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Renato Dias Martino 1
Para
Além da Clínica
Autor
Renato Dias Martino
Inteligência3Editora
2 Para Além da Clínica
Copyright © 2011 Renato Dias Martino
Editora
Rosimeire Navarro
inteligencia3@gmail.com
Editoração e Direção Artística
Editora Inteligência 3
Projeto Editorial
Helcio Buzutti
Capa
Rosimeire Navarro e Marco Aurélio N. Gutierres
Ilustrações
Renato Dias Martino
Foto
Natália Campanholo
Revisão
Neide Nadruz - Jornalista MTB 12694
Esta obra obedece a Nova Ortografia estabelecida pelo
Decreto Federal 6.583, de 29 de setembro de 2008.
Dados Internacionais de Catalogação
MARTINO, Renato Dias.
ParaAlém da Clínica.Renato Dias Martino - 1. ed. São José do Rio
Preto, São Paulo: Editora Inteligência 3, 2011.
176 pp. ; 21cm.
ISBN 978 85 89223 128-3
150.195. Psicanalíticos, sistemas
150.1Teoria da psicologia. Fundamentos da psicologia
080.150.1.195
Editora Inteligência 3 - www.inteligencia3.blogspot.com
Navarro e Batista Editora de Livros e Revistas Ltda
Studio / Av. Jesus Villanova Vidal, 1771 - Jd.Alto Rio Preto - CEP 15020-060 - São José do Rio Preto - SP
Brasil - 55 - 17 3232-8200 ou 9706-5255
Renato Dias Martino 3
Dedico este trabalho
à memória de minha irmã Solange Dias Martino.
Presente em nossa saudade.
4 Para Além da Clínica
Renato Dias Martino 5
Agradeço à Madalena, minha mãe e Oracy
Placido, meu pai, pessoas maravilhosas que sonharam
junto comigo esse trabalho. Agradeço a minha querida
esposa Desirée, que com muita tolerância, guardou
minha vida enquanto me esforçava em trabalhar. Sou
muito grato aos meus pacientes, que confiaram em mim e
sem os quais nunca teria realizaria esse trabalho. Agradeço
muito aos meus queridos alunos, em especial, Yasmini de
Almeida Perissotti, Natália Campanholo e Maicom
Vijarva, que estiveram muito próximos, me nutrindo de
reconhecimento, nos estágios finais dessa obra.
Meu agradecimento se estende aos amigos Luciano
Alvarenga, Ricardo Sorrilha e Karina Pelicano.
Agradeço também a Sandra Chalela, Arnaldo Vieira
e Alexandre Costa, coordenadores e companheiros
queridos que me apóiam, pois acreditam em minha
capacidade.
6 Para Além da Clínica
Renato Dias Martino 7
SUMÁRIO
Introdução p.09
Tarefa penosa e ousada p.11
A prática de certa filosofia p.15
Pensando o pensar p.17
Doar e aprender, receber e ensinar p.21
Vínculo e aprendizado p.23
Alimento Espiritual
Pensando melhor o conceito de “verdade” p.26
Memória, desejo e compreensão
Aqui, agora p.34
Memória e o espaço mental p.39
Pequeno ensaio sobre
conteúdos e capacidades p.44
A memória p.45
O recordar p.49
O real e a idealização (do real) p.53
O desejo de ser outro p.62
Compreensão do mundo
o uso do “eu sei” p.67
O bom e o prazeroso p.70
A memória da perda p.73
Gradiente evolutiva p.77
A dor e a palavra p.79
Algumas palavras sobre a palavra p.83
Ainda Sobre a Palavra p.86
Tédio p.88
8 Para Além da Clínica
Dois caminhos depois da perda p.91
Vazio d’alma p.97
Do Desmame Nosso de Cada Dia p.100
Reflexões Sobre Ser Feliz p.109
Algumas palavras sobre vocação p.114
Cogitações sobre a inveja p.117
Medo do antigo p.130
Vínculo bem dito p.133
Meu ou Teu p.137
Ainda sobre o pensar
fantasia, realidade e símbolo p.138
O sonhar p.142
Janela para o profundo p.145
Obstáculos da interpretação p.147
Ponte entre consciente e inconsciente p.149
Além de um simples caminho p.151
O símbolo e o trabalho onírico p.153
O Desejo dos Pais p.155
O filho não é p.157
A Mãe e o Bebê p.159
O lugar do pai p.162
A arte como simbolização do mundo p.166
Conceito de símbolo p.170
A arte no simbolizar p.171
A arte e o eu real p.172
A arte e sublimação p.173
Currículo do Autor p.175
Bibliografia p.176
Renato Dias Martino 9
Introdução
Este livro não é um trabalho direcionado
somente a psicólogos e psicanalistas, tão pouco
exige alguma formação específica anterior para
que se possa entender seu conteúdo. Antes de
qualquer capacidade ligada à intelectualidade
(do Latim intellectus, de intelligere - inteligir,
entender, compreender), apontaria a coragem (do
Latim coraticum, derivado de cor, coração - agir
com o coração) como requisito fundamental
para a leitura e a captação das ideias contidas
aqui.
Até por que, a intelectualidade por si só, em certos
momentos, pode dificultar a apreensão daquilo que é
novo.
O que temos neste livro é uma reunião de ideias
que “percorreram caminhos” até se estruturassem
dessa forma, como estão aqui representadas.
Neste livro, inclui o tempo que pude passar deitado
em um divã com o auxílio de um profissional afetuoso
e dedicado, como algo de fundamental valor, nas etapas
preliminares que levaram a elaboração deste ideário.
A partir de então, através de experiências alcançadas
na minha prática clínica, junto aos meus pacientes,
incorporei às pesquisas teóricas. E assim, o trabalho foi
tomando o formato presente.
10 Para Além da Clínica
A prática da docência no ambiente universitário,
também foi um fator extremamente importante no
amadurecimento deste trabalho.
Muito do conteúdo textual aqui apresentado vem
de um garimpo feito a partir do vasto material, em
formato artigo ou através de contribuições minhas para
matérias sobre psicologia, em jornais, sites na internet e
revistas especializadas em psicologia. É o resultado de
um longo trabalho, dedicado ao estudo do funcionamento
psíquico e da maneira como isso influencia a criação
dos modelos de relacionamento que conduzem as
experiências em nossa vida. Esforço esse, que parte do
contato com o desconforto emocional, “justamente o que
intensifica a criatividade” em nome da tentativa de criar
recursos para conter a “dor humana”.
Trata-se de um ensaio, com o objetivo de dar a esta
“dor psíquica” um formato ou um nome, mesmo que
temporário. Isso, admitindo e até tendo como condição,
a proposta de criação de novos modelos que possam
ultrapassar e expandir as ideias contidas nas próximas
páginas.
De qualquer forma, o material aqui apresentado foi
elaborado com muito carinho, mesmo que possa parecer
de algum modo, pretensioso em sua finalidade.
Isso por que, existe aqui uma proposta de oferecer
ao leitor, em palavras relativamente simples, um
instrumento que promova a “capacidade de pensar”.
Renato Dias Martino 11
Pensar a vida, o mundo, os nossos vínculos com
tudo que está no mundo interno e externo. A “dor” que
temos grande dificuldade em assumir, e que, só através
da consciência de “certas verdades”, pode ser
transformada em palavras. E a tentativa de pensar a
“dor psíquica” que sentimos, mas muitas vezes, sequer
nos propomos a percebê-las.
A publicação desse trabalho nos coloca diante do
esforço, em direção da criação de algo que nos permita,
desde já, através de uma linguagem compreensível,
estimular um exercício mental, no intuito de, algo que
se encontre na ordem da satisfação da necessidade de
reflexão.
Tarefa penosa e ousada
O intuito ousado é a criação de um “utensílio
auxiliador”, na tarefa do refletir. Em algumas
perspectivas, isso pode tornar-se uma empreitada
relativamente dura e penosa, principalmente,
admitindo o valor que se pode dar à
subjetividade, em determinados momentos de
nossas vidas e, por nos encontrarmos em um
mundo que parece cobrar exatamente o avesso
disso.
12 Para Além da Clínica
A “contemporaneidade” exige dos humanos um
resultado concreto, palpável. Não precisamos “ir muito
longe”, em nossas pesquisas, para percebermos que o
valor dos humanos contemporâneos está naquilo que se
pode contar, um por um. Podemos também, levantar
várias hipóteses, entre elas, a de que vivemos em um
momento onde as idealizações e utopias humanas,
parecem em extinção.
Sentimo-nos como se “tudo” já houvesse sido
inventado, que não há nada mais, a se inventar. Mas,
ainda assim, o imaginário continua sendo uma parte
imprescindível no processo que conduz ao pensar. Sem
sonhos, o ser humano, não realiza nada.
O funcionamento mental, que podemos chamar de
“materialista”, cria um “modo de pensar” que encontra
utilidade, como uma espécie de defesa que é usada pela
nossa mente de forma orientada para tentativas de
viabilizar certos procedimentos repetitivos, que somos
obrigados a prover no cotidiano de nossas vidas.
Uma ferramenta, “necessária” para lidar com a
rotina, com o fluxo cíclico do dia a dia, e com situações
onde o que se cobra é a produção padronizada.
Nesse “nível, tudo que produzimos deve estar
dentro da “expectativa comum”, já que, seremos
veementemente criticados se fugirmos desses padrões.
Renato Dias Martino 13
Desse modo, desenvolvemos padrões tão rígidos
que acabamos por nos distanciar da própria realização,
que, em sua efetivação, nos exigiria essencialmente
criatividade.
Podemos dizer que, nos vemos tendo de ser
máquinas, mesmo sendo seres sensíveis, pensantes e, se
assim for, criativos.
A partir desse ponto de vista, para uma máquina
que deve produzir de maneira padronizada, é
extremamente “prejudicial” pensar, pois, pensando, se
cria. Dessa maneira, nós aprendemos a “ignorar” tudo
aquilo que não podemos perceber por meio dos órgãos
dos sentidos, em nome de sermos reconhecidos como
“excelentes máquinas”.
Contudo, ignorar não garante que não exista.
Quero dizer com isso que, ainda assim, isso
permanece e afeta profundamente o curso de nossas
vidas. Como a parte submersa de um iceberg,
imensamente maior que aquela que esta na superfície.
Uma parte do todo, onde o casco do navio pode se
espatifar, pois os olhos não podem ver.
Inversamente, porém acontecendo ao mesmo
tempo, ocorre algo curioso. Falo sobre o fato de que,
assim como enquanto escrevia esse texto, o leitor também
pode ter a sensação (enquanto lê), de que grande parte
do que pode encontrar-se nessas linhas, já é sabido,
ou seja, faz parte daquilo que chamamos de óbvio.
14 Para Além da Clínica
Em um importante texto da psicanálise, “O Mal
Estar na Civilização” (1929/1930), Sigmund Freud
(Moravia, 1856 - Londres, 1939) escreve sobre sua visão,
quanto aos “prós e os contras” nos “avanços” da
civilização. Ele inicia o capítulo VI com um desabafo
que, me parece seguir essa mesma direção, quando
admite:
“Em nenhum de meus trabalhos anteriores tive,
tão forte quanto agora, a impressão de que o que
estou descrevendo pertence ao conhecimento
comum e de que estou desperdiçando papel e
tinta, ao mesmo tempo em que usando o trabalho
e o material do tipógrafo e do impressor para
expor coisas que, na realidade, são evidentes por
si mesmas.”
Dissertar sobre “algo que está na cara”, entretanto,
por algum motivo, não se pode enxergar facilmente, não
é uma tarefa agradável.
Falo da dificuldade em se valorizar alguma coisa
que, acaba perdendo a importância (como já conhecido)
nos afazeres repetitivos do cotidiano, mas, que na
realidade é justamente o que nos conduz às escolhas dos
caminhos em nossas vidas.
Não obstante, ao tentar comunicar aquilo que fica
no contrário do concreto, ou no lado oposto do visível,
Renato Dias Martino 15
corremos o risco de nos perder em nossa imaginação,
caindo assim, num modelo de pseudo / misticismo. Pode-
ríamos cair em um “mundo de fantasia” que, assim como
a padronização repetitiva da máquina, também tenderia
a desdenhar a realidade, menosprezando de maneira
inversa, à própria realização.
No entanto, um modelo assim se mostra diferente
do presente trabalho, na medida em que esse, apoiado na
realidade, só pôde chegar até o leitor, por ser em si, uma
realização.
A prática de certa filosofia
Para podermos atingir certa compreensão
interna (insight) de ferramentas, para nos
auxiliar em nossa proposta de cogitação, nos
auxiliaremos de pensamentos que estão entre nós
há muito tempo.
São cogitações, as quais passaram pela vida de
muitos pensadores conduzindo seus pontos de vista. E
hoje, através das colaborações de Freud e toda uma
legião de discípulos espalhados pelo mundo, chamamos
esse “agrupamento de pensamentos” do qual nos
utilizaremos aqui, de Psicanálise.
16 Para Além da Clínica
É importante lembrar que o pensamento psica-
nalítico vai muito além da prática clínica. Ele se oferece
como instrumento para pensarmos no mundo e em
nós mesmos. Antes e depois de tudo, é uma ferramenta
de grande utilidade na experiência da quebra de
narcisismos. Uma ferramenta que nos auxilia na tarefa
do “conhecer-nos a nós mesmos”.
Esse vértice de pensamento que hoje conduz à
psicanálise já circulava pela nossa civilização, na
mente de poetas, filósofos, místicos e outros grupos
de pensadores, bem anteriores a Freud.
Porém, esses mesmos pensadores talvez não
levassem tão a sério esses pensamentos, como Freud o
fez. Freud traz um fator importante na introdução do
ponto de vista científico, quanto ao estudo da alma
humana. Ele propõe, com a reunião de conceitos teóricos,
uma terapêutica da mente. Propõe uma forma de
tratamento especial para a transformação da ideia, para
transformação do pensamento e, consequentemente, a
transformação da qualidade dos vínculos humanos com
o mundo, que está para além desse humano.
Contudo, não nos furtaremos aqui de incluir
ideias, outros modelos e citações de pensadores, que
talvez não estejam relacionados nas citações da
psicanálise e, ainda assim, servem de importante
referencial na tarefa do pensar.
Renato Dias Martino 17
Pensando o pensar
Mas sobre qual experiência estamos aqui
cogitando, quanto ao “pensar”?
Existe algum sentido em afirmar que fora do
domínio da experiência, não pode existir
aprendizado?
Temos nesses princípios, o ponto de partida para
se entender o processo que compreende o desen-
volvimento mental, ou seja, como ocorre a expansão do
pensamento. Na tentativa de examinar atentamente o
que chamamos de “pensar”, estaremos cogitando sobre
a capacidade da qual os humanos se gabam perante os
outros animais, mesmo, sendo muito pouco habilidosos,
no uso deste recurso mental.
Digo isso, apoiado no pressuposto de que esses
humanos, que somos nós, ainda fazem a maior parte das
suas escolhas, por motivos, dos quais não puderam ser
submetidos a um pensamento atido e dedicado. Fazem
isso por necessidades extremamente primárias, onde, na
maioria dos casos, o pensamento não tem acesso.
O humano escolhe, sem pensar, onde a urgência se
pronuncia. Escolhe sem pensar, onde a necessidade de
satisfação imediata não permite tolerar frustrações.
18 Para Além da Clínica
Em um modelo muito primitivo de funcionamento
mental, podemos encontrar o modo como os seres
humanos contemporâneo fazem suas escolhas. Mesmo
assim, tentaremos, aqui, fazer o possível para angariar o
máximo de recursos nessa breve tarefa de pensar o
“pensar”.
A palavra pensar parte do Latim PENSAREA, que
diz respeito a pesar, ou avaliar o peso.
Aquilo que chamamos de “pensamento” faz parte
do processo de construção do espaço interno mental. Esse
espaço interno mental serve a várias tarefas, entre elas a
de guardar os conteúdos como é o caso das emoções e
também conter aspectos colhidos na realidade.
Pois bem, mas que tipo de benefício poderia nos
trazer o exercício e aprimoramento da habilidade
de pensar?
Para Freud (1856-1939), o “pensamento” tem
função fundamental no adiamento da ação, resultado do
impulso. Ele escreve essa ideia no texto que servira de
inspiração para importantes pensadores da psicanálise
atual. Esse texto contribuiu para que o “pensamento
psicanalítico” pudesse evoluir na forma como hoje se
realiza. As Formulações Sobre os Dois Princípios do
Funcionamento Mental, publicado em 1911, foi uma
Renato Dias Martino 19
obra que tornou “claro” alguns conceitos pelos quais,
Freud lutou por anos, no desafio do esclarecimento de
aspectos dos processos psíquicos.
Nessa obra ele escreve que:
“o pensar, foi dotado de várias características,
entre elas a que torna possível ao aparelho
mental tolerar uma tensão intensificada de
estímulo, enquanto o processo de descarga era
adiado.”
O teste da realidade e os recursos foram criados pelo
aparelho psíquico com intuito de, viabilizar o confronto
das fantasias com as informações advindas da realidade.
Assim, logo percebemos o benefício de expandir
essa capacidade. Quero propor que pensar é também
capacitar-se no desempenho da vida, no que diz respeito
à realização de mundo.
É a criação do “continente mental” que sustenta o
processo do pensar, sem que se entregue antes à ação. É
quando a percepção, feita através dos órgãos dos sentidos,
indica a necessidade de ação, a capacidade de pensar
pode, adiar essa ânsia. Isso, até que se perceba com mais
acuidade a realidade. No momento acima descrito, o
significado semântico da palavra nos orienta com grande
ilustração e avaliamos pelo pensamento, o peso das
ideias para decidir o que escolher.
20 Para Além da Clínica
Essa é talvez a primeira das funções do pensamento,
ou a mais básica delas. A partir da capacidade em adiar
ações inicia-se, uma série de expansões na perspectiva
dos processos mentais.
A psicanálise nos mostrou com muita propriedade
que só podemos aceitar no mundo real aquilo que já
existe no mundo interno, ou seja, dentro de nós. Criamos
espaço em nossas mentes e, só depois, conheceremos a
realidade.
A capacidade de reconhecimento do mundo
interno é o encontro e o reconhecimento de fantasias,
medos, desejos apaixonados, ódios e tudo mais que está
em nosso mundo interior.
São características do incerto, do informe.
Nosso mundo interno nunca é “bem definido” e
sempre é pobre de referencias da razão. Por conta disso
é um terreno escuro, sombrio e cheio de ameaças. No
entanto, só conhecendo nosso eu interior é que podemos
distingui-lo do que está fora e que chamamos de
realidade.
O estado emocional do “eu” (dentro) tem menor
chance de se abalar em situações e ambientes
emocionalmente danosos (fora), isso se estiver se
dedicando a um reconhecimento do si mesmo. O
pensamento é, por assim dizer, a capacitação do “eu”
(compreendendo o mundo interno) na ligação afetiva
com o mundo (externo).
Renato Dias Martino 21
O exercício do pensar só se efetiva na experiência
que compreende a ação junto do outro, como já se tomou
por entendido. O pensar é a capacidade que se desenvolve
impreterivelmente através do vínculo com o outro.
A partir da imaginação, das fantasias sobre a
realidade, o encontro com a verdade do outro, promove
o pensamento. Dependemos do outro para se pensar,
mesmo que, seja o outro, internalizado através de uma
experiência afetiva.
Quando não se inclui o outro, o movimento mental
não pode levar o nome de pensar, pois ainda conserva
características imaginárias e se encontra como ilusão,
que só será quebrada na introdução da verdade externa.
Dessa forma, sou forçado a depositar meus
descréditos em qualquer tentativa de batizar, como
pensamento, experiências que não compreendam o outro,
ou o encontro com a verdade do outro.
Doar e aprender, receber e ensinar
Podemos propor, mesmo que hipoteti-
camente, que o ensinar não existe, pelo menos
“a priori”. Isso, se partirmos de um pressuposto
psicanalítico onde a capacidade de aprender
talvez seja o que revela o objeto de ensino.
22 Para Além da Clínica
Indo além, podemos dizer que é a partir desse ponto,
que se origina o objetivo de ensinar. Só aprendemos (ou
apreendemos do mundo) aquilo que sentimos como
necessidade ou desejo.
Freud, em 1915, descreve o inconsciente como
sendo a base geral do psiquismo humano. O “pai da
psicanálise” propõe um sistema de funcionamento em
que, tudo o que chega à consciência do indivíduo passa
antes pelo inconsciente. Lembrando que, quando citamos
aqui inconsciente, o que se pretende é mencionar o lugar
do eu onde não existe conhecimento.
Nesta parte do “eu” não sabemos quem somos.
As linguagens racionais acessíveis nesse nível são
extremamente escassas. Não temos controle desta área
do psiquismo. Não somos donos de nós mesmos,
nessa parte do eu. Por isso, alguns sonhos (que trazem
em seu conteúdo grande material inconsciente) são
tão assustadores e sem nexo.
