ti de forma contumaz. Fico a te querer alcançar com as pontas dos dedos ou será com a ponta dos sonhos? Eu não sei o que dizer desse silêncio que grita teu nome e somente eu te ouço: - Tô chegando, tô chegando! Isadora Por muito tempo ele procurava o conhecimento, especialmente de si. Depois de muito tempo também começou a pensar que talvez não precisasse saber somente de si, mas especificamente do passado. A busca agora era pelo passado. A história que se segue é registro de todas as angústias de quem tenta desvendar o que por muito tempo se ignorou; quem foi por muito tempo outro e, de posse do passado, tornou-se um outro ainda. É uma história de histórias dentro de outras. De pessoas que não queriam ser descobertas, pois suas vidas lhes pertenceram de alguma forma restrita ao tempo pretérito. E quem a encontra, depois de anos, também não está ciente de que este é um desejo para o futuro. E depois de muito tempo um reencontro muito estranho – está tudo muito perdido entre o passado e a história –, há muito tempo, que não se sentia desafiado. E quando passado e presente se misturavam, tudo parecia fazer um sentido totalmente diferente.   Num quarto qualquer, outono de um dia do século XXI (Meses após o encontro) Lúcio aportou lá (ou retornou) naquele lugar há anos por conta própria. De nada tinha do seu tal passado nacional. Não importava a ele se tinha sido destituído de algum papel histórico do passado. Foi parar lá porque era um estrangeiro para si mesmo. Só lhe interessava a busca. (...) Mas nem mesmo sabia o que o presente podia representar. Fosse talvez um vagar do tempo em que o mesmo dia de ontem amanhecesse da mesma forma que hoje. E o ligeiro amanhã parecesse intensamente com o desaparecer de ontem. Dizia-se repetição, mas parecia que ele mesmo parava com o tempo. Desde a última vez que dormiu com alguém – fazia tempo – já não era mais o mesmo, nem a cama, nem o espaço que os unia. Às vezes parecia estranho à própria rotina: trocava o horário do café; a leitura matinal; os horários de chegada e saída. Estava em desencontro e a ausência de um ao outro começou a virar rotina; depois se desfazia estranhamente. Sabia de sua passagem pela casa por meio de suas coisas desarrumadas; às vezes, a falta de uma peça de roupa; o espaço do copo limpo e o perfume inodoro presente por dentro daquele tempo. Mas tudo se parecia com um tempo presente, o ontem ou o amanhã. De nada valeu a pena se distanciar; criar entre-lugares, entre-tempos. Esquecia-se dos entre-eles-mesmos. (...) Mas isso parecia com a história do meio, porque o final ainda era sobre ausência, o não-itinerário. (...) Lúcio veio atrás si, de um nós talvez, daquilo que deixou no ontem. Fazia tanto tempo. Deveria fazer sim muito tempo. Veio atrás do seu road movie no qual deixou rastros de sua vida mais nova. Veio seguindo tudo por pequenas pistas. Estava tudo anotado. O que vinha depois ele ia lembrando aos poucos. O rosto criado lhe lembrava de um leve sorriso e uma atenção a cada palavra. Era muito mais próximo do que podia imaginar. Ele vinha com a figura de outra pessoa, ou seriam pessoas? Sim, devia se atentar para as anotações. Tinha de dar um rosto a Erich. Haveria de ser pelas palavras de Isadora ou ele já poderia recriar o próprio Erich? A grafia se arredondava toda vez que via Erich, se amortecia no papel. A impressão sobre o papel era sutil, enquanto as outras amontoadas anotações se atropelavam. Tinha pressa nas notas. (...) As cartas tentavam seguir uma cronologia afetiva. “Um dia de sol e um piquenique. Recordo-me que adorava piqueniques. Antes disso, lembro-me de que andávamos de mãos dadas e soprava um vento limpo por entre nossos peitos abertos. Eu queria correr. Eu sentia uma necessidade de sair correndo ao longo do parque, me estender