Espantamo-nos com “pensamentos”, e até mesmo
com comportamentos estranhos, e não conseguimos
achar um sentido para o que pensamos ou fizemos. São
todas manifestações do inconsciente, do onde se sente,
mas não se sabe.
Quando pudermos expandir o pensamento até essa
detenção de realidade, poderemos dizer que tudo, que
chegou ao saber, passou antes pelo sentir.
Renato Dias Martino 23
Sentir e desejar são experiências extremamente
individuais, a não ser na relação umbilical. O que a mãe
sente ou deseja, implicará diretamente no futuro daquele
que se encontra no seu interior.
Chegamos então à conclusão de que, só buscamos
conhecer aquilo que é ou um dia foi objeto de nosso
desejo.
A saber, desejo é aquilo que parte do nosso interior
e se pronuncia em direção ao mundo externo. Podemos
até fazer uma analogia com o modelo nutritório, onde o
bebê aprende amar aquela que o nutre e, a partir do
reconhecimento da necessidade, a criação de um
ambiente rico em afeto permitirá, através da gratidão,
que a “dependência” se transforme em “amor”.
Para que exista aprendizado realmente, as ideias
devem seguir um determinado caminho.
Vínculo e aprendizado
Assim, na medida em que nos propomos a
apreender as coisas do mundo externo, criamos
vínculos que nos permitem um melhor
discernimento entre o que é real e o que criamos
imaginativamente. Ou seja, dessa forma pode-
mos descobrir os limites entre o eu e o outro.
24 Para Além da Clínica
Quantas vezes nos pegamos querendo saber sobre
o outro, porém, será que queremos saber realmente o que
ele deseja ou, na verdade, o que nos interessa é confirmar
se ele quer aquilo que esperávamos que quisesse?
Estando de acordo até aqui, podemos dizer então
que aprender é algo muito mais próximo do doar que do
receber.
Quando somos guiados por “certo vértice” de
pensamento que compreenda o modelo
continente / conteúdo, entendemos que aprender
é doar espaço do eu para que o outro (em ideia)
se instale.
Da mesma forma, o ensinar se encontra bem mais
próximo do receber do que do dar.
Uma mente que não se apresenta continente não
poderá receber conteúdo algum. Acolher o conteúdo,
assim passa a coincidir com o receber a demanda do
que realmente cabe ser ensinado.
Diferente de “empurrar” a qualquer preço aquilo
que se deseja que o outro aprenda, mesmo que isso não
faça sentido algum a ele. Na realidade, aquele que se
propõe a ensinar deve ter desenvolvido a humilde ideia
de que a maior parte do que se espera ensinar nunca será
aprendida. E, se isso acontecer, a pretensão da
confirmação do resultado é algo contrário a real
efetivação do vínculo aprender / ensinar.
Renato Dias Martino 25
Ora, se assim estamos de acordo, como em nossas
relações afetivas, proponho através destas linhas a
tentativa de criação de um vínculo escritor / leitor num
ambiente onde prevaleça a verdade e o amor.
Na verdade, a união dos dois termos em amor, à
verdade e a verdade que pode existir no amor. Mas, dessa
forma, poderíamos levantar a questão da qual imagino
surgir nas cogitações do leitor, sobre essa “dita verdade”
e esse “tal de amor”, mencionados aqui.
De que verdades estariam falando aqui, já que
estamos frente a um conceito extremamente
dependente de uma experiência individual?
A intenção aqui é “propor a verdade” enquanto
direção e onde poderíamos nos orientar. A verdade que
nos faz eternos pesquisadores do mundo e da vida. A
verdade que não sossega. A que nos acorda de manhã
cobrando um tipo de resposta que, talvez, não servirá mais
no depois de amanhã. A verdade que nos vira a cara a
cada encontro. Aquela pela qual só podemos nos ver
orientados, mas nunca possuidores.
Outra boa pergunta talvez se referisse ao amor:
Que amor, poderíamos estar tentando propor
aqui, enquanto condição para o vínculo?
26 Para Além da Clínica
E o apóstolo São Paulo, já nos orientara em sua
direção no capítulo 13 da epístola aos Corintos, onde ele
cita o amor como sendo maior que a fé e que a esperança.
Proponho aqui um tipo de amor que atrai as
diferenças. O amor que necessita da diferença se
encantando com ela. Aquele que se desliga do eu e
liga-se no outro. Aquele que enxerga o outro além do eu
no outro.
Alimento Espiritual
Pensando melhor o conceito de “verdade”
A psicanálise nos ensina a compreender o ser
humano, abarcando (além do corpo) um aparelho
psíquico, a mente ou, ainda, a alma. Da mesma
forma que o corpo se alimenta de comida e dela
extrai seus nutrientes, a alma se alimenta da
verdade da realidade, e por ela, se mantém viva.
Aquilo que chamamos de ego (ou popularmente
autoestima) se desenvolve através do contato saudável
com o real. De tal modo, um aspecto que pode indicar a
qualidade da saúde mental é a forma como se está
relacionando com a verdade. Longe da tentativa
inútil de restringir o conceito, inclui-se aqui desde as
mínimas questões cotidianas, até situações mais
importantes da vida.
Renato Dias Martino 27
E, de fato, a verdade é sempre uma porta que se
abre rumo ao desconhecido. Antes de tudo e depois do
mesmo, é o que nos conduz a maturidade emocional. É
o que gera o desenvolvimento e nos responsabiliza
pela vida.
É importante lembrar que não se trata de algo
que se encontra na ordem do sensorial, já que a verdade
não se pode ter, mas deve esforçar-se em ser. A proposta
aqui é:
“propor uma visão sobre o grau de evolução
da capacidade de perceber a verdade e
relacioná-la com aspectos da própria vida.”
Mais do que definir uma ou outra verdade, a
tentativa é no sentido de desenvolvimento de um modelo
de funcionamento mental guiado pela verdade.
Devo lembrar que se compreendem aqui os
conteúdos de verdades internas, ou seja, aquilo que se
tem pra si, diferente, em sua maior parte, daquilo que
compartilhamos com o outro, a verdade externa.
Até por que, um turbilhão de emoções pode ser
gerado no conflito entre verdade interna e externa, e
esses conflitos promovem um desassossego, no
funcionamento da mente. Portanto, no intuito de evitar
ou mesmo adiar esse desequilíbrio, amiúde, a mente é
tentada a se livrar da verdade.
28 Para Além da Clínica
Hora negamos a verdade interna, hora negamos
a verdade externa. Na maioria das vezes, cada novo
movimento de reconhecimento de “verdade” vem
acompanhado por sensações que são agentes de
sentimentos de tristeza, susto, vergonha e inveja. Assim,
essas sensações quase sempre geram alguma forma de
hostilidade.
Hostilidade tanto do eu para com o outro quanto
do eu para com o si mesmo. Sendo assim, para nos
defendermos desse grupo de sentimentos, colocamos a
verdade fora de nós, como se valesse só para o outro.
De alguma forma, negamos a verdade. E, temos
aqui um grande problema na investigação da verdade.
Isso por que uma verdade a mais é sempre uma ilusão
a menos.
Na pesquisa dos fatos com intuito de se conhecer a
verdade, alguns elementos são imprescindíveis, assim
como outros dificultam, obscurecendo o caminho.
Tentaremos então cogitar sobre alguns deles.
a) Tolerância
Não seria exagero mencionar a tolerância como
instrumento fundamental na pesquisa da verdade.
A tolerância vem do latim tolerantia, do verbo
tolerare, que significa suportar.
Renato Dias Martino 29
É, a priori, uma atitude de respeito aos pontos de
vista dos outros e de compreensão para com eventuais
fraquezas. A capacidade de ser tolerante quanto às
frustrações que se encontram na busca pela verdade, me
parece à única forma de manter-se em sua direção ou
conservar-se orientado por ela.
Penso que todo aquele que não tolerou a dúvida
ficou com meia / verdade.
Dessa mesma forma, a experiência mostra que
aquele que pode manter-se afastado da pressa, por maior
parte do tempo, pode chegar a um melhor resultado em
qualquer que seja a tarefa. O que não é diferente na busca
pelo fato, aqui alvo de estudo.
Esse é um fator que proporcionou à psicanálise
status de seriedade, viva, intensa e produtiva em nossos
tempos. Mesmo com o questionamento impiedoso da
ciência que cobra resultados claros, a psicanálise se
mantém paciente em suas pesquisas e cuidadosa em seus
diagnósticos.
“Assim, a capacidade para tolerar frustração
capacita a psique a desenvolver pensamentos
como um meio de tornar a frustração tolerada
ainda mais tolerável.”
Wilfred R. Bion (Índia, 1897- Inglaterra, 1979),
1961, pp.186/187
30 Para Além da Clínica
Como poderemos estudar de forma mais cuida-
dosa nos próximos capítulos, o desejo dissolve a
tolerância. O desejo pretensioso de que a verdade que se
busca (portanto ainda não conhecida), coincida com
aquilo que já se conhece, pode conduzir tenden-
ciosamente a pesquisa. A busca é de se confirmar o que
já se sabia, o que nada tem a ver com uma pesquisa real
que conduziria ao conhecimento.
Gaston Bachelard (França, 1884-1962), filósofo
e poeta francês que estudou as ciências e as
filosofias, nos aponta essa direção de pensamento
quando propõe que: “A verdade é filha da
discussão e não da simpatia”
(La Filosofia de In, 1973, p.111)
Bachelard nos mostra que é só no confronto daquilo
que já se conhece com o desconhecido, que podemos
extrair a realidade.
Deparamo-nos com a ameaça do uso do conteúdo
da memória como referência. Isso impede a chegada
desse desconhecido: “o novo”.
De tal modo, o ponto de vista limita-se.
É como se o sujeito dissesse: “não tenho em
minha memória, não existe (não é verdade)”.
Renato Dias Martino 31
O contexto da memória é de tal importância
(juntamente com o desejo e a compreensão) que
dedicaremos todo um capítulo deste trabalho, para
tratarmos sobre o uso dos conteúdos da memória.
Uma orientação deixada por Freud e aprimorada
por Wilfred R. Bion.
b) Afeto
O afeto é condição imprescindível. Qualquer que
seja a forma de buscar a verdade que não seja
com, e pelo amor, logo indica um modelo tóxico.
O amor e a verdade são duas formulações
inseparáveis na plenitude: o amor pela verdade
e a verdade pelo amor.
Aquele que ama e não se preocupa com a verdade,
está apaixonado. Isso se admitirmos um modelo onde o
verdadeiro amor sugere muito mais durabilidade do
que intensidade.
De tal modo, o que será deste amor / paixão
quando vier a verdade?
Na relação verdade e amor, vejamos o inverso.
Aquele que busca a verdade, por qualquer motivo
que não seja por amor, pratica a arrogância.
32 Para Além da Clínica
Este é um fator deturpador que, na pesquisa da
verdade a transforma em instrumento de tortura, uma
espécie de arma ou aparelho de ataque. Serve para ferir
e matar. É, antes de tudo, uma ação de crueldade.
O que será que queremos, quando dizemos frases
do tipo: vou te dizer umas verdades!
Comunicar realmente o que se descobriu, ou ferir
aquele que ouve?
A proposta aqui é uma ligação de amor com aquilo
que se deseja conhecer, o que é diferente de estar ligado
a certa “verdade”, tão profundamente e de mais próximo
que limite o ponto de vista.
Na prática percebemos como é difícil conhecer
alguma coisa da qual “amamos” muito, ou odiamos
demais. O conhecimento real depende da suspensão tanto
do “amor cego” quanto da “crítica arrogante”.
c) Fé
Mas, e se levarmos em conta o fato de que o que
é verdade pra um, pode não ser para o outro?
Estamos aqui refletindo sobre a verdade que não se
encontra saturada ou completa.
Renato Dias Martino 33
A verdade aqui proposta compreende sempre a fé,
pois é desconhecida a priori, como em Imanuel Kant
(Prússia, 1724-1804), sem que deixemos de lado a
conjectura de que sem a esperança, a tolerância
altera-se em comodismo.
A esperança, que é um desejo do possível fora do
real se distingue completamente da certeza. Isso
acontece, já que, quem tem fé não está certo daquilo que,
ainda assim, o mantém orientado.
Logo, quem busca insaciavelmente a certeza não
conhece a fé. Contudo, a fé é um caminho que deve
contar com a recusa quanto ao conteúdo da memória e
ser desvinculado do desejo de perfeição.
d) Distanciamento
Quando podemos entender o fato de que, nunca
se conhece a verdade por completo, o distan-
ciamento se apresenta com a característica
marcante da falta.
Deste modo, percebemos como é importante o
distanciamento, principalmente daquilo que pretendemos
conhecer. Cogito sobre a verdade que só se percebe na
falta, na ausência onde podemos perceber fatores que na
presença não é possível.
34 Para Além da Clínica
Lembro-me de alguém me dizendo:
“eu só percebi o valor dele em minha vida
quando o perdi”.
Memória, desejo e compreensão
Aqui, agora
Posso não ser o que você vê, pois,
não me lembro de nada.
Porém, estou junto a você
mesmo que a palavra não seja falada.
Ouço-te a cada palavra, mas, não espero nada de você.
Estou pronto para tudo
ou nada, nas coisas que você não vê.
Mesmo te ouvindo atento não te asseguro que entendi.
Não julgo seu comportamento, pois,
posso ver hoje o que ontem não vi.
Não digo para ir embora. Fique se quiser!
Mostro-te aqui e agora que estaremos juntos, se vier.
De 1911 até 1914, Freud publica uma série de
textos que, reunidos, compõem os “Artigos Sobre
Técnica”. Apesar da evidente resistência em produzir
Renato Dias Martino 35
textos abordando técnicas e manejo clínico, percebida
em certa escassez nas publicações de Freud a esses
propósitos, a reunião de textos, que compõem os “Artigos
Sobre Técnica”, atravessa gerações e, ainda hoje, é uma
ferramenta essencial para aquele que, tem a pretensão
de se arriscar na difícil prática da clínica psicanalítica.
No conteúdo dos artigos, Freud apresenta algumas
das ideias que posteriormente Wilfred Ruprecht Bion,
psicanalista indiano, naturalizado inglês, aprimoraria,
oferecendo instrumentos valiosos na prática da
psicanálise clínica.
Falo em especial da necessidade de suspensão da
memória, do desejo e da compreensão.
Em “Recomendações aos Médicos que Exercem
a Psicanálise”, publicado no Brasil em1912, em parte
dos “Artigos Sobre Técnica”, Freud, percebendo a
dificuldade gerada pelo apego à memória escreve que:
“É nos exigido analisar seis, oito ou mesmo mais
pacientes diariamente, o esforço de memória que
isto implica provocará incredulidade, espanto
ou até mesmo comiseração em observadores
pouco informados”.
36 Para Além da Clínica
De tal modo, Freud propõe uma técnica para esta
tarefa e ainda, atribui a isso, certa facilidade propondo
ao analista para:
“simplesmente não dirigir o reparo para algo
específico e em manter a mesma atenção
uniformemente suspensa (como a denominei)
em face de tudo o que se escuta”.
Freud não cria simplesmente uma ferramenta
defensiva, para se livrar do incômodo em se lembrar de
tudo que o paciente nos conta, mas possivelmente
percebera a inutilidade da memória enquanto instru-
mento da técnica clínica, já que o conteúdo de ideias
(inconscientes) do qual trabalha o psicanalista, não tem
referência na temporalidade, ou seja, não sabe o que é
hoje ou ontem, ou mesmo semana passada.
É algo que se repete constantemente na vida
do paciente, escravizando-o no tempo crista-
lizado. É justamente o que não a deixa perceber
e viver o novo. Uma classe de elementos
psíquicos de ordem invariante.
Quanto ao desejo dirigido ao paciente ou, o que o
analista possa esperar conseguir quanto ao resultado da
Renato Dias Martino 37
psicoterapia, Freud é categórico e alerta quanto a isso
através de um exemplo interessante. Fala sobre aquele
que se propõe a escrever um trabalho científico a respeito
do paciente que está atendendo.
Ao escrever sobre o caso abre-se a possibilidade
de se desejar que este seja um evento bem sucedido,
contudo:
“... casos mais bem sucedidos são aqueles em
que se avança, por assim dizer, sem qualquer
intuito em vista, em que se permite ser tomado
de surpresa por qualquer nova reviravolta neles,
e sempre se o enfrenta com liberalidade, sem
quaisquer pressuposições.”
De qualquer forma, o desejo é classificado, em
muitos exemplos, como um fluxo libidinal, uma carência
que gera energia psíquica e, está sempre carregado de
conteúdos impensados e impregnado de narcisismo. Algo
prematuro que carregamos em nosso mundo interno.
Essa ordem de fenômenos psíquicos é ameaçadora
ao trabalho psicanalítico, que visa justamente conhecer
o eu verdadeiro e não o eu que se constrói para satisfazer
o outro e assim, ser desejado por ele (falso eu).
Podemos abrir uma possibilidade muito próxima
da experiência real da prática clínica, onde aquele que é
38 Para Além da Clínica
analisado encontra um lugar tão seguro junto de seu
analista, que tenta descobrir os desejos deste, para que
possa sutilmente realizá-los. Tudo em nome de ser
aprovado, desejado por ele.
O fato se torna de grande importância quando o
paciente descobre que o analista deseja muito que
o paciente “melhore logo” ou tome certa decisão em
sua vida. Os esforços então são na direção de construir
um eu falso, para agradar aquele que traz paz com sua
presença, criando com isso uma distância enorme entre
a dupla.
A “compreensão”, dessa forma, acaba por permear
a “memória”, que é em si um representante do desejo
no passado e, é útil, frente à difícil tarefa na expectativa
do que virá a ser, o futuro. Não podemos nos vangloriar
em afirmar que sabemos sobre o passado, já que temos
apenas certa noção deste.
Da mesma forma, é impossível saber sobre o futuro,
já que ele a Deus pertence. Na realidade, nunca se
compreende completamente o que o outro diz, pois
aquilo que realmente importa em uma análise é
justamente o que o paciente não é capaz de compreender
e muito menos dizer, para ser compreendido.
Teremos oportunidade de nos ater a esse assunto
de forma mais prática, logo em seguida, nos próximos
tópicos.
Renato Dias Martino 39
Como um ícone da psicanálise contemporânea,
Bion, reformula as colocações de Freud e propõe um
analista sem desejo, sem memória e sem compreen-
são. Dessa forma, o analista estaria livre das referências
sensoriais, abrindo a possibilidade de conter as projeções
feitas pelo paciente e, deste modo, entrar em contato com
a realidade interna do mesmo.
Bion propõe, desse modo, que cada sessão não deva
ter passado, nem futuro. O que proponho aqui é a
necessidade de utilizarmos, sempre que possível deste
mesmo recurso clínico proposto por Freud e
aperfeiçoado por Bion.
Esse mesmo recurso quando utilizado no dia a dia,
além da dupla psicoterapeuta-paciente, pode beneficiar
nossa vida cotidiana, além da clínica.
Passarei agora a cogitar sobre cada item sugerido
como aparece em nossas vidas, independente da prática
clínica.
Memória e o espaço mental
Como no salão de ensaio de uma bailarina, a
mente deve dispor-se ampla e livre para um
bom desempenho do pensar. A expansão dos
movimentos da bailarina, assim como do
40 Para Além da Clínica
pensamento depende da possibilidade de
circulação no interior da sala (mente),
devidamente arejada e sentida como ambiente
tranquilamente saudável.
Uma sala entulhada é igual a uma mente cheia de
“pré / ocupações”, elas não são ou não poderão ser um
ambiente seguro, ou saudável para uma tentativa
expansiva. Olhando mais atentamente para movi-
mentos da mente e os processos internos que ali ocorrem,
percebemos recursos criados para a manutenção da
interação entre o mundo interno e o mundo externo.
A apreensão dos fatos que ocorrem em nossas vidas,
e, sobretudo, no que está na ordem das novas relações
interpessoais, é permeada amiúde pelos registros de
situações vivenciadas no passado em relações primarias.
O fato é que o passado guarda ocorrências, que
por estar lá atrás, talvez, já não sirvam como provas
cabais ou respostas plenas às questões que o hoje
propõe. Contudo, é exatamente por meio da memória que
nos garantimos, quando nos vemos inseguros de nós
mesmos. O existir parece depender da capacidade de
lembrarmos quem somos nós.
A memória nos serve como importante referencial,
no entanto, só até que se possa restabelecer quanto ao
desempenho do projeto presente ou, em outras palavras,
a demanda do “aqui e agora” em sua apreensão e
experiência.
Renato Dias Martino 41
Quando em meio a uma fervorosa discussão,
dizemos: “eu me lembro muito bem!”, é por que,
muito provavelmente, estamos extremamente
inseguros do que defendemos como verdade
hoje.