na grandeza da imensidão daquilo tudo. Mas eu segurava minha vontade refreada pela mão que me dizia algo sobre estar junto. Sentamos sobre a grama em cima de uma toalha quadriculada. Tinha que ser linhas avermelhadas que se entrançavam como preto e um branco no fundo. Deveria ser assim, eu imaginava a toalha de piquenique. Lembro-me de ser alimentado por suas mãos: ora um pedaço de damasco, ora um pão fino adocicado com geleia. Ríamos. Lembro-me também dos risos que invadiam a tarde ensolarada. Às vezes o silêncio invadia também aquele nosso espaço e apenas me preocupava o olhar perdido; às vezes o olhar vinha me perguntar algo que eu não tinha noção do que seria, mas parecia que queria confirmação de nossos planos anteriores. Embora, às vezes, me parecesse um escape, uma tentativa de fuga ou seria uma tentativa de desvendar meu real desejo? Eu não sabia por enquanto. Animava-me essa ideia de estarmos juntos, de ficarmos juntos. E apesar dos sorrisos eu me calava diante de seu olhar que não queria acreditar tão sério. Aí me aninhava em suas pernas e procurava ler um livro qualquer, um livro que me tirasse daquela tensão momentânea e que pudesse – essa minha indiferença ao seu olhar –, convidar-nos a perguntar sobre os personagens, a história em si e o autor. Por um instante, poucos minutos, meu plano daria certo, e lá estávamos falando sobre essas coisas. O olhar de outrora sumira e os risos fechavam a tarde dessa lembrança que fixava o meu olhar perdido aqui dentro desta sala.” (...) A porta rangeu logo atrás dele. Fechou-a com mais cuidado porque havia uma pessoa em casa. E para não incomodá-la, vez que ainda era muito cedo pela manhã, foi preparar um café sem despertar-lhe pelo cheiro. O engraçado é que algumas coisas não se deixavam esquecer. E para o café as medidas sempre eram respeitadas, o pó, a água; o mecanismo de ajeitar os objetos como a garrafa: limpar a garrafa, usar um coador velho. Tudo superposto. A água a ferver sem que milhares de bolhas se fizessem necessárias – não se podia cozinhar o pó. O ponto certo. O derramar do café por entre o coador e o alvo certo do fundo da garrafa. Logo tomaria sua xícara, voltaria para o livro deixado na página de ontem e leves sopros e bebericos tomariam seu dia. A visita, ao acordar, logo o interpelaria sobre frugalidades, mas ele automaticamente responderia como se não prestasse atenção as suas perguntas. E passaria o dia a responder reiteradamente àquelas perguntas como se fosse fácil responder a um monte de coisa sobre presente e passado. Não lhe importava interagir. Estava mais interessado em ler a história de ontem, onde parou com as personagens, embora ele soubesse que logo logo mudaria aquilo tudo. Mas o café estava lá, a visita e sua constante presença. Poderia ler dois, três livros por dia e rever ad infinitum suas anotações. Isto de certa forma lhe ajudava a entender levemente o porquê daquilo tudo. Os livros sempre lhe pareciam antigos, emprestados. Um cheiro familiar invadia sua memória a cada página lida. Ele queria lê-los de qualquer forma. Leituras atentas eram importantes para um escritor. Lembrava que em todas as conversas poderia falar-lhe sobre todas as histórias e parecia, às vezes, que a visita vinha apenas para ouvi-lo resumir algumas histórias ou apenas roçar-lhe os pés. E ele se achava, por esta razão, importante. (...) A partir dali, ele não sabia mais o que fazer. Apenas se reservava a alguns sentimentos que haviam de ter sentido com a solidão. Sim, esta parecia uma resposta para o absurdo de tudo. A partir dali, parecia que teria que enfrentá-la com certo estoicismo para alguma perda ou seria ausência, mesmo que fosse dele mesmo. (...) O policial, então, sentou-se ao seu lado e procurou tranquilizá-lo. Ele estava em estado de choque. As