Ao mesmo tempo e frequentemente, essa mesma
memória pode nos ser traiçoeira. Isso quando ocupa a
maior parte de nosso espaço mental. Podemos recorrer a
ela para convencermos o outro de que temos certeza do
que falamos e, assim, garantimos nossa propriedade
sobre o assunto discutido. Desta forma, acabamos por
convencer a nós mesmos da nossa própria certeza,
apoiando-nos e acreditando no conteúdo da memória,
que não passa de um registro do passado, portanto,
difícil de perceber e ser compreendido de forma muito
ampla. Logo, a capacidade de apreender, o fato
presente, fica comprometida.
Isso ocorre, pois dessa forma, trocamos a percepção
do presente, que é em si a maior expressão do real, ou
seja, o maior referencial do que podemos extrair da
realidade, pelo registro cristalizado daquilo que já
passou.
O leitor pode estar questionando de que forma este
mecanismo se manifesta e, muitas vezes, se transforma
em uma forma de funcionamento mental.
42 Para Além da Clínica
Frente a esse questionamento, uma série de
hipóteses se abre à reflexão. O sujeito, preso em sua
memória, cria para si um modo especial de vincular as
pessoas e as coisas. Um modelo baseado em estereótipos,
ou seja, em ideias antecipadas, condena-o a viver cada
nova experiência como uma repetição de algo que ficou
no passado.
É como se tomasse a mesma estrada, esperando
chegar a lugares diferentes. Em 1912, Freud publica “A
Dinâmica da Transferência”, em que estuda o fenômeno
da transferência, que ocorre, normalmente, em todas as
relações humanas e que tem uma atenção particular no
processo analítico:
“a necessidade que alguém tem de amar não é
inteiramente satisfeita pela realidade. Ela está
fadada a aproximar-se de cada nova pessoa que
encontre com ideias libidinais antecipadas”.
Freud escreve sobre a memória do amor perdido,
incessantemente procurado nas novas relações. Abre-se
um confronto entre o reconhecimento do novo e a
memória cristalizada no mundo interno. Nesse
complexo processo, é mobilizada, no interior do sujeito,
a criação de recursos defensivos frente o desconhecido,
potencialmente ameaçador.
Renato Dias Martino 43
Sob efeito do medo de aprender o novo (incerto,
desconhecido), apega-se naquilo do qual já se sabe e que
se imagina ter propriedade. Portanto, uma nova verdade
implica diretamente em destruir a antiga ideia.
No entanto, esse processo de transformação
desperta certo sentimento de vazio, que se encontra entre
uma verdade e outra. Vazio, sentido como angústia ou
certo sentimento que, muitas vezes, sequer conseguimos
nomear, que ativa no aparelho mental a necessidade de
se livrar da emoção desagradável gerada.
Assim, quanto maior a capacidade de tolerância
deste vazio, maior a possibilidade de transformação da
verdade. É a capacidade de vivência do luto referente a
aquilo que foi perdido, sem que isso implique na perda
do valor do eu.
Mas o que usamos como defesa?
Partes do eu, que se encontram secas e mortas, sem
sensibilidade, são “aquilo” que colocamos como
escudo; já foram partes vivas do eu, mas, hoje, são
colocadas no “front da batalha”.
Como na cebola, que utiliza suas cascas antigas
(memórias) como proteção para as partes mais novas,
recém-nascidas. Assim, a “memória”, que é diferente
da “recordação”, aqui é rica em afeto e, portanto, parte
44 Para Além da Clínica
da personalidade consciente disposta ao pensamento que
pode ser usado como defesa. Justamente o que veremos
nesse anexo que segue ainda sobre a memória.
Pequeno ensaio sobre
conteúdos e capacidades
Já tivemos, em outro momento, oportunidade
de discutir sobre a importância da memória
dentro dos processos mentais. Nessa ocasião,
foi possível perceber como os conteúdos da
memória influenciam na capacidade da
mente em funcionar de maneira saudável. E
entendemos que uma mente que funciona
predominantemente apoiada no conteúdo da
memória, dificilmente pode ter uma visão
clara da realidade.
O funcionamento mental, fundamentado essen-
cialmente na memória, tem grande dificuldade no
reconhecimento do ambiente externo (onde se encontra
o outro) e consequentemente, acaba ocorrendo num
empobrecimento dos referenciais quanto ao mundo
interno (emoções e elementos psíquicos).
Renato Dias Martino 45
Com esse texto gostaria de expandir a ideia da
memória, suas funções e também, trazer o conceito de
recordação em suas ocorrências no funcionamento
mental.
A tentativa nesse texto presente é o de
percebermos a diferença entre estes dois
termos: a memória e o recordar que encontram
muitas vezes, sentido idêntico.
Apesar disso, certa distinção parece útil, na medida
em que o funcionamento da mente está fortemente
vinculado aos conteúdos da memória, de forma e de
maneira diversa, eles se relacionam com a capacidade
de recordar.
A memória
Qualquer que seja a maneira cuidadosa de
análise ou pensamento sobre qualquer que seja
o conceito importante, deve perpassar pela
origem semântica do termo, ou seja, a origem do
vocábulo ou ainda, a compreensão da demanda
pela qual foi criado.
A palavra memória é de origem grega e está
relacionado à deusa Mnemosine, que junto de Zeus teve
46 Para Além da Clínica
nove filhas: as chamadas Musas. Mnemosine á a deusa
da história e da arte, é a protetora contra a ameaça do
esquecimento. Pelo vértice mitológico já é possível
perceber onde a memória se faz útil. Ela vem como
defesa contra a iminência de se esquecer ou de ser
esquecido.
Quero propor que somos forçados a nos lembrar
por medo de esquecer. Poderíamos dizer que se “temos”
algo na memória sempre tememos perdê-lo. É
característica do “ter” o medo de perder. Então se reza
para ser protegido pela deusa Mnemosine.
Sob esse ponto de vista, revela-se certa fragilidade
no dado armazenado na memória. Aquilo, que se tem na
memória é vulnerável ao ponto de estar sujeito aos
caprichos dos habitantes do Olimpo.
John Lock (1632-1704), filósofo empirista inglês,
propõe em seus “Ensaios Sobre o Entendimento
Humano” (1690), que a memória seria como um
armazém de ideias.
Pela perspectiva de Lock, “armazenamos os
dados sensoriais num departamento mental
chamado memória”.
Em nossas experiências, vamos recolhendo
sensações no contato com o mundo externo, e isso vai
ficando registrado como dados de memória.
Renato Dias Martino 47
No entanto, os conteúdos da memória devem ser
formatados de acordo com certos critérios: por normas
que permitam certa organização de algo que se buscará
acessar em momento oportuno. Essa organização deve
existir a favor da utilização desse dado armazenado.
Quando necessário for, à busca por esse elemento
da memória, deve ser viável e feita de maneira prática,
certa padronização de ideias em nome de facilitar o
acesso e resgate dos dados da realidade armaze-
nada. Logo, dados da memória não podem ser
questionados, ao contrário, devem ser saturados,
acabados e devidamente padronizados. Ainda na
perspectiva de Lock, nesse “armazém de ideias”,
emoções não são bem vindas.
“Emoções sempre colocam a organização em
risco. Emoções ameaçam padrões definidos.
Assim, conteúdos da memória, não devem
guardar características de transformação”.
(Bion, 1965)
Todos os conteúdos devem estar “cristalizados”,
para que possa de certa forma se manter em
compartimentos da memória. Como invariantes,
devem se encontrar cristalizados em forma de certezas
ou “verdades”, classificadas e ordenadas. Isso
define o que poderíamos chamar de “boa memória”.
48 Para Além da Clínica
Wilfred Bion (1897-1979), importante psicanalista
indiano, naturalizado inglês, já havia nos alertado para
o ponto de vista, que propõe em sua obra publicada
no Brasil em 1991, com o nome de “As Transformações,
a mudança do aprender para crescê-lo”, sobre os
conteúdos invariantes em, contra ponto, com as
transformações dentro daquilo que é psíquico. Ideias
que partem das propostas filosóficas feitas por Immanuel
Kant (1724-1804) em suas críticas as razões, pura e
prática, que Bion expande para o âmbito psicológico.
As transformações e os invariantes se articulam no
desenvolvimento mental.
Bion usa do modelo artístico e propõe que quando
um pintor vislumbra uma paisagem e transforma essa
paisagem num quadro, alguns elementos permanecem
inalterados. Invariantes são aspectos que se mantêm
inalterados nesse processo de transformação.
O questionamento (proposta para a transfor-
mação) quando ocorre na memória (que conta
com sua inalterância por ser invariante) é
percebido como falha.
A falha na memória é justamente um questiona-
mento quanto ao valor ou ordem, daquilo que se deseja
lembrar. Logo, a emoção interfere diretamente no resgate
do dado na memória.
Renato Dias Martino 49
Lembro-me de um paciente que, inundado de culpa,
amiúde tentava buscar na memória situações vividas
com seu pai, já falecido. Tentativas que pudessem
justificar a imagem idealizada do pai que tentava manter.
Isso revela certa característica importante dos
conteúdos da memória.
Fazem parte de uma classe especial de impressão
sensorial do real, que na medida em que se distancia da
próxima confirmação na realidade, tende a se
desintegrar. A memória exige certa frequência na
constatação da existência no nível do real sensório, ou
seja, na constatação pelos órgãos do sentido. A
impossibilidade de certa frequência nessa ordem de
constatação, as emoções (elemento básico da saúde
mental) vão gradualmente dificultando a definição
dos dados armazenados na memória.
Poderíamos propor que, a frequência na confir-
mação do dado é necessária para que não se “perca na
memória”.
O recordar
Já o conceito do recordar, pode ser visto como
uma construção que reúne qualidades mais
nobres do que poderíamos encontrar na memória.
50 Para Além da Clínica
Talvez, parta do mesmo princípio, já que a
conotação de trazer o fato passado para o presente é
coincidente em ambos os termos. Apesar disso, a
recordação guarda certas características que estão
ausentes no conceito de memória.
Recordar é uma unidade verbal que agrupa três
vocábulos e que logo nesse encontro verbal já revelam
certa capacidade sublime do funcionamento mental.
Na palavra “re-cor-dar”, encontramos o prefixo
“re” que denota a repetição, ou algo que se
reproduz, “cor” refere-se à palavra coração,
derivada do grego e também do latim cordis.
Ambas têm origem na palavra kurd do sânscrito,
que significa saltar e, finalmente, “dar”, que nos
sugere doação.
A partir dessa definição semântica, podemos
perceber que o termo recordar vem repleto de afeto,
quando nos diz sobre certa obra de dar novamente ao
coração. Logo, o recordar é uma espécie da memória
afetiva. É, talvez, amar aquilo do qual se lembra, e estar
vinculado afetivamente com o fato passado.
A recordação não é um simples armazenamento nos
compartimentos da memória, mas a capacidade de
reviver o fato passado, trazendo-o para o presente e até
o imortalizando.
Renato Dias Martino 51
Nessa ordem, a capacidade de recordar deve contar
com a formação de símbolos e se manter sempre
conforme a disposição para a simbolização. É importante
lembrarmos que, ser capaz de simbolizar coincide com
ser capaz de tolerar a falta (a palavra falta, aqui é
sinônima de ausência). Recordar carece admitir e, ser
capaz de viver a perda ou a ausência. Isso implica na
possibilidade de acreditar na “coisa”, mesmo sem
podermos confirmar sua existência pelos órgãos dos
sentidos. Através desta experiência afetiva com a
realidade, pode ser possível desapegar-se do real, do
concreto ou material.
Assim, podemos arriscar uma frase que, se não
for utilizada de maneira cautelosa, pode se tornar
banal: “só o amor liberta”.
Mas liberta do quê?
Liberta da urgência, da recorrência compulsiva,
da confirmação no real sensório, e do sentimento
onde “se não se pode ver, não existe”.
No recordar é permitido intuir, e a intuição está
desvinculada do ver, do tocar, do cheirar...
Na medida em que foi possível, através da
dedicação a analise, que o paciente referido à cima,
diminuísse a culpa quanto a seu pai e assim não
52 Para Além da Clínica
necessitasse com tanta frequência solicitá-lo através da
busca em sua memória, pode-se fazer “as pazes” com a
figura interna do pai. Em certo estagio de sua analise,
me contou que numa manhã acordara com uma sensação
muito boa, através da recordação de uma simples fala,
mesmo que rara, mas afetuosa de seu pai.
Antoine-Jean-Baptiste-Marie-Roger Foscolombe
de Saint-Exupéry filho do conde e condessa de
Foscolombe (29 de junho de 1900, Lyon - 31 de julho
de 1944), foi escritor, ilustrador e piloto na Segunda
Guerra Mundial.
Saint-Exupéry nos presenteou com a obra “O
Pequeno Príncipe”, publicada originalmente em
1943. Esse livro é a terceira obra literária mais traduzida
no mundo, publicado em mais de 160 línguas ou
dialetos, sendo a primeira a “Bíblia” e a segunda o livro
“O peregrino”.
No livro “O Pequeno Príncipe”, a raposa se
despede do principezinho dizendo a ele:
“Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração.
O essencial é invisível aos olhos. Os homens
esqueceram essa verdade, mas tu não a deves
esquecer. Tu te tornas eternamente responsável
por aquilo que cativas.”
(Saint-Exupéry - 1943, p.74)
Renato Dias Martino 53
A recordação é sinal de que certa experiência
emocional foi bem sucedida, enquanto a memória não
passa de dados registrados e armazenados sobre uma
realidade que ficou no passado e que pouco se confirma
no hoje.
Não seria um absurdo propormos então que, a
recordação é estar ligado ao passado pelo amor (sinal de
gratidão), enquanto a memória é mantida pelo medo de
errar ou a culpa por ter errado (gerador de inveja).
A habilidade com a memória pode fazer do sujeito
uma pessoa muito inteligente, mas a sabedoria só ocorre
naquele que cultiva boas recordações.
O real e a idealização (do real)
O conceito de desejo no Dicionário Aurélio
(2002) está definido como ato ou efeito de
desejar; vontade de possuir ou de gozar; anseio,
aspiração, cobiça ambição; vontade de comer ou
beber; apetite sexual.
Quando nos propomos a cogitar sobre esse fato,
falamos da inconsequência de Eros (deus do amor), filho
de Afrodite (deusa da beleza). O mito de Eros, na
primeira fase de sua vida, é mostrado como uma criança
pequena, mesmo com o passar dos anos.
54 Para Além da Clínica
Dentro de sua etimologia, a palavra desejo tem sua
origem do latim desidiu, que tem seu inverso em
considiu. A palavra sidiu ou ainda siderare quer dizer
astro. E enquanto con traz a referência de vínculo,
des traz a ideia de desvinculação.
Logo, estamos falando de “estar” ou “não estar”
ligado aos astros. Ou, ainda, consultar os astros (assim
como os gregos faziam por meio do oráculo) ou tomar
certo caminho, desconsiderando o que eles têm a nos
dizer.
Dessa forma, podemos dizer que fica claro, ao
desejarmos algo, que nos tornamos responsáveis por isso
e, possivelmente, abandonamos a opinião dos astros
quanto a isso. Ora, se a proposta é de falarmos sobre o
desejo, então estaremos cogitando sobre certa tensão que
indica um fim. Quem deseja, o faz em relação a algo que,
por sua vez, trará o fim do desejo. Esse fim está
intimamente ligado a um pressuposto de carência.
Quero dizer que o desejar é resultado do sentimento
da falta de algo. Sendo assim, o desejo torna-se uma
característica clara do ser humano mortal, que se
encontra no polo oposto dos deuses.
Para Benedito Espinoza (1632-1677), um dos
grandes pensadores do século XVII, dentro da chamada
Filosofia Moderna, a imperfeição repousa na perspectiva
do humano e o define como tal.
Renato Dias Martino 55
O desejo é uma classe de sentimento ou de certo
movimento mental que, muitas vezes, mesmo irracional,
em sua forma inconsciente, emerge tomando a forma de
nossas escolhas.
A ideia é que o desejo é um fluxo muito forte de
libido (energia psíquica) e carrega em si muito dos
conteúdos impensados e impregnados de um narcisismo
prematuro. Assim, um pensamento que tenha nascido
dessa forma, prematuro, já agia no funcionamento da
mente, mesmo sem ainda poder ser chamado de
pensamento.
Esse fato revela-se importante na medida em que
muito perigosa é a ação ausente da reflexão: o
agir sem pensar.
A psicanálise nos mostra, com muita clareza, que o
desejo é definido pela sensação de perda de algo que se
foi. E se concordamos com essa afirmação, podemos
descrever que o objeto de desejo se encontra no passado.
Isso corresponde a dizermos que quem deseja,
deseja, pelo menos em certa medida, a repetição de algo
que perdeu no passado. E esse sentimento pode tomar
maior proporção se nos lembrarmos que, a perda sempre
inclui certa culpa de não ter cuidado daquilo que se
perdeu.
56 Para Além da Clínica
Assim, podemos afirmar que o desejo guarda
sempre uma cota de passado, e isso é representado, nas
experiências psíquicas, pela memória.
Com esta forma de pensar, abre-se então uma
condição, que nos permite afirmar que o desejo se
encontra impregnado, das forças do mito de Tânatos (o
deus grego da morte), dentro de sua perspectiva de pulsão
de morte. Ele busca sempre o retorno de algo perdido,
por mais que se encontre regido pelas graças do mito de
Eros (o deus grego do amor) no conceito Freudiano de
pulsão de vida, em seus impulsos na direção do mundo
externo.
Percebemos, com esse modelo, que memória e
desejo estão muito próximos e que a forma como se pode
ter certa concepção de memória coincide diretamente no
que se tem concebido sobre o desejo.
Em sua célebre obra “Interpretação dos Sonhos”,
de 1900, Sigmund Freud (1856-1939) propõe a ideia de
que a memória é o desejo no passado, e, se concor-
darmos quanto a isso, poderíamos formular que, se a
memória é desejo do passado, então o desejo é, também,
uma espécie de memória do futuro.
De qualquer forma, o desejo então é algo que existe
para ser satisfeito. Contudo, ainda assim, só existe
enquanto se está frustrado. Entretanto, deixemos
Renato Dias Martino 57
temporariamente a situação da satisfação de lado, com a
proposta de retornar mais tarde, e assim, cuidaremos
dessa hipótese com mais atenção e dedicaremos então
os olhares para a situação da frustração.
Pelo menos a priori, abrem-se dois caminhos: o de
enfrentar a tarefa do reconhecimento da realidade ou o
que sustenta a fantasia até onde ela possa ser sustentada.
“Eu fiz isso”, diz minha memória. “Eu não posso
ter feito isso”, diz meu orgulho, e permanece
inflexível. “Por fim a memória cede.”
Friedrich Nietzsche (1844-1900)
Além do Bem e do Mal (1886)
Essa questão se torna de grande importância se
estivermos falando em aspectos condizentes com a
luta diária, onde exista um trabalho de capacitação
emocional, no sentido de aceitar, respeitar, ser sincero e
assim, tornar-se capaz de amar o real ou ligar-se
afetivamente ao outro. Falo aqui de vínculo.
O objeto de desejo nunca é real, isso por que nunca
desejamos o objeto real, mas aquilo que esperávamos
que fosse, o ideal. Na realidade tendemos a desvalorizar
o objeto de desejo, assim que se torna real. Isso por
que se tornar real limita as qualidades e possibilidades
do objeto, o que não ocorre com o ideal.
58 Para Além da Clínica
Às vezes, levamos isso a tal consequência, que
ela nos conduz a desistir de certo objeto, por não atender
nossas expectativas.
É como se disséssemos: “se não é como eu
desejava não importa pra mim”.
Ou seja, a realidade não interessa o que interessa é
o que se imaginava ser essa realidade. Assim que o real
se revela é logo descartado. Ou, ainda, por outro lado,
num ato de violência para com a realidade, podemos
forçar o objeto a se tornar aquilo que gostaríamos que
fosse.
O que conduz essa linha de pensamento é o fato
de que na maioria do tempo, somos impulsionados
por paixões, ou seja, idealizamos (fantasia) algo e
consequentemente passamos a odiar o seu extremo
oposto.
Esta é uma forma arriscada de se conduzir a vida,
já que, de tal modo, não se pode conhecer coisa
nenhuma.
Deixamos de nos aproximar de certas “coisas” por
enxergá-las muito maiores que nós e, a partir do mesmo
modelo de funcionamento, evitamos outras por nos julgar
muito superiores a elas. Na perspectiva de Immanuel
Kant (1724-1804), conduzir escolhas essencialmente
pelo desejo é um modo doentio de viver.
Renato Dias Martino 59
Então dispensar o desejo seria a condição sine qua
non da prática, daquilo que ele chamou de moral e que
pressupõe certa indiferença em relação à satisfação e ao
prazer. Na proposta edípica de Freud é justamente a
renúncia do desejo do filho pela mãe que o liberta para
pensar em si.
Na capacidade de viver a posição do terceiro
excluído é que se iniciam as realizações no
mundo.
Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981), psicana-
lista francês, propõe o Nome-do-Pai como símbolo do
corte no desejo pela mãe. O que adéqua o vínculo entre
filho e mãe, libertando-o do pesadelo incestuoso.
Na apreciação psicanalítica do indiano naturalizado
inglês, Wilfred R. Bion (1897-1979), a questão se encon-
tra na perspectiva daquilo que poderia proporcionar
definir e sustentar as qualidades dos vínculos que se
pode ter com a realidade. Bion propõe a cesura do desejo,
priorizando o que chamou de “O” da experiência, ou seja,
o reencontro com a realidade depois da simbolização.
O símbolo permite que se tolere o vazio, e isso
coincide com a privação da satisfação imediata do desejo,
onde está a chance para que se comece a pensar.
60 Para Além da Clínica
A presença excessiva de certo desejo por algo,
impede que se possa conhecê-lo na realidade ou ainda,
paralisa qualquer que seja o esforço na direção de
entendê-lo em sua forma integra.
A consequência inevitável desse funcionamento
baseado na paixão está justamente na cristalização ou
enrijecimento daquilo que limita o que é do eu (como
o desejo), daquilo que é do mundo, do não-eu, do
outro. Em última instância, da realidade (que dificil-
mente coincide com o desejo), congela e compromete
severamente aquilo que nos leva a experimentar
possibilidades, condição indispensável à criatividade.
As experiências são exercícios de fundamental
importância, na medida em que nos capacitam de
referências e nos permitem distinguir, não só o que
poderia ser o mundo externo, mas, consequentemente, o
que podemos realmente ser, ou melhor, o que pode ser o
eu real.
Falo da inexorável luta entre o que é real e o que se
deseja que seja, ou até, o que se teme que possa ser (já
que o medo é filho do desejo).
A questão está na ordem do que se encontra entre o
real e o imaginário. Um processo de rigidez, nesse nível,
é inevitavelmente gerador do que poderíamos denominar
de pseudo-sabedoria ou mesmo sabedoria psicótica.
Renato Dias Martino 61
Uma classe de informações sobre o mundo que só
se pode manter através da imposição. Um saber que
deve contar com a defesa de certo escudo chamando
arrogância. Enquanto essa pseudo-sabedoria se localiza
em certo nível superficial, encontramos um sujeito
turrão e teimoso, consequentemente ignorante (ignorante
de sua própria ignorância).
Contudo, é alguém que consegue, a duras penas,
algumas realizações no mundo, já que (mesmo chateado
com isso) mantém certo vínculo com a realidade. No
entanto, se esse modelo de “saberes” passa a ser atribuído
a elementos de maior profundidade da personalidade,
criam-se características psicóticas na forma de se
conduzir a vida.
O outro nunca é o outro, mas sempre o que
se deseja que fosse.
Voltemos agora os olhares para a satisfação
completa do desejo. Este vértice conduz à morte da busca
e nos remete ao estado de inércia. Na satisfação total não
existe reflexão, e não é difícil chegar a essa conclusão
quando nos lembramos de um bebê que logo adormece,
assim que se satisfaz com o seio da mãe. Totalmente
satisfeitos, deixamos de pensar, deixamos de existir. Só
seguimos em frente se tivermos a consciência do que
perdemos.
62 Para Além da Clínica
O desejo de ser outro
O ser humano é um ser “desejante”, e assim
como Sigmund Freud (1856-1939) coloca em
1914, em seu trabalho, “Eros” é o que o
impulsiona em direção aos vínculos que deve
fazer com o mundo externo ou com aquilo que
existe para além do eu.
Contudo, Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981),
da escola psicanalítica francesa, propõe que o primeiro
e maior desejo do ser humano é o de ser desejado.
Ilustração do autor Renato Dias Martino
Renato Dias Martino 63
Isso é de fácil compreensão, partindo-se de um
pressuposto onde o bebê passa a primeira fase (a mais
delicada e importante) do desenvolvimento da vida
emocional em inteira dependência do outro (mãe).
Nessa mesma direção, o psicanalista e pediatra
inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971)
coloca em 1941, numa reunião científica na
“British Psychoanalytical Association, –There’s
no such a thing like a baby”, que pode ser
traduzido como “Isso que chamam de bebê não
existe”, e completa em seu texto “A deformação
do ego, em termos de um self verdadeiro ou
falso” (1960), Winnicott a ideia de que a
personalidade tem duas partes constitutivas.
O eu verdadeiro, que é a parte mais primitiva, onde
estão guardadas as sementes do eu, como na polpa
mais profunda de uma maçã. São conteúdos referentes à
essência do eu, onde estão as reais capacidades
emocionais da personalidade.
Contudo, uma parte desse conteúdo da
personalidade que não é muito atrativa ao outro, guarda
características primitivas e não evoluídas. Ainda assim,
são partes do eu, mesmo que amiúde indesejáveis.
64 Para Além da Clínica
O verdadeiro eu não tem recursos para retribuir o
amor, logo, é preso ao amor do outro. Frágil e dependente
da proteção do outro, é um “eu / objeto” que anseia por
ser escolhido.
Essa parte do aparelho emocional disputa lugar com
o eu falso, que por sua vez tem a função de defender o
eu verdadeiro. Como a casca de uma árvore, que tem o
objetivo de proteger o miolo, o eu verdadeiro.
De acordo com a hipótese de que no princípio da
vida a criança depende exclusivamente da mãe, e que
isso que chamamos de bebê não pode existir, se não pelo
outro (mãe), então o falso eu tem o objetivo de se fazer
aceito e desejado por ele. Em nome de sua sobrevivência
o falso eu fará de tudo para se adequar àquela que cuida
dele, isso naquilo que ela deseja, e assim necessariamente
em suas falhas também.
Um vive para o outro, mas a situação patológica
pode se instalar quando o falso eu suprime ou sufoca o
verdadeiro eu.
Isso coincide de alguma forma, com a teoria da
“Segunda Tópica” de Freud, na medida em que diz
respeito à experiência da criança em poder contar com a
possibilidade de satisfazer o id de forma satisfatória, sem
graves conflitos com a realidade, e abrindo assim certo
espaço de desenvolvimento do ego.
Renato Dias Martino 65
Quando não pode ser realizado, o desenvolvimento
do ego passa a ser passivo de censura e se agrega ao
precipitado chamado de superego ou ideal de eu.
Assim como Winnicott coloca, o “bebê não existe”
e dessa forma tenta mostrar que o bebê nunca existe
por si só, sempre e essencialmente como parte de uma
relação. Winnicott demonstra também que quem vê
um bebê, nunca vê apenas um bebê, vê também,
inevitavelmente, alguém mais, um adulto ou mesmo
uma criança maior com os olhos grudados no bebê.
Direcionando o vértice com referência ao
gênero, Lacan coloca a ideia de que a mulher não
existe. O primeiro e maior desejo do humano é o
de ser desejado, e ele também é quebrando
quando esse desejo narcísico se olha para o
verdadeiro eu.
Quebramos assim, o espelho do qual dependia nosso
desenvolvimento. Este é um processo inexorável de
construção e destruição de espelhos no mundo, assim
como a inteiração dos conceitos a priori e a posteriori
da Crítica da Razão Pura e Crítica da Razão Prática de
Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão muito
aludido na obra freudiana.
66 Para Além da Clínica
Segundo Freud em “Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade” (1905), numa fase do desen-
volvimento sexual (fase fálica), a criança
experimenta a fantasia de que todo ser humano
tem pênis. Instruem-se a explicar a falta nos que
não tem, através de fantasias de que ainda não
se desenvolveu ou então perderam por alguma
causa. O reconhecimento do valor do órgão
genital feminino só é feito bem mais tarde na
vida da criança.
Esse é um dos motivos da desistência do amor da
mãe pela menina e o interesse no pai, consequentemente,
o sexo oposto. Freud denomina essas experiências como
representadas no complexo de Édipo. A experiência do
reconhecimento fálico é muito confusa e dolorida para a
criança.
A capacidade racional nos auxilia reprimir, grande
parte dessas experiências doloridas que foram
incompreendidas. Aprendemos a esquecer até certo
ponto o que, hoje, parece quase inviável admitir
conscientemente.
Contudo, como o destino do impulso reprimido,
também a descoberta da falta do falo, persiste
inconscientemente. Isso se converte frequentemente
Renato Dias Martino 67
em projeções naquilo que temos ou naquilo que não
podemos ter. Teremos oportunidade de abordar o assunto
de forma mais atida em um capítulo dedicado à inveja.
Compreensão do mundo
o uso do “eu sei”
Por que dizer “eu sei”?
Será porque sabemos realmente?
“Só sei que nada sei”.
Sócrates (496-470 a.C. / 399 a.C.) tornou essa
máxima como seu lema e o imortalizou.
Mas, se não conhecemos a nós mesmos, o que
sabemos então?
Estudamos anos a fio certa coisa e um dia nos
damos conta que sabemos muito pouco sobre ela. A
satisfação que obtemos com a sensação do “saber”
é realmente gratificante, mas penso ser útil encará-la
como um domingo de descanso em uma semana de
labuta, onde o ponto de interrogação é o norte do
desenvolvimento e da expansão. Quando não temos
dúvidas, nos acomodamos.
68 Para Além da Clínica
As certezas são as maiores ilusões criadas pela
mente humana. Contentamo-nos com a certeza quando
nos vemos incapazes de continuar a questionar e não
porque estamos realmente certos.
Maurice Blanchot (1907-2003) diz:
“La réponse est le malheur de la question” - “A
resposta é a desgraça da pergunta”.
(2002)
A única certeza é a morte.
Logo, buscar incessantemente certezas e garantias
é o equivalente a buscarmos a morte: a morte da
pesquisa, a morte do amor (sentimento rico em
incertezas), a morte da busca da vida.
“Navigare necesse, vivere non est necesse” no
latim, “navegar é preciso, viver não é preciso”,
frase de Pompeu, general romano (106-48 a.C.),
foi dita aos marinheiros, amedrontados, que
recusavam viajar durante a guerra, cf. Plutarco,
in Vida de Pompeu.
O poeta português Fernando António Nogueira
Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 - Lisboa,
30 de Novembro de 1935), ressuscita a ideia com
a condição de que: “viver não é necessário, o
que é necessário é criar”.
Renato Dias Martino 69
A criação parte da falta de algo. Criamos aquilo
que ainda não existe e, se não existe, logo não sabemos.
Quando dizemos: “eu sei”, encerramos a busca. Já
sabemos, logo; não há nada a aprender. Muitas vezes,
pronunciamos “eu sei” antes mesmo do outro concluir o
que quer dizer. É uma maneira de não dar muita atenção
ou de ignorar alguém.
Quando respondemos automaticamente: “eu
sei”, o que realmente dizemos é “não estou
ouvindo o que você diz”.
Assim, tiramos o valor do discurso do outro.
É como se parássemos de ouvi-lo por achar que já
sabemos tudo o que há para saber.
Sempre que ameaçados, nos vemos impelidos a nos
defender. Pode-se dizer, “eu sei” quando encontrar-se
tomado por ansiedade, enquanto se espera a vez de falar.
Também quando, simplesmente, não estamos dispostos
ou interessados em ouvir.
Seja qual for o motivo, essa reação impede que
possamos aprender coisas que podem ser importantes.
Em um ato de descrédito em si mesmo e na própria
capacidade de aprender, criamos um abismo entre o
“eu” e o outro.
70 Para Além da Clínica
O “eu sei” pode servir como uma defesa para aquele
que se sente ignorante e envergonhado, por realmente
não saber.
Defendendo-se assim, acaba por não aprender.
O bom e o prazeroso
É incansável a pesquisa na busca por modelos
que possam representar as coisas da alma. Assim,
encontrar lugar para essa dimensão do existir em
nossas vidas seja em nosso mundo interno,
enquanto protótipo de algo que clama por
realizar-se, ou seja, no mundo externo nos
oferecendo objetos dos quais nos levam à
introjeção da própria realidade, é algo desejável.
Talvez, essa incansável pesquisa na busca por
modelos da alma seja um convite para arranjarmos tempo
para trocar informações sobre os conteúdos de nosso
aparelho psíquico. Criarmos recursos para relacionar-nos
com o próprio mundo real, nos responsabilizando pelo
próprio mundo.
Penso que não podemos discutir, com propriedade,
qualquer outro assunto, se antes não pudermos falar na
responsabilização do ser humano por si mesmo e pelo
mundo.
Renato Dias Martino 71
Discutirmos assuntos como a preservação da
natureza, a ética na política, a violência nas ruas (seja da
policia ou do crime), é sempre mais produtivos (se é que
de outra forma se produz) quando podemos sinceramente
nos responsabilizar pelo menos por nós mesmos.
Insisto nisso, já que, apesar de sermos animais
pensantes e até nos diferenciando dos “outros’ animais
por isso, a própria capacidade de pensar ainda é muito
pouco eficiente (diria até embrionária) no humano atual,
que na realidade, age muito mais por seus impulsos, que
pela razão (haja vista as atrocidades que hoje já não têm
mais hora para passar nas televisões ou redes de
comunicação na internet).
Sinto extrema dificuldade em falar e escrever sobre
esse tema, sem experimentar uma estranha sensação de
estar sendo “chato”, por tocar em algo desagradável e
que, a maioria das pessoas, prefere não mexer, e quem
dirá olhar com cuidado.
Podemos até confundir esse texto com um discurso
intelectual, mas o assunto aqui tratado está muito mais
próximo de questões emocionais do que de qualquer
intelectualidade.
Seguindo esse “caminho das pedras”, penso que nos
seria útil distinguir duas ideias que amiúde se confundem
e até parecem sinônimos, se não atentos estivermos.
72 Para Além da Clínica
Porém, se pudermos manter “certo vértice especial
de pensamento”, perceberemos que os termos em que,
proponho o pensar, proporcionam um encontro
antagônico.
Quero propor que, nesse ponto de vista, algo
prazeroso não é necessariamente e ao mesmo tempo
bom, e, vise-versa.
Na verdade, a psicanálise nos mostrou, com muita
propriedade, que a mente só pode se expandir na medida
em que podemos abrir mão de certos prazeres, em nome
do pensamento, até para que possamos perceber o que
realmente é bom pra nós.
Para mantermos esse ponto de vista, teremos que
lançar mão do símbolo ou da capacidade de simbolizar,
recurso que é criado na tentativa de preencher o vazio
da realidade.
Quando a pessoa amada real não está, o que sustenta
a alma é um pensamento simbólico.
Sem o recurso do símbolo, ou seja, da capacidade
de simbolizar, o bom será sempre o prazeroso e não
existe aí qualquer chance de diferenciação entre as duas
ideias.
Então poderíamos cogitar a hipótese de que:
“aquilo que é bom caminha mais próximo da
ausência do prazer, pois, quando a satisfação
do prazer se faz predominante, muito pouco se
produz no pensamento simbólico, que é o que
Renato Dias Martino 73
nos liberta do concreto (apreensível pelo
sensorial ou órgãos dos sentidos), que nos faz
real e nos permite reconhecer a própria
realidade (o que poderíamos chamar de bom ou
saudável).”
A memória da perda
Já que estamos de acordo sobre as conjecturas,
sobre a distinção entre “bom” e “prazeroso”,
contaremos com esses argumentos para abrir o
assunto contido nesse capítulo, pois, falaremos
de experiências emocionais de “cunho um tanto
quanto desconfortável”, contudo de extrema
necessidade.
A intenção a priori é a de classificar um modelo de
desenvolvimento da mente, da expansão do pensamento
e da qualidade do vínculo que se pode ter com as pessoas
e com as coisas.
Partindo do intento onde como propõe o filósofo
alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), a angústia
suscitada pelo medo da morte é a expressão máxima
do sofrimento humano, então talvez fosse um tema
digno de cogitação aquele cujo objeto parte das emoções
geradas conforme a consciência sobre a decadência e
a morte.
74 Para Além da Clínica
É um saber que dá ao humano o título de homo
sapiens, o sabedor de sua vulnerabilidade e mortalidade,
assim como referente àquele que ele ama.
Certo conhecimento mobiliza o mundo interno e
cobra alguma ação psíquica no intuito de diminuir ou
amenizar o efeito da descarga libidinal gerada nesse
contato com a verdade.
Essa verdade referente à incontestável realidade
humana ou até mesmo à realidade de todo e qualquer ser
vivo. É a mesma angústia que ocorre aos deuses,
assistindo-nos do Olímpio.
Contudo, de forma inversa e velada, talvez os
deuses invejem-nos a possibilidade de descansarmos
um dia da obrigação do mortal em manter-se vivo,
mesmo cônscio da imutabilidade do fato da morte.
De qualquer forma, a geração de ansiedade frente à
ideia do desamparo, declínio e morte é um recurso natural
do aparelho mental.
A introdução dessa realidade no âmbito do
funcionamento psíquico não é um processo simples. De
forma hipotética, poderíamos aqui levantar algumas
possibilidades de desenlace dessa experiência. Uma
delas, e a que me parece ser a mais primitiva, é aquela
em que o sujeito do conhecimento do real, automa-
ticamente, pronuncia a ação física.
Renato Dias Martino 75
Ao ser inundado pela angústia, parte logo para a
ação (no mundo externo) no intuito de aplacar o
desconforto gerado. A falta de recursos mentais mais
aprimorados e a incapacidade de conter impulsos
fazem o bebê espernear e “berrar” quando se sente
assim, angustiado.
Em uma linguagem psicanalítica, nesse caso a
pulsão de morte é direcionada para fora do eu (em
direção ao outro).
Um segundo modelo seria aquele em que o sujeito,
ao perceber a ineficácia da ação mecânica em conter os
impulsos, o reprime e, submerso na desesperança, desiste
da atuação.
A partir daí, sob a regência desse modelo de
funcionamento, a pulsão de morte volta-se para o eu
(para dentro).
Como na melancolia descrita por Sigmund Freud
(1856-1939) em 1917, o sujeito desse funcionamento
sente como irremediável o prejuízo dessa realidade
pairando sobre o eu. Como se a partir da ciência do real,
nada mais despertasse seu interesse, a não ser a fantasia
(que exclui o próprio real).
Estes dois modelos têm a função exclusiva de
afastar o desconforto psíquico e estão enquadrados num
funcionamento mental, denominado por Freud, em
1911, como princípio do prazer-desprazer.
76 Para Além da Clínica
Um terceiro modelo, e o que nos interessa sobre
medida nesse momento, é justamente aquele que faz
pensar. O que implica para Freud (1911) é à entrada do
princípio da realidade, o que permite adiar certas
ações através da contenção do impulso que assim,
ganha a chance de transformar-se em pensamento
simbólico. A capacidade mental em tolerar descon-
fortos é que proporciona o que chamaríamos de
continência psíquica e definirá o norte dessa experiência
com o real.
Contudo, conter emoções desse calibre, de maneira
saudável, exige essencialmente criatividade.
A consciência do nascimento e morte obriga a
criação de um espaço entre esses dois fatos. É justamente
a subsequência de um processo do qual aprendemos
chamar de “vida”.
Ilustração do autor Renato Dias Martino
Renato Dias Martino 77
Gradiente evolutiva
Depois de conhecermos esses modelos de
formação psíquica, e “estruturando um
pensamento” de acordo com eles, podemos
então, desenvolver a ideia de uma “escala
evolutiva do pensar”. Uma escala onde podemos
até tentar eleger um ponto de partida, contudo,
assim como seu apogeu, ele nunca coincidirá
com ideias acabadas ou saturadas em sua
dimensão.
Estamos falando do percurso seguido pelo elemento
mais primitivo da mente rumo ao seu desenvolvimento
ou, mais adequadamente falando, sua expansão, um
impulso gerador de fantasias no contato com a
consciência da perda.
Podemos sugerir, talvez, a sensação gerada pelo
contato com aquilo que se é capaz de chamar de
realidade, como ponto de partida e a formação da ideia
simbólica (a saber, a capacidade de tolerar a ausência do
real sensorial), como pretensão de objetivo a se alcançar.
Parece-me que, isso definirá algumas experiências,
para que se possa viver com a memória da perda e, ainda,
o que isso pode representar.
78 Para Além da Clínica
Algo como prejuízo na estrutura do ego (personali-
dade) ou no extremo oposto, vitória e superação de
limites e consequentemente fortalecimento e expansão
do eu. De qualquer forma, a ideia ou o pensamento
simbólico se manifesta na capacidade de relatar em
palavras a história da própria vida, já que transformar
fatos em palavra exige certa habilidade simbólica.