notícias do biografado sabiam da sua existência. Mesmo que estivesse ainda tudo em segredo, a polícia saberia onde encontrá-lo. Nem precisou das informações da agente literária. Ele aparentemente não queria acreditar no que havia acontecido. Perder naquele momento os encontros com Erich interromperia todo o processo. Erich interrompeu tudo. E ainda havia muito para saber e entender. Tudo aquilo parecia um pouco com ele e se confundia de uma forma misteriosa e, ao mesmo tempo, reveladora. Sabia dos diagnósticos, mas sentia que teria tempo para ouvir uma última piada, uma revelação ou até mesmo uma bobagem qualquer. Os encontros, as cartas terminariam. Será que havia mais cartas? Teria perguntado a alguém, mas quem seria? Demorou a entender o passar das horas. Espalhou tudo pelo chão. Pensava que poderia finalizar o processo sem o todo. Naquela tarde não se recuperaria, nunca preencheria aquele dia vazio. Mas ainda havia Isadora. (...) Repousava então em suas mãos alguns diários, fotos em que por, alguma razão, Erich e Isadora não sairiam tão cedo daquelas lembranças. Havia nele uma grande excitação, embora não soubesse o que de fato impulsionava aqueles amantes. Nada parecia ter sentido, a não ser uma sensação premonitória que invadia sua alma, mas que justamente pela falta de clareza esta sensação causava-lhe uma completa dispersão das coisas. (...) A porta rangeu logo atrás dele. Fechou-a porque havia outra pessoa em casa. E para não incomodá-la, vez que ainda era muito cedo pela manhã, foi preparar um café sem despertá-lo pelo cheiro. O engraçado é que algumas coisas não se deixavam esquecer. E para o café as medidas sempre eram respeitadas, o pó, a água; o mecanismo de ajeitar os objetos como a garrafa: limpar a garrafa, usar um coador velho. Tudo superposto. A água a ferver sem que milhares de bolhas se fizessem necessárias – não se podia cozinhar o pó. O ponto certo. O derramar do café por entre o coador e o alvo certo do fundo da garrafa. Logo tomaria outra xícara, voltaria para o livro deixado na página de minutos atrás. Sôfregos bebericos tomariam seu dia. De repente, a xícara caiu no chão. O som não despertou a visita, mas a peça de porcelana tinha perdido a asa. ...Ali estava de novo a visita, sentada a perguntar algumas coisas. Mas seria diferente o dia de hoje ele presumia. Passou a noite anterior lendo o bloco de anotações. Por algum motivo passava horas lendo e relendo as anotações, nomes de lugares, situações e a repetição do nome de Isadora; as fotos de Isadora. – Qual a leitura de hoje? – e continuava – Kafka, Hegel...? – a visita interpelava-o. Ele saberia o que dizer se fosse sobre o Estrangeiro ou se fosse sobre Morte em Veneza. Mas ele se silenciava por alguns minutos. Na verdade não queria falar. Entregou-lhe o diário para que ele mesmo achasse algumas respostas. – É seu? Andou escrevendo? – Ele não respondeu. Esperava que ele falasse alguma coisa. Deteve-se por mais de meia hora lendo as anotações. (...) Os barulhos noturnos se espalhavam no silêncio do quarto; agora sozinho. Entravam já quase moribundos. Pareciam convidar, mas não diziam pra onde ir. Uma música quase se percebia; ficava mesmo só na melodia. Também não convidava pra dançar. Aliás, tudo parecia sem vontade. Existia apenas porque combinavam com silêncio e solidão. Ele continuava em seu quarto, tentando entender a morte. O seu coração ainda tinha vida própria; não dependia dele. Vivia, embora a vontade desistisse. E ele nunca sabia se estava entre o sonho e o real. Tudo lhe vinha estranhamente, até mesmo a consciência. Há tempos não sabia o que era isto. Tinha apelado para o subconsciente – aquilo que estava além de tudo o quanto sentira neste exato momento destas tentativas descritivas. Já não lhe importava o tipo de dose que