Foi a partir desse modelo que Freud abandonou
o “método catártico da hipnose”. Em 1891,
Freud publica “Contribuições à Concepção das
Afasias”, obra que afirmar, categoricamente, o
rompimento com as hipóteses sobre os “estados
hipinóides” e o método catártico de Joseph
Breuer (1842-1925).
O pai da psicanálise começou a perceber e, a partir
dessa percepção, passou a criar instrumentos para
identificar, no discurso de seus pacientes, a parte da
mente que exigia cuidado.
Assim, podemos mensurar a dimensão da
importância da memória da perda, como necessidade
de nos tornarmos conscientes dela, para o bom
funcionamento mental.
Cada iminência de perda remete a experiências de
sensação de desamparo ocorrida num tempo, onde o
Renato Dias Martino 79
acolhimento, sensação de segurança ou de se sentir
contido num ambiente saudável era a única maneira e,
justamente, o que definiria a sensação de estar vivo: a
confusão do que é a morte da abstração e o que é a morte
efetiva.
A dor e a palavra
“Dor da palavra”
O que seria da minha palavra se minha dor nela
não habitasse?
O que seria da minha dor se não encontrasse
palavra que a expressasse?
A tarefa de publicação de ideias referentes ao fato
psíquico ou as manifestações da alma, esbarra em uma
questão da qual gostaria de abordar, nessas linhas
seguintes.
Gostaria, em primeiro lugar, de expor que o
conceito de publicação aqui sugerido, refere-se a toda
ação pública que contenha a ideia proposta ou certa
tentativa de transmitir a ideia ou certa impressão do
mundo.
80 Para Além da Clínica
Quando pensamos na ciência natural ou na física,
os fatos são tratados e discutidos até se definir em um
desfecho indiscutível.
As opiniões passeiam por um tempo, entretanto,
deságuam numa confirmação concreta e muito próxima
de um resultado fechado e resolvido em si. Obtém-se,
através de teorias e experiências, certo saldo saturado
em sua conclusão.
O fato que assim se confirma está sujeito, então, a
uma manifestação externa, no plano concreto para que
se dê a união das opiniões em uma confirmação.
Por exemplo, se o intuito é provar a velocidade que
atinge uma pedra de certo peso, quando esta despenca
de certa altura, até chegar ao chão, nós dispomos de
recursos e instrumentos, que usados corretamente,
conduzirão a resposta que ganha um status de exatidão
quase indiscutível.
Assim, as partes divergentes, baseadas em um fato
confirmado concretamente, unem-se em uma verdade.
Outro exemplo muito interessante é o introduzido
por Wilfred Bion, em sua obra “Atenção e Interpretação,
uma aproximação cientifica à compreensão interna na
psicanálise e nos grupos”, 1970. Bion cogita que um
médico adota um procedimento, onde recebe a queixa
do paciente do qual descreve uma dor física e, com apoio
Renato Dias Martino 81
de exames como ultra-sonografia, eletrocardiograma,
Raios-X, pode diagnosticar certo quadro, permitindo a
aplicação de uma forma de tratamento.
Segue-se a terapêutica, tendo como base uma
“doença” confirmada por meio dos sentidos. As expe-
riências sensoriais pelo tato, olfato, visão e audição foram
disponibilizadas para o diagnóstico e, assim, propor a
terapia adequada. Mas, voltemos ao fato psíquico ou
movimento da alma.
Este não pode ser confirmado concretamente. Não
posso pegar uma ansiedade na mão, não há como cheirar
uma depressão. Não é acessível aos órgãos dos sentidos.
Então, surge uma questão:
“Como comunicar ao outro esse fato incon-
testável, mas, ao mesmo tempo, tão fugaz e frágil
à confirmação?”.
Lembro-me de um paciente que, queixando-se de
severa depressão, me conta que seus familiares
apelidaram sua dor como sendo “coisa da cabeça” e
assim, rebaixaram a importância desta, como se ela
estivesse num segundo plano.
Talvez eles aguardassem notícias físicas desta dor
e sendo ela visivelmente constatável, eles dessem início
a algum cuidado.
82 Para Além da Clínica
Esse mesmo fato é de fácil constatação quando, em
uma fila de espera do atendimento público de saúde,
acabamos nos dando conta de que grande parte (pra não
dizer a maioria) das pessoas que aguardam atendimento
é fisicamente sã e que, no entanto, pode estar apenas
emocionalmente doente.
Essa é a dimensão da incapacidade humana de se
perceber além do corpo. O fato psíquico entra em uma
esfera particularmente distinta da concretude dos fatos.
A necessidade é de que se desenvolva o que, com
auxílio da filosofia, chamo aqui de intuição. E que já
estivera no escopo de Carl Gustav Jung (Kesswil,
1875 - Küsnacht, 1961) e Bion.
Não é algo que se apoia em simples compreensão.
É o despojamento de capacidade sensorial, ou seja,
algo que fica além do que se constata pelo aparelho
sensorial. Além do corpo, do concreto, constatável. É um
recurso da subjetividade, algo que tem a condição de
abstração.
Como posso comunicar algo que chamo de
“saudade” e sinto, como uma experiência vivida,
em minha história, para aquele a quem a
“saudade” não passa de um conceito do qual se
encontra tão vazio de vivência?
Renato Dias Martino 83
O contrário também se aplica quando, evitando
sofrer algo, não se cria meios para nomeá-lo. De tal
modo, se utilizamos um modelo semelhante ao aparelho
reprodutor, perceberemos que a publicação do fato
psíquico se vê em meio à dificuldade da “cópula” entre
aquilo que se tenta publicar e a possibilidade de
experiência daquele que recebe a informação.
O afeto e questões emocionais estão implicados de
forma crucial, onde o conteúdo e o continente se
encontram. O valor do que será concebido nessa ligação
depende do afeto envolvido nesse encontro.
O que fazer com um conceito se nunca se viveu
algo que o preencha de experiência?
O que fazer com uma experiência da qual não se
foi capaz de nomear?
Algumas palavras sobre a palavra
A palavra é uma unidade de linguagem, um
instrumento de comunicação das ideias por
meio da fala ou da escrita, e essa é uma definição
lógica, aquilo que transforma em conceito o
conjunto de letras “p”, “a”, “l”, “v” e “r”,
arranjadas de certa forma específica. Palavra
vem do grego parabolé.
84 Para Além da Clínica
Cedo percebemos que a palavra foi criada no intuito
de vinculação entre as pessoas, a palavra une as pes-
soas. De qualquer forma, a proposta desse texto não é se
prender a modelos já pensados, mas tentar transcender
o modelo de conceito racional, vazio de experiência,
até porque, não é só isso: o valor que se pode dar à
palavra está intimamente ligado ao desenvolvimento
emocional.
A palavra está vinculada e é subordinada de certa
área de nosso psiquismo onde o racional não pode
penetrar. Logo, da forma como lidamos com a palavra,
podemos revelar sinais da saúde mental, que pode ser
descrita como a capacidade de vínculo que se pode ter
entre nosso mundo interno (impulsos instintuais e
fantasias) e mundo externo (o outro, aquilo que existe
independente do eu).
Dessa forma é indispensável, para o desempenho
da palavra, a capacidade de simbolização, já que a própria
palavra é antes de tudo um símbolo, e isso quer dizer
que tem a propriedade de fazer o conteúdo da ideia
presente, mesmo em sua ausência. Poderíamos, até, fazer
uso de um modelo filosófico para pensar o que é símbolo.
Imaginemos, então, algo, alguém, algum lugar, que
possamos sentir a presença, mesmo não podendo
confirmar com os órgãos dos sentidos.
Renato Dias Martino 85
Quando dermos conta dessa proposta, podemos de
alguma forma simbolizar. O símbolo se encontra
exatamente na ausência real do objeto.
O bebê aprende a simbolizar a mãe e, isso é o que
lhe permite tolerar, até que ela atenda seu choro.
O símbolo sustenta a alma na falta do objeto, aí
então, se está apto a transformar em palavra. Hanna
Segal (grande pensadora da psicanálise) coloca em 1982
que:
“A formação de símbolos governa a capacidade
de comunicação, já que toda a comunicação se
faz mediante símbolos”.
Ela postula que, quando ocorrem perturbações que
comprometem essa capacidade simbólica, a capacidade
de comunicação é também perturbada:
“primeiro, porque a diferenciação entre o sujeito
e o objeto se desfaz; segundo, porque os meios
de comunicação estão ausentes, já que os
símbolos são sentidos de modo concreto e,
portanto, não estão disponíveis para fins de
comunicação.”
p.88
Quando se comunica a ideia de alguma coisa através
da palavra, acredita-se nela, mesmo sem que se tenha, a
mão, a coisa em si.
86 Para Além da Clínica
A capacidade do espaço mental em sustentar uma
imagem interna boa o bastante para que se possa
transmiti-la ao outro é o que define a qualidade da
palavra e consequentemente da saúde psicológica.
Quando levantamos a hipótese da degradação da
palavra, estamos antes de tudo descrevendo um estado
de incapacidade de troca afetiva.
A palavra deve ser uma extensão do ser, ou seja, a
qualidade da ideia contida na palavra é o que define a
própria palavra.
Palavras distantes do ser são frias e como uma “nota
fiscal fria” (refiro-me a um modelo tributário), não conta
com a responsabilidade daqueles que a emitem.
Ainda Sobre a Palavra
Onde estão os homens de palavra?
Onde foram eles?
Gostaria de saber e também de me reunir junto a
eles, levando comigo alguns que conheci há
algum tempo.
Não me parece radicalismo ou loucura propor que
não estamos numa época que poderíamos chamar de
“valorização da palavra”.
Renato Dias Martino 87
Ao contrário, penso eu, que preocupados com a
simplicidade da palavra, nem cheguemos até ela. Esse
instrumento chamado palavra é talvez a forma mais breve
de definição do objeto. Onde no formato de símbolo
básico, a “coisa” vira um nome e a partir daí abrem-se
oportunidades de expansão da palavra em direção à
conceituação.
O conceito apura a relação com aquilo que se quer
dizer através da palavra. Traz mais dados sobre isso que
se deseja expressar com a palavra.
Mas, para se chegar ao conceito, deve-se ter
passado pela palavra. Um dia, cada conceito que
utilizamos hoje em nossas vidas, foi uma simples
palavra. Entretanto, se a evolução da ideia para por aí,
algo curioso acontece. E de acordo com esse modo de
pensar, e, se realmente podemos dizer que a palavra é
uma ponte entre a “coisa” e o conceito, então experimen-
tamos, nessa etapa do caminho, algo em formato de
preconceito, aquilo que antecede a formação conceitual.
Logo, a incapacidade de atravessar essa ponte é o
que gera o preconceito rígido e intransponível.
Sabe-se muito pouco da “coisa” e já se impõe como
verdade absoluta, o que se imagina saber.
Apesar disso, pensando no desenvolvimento da
ideia, a partir do conceito podemos expandir o pensa-
mento e experimentarmos a intuição.
88 Para Além da Clínica
A partir da capacidade de intuir, a palavra começa
a ser dispensável. Como se já houvesse contribuído o
suficiente, ela pode ser abandonada, isso na presença da
intuição.
Vamos desvalorizar juntos a palavra, mas, depois
de estarmos seguros do que ela quis dizer.
Tédio
Filosoficamente, poderíamos descrever o tédio
como um estado de espírito onde o fato futuro
não tem representante na expectativa. É, talvez,
estar “nem aí”, na linguagem coloquial. Assim
como uma espécie de aborrecimento onde vemos
as coisas do mundo com certo desinteresse.
Certo funcionamento da mente onde elementos
como fervor, entusiasmo ou impetuosidade, se
encontram inoperantes.
O tédio parece ser algo que é vivido tão intro-
vertidamente, que muitas vezes se torna um estado
emocional extremamente sutil, distante dos olhos
alheios. Por conta desta falta de veemência, o tédio acaba
por não encontrar lugar significativo na literatura
psicanalítica ou nos estudos feitos pela psicologia, seja
Renato Dias Martino 89
ela qual for a abordagem que utilize. Porém, o fato da
manifestação psíquica muitas vezes não se revelar
externamente e não se encontrar veemente, não reduz
sua importância no funcionamento mental do sujeito e
na influência que ocupa nas escolhas da vida de cada um
de nós.
Uma criança possivelmente ilustraria esse estado
como “nada pra fazer”.
E a partir desta teoria infantil (na minha visão, a
mais próxima de um estado desprovido de defesas, logo
mais próximo da realidade), e pela ausência de uma
teoria mais bem elaborada, podemos arriscar criar alguma
tentativa de unir alguns pontos desse assunto. Isso no
intuito de gerar um símbolo do que seria tédio. Criar, a
partir de um olhar mais atento, um sentido para
compreendermos o porquê e como nos ocorre o tédio.
A criança pode fazer uso do tédio como um ensaio
da separação da mãe, ainda na presença dela. Uma
tentativa de “pensar a si mesmo” sem aquilo que mais
se valoriza na vida. Estar “nem aí”, talvez, seja estar mais
“aqui”, no agora, onde o real acontece.
Dessa maneira, se pensarmos na maturidade como
missão humana do desenvolvimento, a capacidade de
entediar-se pode ser uma conquista na independência da
criança. Um ensaio da perda, inevitável. Um momento
90 Para Além da Clínica
na vida que nos propomos a sentir o vazio interior, um
sentimento que pode sugerir certa angústia e que, assim,
gera esse estado de quietude e marasmo interior.
Na verdade, é o resultado da percepção interna de
algo que habita a alma. Alguma coisa que faz parte dela,
mas que, normalmente (até prudentemente, em certos
momentos) evitamos senti-la ou sofrê-la.
Quando digo “sofrê-la”, penso na ambiguidade do
termo, pois a vida é um processo e, sendo assim, não o
sofrer caracteriza certa ação (não-ação) patológica. Um
obstáculo no viver.
O roqueiro Steven Tyler, vocalista da banda
Aerosmith, em uma entrevista sobre as dificuldades que
enfrentou na busca para livrar-se de sua relação
compulsiva com as drogas disse:
“a única forma da coisa passar é passando pela
coisa”.
Quando pensamos no tédio como um momento da
vida emocional, perceberemos um tempo mental onde a
pressa não parece encontrar lugar. Passamos, então, a
olhar o termo que denomina essa experiência com outros
olhos, diferente daquele da colocação popular sobre o
tédio. Dessa forma, é muito interessante percebermos
aspectos internos e externos. Isso quando a exigência
social entra em contraste como nosso estado de espírito.
Renato Dias Martino 91
Perceba como alguém sem pressa incomoda o
homem moderno, que corre desesperado atrás de
“sabe lá o que”. Por essa decorrência, amiúde
criamos um “falso eu”, como coloca Donald Woods
Winnicott (1896-1971) pediatra e psicanalista inglês,
ou como o psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875-
1961) denomina o arquétipo da “Persona” (parte do eu
que existe para satisfazer o outro), de tal modo, que nunca
se entendia.
Algo que é criado para satisfazer o outro ou, melhor
dizendo, um eu criado para satisfazer a necessidade de
sermos desejados pelo outro. Na predominância desse
recurso, porém, abandonamos nosso eu real no quarto
dos fundos do nosso interior, muitas vezes, sem dar-nos
conta disso. Pensemos na utilidade de, através do tédio,
repensar nossos objetos de desejo.
Dois caminhos depois da perda
O tema proposto nesse texto foi muito bem
debatido por Freud e seus discípulos, porém
sinto de extrema utilidade que possamos cogitar
alguns aspectos dos caminhos que se pode tomar,
quando aquilo que contamos como primordial,
nos escapar.
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Ebook para alem da clinica autor renato dias martino no pw

  • 1. Renato Dias Martino 1 Para Além da Clínica Autor Renato Dias Martino Inteligência3Editora
  • 2. 2 Para Além da Clínica Copyright © 2011 Renato Dias Martino Editora Rosimeire Navarro inteligencia3@gmail.com Editoração e Direção Artística Editora Inteligência 3 Projeto Editorial Helcio Buzutti Capa Rosimeire Navarro e Marco Aurélio N. Gutierres Ilustrações Renato Dias Martino Foto Natália Campanholo Revisão Neide Nadruz - Jornalista MTB 12694 Esta obra obedece a Nova Ortografia estabelecida pelo Decreto Federal 6.583, de 29 de setembro de 2008. Dados Internacionais de Catalogação MARTINO, Renato Dias. ParaAlém da Clínica.Renato Dias Martino - 1. ed. São José do Rio Preto, São Paulo: Editora Inteligência 3, 2011. 176 pp. ; 21cm. ISBN 978 85 89223 128-3 150.195. Psicanalíticos, sistemas 150.1Teoria da psicologia. Fundamentos da psicologia 080.150.1.195 Editora Inteligência 3 - www.inteligencia3.blogspot.com Navarro e Batista Editora de Livros e Revistas Ltda Studio / Av. Jesus Villanova Vidal, 1771 - Jd.Alto Rio Preto - CEP 15020-060 - São José do Rio Preto - SP Brasil - 55 - 17 3232-8200 ou 9706-5255
  • 3. Renato Dias Martino 3 Dedico este trabalho à memória de minha irmã Solange Dias Martino. Presente em nossa saudade.
  • 4. 4 Para Além da Clínica
  • 5. Renato Dias Martino 5 Agradeço à Madalena, minha mãe e Oracy Placido, meu pai, pessoas maravilhosas que sonharam junto comigo esse trabalho. Agradeço a minha querida esposa Desirée, que com muita tolerância, guardou minha vida enquanto me esforçava em trabalhar. Sou muito grato aos meus pacientes, que confiaram em mim e sem os quais nunca teria realizaria esse trabalho. Agradeço muito aos meus queridos alunos, em especial, Yasmini de Almeida Perissotti, Natália Campanholo e Maicom Vijarva, que estiveram muito próximos, me nutrindo de reconhecimento, nos estágios finais dessa obra. Meu agradecimento se estende aos amigos Luciano Alvarenga, Ricardo Sorrilha e Karina Pelicano. Agradeço também a Sandra Chalela, Arnaldo Vieira e Alexandre Costa, coordenadores e companheiros queridos que me apóiam, pois acreditam em minha capacidade.
  • 6. 6 Para Além da Clínica
  • 7. Renato Dias Martino 7 SUMÁRIO Introdução p.09 Tarefa penosa e ousada p.11 A prática de certa filosofia p.15 Pensando o pensar p.17 Doar e aprender, receber e ensinar p.21 Vínculo e aprendizado p.23 Alimento Espiritual Pensando melhor o conceito de “verdade” p.26 Memória, desejo e compreensão Aqui, agora p.34 Memória e o espaço mental p.39 Pequeno ensaio sobre conteúdos e capacidades p.44 A memória p.45 O recordar p.49 O real e a idealização (do real) p.53 O desejo de ser outro p.62 Compreensão do mundo o uso do “eu sei” p.67 O bom e o prazeroso p.70 A memória da perda p.73 Gradiente evolutiva p.77 A dor e a palavra p.79 Algumas palavras sobre a palavra p.83 Ainda Sobre a Palavra p.86 Tédio p.88
  • 8. 8 Para Além da Clínica Dois caminhos depois da perda p.91 Vazio d’alma p.97 Do Desmame Nosso de Cada Dia p.100 Reflexões Sobre Ser Feliz p.109 Algumas palavras sobre vocação p.114 Cogitações sobre a inveja p.117 Medo do antigo p.130 Vínculo bem dito p.133 Meu ou Teu p.137 Ainda sobre o pensar fantasia, realidade e símbolo p.138 O sonhar p.142 Janela para o profundo p.145 Obstáculos da interpretação p.147 Ponte entre consciente e inconsciente p.149 Além de um simples caminho p.151 O símbolo e o trabalho onírico p.153 O Desejo dos Pais p.155 O filho não é p.157 A Mãe e o Bebê p.159 O lugar do pai p.162 A arte como simbolização do mundo p.166 Conceito de símbolo p.170 A arte no simbolizar p.171 A arte e o eu real p.172 A arte e sublimação p.173 Currículo do Autor p.175 Bibliografia p.176
  • 9. Renato Dias Martino 9 Introdução Este livro não é um trabalho direcionado somente a psicólogos e psicanalistas, tão pouco exige alguma formação específica anterior para que se possa entender seu conteúdo. Antes de qualquer capacidade ligada à intelectualidade (do Latim intellectus, de intelligere - inteligir, entender, compreender), apontaria a coragem (do Latim coraticum, derivado de cor, coração - agir com o coração) como requisito fundamental para a leitura e a captação das ideias contidas aqui. Até por que, a intelectualidade por si só, em certos momentos, pode dificultar a apreensão daquilo que é novo. O que temos neste livro é uma reunião de ideias que “percorreram caminhos” até se estruturassem dessa forma, como estão aqui representadas. Neste livro, inclui o tempo que pude passar deitado em um divã com o auxílio de um profissional afetuoso e dedicado, como algo de fundamental valor, nas etapas preliminares que levaram a elaboração deste ideário. A partir de então, através de experiências alcançadas na minha prática clínica, junto aos meus pacientes, incorporei às pesquisas teóricas. E assim, o trabalho foi tomando o formato presente.
  • 10. 10 Para Além da Clínica A prática da docência no ambiente universitário, também foi um fator extremamente importante no amadurecimento deste trabalho. Muito do conteúdo textual aqui apresentado vem de um garimpo feito a partir do vasto material, em formato artigo ou através de contribuições minhas para matérias sobre psicologia, em jornais, sites na internet e revistas especializadas em psicologia. É o resultado de um longo trabalho, dedicado ao estudo do funcionamento psíquico e da maneira como isso influencia a criação dos modelos de relacionamento que conduzem as experiências em nossa vida. Esforço esse, que parte do contato com o desconforto emocional, “justamente o que intensifica a criatividade” em nome da tentativa de criar recursos para conter a “dor humana”. Trata-se de um ensaio, com o objetivo de dar a esta “dor psíquica” um formato ou um nome, mesmo que temporário. Isso, admitindo e até tendo como condição, a proposta de criação de novos modelos que possam ultrapassar e expandir as ideias contidas nas próximas páginas. De qualquer forma, o material aqui apresentado foi elaborado com muito carinho, mesmo que possa parecer de algum modo, pretensioso em sua finalidade. Isso por que, existe aqui uma proposta de oferecer ao leitor, em palavras relativamente simples, um instrumento que promova a “capacidade de pensar”.
  • 11. Renato Dias Martino 11 Pensar a vida, o mundo, os nossos vínculos com tudo que está no mundo interno e externo. A “dor” que temos grande dificuldade em assumir, e que, só através da consciência de “certas verdades”, pode ser transformada em palavras. E a tentativa de pensar a “dor psíquica” que sentimos, mas muitas vezes, sequer nos propomos a percebê-las. A publicação desse trabalho nos coloca diante do esforço, em direção da criação de algo que nos permita, desde já, através de uma linguagem compreensível, estimular um exercício mental, no intuito de, algo que se encontre na ordem da satisfação da necessidade de reflexão. Tarefa penosa e ousada O intuito ousado é a criação de um “utensílio auxiliador”, na tarefa do refletir. Em algumas perspectivas, isso pode tornar-se uma empreitada relativamente dura e penosa, principalmente, admitindo o valor que se pode dar à subjetividade, em determinados momentos de nossas vidas e, por nos encontrarmos em um mundo que parece cobrar exatamente o avesso disso.
  • 12. 12 Para Além da Clínica A “contemporaneidade” exige dos humanos um resultado concreto, palpável. Não precisamos “ir muito longe”, em nossas pesquisas, para percebermos que o valor dos humanos contemporâneos está naquilo que se pode contar, um por um. Podemos também, levantar várias hipóteses, entre elas, a de que vivemos em um momento onde as idealizações e utopias humanas, parecem em extinção. Sentimo-nos como se “tudo” já houvesse sido inventado, que não há nada mais, a se inventar. Mas, ainda assim, o imaginário continua sendo uma parte imprescindível no processo que conduz ao pensar. Sem sonhos, o ser humano, não realiza nada. O funcionamento mental, que podemos chamar de “materialista”, cria um “modo de pensar” que encontra utilidade, como uma espécie de defesa que é usada pela nossa mente de forma orientada para tentativas de viabilizar certos procedimentos repetitivos, que somos obrigados a prover no cotidiano de nossas vidas. Uma ferramenta, “necessária” para lidar com a rotina, com o fluxo cíclico do dia a dia, e com situações onde o que se cobra é a produção padronizada. Nesse “nível, tudo que produzimos deve estar dentro da “expectativa comum”, já que, seremos veementemente criticados se fugirmos desses padrões.
  • 13. Renato Dias Martino 13 Desse modo, desenvolvemos padrões tão rígidos que acabamos por nos distanciar da própria realização, que, em sua efetivação, nos exigiria essencialmente criatividade. Podemos dizer que, nos vemos tendo de ser máquinas, mesmo sendo seres sensíveis, pensantes e, se assim for, criativos. A partir desse ponto de vista, para uma máquina que deve produzir de maneira padronizada, é extremamente “prejudicial” pensar, pois, pensando, se cria. Dessa maneira, nós aprendemos a “ignorar” tudo aquilo que não podemos perceber por meio dos órgãos dos sentidos, em nome de sermos reconhecidos como “excelentes máquinas”. Contudo, ignorar não garante que não exista. Quero dizer com isso que, ainda assim, isso permanece e afeta profundamente o curso de nossas vidas. Como a parte submersa de um iceberg, imensamente maior que aquela que esta na superfície. Uma parte do todo, onde o casco do navio pode se espatifar, pois os olhos não podem ver. Inversamente, porém acontecendo ao mesmo tempo, ocorre algo curioso. Falo sobre o fato de que, assim como enquanto escrevia esse texto, o leitor também pode ter a sensação (enquanto lê), de que grande parte do que pode encontrar-se nessas linhas, já é sabido, ou seja, faz parte daquilo que chamamos de óbvio.
  • 14. 14 Para Além da Clínica Em um importante texto da psicanálise, “O Mal Estar na Civilização” (1929/1930), Sigmund Freud (Moravia, 1856 - Londres, 1939) escreve sobre sua visão, quanto aos “prós e os contras” nos “avanços” da civilização. Ele inicia o capítulo VI com um desabafo que, me parece seguir essa mesma direção, quando admite: “Em nenhum de meus trabalhos anteriores tive, tão forte quanto agora, a impressão de que o que estou descrevendo pertence ao conhecimento comum e de que estou desperdiçando papel e tinta, ao mesmo tempo em que usando o trabalho e o material do tipógrafo e do impressor para expor coisas que, na realidade, são evidentes por si mesmas.” Dissertar sobre “algo que está na cara”, entretanto, por algum motivo, não se pode enxergar facilmente, não é uma tarefa agradável. Falo da dificuldade em se valorizar alguma coisa que, acaba perdendo a importância (como já conhecido) nos afazeres repetitivos do cotidiano, mas, que na realidade é justamente o que nos conduz às escolhas dos caminhos em nossas vidas. Não obstante, ao tentar comunicar aquilo que fica no contrário do concreto, ou no lado oposto do visível,
  • 15. Renato Dias Martino 15 corremos o risco de nos perder em nossa imaginação, caindo assim, num modelo de pseudo / misticismo. Pode- ríamos cair em um “mundo de fantasia” que, assim como a padronização repetitiva da máquina, também tenderia a desdenhar a realidade, menosprezando de maneira inversa, à própria realização. No entanto, um modelo assim se mostra diferente do presente trabalho, na medida em que esse, apoiado na realidade, só pôde chegar até o leitor, por ser em si, uma realização. A prática de certa filosofia Para podermos atingir certa compreensão interna (insight) de ferramentas, para nos auxiliar em nossa proposta de cogitação, nos auxiliaremos de pensamentos que estão entre nós há muito tempo. São cogitações, as quais passaram pela vida de muitos pensadores conduzindo seus pontos de vista. E hoje, através das colaborações de Freud e toda uma legião de discípulos espalhados pelo mundo, chamamos esse “agrupamento de pensamentos” do qual nos utilizaremos aqui, de Psicanálise.
  • 16. 16 Para Além da Clínica É importante lembrar que o pensamento psica- nalítico vai muito além da prática clínica. Ele se oferece como instrumento para pensarmos no mundo e em nós mesmos. Antes e depois de tudo, é uma ferramenta de grande utilidade na experiência da quebra de narcisismos. Uma ferramenta que nos auxilia na tarefa do “conhecer-nos a nós mesmos”. Esse vértice de pensamento que hoje conduz à psicanálise já circulava pela nossa civilização, na mente de poetas, filósofos, místicos e outros grupos de pensadores, bem anteriores a Freud. Porém, esses mesmos pensadores talvez não levassem tão a sério esses pensamentos, como Freud o fez. Freud traz um fator importante na introdução do ponto de vista científico, quanto ao estudo da alma humana. Ele propõe, com a reunião de conceitos teóricos, uma terapêutica da mente. Propõe uma forma de tratamento especial para a transformação da ideia, para transformação do pensamento e, consequentemente, a transformação da qualidade dos vínculos humanos com o mundo, que está para além desse humano. Contudo, não nos furtaremos aqui de incluir ideias, outros modelos e citações de pensadores, que talvez não estejam relacionados nas citações da psicanálise e, ainda assim, servem de importante referencial na tarefa do pensar.
  • 17. Renato Dias Martino 17 Pensando o pensar Mas sobre qual experiência estamos aqui cogitando, quanto ao “pensar”? Existe algum sentido em afirmar que fora do domínio da experiência, não pode existir aprendizado? Temos nesses princípios, o ponto de partida para se entender o processo que compreende o desen- volvimento mental, ou seja, como ocorre a expansão do pensamento. Na tentativa de examinar atentamente o que chamamos de “pensar”, estaremos cogitando sobre a capacidade da qual os humanos se gabam perante os outros animais, mesmo, sendo muito pouco habilidosos, no uso deste recurso mental. Digo isso, apoiado no pressuposto de que esses humanos, que somos nós, ainda fazem a maior parte das suas escolhas, por motivos, dos quais não puderam ser submetidos a um pensamento atido e dedicado. Fazem isso por necessidades extremamente primárias, onde, na maioria dos casos, o pensamento não tem acesso. O humano escolhe, sem pensar, onde a urgência se pronuncia. Escolhe sem pensar, onde a necessidade de satisfação imediata não permite tolerar frustrações.
  • 18. 18 Para Além da Clínica Em um modelo muito primitivo de funcionamento mental, podemos encontrar o modo como os seres humanos contemporâneo fazem suas escolhas. Mesmo assim, tentaremos, aqui, fazer o possível para angariar o máximo de recursos nessa breve tarefa de pensar o “pensar”. A palavra pensar parte do Latim PENSAREA, que diz respeito a pesar, ou avaliar o peso. Aquilo que chamamos de “pensamento” faz parte do processo de construção do espaço interno mental. Esse espaço interno mental serve a várias tarefas, entre elas a de guardar os conteúdos como é o caso das emoções e também conter aspectos colhidos na realidade. Pois bem, mas que tipo de benefício poderia nos trazer o exercício e aprimoramento da habilidade de pensar? Para Freud (1856-1939), o “pensamento” tem função fundamental no adiamento da ação, resultado do impulso. Ele escreve essa ideia no texto que servira de inspiração para importantes pensadores da psicanálise atual. Esse texto contribuiu para que o “pensamento psicanalítico” pudesse evoluir na forma como hoje se realiza. As Formulações Sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental, publicado em 1911, foi uma
  • 19. Renato Dias Martino 19 obra que tornou “claro” alguns conceitos pelos quais, Freud lutou por anos, no desafio do esclarecimento de aspectos dos processos psíquicos. Nessa obra ele escreve que: “o pensar, foi dotado de várias características, entre elas a que torna possível ao aparelho mental tolerar uma tensão intensificada de estímulo, enquanto o processo de descarga era adiado.” O teste da realidade e os recursos foram criados pelo aparelho psíquico com intuito de, viabilizar o confronto das fantasias com as informações advindas da realidade. Assim, logo percebemos o benefício de expandir essa capacidade. Quero propor que pensar é também capacitar-se no desempenho da vida, no que diz respeito à realização de mundo. É a criação do “continente mental” que sustenta o processo do pensar, sem que se entregue antes à ação. É quando a percepção, feita através dos órgãos dos sentidos, indica a necessidade de ação, a capacidade de pensar pode, adiar essa ânsia. Isso, até que se perceba com mais acuidade a realidade. No momento acima descrito, o significado semântico da palavra nos orienta com grande ilustração e avaliamos pelo pensamento, o peso das ideias para decidir o que escolher.
  • 20. 20 Para Além da Clínica Essa é talvez a primeira das funções do pensamento, ou a mais básica delas. A partir da capacidade em adiar ações inicia-se, uma série de expansões na perspectiva dos processos mentais. A psicanálise nos mostrou com muita propriedade que só podemos aceitar no mundo real aquilo que já existe no mundo interno, ou seja, dentro de nós. Criamos espaço em nossas mentes e, só depois, conheceremos a realidade. A capacidade de reconhecimento do mundo interno é o encontro e o reconhecimento de fantasias, medos, desejos apaixonados, ódios e tudo mais que está em nosso mundo interior. São características do incerto, do informe. Nosso mundo interno nunca é “bem definido” e sempre é pobre de referencias da razão. Por conta disso é um terreno escuro, sombrio e cheio de ameaças. No entanto, só conhecendo nosso eu interior é que podemos distingui-lo do que está fora e que chamamos de realidade. O estado emocional do “eu” (dentro) tem menor chance de se abalar em situações e ambientes emocionalmente danosos (fora), isso se estiver se dedicando a um reconhecimento do si mesmo. O pensamento é, por assim dizer, a capacitação do “eu” (compreendendo o mundo interno) na ligação afetiva com o mundo (externo).
  • 21. Renato Dias Martino 21 O exercício do pensar só se efetiva na experiência que compreende a ação junto do outro, como já se tomou por entendido. O pensar é a capacidade que se desenvolve impreterivelmente através do vínculo com o outro. A partir da imaginação, das fantasias sobre a realidade, o encontro com a verdade do outro, promove o pensamento. Dependemos do outro para se pensar, mesmo que, seja o outro, internalizado através de uma experiência afetiva. Quando não se inclui o outro, o movimento mental não pode levar o nome de pensar, pois ainda conserva características imaginárias e se encontra como ilusão, que só será quebrada na introdução da verdade externa. Dessa forma, sou forçado a depositar meus descréditos em qualquer tentativa de batizar, como pensamento, experiências que não compreendam o outro, ou o encontro com a verdade do outro. Doar e aprender, receber e ensinar Podemos propor, mesmo que hipoteti- camente, que o ensinar não existe, pelo menos “a priori”. Isso, se partirmos de um pressuposto psicanalítico onde a capacidade de aprender talvez seja o que revela o objeto de ensino.
  • 22. 22 Para Além da Clínica Indo além, podemos dizer que é a partir desse ponto, que se origina o objetivo de ensinar. Só aprendemos (ou apreendemos do mundo) aquilo que sentimos como necessidade ou desejo. Freud, em 1915, descreve o inconsciente como sendo a base geral do psiquismo humano. O “pai da psicanálise” propõe um sistema de funcionamento em que, tudo o que chega à consciência do indivíduo passa antes pelo inconsciente. Lembrando que, quando citamos aqui inconsciente, o que se pretende é mencionar o lugar do eu onde não existe conhecimento. Nesta parte do “eu” não sabemos quem somos. As linguagens racionais acessíveis nesse nível são extremamente escassas. Não temos controle desta área do psiquismo. Não somos donos de nós mesmos, nessa parte do eu. Por isso, alguns sonhos (que trazem em seu conteúdo grande material inconsciente) são tão assustadores e sem nexo. Espantamo-nos com “pensamentos”, e até mesmo com comportamentos estranhos, e não conseguimos achar um sentido para o que pensamos ou fizemos. São todas manifestações do inconsciente, do onde se sente, mas não se sabe. Quando pudermos expandir o pensamento até essa detenção de realidade, poderemos dizer que tudo, que chegou ao saber, passou antes pelo sentir.
  • 23. Renato Dias Martino 23 Sentir e desejar são experiências extremamente individuais, a não ser na relação umbilical. O que a mãe sente ou deseja, implicará diretamente no futuro daquele que se encontra no seu interior. Chegamos então à conclusão de que, só buscamos conhecer aquilo que é ou um dia foi objeto de nosso desejo. A saber, desejo é aquilo que parte do nosso interior e se pronuncia em direção ao mundo externo. Podemos até fazer uma analogia com o modelo nutritório, onde o bebê aprende amar aquela que o nutre e, a partir do reconhecimento da necessidade, a criação de um ambiente rico em afeto permitirá, através da gratidão, que a “dependência” se transforme em “amor”. Para que exista aprendizado realmente, as ideias devem seguir um determinado caminho. Vínculo e aprendizado Assim, na medida em que nos propomos a apreender as coisas do mundo externo, criamos vínculos que nos permitem um melhor discernimento entre o que é real e o que criamos imaginativamente. Ou seja, dessa forma pode- mos descobrir os limites entre o eu e o outro.
  • 24. 24 Para Além da Clínica Quantas vezes nos pegamos querendo saber sobre o outro, porém, será que queremos saber realmente o que ele deseja ou, na verdade, o que nos interessa é confirmar se ele quer aquilo que esperávamos que quisesse? Estando de acordo até aqui, podemos dizer então que aprender é algo muito mais próximo do doar que do receber. Quando somos guiados por “certo vértice” de pensamento que compreenda o modelo continente / conteúdo, entendemos que aprender é doar espaço do eu para que o outro (em ideia) se instale. Da mesma forma, o ensinar se encontra bem mais próximo do receber do que do dar. Uma mente que não se apresenta continente não poderá receber conteúdo algum. Acolher o conteúdo, assim passa a coincidir com o receber a demanda do que realmente cabe ser ensinado. Diferente de “empurrar” a qualquer preço aquilo que se deseja que o outro aprenda, mesmo que isso não faça sentido algum a ele. Na realidade, aquele que se propõe a ensinar deve ter desenvolvido a humilde ideia de que a maior parte do que se espera ensinar nunca será aprendida. E, se isso acontecer, a pretensão da confirmação do resultado é algo contrário a real efetivação do vínculo aprender / ensinar.
  • 25. Renato Dias Martino 25 Ora, se assim estamos de acordo, como em nossas relações afetivas, proponho através destas linhas a tentativa de criação de um vínculo escritor / leitor num ambiente onde prevaleça a verdade e o amor. Na verdade, a união dos dois termos em amor, à verdade e a verdade que pode existir no amor. Mas, dessa forma, poderíamos levantar a questão da qual imagino surgir nas cogitações do leitor, sobre essa “dita verdade” e esse “tal de amor”, mencionados aqui. De que verdades estariam falando aqui, já que estamos frente a um conceito extremamente dependente de uma experiência individual? A intenção aqui é “propor a verdade” enquanto direção e onde poderíamos nos orientar. A verdade que nos faz eternos pesquisadores do mundo e da vida. A verdade que não sossega. A que nos acorda de manhã cobrando um tipo de resposta que, talvez, não servirá mais no depois de amanhã. A verdade que nos vira a cara a cada encontro. Aquela pela qual só podemos nos ver orientados, mas nunca possuidores. Outra boa pergunta talvez se referisse ao amor: Que amor, poderíamos estar tentando propor aqui, enquanto condição para o vínculo?
  • 26. 26 Para Além da Clínica E o apóstolo São Paulo, já nos orientara em sua direção no capítulo 13 da epístola aos Corintos, onde ele cita o amor como sendo maior que a fé e que a esperança. Proponho aqui um tipo de amor que atrai as diferenças. O amor que necessita da diferença se encantando com ela. Aquele que se desliga do eu e liga-se no outro. Aquele que enxerga o outro além do eu no outro. Alimento Espiritual Pensando melhor o conceito de “verdade” A psicanálise nos ensina a compreender o ser humano, abarcando (além do corpo) um aparelho psíquico, a mente ou, ainda, a alma. Da mesma forma que o corpo se alimenta de comida e dela extrai seus nutrientes, a alma se alimenta da verdade da realidade, e por ela, se mantém viva. Aquilo que chamamos de ego (ou popularmente autoestima) se desenvolve através do contato saudável com o real. De tal modo, um aspecto que pode indicar a qualidade da saúde mental é a forma como se está relacionando com a verdade. Longe da tentativa inútil de restringir o conceito, inclui-se aqui desde as mínimas questões cotidianas, até situações mais importantes da vida.
  • 27. Renato Dias Martino 27 E, de fato, a verdade é sempre uma porta que se abre rumo ao desconhecido. Antes de tudo e depois do mesmo, é o que nos conduz a maturidade emocional. É o que gera o desenvolvimento e nos responsabiliza pela vida. É importante lembrar que não se trata de algo que se encontra na ordem do sensorial, já que a verdade não se pode ter, mas deve esforçar-se em ser. A proposta aqui é: “propor uma visão sobre o grau de evolução da capacidade de perceber a verdade e relacioná-la com aspectos da própria vida.” Mais do que definir uma ou outra verdade, a tentativa é no sentido de desenvolvimento de um modelo de funcionamento mental guiado pela verdade. Devo lembrar que se compreendem aqui os conteúdos de verdades internas, ou seja, aquilo que se tem pra si, diferente, em sua maior parte, daquilo que compartilhamos com o outro, a verdade externa. Até por que, um turbilhão de emoções pode ser gerado no conflito entre verdade interna e externa, e esses conflitos promovem um desassossego, no funcionamento da mente. Portanto, no intuito de evitar ou mesmo adiar esse desequilíbrio, amiúde, a mente é tentada a se livrar da verdade.