era aplicada ao seu corpo; qualquer coisa parecia apropriada para o confronto ou o acordo com a seu inconsciente. A visita aprendera a deixá-lo num estado neutro. Ele queria apenas uma ligeira sensação de não estar ali. Era assim que encontrava certo objetivo para aquele corpo aventureiro. Ele tentava se desvencilhar das lembranças do homem que poderia ter sido. Sua viagem de agora era rumo ao adiante. Nada de passado. Sua tentativa de sair de si era para encontrar o seu outro, que não era um outro dele, mas um outro campo de luz num anteparo longínquo deste universo presente. Era por demais sóbria esta existência. Queria ser apenas uma sensação sem as percepções tácteis de uma parede enrugada, por exemplo. Ele tocava certa coisa como se fosse real. O que era real? Tateava com cuidado. Não era vidro, porém era sólida. Não deixava que seus olhos a vissem, não queria impressões visuais. Tentava a imanência desta coisa. O que era? Ouvia alguém balbuciar. Não queria ouvir. Tampava seus ouvidos. Sentia um calor, mas que não queimava a alma. Assim ficava difícil. Qual era a essência desta coisa? A abstração o traía. Não podia ir além do que não via e sentia. Sofria, mas não era dor. Apelava para os Deuses ou um Deus: “Meu ( ) o que será?” Esta coisa não dialogava com ele, portanto não falava e estava proibido de ouvi-la. Desistia. Estava difícil esta essência pura. Tentava se livrar do que sabia antes, mas sem o antes, o que ela seria? Não fazia mais nenhum esforço. Apenas aceitava-a. “Bem-vinda ao meu mundo!”, dizia. (...) A música era parte de sua ritualística ao autoconsciente; o modus operandi. Era um estágio anterior ao seu momento de busca fora do corpo. Às vezes atrevia-se a entender um pouco do eu, ainda implorando para um diálogo consigo mesmo; ia então a uma filosofia pura; como se fosse uma página em branco pronto pra descobrir mais um meando de sua ascendência humana. Aquela que pensava em si como um outro e somente nessa percepção de outridade, ele conseguiria entender um pouco dele mesmo. E ainda que soubesse do que poderia seu corpo ou objetivo dele se tratar, mesmo assim, pensava-se ainda incompleto, sem propósito. Comprara uma vitrola como se pudesse recuperar ou resgatar a memória do pai ao escutar as músicas de um tempo atrás. Ouvia-as sem saber de suas letras, mas ouvia porque o pai o fazia ouvir. E assim sua memória pedia um pouco mais daquele tempo. Fazia parte de sua recuperação humana este tratado com o passado, esta lembrança de perscrutar o que se tornou. O volume do som se adequava ao espaço e aquele tempo parecia realmente se igualar a ligeira lembrança do seu pai. Lentamente a agulha tocava o disco naquele som que parecia com o prelúdio de tudo; todas as músicas tinham aquele prelúdio riscando o corpo rígido como se atritasse à matéria para lhe tirar a vida; uma mágica que ficava observando: o atrito virar música. Sua busca agora era pela essência das coisas. A agulha então riscava o disco e, por alguns segundos, aquele som já fazia todo sentido. Uma espera que principiava seu esboço de felicidade – ou o que poderia ser a lembrança de tempos bons. O sorriso no rosto dele era gradativo, candente, poderia até abrir com luz um dia nublado. E enquanto seu sorriso se expandia naquele rosto sem busca, a alegria momentânea confundia-se com as lembranças do passado. Ainda que fosse apenas uma lembrança passageira, daquelas que reconstrói mais vultos do que feições nítidas e cheias de ternura, o apaziguamento das angústias era nítido. Enchia-se de uma esperança vazia, mas era um prenúncio de esperança. Ele queria acreditar em esperança, qualquer ação em busca do passado é uma tentava de encontrar uma saída para a angústia do presente insolúvel. E felicidade, mesmo que momentânea, tinha a ver com o