  • 28. 28 Para Além da Clínica Hora negamos a verdade interna, hora negamos a verdade externa. Na maioria das vezes, cada novo movimento de reconhecimento de “verdade” vem acompanhado por sensações que são agentes de sentimentos de tristeza, susto, vergonha e inveja. Assim, essas sensações quase sempre geram alguma forma de hostilidade. Hostilidade tanto do eu para com o outro quanto do eu para com o si mesmo. Sendo assim, para nos defendermos desse grupo de sentimentos, colocamos a verdade fora de nós, como se valesse só para o outro. De alguma forma, negamos a verdade. E, temos aqui um grande problema na investigação da verdade. Isso por que uma verdade a mais é sempre uma ilusão a menos. Na pesquisa dos fatos com intuito de se conhecer a verdade, alguns elementos são imprescindíveis, assim como outros dificultam, obscurecendo o caminho. Tentaremos então cogitar sobre alguns deles. a) Tolerância Não seria exagero mencionar a tolerância como instrumento fundamental na pesquisa da verdade. A tolerância vem do latim tolerantia, do verbo tolerare, que significa suportar.
  • 29. Renato Dias Martino 29 É, a priori, uma atitude de respeito aos pontos de vista dos outros e de compreensão para com eventuais fraquezas. A capacidade de ser tolerante quanto às frustrações que se encontram na busca pela verdade, me parece à única forma de manter-se em sua direção ou conservar-se orientado por ela. Penso que todo aquele que não tolerou a dúvida ficou com meia / verdade. Dessa mesma forma, a experiência mostra que aquele que pode manter-se afastado da pressa, por maior parte do tempo, pode chegar a um melhor resultado em qualquer que seja a tarefa. O que não é diferente na busca pelo fato, aqui alvo de estudo. Esse é um fator que proporcionou à psicanálise status de seriedade, viva, intensa e produtiva em nossos tempos. Mesmo com o questionamento impiedoso da ciência que cobra resultados claros, a psicanálise se mantém paciente em suas pesquisas e cuidadosa em seus diagnósticos. “Assim, a capacidade para tolerar frustração capacita a psique a desenvolver pensamentos como um meio de tornar a frustração tolerada ainda mais tolerável.” Wilfred R. Bion (Índia, 1897- Inglaterra, 1979), 1961, pp.186/187
  • 30. 30 Para Além da Clínica Como poderemos estudar de forma mais cuida- dosa nos próximos capítulos, o desejo dissolve a tolerância. O desejo pretensioso de que a verdade que se busca (portanto ainda não conhecida), coincida com aquilo que já se conhece, pode conduzir tenden- ciosamente a pesquisa. A busca é de se confirmar o que já se sabia, o que nada tem a ver com uma pesquisa real que conduziria ao conhecimento. Gaston Bachelard (França, 1884-1962), filósofo e poeta francês que estudou as ciências e as filosofias, nos aponta essa direção de pensamento quando propõe que: “A verdade é filha da discussão e não da simpatia” (La Filosofia de In, 1973, p.111) Bachelard nos mostra que é só no confronto daquilo que já se conhece com o desconhecido, que podemos extrair a realidade. Deparamo-nos com a ameaça do uso do conteúdo da memória como referência. Isso impede a chegada desse desconhecido: “o novo”. De tal modo, o ponto de vista limita-se. É como se o sujeito dissesse: “não tenho em minha memória, não existe (não é verdade)”.
  • 31. Renato Dias Martino 31 O contexto da memória é de tal importância (juntamente com o desejo e a compreensão) que dedicaremos todo um capítulo deste trabalho, para tratarmos sobre o uso dos conteúdos da memória. Uma orientação deixada por Freud e aprimorada por Wilfred R. Bion. b) Afeto O afeto é condição imprescindível. Qualquer que seja a forma de buscar a verdade que não seja com, e pelo amor, logo indica um modelo tóxico. O amor e a verdade são duas formulações inseparáveis na plenitude: o amor pela verdade e a verdade pelo amor. Aquele que ama e não se preocupa com a verdade, está apaixonado. Isso se admitirmos um modelo onde o verdadeiro amor sugere muito mais durabilidade do que intensidade. De tal modo, o que será deste amor / paixão quando vier a verdade? Na relação verdade e amor, vejamos o inverso. Aquele que busca a verdade, por qualquer motivo que não seja por amor, pratica a arrogância.
  • 32. 32 Para Além da Clínica Este é um fator deturpador que, na pesquisa da verdade a transforma em instrumento de tortura, uma espécie de arma ou aparelho de ataque. Serve para ferir e matar. É, antes de tudo, uma ação de crueldade. O que será que queremos, quando dizemos frases do tipo: vou te dizer umas verdades! Comunicar realmente o que se descobriu, ou ferir aquele que ouve? A proposta aqui é uma ligação de amor com aquilo que se deseja conhecer, o que é diferente de estar ligado a certa “verdade”, tão profundamente e de mais próximo que limite o ponto de vista. Na prática percebemos como é difícil conhecer alguma coisa da qual “amamos” muito, ou odiamos demais. O conhecimento real depende da suspensão tanto do “amor cego” quanto da “crítica arrogante”. c) Fé Mas, e se levarmos em conta o fato de que o que é verdade pra um, pode não ser para o outro? Estamos aqui refletindo sobre a verdade que não se encontra saturada ou completa.
  • 33. Renato Dias Martino 33 A verdade aqui proposta compreende sempre a fé, pois é desconhecida a priori, como em Imanuel Kant (Prússia, 1724-1804), sem que deixemos de lado a conjectura de que sem a esperança, a tolerância altera-se em comodismo. A esperança, que é um desejo do possível fora do real se distingue completamente da certeza. Isso acontece, já que, quem tem fé não está certo daquilo que, ainda assim, o mantém orientado. Logo, quem busca insaciavelmente a certeza não conhece a fé. Contudo, a fé é um caminho que deve contar com a recusa quanto ao conteúdo da memória e ser desvinculado do desejo de perfeição. d) Distanciamento Quando podemos entender o fato de que, nunca se conhece a verdade por completo, o distan- ciamento se apresenta com a característica marcante da falta. Deste modo, percebemos como é importante o distanciamento, principalmente daquilo que pretendemos conhecer. Cogito sobre a verdade que só se percebe na falta, na ausência onde podemos perceber fatores que na presença não é possível.
  • 34. 34 Para Além da Clínica Lembro-me de alguém me dizendo: “eu só percebi o valor dele em minha vida quando o perdi”. Memória, desejo e compreensão Aqui, agora Posso não ser o que você vê, pois, não me lembro de nada. Porém, estou junto a você mesmo que a palavra não seja falada. Ouço-te a cada palavra, mas, não espero nada de você. Estou pronto para tudo ou nada, nas coisas que você não vê. Mesmo te ouvindo atento não te asseguro que entendi. Não julgo seu comportamento, pois, posso ver hoje o que ontem não vi. Não digo para ir embora. Fique se quiser! Mostro-te aqui e agora que estaremos juntos, se vier. De 1911 até 1914, Freud publica uma série de textos que, reunidos, compõem os “Artigos Sobre Técnica”. Apesar da evidente resistência em produzir
  • 35. Renato Dias Martino 35 textos abordando técnicas e manejo clínico, percebida em certa escassez nas publicações de Freud a esses propósitos, a reunião de textos, que compõem os “Artigos Sobre Técnica”, atravessa gerações e, ainda hoje, é uma ferramenta essencial para aquele que, tem a pretensão de se arriscar na difícil prática da clínica psicanalítica. No conteúdo dos artigos, Freud apresenta algumas das ideias que posteriormente Wilfred Ruprecht Bion, psicanalista indiano, naturalizado inglês, aprimoraria, oferecendo instrumentos valiosos na prática da psicanálise clínica. Falo em especial da necessidade de suspensão da memória, do desejo e da compreensão. Em “Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise”, publicado no Brasil em1912, em parte dos “Artigos Sobre Técnica”, Freud, percebendo a dificuldade gerada pelo apego à memória escreve que: “É nos exigido analisar seis, oito ou mesmo mais pacientes diariamente, o esforço de memória que isto implica provocará incredulidade, espanto ou até mesmo comiseração em observadores pouco informados”.
  • 36. 36 Para Além da Clínica De tal modo, Freud propõe uma técnica para esta tarefa e ainda, atribui a isso, certa facilidade propondo ao analista para: “simplesmente não dirigir o reparo para algo específico e em manter a mesma atenção uniformemente suspensa (como a denominei) em face de tudo o que se escuta”. Freud não cria simplesmente uma ferramenta defensiva, para se livrar do incômodo em se lembrar de tudo que o paciente nos conta, mas possivelmente percebera a inutilidade da memória enquanto instru- mento da técnica clínica, já que o conteúdo de ideias (inconscientes) do qual trabalha o psicanalista, não tem referência na temporalidade, ou seja, não sabe o que é hoje ou ontem, ou mesmo semana passada. É algo que se repete constantemente na vida do paciente, escravizando-o no tempo crista- lizado. É justamente o que não a deixa perceber e viver o novo. Uma classe de elementos psíquicos de ordem invariante. Quanto ao desejo dirigido ao paciente ou, o que o analista possa esperar conseguir quanto ao resultado da
  • 37. Renato Dias Martino 37 psicoterapia, Freud é categórico e alerta quanto a isso através de um exemplo interessante. Fala sobre aquele que se propõe a escrever um trabalho científico a respeito do paciente que está atendendo. Ao escrever sobre o caso abre-se a possibilidade de se desejar que este seja um evento bem sucedido, contudo: “... casos mais bem sucedidos são aqueles em que se avança, por assim dizer, sem qualquer intuito em vista, em que se permite ser tomado de surpresa por qualquer nova reviravolta neles, e sempre se o enfrenta com liberalidade, sem quaisquer pressuposições.” De qualquer forma, o desejo é classificado, em muitos exemplos, como um fluxo libidinal, uma carência que gera energia psíquica e, está sempre carregado de conteúdos impensados e impregnado de narcisismo. Algo prematuro que carregamos em nosso mundo interno. Essa ordem de fenômenos psíquicos é ameaçadora ao trabalho psicanalítico, que visa justamente conhecer o eu verdadeiro e não o eu que se constrói para satisfazer o outro e assim, ser desejado por ele (falso eu). Podemos abrir uma possibilidade muito próxima da experiência real da prática clínica, onde aquele que é
  • 38. 38 Para Além da Clínica analisado encontra um lugar tão seguro junto de seu analista, que tenta descobrir os desejos deste, para que possa sutilmente realizá-los. Tudo em nome de ser aprovado, desejado por ele. O fato se torna de grande importância quando o paciente descobre que o analista deseja muito que o paciente “melhore logo” ou tome certa decisão em sua vida. Os esforços então são na direção de construir um eu falso, para agradar aquele que traz paz com sua presença, criando com isso uma distância enorme entre a dupla. A “compreensão”, dessa forma, acaba por permear a “memória”, que é em si um representante do desejo no passado e, é útil, frente à difícil tarefa na expectativa do que virá a ser, o futuro. Não podemos nos vangloriar em afirmar que sabemos sobre o passado, já que temos apenas certa noção deste. Da mesma forma, é impossível saber sobre o futuro, já que ele a Deus pertence. Na realidade, nunca se compreende completamente o que o outro diz, pois aquilo que realmente importa em uma análise é justamente o que o paciente não é capaz de compreender e muito menos dizer, para ser compreendido. Teremos oportunidade de nos ater a esse assunto de forma mais prática, logo em seguida, nos próximos tópicos.
  • 39. Renato Dias Martino 39 Como um ícone da psicanálise contemporânea, Bion, reformula as colocações de Freud e propõe um analista sem desejo, sem memória e sem compreen- são. Dessa forma, o analista estaria livre das referências sensoriais, abrindo a possibilidade de conter as projeções feitas pelo paciente e, deste modo, entrar em contato com a realidade interna do mesmo. Bion propõe, desse modo, que cada sessão não deva ter passado, nem futuro. O que proponho aqui é a necessidade de utilizarmos, sempre que possível deste mesmo recurso clínico proposto por Freud e aperfeiçoado por Bion. Esse mesmo recurso quando utilizado no dia a dia, além da dupla psicoterapeuta-paciente, pode beneficiar nossa vida cotidiana, além da clínica. Passarei agora a cogitar sobre cada item sugerido como aparece em nossas vidas, independente da prática clínica. Memória e o espaço mental Como no salão de ensaio de uma bailarina, a mente deve dispor-se ampla e livre para um bom desempenho do pensar. A expansão dos movimentos da bailarina, assim como do
  • 40. 40 Para Além da Clínica pensamento depende da possibilidade de circulação no interior da sala (mente), devidamente arejada e sentida como ambiente tranquilamente saudável. Uma sala entulhada é igual a uma mente cheia de “pré / ocupações”, elas não são ou não poderão ser um ambiente seguro, ou saudável para uma tentativa expansiva. Olhando mais atentamente para movi- mentos da mente e os processos internos que ali ocorrem, percebemos recursos criados para a manutenção da interação entre o mundo interno e o mundo externo. A apreensão dos fatos que ocorrem em nossas vidas, e, sobretudo, no que está na ordem das novas relações interpessoais, é permeada amiúde pelos registros de situações vivenciadas no passado em relações primarias. O fato é que o passado guarda ocorrências, que por estar lá atrás, talvez, já não sirvam como provas cabais ou respostas plenas às questões que o hoje propõe. Contudo, é exatamente por meio da memória que nos garantimos, quando nos vemos inseguros de nós mesmos. O existir parece depender da capacidade de lembrarmos quem somos nós. A memória nos serve como importante referencial, no entanto, só até que se possa restabelecer quanto ao desempenho do projeto presente ou, em outras palavras, a demanda do “aqui e agora” em sua apreensão e experiência.
  • 41. Renato Dias Martino 41 Quando em meio a uma fervorosa discussão, dizemos: “eu me lembro muito bem!”, é por que, muito provavelmente, estamos extremamente inseguros do que defendemos como verdade hoje. Ao mesmo tempo e frequentemente, essa mesma memória pode nos ser traiçoeira. Isso quando ocupa a maior parte de nosso espaço mental. Podemos recorrer a ela para convencermos o outro de que temos certeza do que falamos e, assim, garantimos nossa propriedade sobre o assunto discutido. Desta forma, acabamos por convencer a nós mesmos da nossa própria certeza, apoiando-nos e acreditando no conteúdo da memória, que não passa de um registro do passado, portanto, difícil de perceber e ser compreendido de forma muito ampla. Logo, a capacidade de apreender, o fato presente, fica comprometida. Isso ocorre, pois dessa forma, trocamos a percepção do presente, que é em si a maior expressão do real, ou seja, o maior referencial do que podemos extrair da realidade, pelo registro cristalizado daquilo que já passou. O leitor pode estar questionando de que forma este mecanismo se manifesta e, muitas vezes, se transforma em uma forma de funcionamento mental.
  • 42. 42 Para Além da Clínica Frente a esse questionamento, uma série de hipóteses se abre à reflexão. O sujeito, preso em sua memória, cria para si um modo especial de vincular as pessoas e as coisas. Um modelo baseado em estereótipos, ou seja, em ideias antecipadas, condena-o a viver cada nova experiência como uma repetição de algo que ficou no passado. É como se tomasse a mesma estrada, esperando chegar a lugares diferentes. Em 1912, Freud publica “A Dinâmica da Transferência”, em que estuda o fenômeno da transferência, que ocorre, normalmente, em todas as relações humanas e que tem uma atenção particular no processo analítico: “a necessidade que alguém tem de amar não é inteiramente satisfeita pela realidade. Ela está fadada a aproximar-se de cada nova pessoa que encontre com ideias libidinais antecipadas”. Freud escreve sobre a memória do amor perdido, incessantemente procurado nas novas relações. Abre-se um confronto entre o reconhecimento do novo e a memória cristalizada no mundo interno. Nesse complexo processo, é mobilizada, no interior do sujeito, a criação de recursos defensivos frente o desconhecido, potencialmente ameaçador.
  • 43. Renato Dias Martino 43 Sob efeito do medo de aprender o novo (incerto, desconhecido), apega-se naquilo do qual já se sabe e que se imagina ter propriedade. Portanto, uma nova verdade implica diretamente em destruir a antiga ideia. No entanto, esse processo de transformação desperta certo sentimento de vazio, que se encontra entre uma verdade e outra. Vazio, sentido como angústia ou certo sentimento que, muitas vezes, sequer conseguimos nomear, que ativa no aparelho mental a necessidade de se livrar da emoção desagradável gerada. Assim, quanto maior a capacidade de tolerância deste vazio, maior a possibilidade de transformação da verdade. É a capacidade de vivência do luto referente a aquilo que foi perdido, sem que isso implique na perda do valor do eu. Mas o que usamos como defesa? Partes do eu, que se encontram secas e mortas, sem sensibilidade, são “aquilo” que colocamos como escudo; já foram partes vivas do eu, mas, hoje, são colocadas no “front da batalha”. Como na cebola, que utiliza suas cascas antigas (memórias) como proteção para as partes mais novas, recém-nascidas. Assim, a “memória”, que é diferente da “recordação”, aqui é rica em afeto e, portanto, parte
  • 44. 44 Para Além da Clínica da personalidade consciente disposta ao pensamento que pode ser usado como defesa. Justamente o que veremos nesse anexo que segue ainda sobre a memória. Pequeno ensaio sobre conteúdos e capacidades Já tivemos, em outro momento, oportunidade de discutir sobre a importância da memória dentro dos processos mentais. Nessa ocasião, foi possível perceber como os conteúdos da memória influenciam na capacidade da mente em funcionar de maneira saudável. E entendemos que uma mente que funciona predominantemente apoiada no conteúdo da memória, dificilmente pode ter uma visão clara da realidade. O funcionamento mental, fundamentado essen- cialmente na memória, tem grande dificuldade no reconhecimento do ambiente externo (onde se encontra o outro) e consequentemente, acaba ocorrendo num empobrecimento dos referenciais quanto ao mundo interno (emoções e elementos psíquicos).
  • 45. Renato Dias Martino 45 Com esse texto gostaria de expandir a ideia da memória, suas funções e também, trazer o conceito de recordação em suas ocorrências no funcionamento mental. A tentativa nesse texto presente é o de percebermos a diferença entre estes dois termos: a memória e o recordar que encontram muitas vezes, sentido idêntico. Apesar disso, certa distinção parece útil, na medida em que o funcionamento da mente está fortemente vinculado aos conteúdos da memória, de forma e de maneira diversa, eles se relacionam com a capacidade de recordar. A memória Qualquer que seja a maneira cuidadosa de análise ou pensamento sobre qualquer que seja o conceito importante, deve perpassar pela origem semântica do termo, ou seja, a origem do vocábulo ou ainda, a compreensão da demanda pela qual foi criado. A palavra memória é de origem grega e está relacionado à deusa Mnemosine, que junto de Zeus teve
  • 46. 46 Para Além da Clínica nove filhas: as chamadas Musas. Mnemosine á a deusa da história e da arte, é a protetora contra a ameaça do esquecimento. Pelo vértice mitológico já é possível perceber onde a memória se faz útil. Ela vem como defesa contra a iminência de se esquecer ou de ser esquecido. Quero propor que somos forçados a nos lembrar por medo de esquecer. Poderíamos dizer que se “temos” algo na memória sempre tememos perdê-lo. É característica do “ter” o medo de perder. Então se reza para ser protegido pela deusa Mnemosine. Sob esse ponto de vista, revela-se certa fragilidade no dado armazenado na memória. Aquilo, que se tem na memória é vulnerável ao ponto de estar sujeito aos caprichos dos habitantes do Olimpo. John Lock (1632-1704), filósofo empirista inglês, propõe em seus “Ensaios Sobre o Entendimento Humano” (1690), que a memória seria como um armazém de ideias. Pela perspectiva de Lock, “armazenamos os dados sensoriais num departamento mental chamado memória”. Em nossas experiências, vamos recolhendo sensações no contato com o mundo externo, e isso vai ficando registrado como dados de memória.
  • 47. Renato Dias Martino 47 No entanto, os conteúdos da memória devem ser formatados de acordo com certos critérios: por normas que permitam certa organização de algo que se buscará acessar em momento oportuno. Essa organização deve existir a favor da utilização desse dado armazenado. Quando necessário for, à busca por esse elemento da memória, deve ser viável e feita de maneira prática, certa padronização de ideias em nome de facilitar o acesso e resgate dos dados da realidade armaze- nada. Logo, dados da memória não podem ser questionados, ao contrário, devem ser saturados, acabados e devidamente padronizados. Ainda na perspectiva de Lock, nesse “armazém de ideias”, emoções não são bem vindas. “Emoções sempre colocam a organização em risco. Emoções ameaçam padrões definidos. Assim, conteúdos da memória, não devem guardar características de transformação”. (Bion, 1965) Todos os conteúdos devem estar “cristalizados”, para que possa de certa forma se manter em compartimentos da memória. Como invariantes, devem se encontrar cristalizados em forma de certezas ou “verdades”, classificadas e ordenadas. Isso define o que poderíamos chamar de “boa memória”.