estado de graça daquele minúsculo tempo; mal a música se iniciou e já se perdera no entre-tempo saboroso do atingido. Nem precisava ouvir a música por completo, a imitação daquele tempo lhe dava cores e os contornos de uma vida ideal, sem muitos avanços e nem perda da ingenuidade. Ele se dizia navegar num barquinho que flutuava sobre águas claras, que não pareciam de mar, mas de um rio bem extenso, numa paisagem bucólica, que repetia diversas vezes naquele princípio da agulha sobre o disco. Ele precisava apenas de um início, do início. Seu ritual estava no fim. De fato, sua vontade não era de reconstruir por si só seu passado; ou o passado que dos outros pudesse sentir seu. Ele queria solucionar um problema prático: deixar de lado toda esta tentativa de genealogia da dor, do medo em superá-los. Ele queria paz, dizia procurar uma paz da forma mais autêntica e isto tinha também a ver com o passado, com o ruído da agulha; com o presente também. Tinha a ver com seu pai. (...) E sua memória alcançava lá no passado. A roupa repetia o desenho na borda superior direita, a altura de um bolso de contornos arredondados, e lá embaixo, na parte inferior direita do short, a mesma figura um pouco maior. Assim ele era vestido toda vez que esperava pelo pai chegar do trabalho. Durante a semana, o abraço e o beijo sobre a testa se repetiam. O abraço era mais demorado que o beijo, que se disfarçava de um leve roçar dos lábios. Mas sua alegria se fantasiava naquele momento, sempre vinculou sua higiene e as roupas limpinhas ao carinho do pai. O ritual se repetira por muitos anos, mas depois de alguns acontecimentos ainda alheios a ele, o pai deixara de cumprir sua parte e ele começara e se culpar pela a ausência do demorado abraço e do singelo beijo. Não era pelo cuidado de si, nem pelas roupas limpas que seu pai tinha aquele ritual. A agulha às vezes não ficava na linha certa. Demorava a vir aquele barulho de um ruído característico que não sabia repetir em nenhum lugar, senão ali pelas mãos do pai. Às vezes, hesitava aquele ruído, saindo logo depois que seu pai alinhava, apurando a vista para acertar a altura das linhas concêntricas. E demorava um bom tempo até que o barulho voltasse. Lembrava que enquanto isso uma melodia invadia o ar, embalada pela voz grave do pai imitando a do disco. E ficava esperando o pai dar-lhe atenção. Mas tinha que dividir a atenção dele com a música e a bebida que era servida sem parar. Os olhos ainda o alcançavam timidamente, enquanto segurava algum brinquedo contra o peito, talvez um carrinho, ou apenas os punhos fechados contra o peito desolado, mas esperançoso. (...) A agulha havia emperrado. Suspendeu rapidamente, colocando cabo no suporte. Ele pegava o disco que nem seu pai fazia, ainda que as mãos estivessem desajeitadas, colocava o líquido no pano e limpava o grande vinil. Então com o disco devidamente limpo, colocava novamente e preparava-se para ouvir aquele ruído. Demorava-se em acertar as linhas, mas não era pelo mesma causa de seu pai, era um descuido proposital. Ele ouvia então trezentos vinis ou mais. Interrompia os que não conhecia apenas para iniciar todo o processo. (...) O livro inacabado lhe tomava tempo. Saber detalhes do grande escritor fazia-o pensar em si mesmo. Como eram solitários aqueles dias, se não fosse sua companhia diária da visita – ou era quase isso – estaria louco. A loucura quase lhe fazia companhia também, ou a quase loucura. Ele estava certo de que as duas (solidão e loucura) seriam filhas dos mesmos deuses, talvez os mesmos pais, dois pais loucos, diferentes; por diferentes razões seduziram a mesma mulher – esta seria pura, como todos seduzidos são – e usaram artifícios diferentes também para seduzi-la. “Como seria esta mulher?”, ele se perguntava. to add more text here