  • 48. 48 Para Além da Clínica Wilfred Bion (1897-1979), importante psicanalista indiano, naturalizado inglês, já havia nos alertado para o ponto de vista, que propõe em sua obra publicada no Brasil em 1991, com o nome de “As Transformações, a mudança do aprender para crescê-lo”, sobre os conteúdos invariantes em, contra ponto, com as transformações dentro daquilo que é psíquico. Ideias que partem das propostas filosóficas feitas por Immanuel Kant (1724-1804) em suas críticas as razões, pura e prática, que Bion expande para o âmbito psicológico. As transformações e os invariantes se articulam no desenvolvimento mental. Bion usa do modelo artístico e propõe que quando um pintor vislumbra uma paisagem e transforma essa paisagem num quadro, alguns elementos permanecem inalterados. Invariantes são aspectos que se mantêm inalterados nesse processo de transformação. O questionamento (proposta para a transfor- mação) quando ocorre na memória (que conta com sua inalterância por ser invariante) é percebido como falha. A falha na memória é justamente um questiona- mento quanto ao valor ou ordem, daquilo que se deseja lembrar. Logo, a emoção interfere diretamente no resgate do dado na memória.
  • 49. Renato Dias Martino 49 Lembro-me de um paciente que, inundado de culpa, amiúde tentava buscar na memória situações vividas com seu pai, já falecido. Tentativas que pudessem justificar a imagem idealizada do pai que tentava manter. Isso revela certa característica importante dos conteúdos da memória. Fazem parte de uma classe especial de impressão sensorial do real, que na medida em que se distancia da próxima confirmação na realidade, tende a se desintegrar. A memória exige certa frequência na constatação da existência no nível do real sensório, ou seja, na constatação pelos órgãos do sentido. A impossibilidade de certa frequência nessa ordem de constatação, as emoções (elemento básico da saúde mental) vão gradualmente dificultando a definição dos dados armazenados na memória. Poderíamos propor que, a frequência na confir- mação do dado é necessária para que não se “perca na memória”. O recordar Já o conceito do recordar, pode ser visto como uma construção que reúne qualidades mais nobres do que poderíamos encontrar na memória.
  • 50. 50 Para Além da Clínica Talvez, parta do mesmo princípio, já que a conotação de trazer o fato passado para o presente é coincidente em ambos os termos. Apesar disso, a recordação guarda certas características que estão ausentes no conceito de memória. Recordar é uma unidade verbal que agrupa três vocábulos e que logo nesse encontro verbal já revelam certa capacidade sublime do funcionamento mental. Na palavra “re-cor-dar”, encontramos o prefixo “re” que denota a repetição, ou algo que se reproduz, “cor” refere-se à palavra coração, derivada do grego e também do latim cordis. Ambas têm origem na palavra kurd do sânscrito, que significa saltar e, finalmente, “dar”, que nos sugere doação. A partir dessa definição semântica, podemos perceber que o termo recordar vem repleto de afeto, quando nos diz sobre certa obra de dar novamente ao coração. Logo, o recordar é uma espécie da memória afetiva. É, talvez, amar aquilo do qual se lembra, e estar vinculado afetivamente com o fato passado. A recordação não é um simples armazenamento nos compartimentos da memória, mas a capacidade de reviver o fato passado, trazendo-o para o presente e até o imortalizando.
  • 51. Renato Dias Martino 51 Nessa ordem, a capacidade de recordar deve contar com a formação de símbolos e se manter sempre conforme a disposição para a simbolização. É importante lembrarmos que, ser capaz de simbolizar coincide com ser capaz de tolerar a falta (a palavra falta, aqui é sinônima de ausência). Recordar carece admitir e, ser capaz de viver a perda ou a ausência. Isso implica na possibilidade de acreditar na “coisa”, mesmo sem podermos confirmar sua existência pelos órgãos dos sentidos. Através desta experiência afetiva com a realidade, pode ser possível desapegar-se do real, do concreto ou material. Assim, podemos arriscar uma frase que, se não for utilizada de maneira cautelosa, pode se tornar banal: “só o amor liberta”. Mas liberta do quê? Liberta da urgência, da recorrência compulsiva, da confirmação no real sensório, e do sentimento onde “se não se pode ver, não existe”. No recordar é permitido intuir, e a intuição está desvinculada do ver, do tocar, do cheirar... Na medida em que foi possível, através da dedicação a analise, que o paciente referido à cima, diminuísse a culpa quanto a seu pai e assim não
  • 52. 52 Para Além da Clínica necessitasse com tanta frequência solicitá-lo através da busca em sua memória, pode-se fazer “as pazes” com a figura interna do pai. Em certo estagio de sua analise, me contou que numa manhã acordara com uma sensação muito boa, através da recordação de uma simples fala, mesmo que rara, mas afetuosa de seu pai. Antoine-Jean-Baptiste-Marie-Roger Foscolombe de Saint-Exupéry filho do conde e condessa de Foscolombe (29 de junho de 1900, Lyon - 31 de julho de 1944), foi escritor, ilustrador e piloto na Segunda Guerra Mundial. Saint-Exupéry nos presenteou com a obra “O Pequeno Príncipe”, publicada originalmente em 1943. Esse livro é a terceira obra literária mais traduzida no mundo, publicado em mais de 160 línguas ou dialetos, sendo a primeira a “Bíblia” e a segunda o livro “O peregrino”. No livro “O Pequeno Príncipe”, a raposa se despede do principezinho dizendo a ele: “Eis o meu segredo: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos. Os homens esqueceram essa verdade, mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.” (Saint-Exupéry - 1943, p.74)
  • 53. Renato Dias Martino 53 A recordação é sinal de que certa experiência emocional foi bem sucedida, enquanto a memória não passa de dados registrados e armazenados sobre uma realidade que ficou no passado e que pouco se confirma no hoje. Não seria um absurdo propormos então que, a recordação é estar ligado ao passado pelo amor (sinal de gratidão), enquanto a memória é mantida pelo medo de errar ou a culpa por ter errado (gerador de inveja). A habilidade com a memória pode fazer do sujeito uma pessoa muito inteligente, mas a sabedoria só ocorre naquele que cultiva boas recordações. O real e a idealização (do real) O conceito de desejo no Dicionário Aurélio (2002) está definido como ato ou efeito de desejar; vontade de possuir ou de gozar; anseio, aspiração, cobiça ambição; vontade de comer ou beber; apetite sexual. Quando nos propomos a cogitar sobre esse fato, falamos da inconsequência de Eros (deus do amor), filho de Afrodite (deusa da beleza). O mito de Eros, na primeira fase de sua vida, é mostrado como uma criança pequena, mesmo com o passar dos anos.
  • 54. 54 Para Além da Clínica Dentro de sua etimologia, a palavra desejo tem sua origem do latim desidiu, que tem seu inverso em considiu. A palavra sidiu ou ainda siderare quer dizer astro. E enquanto con traz a referência de vínculo, des traz a ideia de desvinculação. Logo, estamos falando de “estar” ou “não estar” ligado aos astros. Ou, ainda, consultar os astros (assim como os gregos faziam por meio do oráculo) ou tomar certo caminho, desconsiderando o que eles têm a nos dizer. Dessa forma, podemos dizer que fica claro, ao desejarmos algo, que nos tornamos responsáveis por isso e, possivelmente, abandonamos a opinião dos astros quanto a isso. Ora, se a proposta é de falarmos sobre o desejo, então estaremos cogitando sobre certa tensão que indica um fim. Quem deseja, o faz em relação a algo que, por sua vez, trará o fim do desejo. Esse fim está intimamente ligado a um pressuposto de carência. Quero dizer que o desejar é resultado do sentimento da falta de algo. Sendo assim, o desejo torna-se uma característica clara do ser humano mortal, que se encontra no polo oposto dos deuses. Para Benedito Espinoza (1632-1677), um dos grandes pensadores do século XVII, dentro da chamada Filosofia Moderna, a imperfeição repousa na perspectiva do humano e o define como tal.
  • 55. Renato Dias Martino 55 O desejo é uma classe de sentimento ou de certo movimento mental que, muitas vezes, mesmo irracional, em sua forma inconsciente, emerge tomando a forma de nossas escolhas. A ideia é que o desejo é um fluxo muito forte de libido (energia psíquica) e carrega em si muito dos conteúdos impensados e impregnados de um narcisismo prematuro. Assim, um pensamento que tenha nascido dessa forma, prematuro, já agia no funcionamento da mente, mesmo sem ainda poder ser chamado de pensamento. Esse fato revela-se importante na medida em que muito perigosa é a ação ausente da reflexão: o agir sem pensar. A psicanálise nos mostra, com muita clareza, que o desejo é definido pela sensação de perda de algo que se foi. E se concordamos com essa afirmação, podemos descrever que o objeto de desejo se encontra no passado. Isso corresponde a dizermos que quem deseja, deseja, pelo menos em certa medida, a repetição de algo que perdeu no passado. E esse sentimento pode tomar maior proporção se nos lembrarmos que, a perda sempre inclui certa culpa de não ter cuidado daquilo que se perdeu.
  • 56. 56 Para Além da Clínica Assim, podemos afirmar que o desejo guarda sempre uma cota de passado, e isso é representado, nas experiências psíquicas, pela memória. Com esta forma de pensar, abre-se então uma condição, que nos permite afirmar que o desejo se encontra impregnado, das forças do mito de Tânatos (o deus grego da morte), dentro de sua perspectiva de pulsão de morte. Ele busca sempre o retorno de algo perdido, por mais que se encontre regido pelas graças do mito de Eros (o deus grego do amor) no conceito Freudiano de pulsão de vida, em seus impulsos na direção do mundo externo. Percebemos, com esse modelo, que memória e desejo estão muito próximos e que a forma como se pode ter certa concepção de memória coincide diretamente no que se tem concebido sobre o desejo. Em sua célebre obra “Interpretação dos Sonhos”, de 1900, Sigmund Freud (1856-1939) propõe a ideia de que a memória é o desejo no passado, e, se concor- darmos quanto a isso, poderíamos formular que, se a memória é desejo do passado, então o desejo é, também, uma espécie de memória do futuro. De qualquer forma, o desejo então é algo que existe para ser satisfeito. Contudo, ainda assim, só existe enquanto se está frustrado. Entretanto, deixemos
  • 57. Renato Dias Martino 57 temporariamente a situação da satisfação de lado, com a proposta de retornar mais tarde, e assim, cuidaremos dessa hipótese com mais atenção e dedicaremos então os olhares para a situação da frustração. Pelo menos a priori, abrem-se dois caminhos: o de enfrentar a tarefa do reconhecimento da realidade ou o que sustenta a fantasia até onde ela possa ser sustentada. “Eu fiz isso”, diz minha memória. “Eu não posso ter feito isso”, diz meu orgulho, e permanece inflexível. “Por fim a memória cede.” Friedrich Nietzsche (1844-1900) Além do Bem e do Mal (1886) Essa questão se torna de grande importância se estivermos falando em aspectos condizentes com a luta diária, onde exista um trabalho de capacitação emocional, no sentido de aceitar, respeitar, ser sincero e assim, tornar-se capaz de amar o real ou ligar-se afetivamente ao outro. Falo aqui de vínculo. O objeto de desejo nunca é real, isso por que nunca desejamos o objeto real, mas aquilo que esperávamos que fosse, o ideal. Na realidade tendemos a desvalorizar o objeto de desejo, assim que se torna real. Isso por que se tornar real limita as qualidades e possibilidades do objeto, o que não ocorre com o ideal.
  • 58. 58 Para Além da Clínica Às vezes, levamos isso a tal consequência, que ela nos conduz a desistir de certo objeto, por não atender nossas expectativas. É como se disséssemos: “se não é como eu desejava não importa pra mim”. Ou seja, a realidade não interessa o que interessa é o que se imaginava ser essa realidade. Assim que o real se revela é logo descartado. Ou, ainda, por outro lado, num ato de violência para com a realidade, podemos forçar o objeto a se tornar aquilo que gostaríamos que fosse. O que conduz essa linha de pensamento é o fato de que na maioria do tempo, somos impulsionados por paixões, ou seja, idealizamos (fantasia) algo e consequentemente passamos a odiar o seu extremo oposto. Esta é uma forma arriscada de se conduzir a vida, já que, de tal modo, não se pode conhecer coisa nenhuma. Deixamos de nos aproximar de certas “coisas” por enxergá-las muito maiores que nós e, a partir do mesmo modelo de funcionamento, evitamos outras por nos julgar muito superiores a elas. Na perspectiva de Immanuel Kant (1724-1804), conduzir escolhas essencialmente pelo desejo é um modo doentio de viver.
  • 59. Renato Dias Martino 59 Então dispensar o desejo seria a condição sine qua non da prática, daquilo que ele chamou de moral e que pressupõe certa indiferença em relação à satisfação e ao prazer. Na proposta edípica de Freud é justamente a renúncia do desejo do filho pela mãe que o liberta para pensar em si. Na capacidade de viver a posição do terceiro excluído é que se iniciam as realizações no mundo. Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981), psicana- lista francês, propõe o Nome-do-Pai como símbolo do corte no desejo pela mãe. O que adéqua o vínculo entre filho e mãe, libertando-o do pesadelo incestuoso. Na apreciação psicanalítica do indiano naturalizado inglês, Wilfred R. Bion (1897-1979), a questão se encon- tra na perspectiva daquilo que poderia proporcionar definir e sustentar as qualidades dos vínculos que se pode ter com a realidade. Bion propõe a cesura do desejo, priorizando o que chamou de “O” da experiência, ou seja, o reencontro com a realidade depois da simbolização. O símbolo permite que se tolere o vazio, e isso coincide com a privação da satisfação imediata do desejo, onde está a chance para que se comece a pensar.
  • 60. 60 Para Além da Clínica A presença excessiva de certo desejo por algo, impede que se possa conhecê-lo na realidade ou ainda, paralisa qualquer que seja o esforço na direção de entendê-lo em sua forma integra. A consequência inevitável desse funcionamento baseado na paixão está justamente na cristalização ou enrijecimento daquilo que limita o que é do eu (como o desejo), daquilo que é do mundo, do não-eu, do outro. Em última instância, da realidade (que dificil- mente coincide com o desejo), congela e compromete severamente aquilo que nos leva a experimentar possibilidades, condição indispensável à criatividade. As experiências são exercícios de fundamental importância, na medida em que nos capacitam de referências e nos permitem distinguir, não só o que poderia ser o mundo externo, mas, consequentemente, o que podemos realmente ser, ou melhor, o que pode ser o eu real. Falo da inexorável luta entre o que é real e o que se deseja que seja, ou até, o que se teme que possa ser (já que o medo é filho do desejo). A questão está na ordem do que se encontra entre o real e o imaginário. Um processo de rigidez, nesse nível, é inevitavelmente gerador do que poderíamos denominar de pseudo-sabedoria ou mesmo sabedoria psicótica.
  • 61. Renato Dias Martino 61 Uma classe de informações sobre o mundo que só se pode manter através da imposição. Um saber que deve contar com a defesa de certo escudo chamando arrogância. Enquanto essa pseudo-sabedoria se localiza em certo nível superficial, encontramos um sujeito turrão e teimoso, consequentemente ignorante (ignorante de sua própria ignorância). Contudo, é alguém que consegue, a duras penas, algumas realizações no mundo, já que (mesmo chateado com isso) mantém certo vínculo com a realidade. No entanto, se esse modelo de “saberes” passa a ser atribuído a elementos de maior profundidade da personalidade, criam-se características psicóticas na forma de se conduzir a vida. O outro nunca é o outro, mas sempre o que se deseja que fosse. Voltemos agora os olhares para a satisfação completa do desejo. Este vértice conduz à morte da busca e nos remete ao estado de inércia. Na satisfação total não existe reflexão, e não é difícil chegar a essa conclusão quando nos lembramos de um bebê que logo adormece, assim que se satisfaz com o seio da mãe. Totalmente satisfeitos, deixamos de pensar, deixamos de existir. Só seguimos em frente se tivermos a consciência do que perdemos.
  • 62. 62 Para Além da Clínica O desejo de ser outro O ser humano é um ser “desejante”, e assim como Sigmund Freud (1856-1939) coloca em 1914, em seu trabalho, “Eros” é o que o impulsiona em direção aos vínculos que deve fazer com o mundo externo ou com aquilo que existe para além do eu. Contudo, Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981), da escola psicanalítica francesa, propõe que o primeiro e maior desejo do ser humano é o de ser desejado. Ilustração do autor Renato Dias Martino
  • 63. Renato Dias Martino 63 Isso é de fácil compreensão, partindo-se de um pressuposto onde o bebê passa a primeira fase (a mais delicada e importante) do desenvolvimento da vida emocional em inteira dependência do outro (mãe). Nessa mesma direção, o psicanalista e pediatra inglês Donald Woods Winnicott (1896-1971) coloca em 1941, numa reunião científica na “British Psychoanalytical Association, –There’s no such a thing like a baby”, que pode ser traduzido como “Isso que chamam de bebê não existe”, e completa em seu texto “A deformação do ego, em termos de um self verdadeiro ou falso” (1960), Winnicott a ideia de que a personalidade tem duas partes constitutivas. O eu verdadeiro, que é a parte mais primitiva, onde estão guardadas as sementes do eu, como na polpa mais profunda de uma maçã. São conteúdos referentes à essência do eu, onde estão as reais capacidades emocionais da personalidade. Contudo, uma parte desse conteúdo da personalidade que não é muito atrativa ao outro, guarda características primitivas e não evoluídas. Ainda assim, são partes do eu, mesmo que amiúde indesejáveis.
  • 64. 64 Para Além da Clínica O verdadeiro eu não tem recursos para retribuir o amor, logo, é preso ao amor do outro. Frágil e dependente da proteção do outro, é um “eu / objeto” que anseia por ser escolhido. Essa parte do aparelho emocional disputa lugar com o eu falso, que por sua vez tem a função de defender o eu verdadeiro. Como a casca de uma árvore, que tem o objetivo de proteger o miolo, o eu verdadeiro. De acordo com a hipótese de que no princípio da vida a criança depende exclusivamente da mãe, e que isso que chamamos de bebê não pode existir, se não pelo outro (mãe), então o falso eu tem o objetivo de se fazer aceito e desejado por ele. Em nome de sua sobrevivência o falso eu fará de tudo para se adequar àquela que cuida dele, isso naquilo que ela deseja, e assim necessariamente em suas falhas também. Um vive para o outro, mas a situação patológica pode se instalar quando o falso eu suprime ou sufoca o verdadeiro eu. Isso coincide de alguma forma, com a teoria da “Segunda Tópica” de Freud, na medida em que diz respeito à experiência da criança em poder contar com a possibilidade de satisfazer o id de forma satisfatória, sem graves conflitos com a realidade, e abrindo assim certo espaço de desenvolvimento do ego.
  • 65. Renato Dias Martino 65 Quando não pode ser realizado, o desenvolvimento do ego passa a ser passivo de censura e se agrega ao precipitado chamado de superego ou ideal de eu. Assim como Winnicott coloca, o “bebê não existe” e dessa forma tenta mostrar que o bebê nunca existe por si só, sempre e essencialmente como parte de uma relação. Winnicott demonstra também que quem vê um bebê, nunca vê apenas um bebê, vê também, inevitavelmente, alguém mais, um adulto ou mesmo uma criança maior com os olhos grudados no bebê. Direcionando o vértice com referência ao gênero, Lacan coloca a ideia de que a mulher não existe. O primeiro e maior desejo do humano é o de ser desejado, e ele também é quebrando quando esse desejo narcísico se olha para o verdadeiro eu. Quebramos assim, o espelho do qual dependia nosso desenvolvimento. Este é um processo inexorável de construção e destruição de espelhos no mundo, assim como a inteiração dos conceitos a priori e a posteriori da Crítica da Razão Pura e Crítica da Razão Prática de Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão muito aludido na obra freudiana.
  • 66. 66 Para Além da Clínica Segundo Freud em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), numa fase do desen- volvimento sexual (fase fálica), a criança experimenta a fantasia de que todo ser humano tem pênis. Instruem-se a explicar a falta nos que não tem, através de fantasias de que ainda não se desenvolveu ou então perderam por alguma causa. O reconhecimento do valor do órgão genital feminino só é feito bem mais tarde na vida da criança. Esse é um dos motivos da desistência do amor da mãe pela menina e o interesse no pai, consequentemente, o sexo oposto. Freud denomina essas experiências como representadas no complexo de Édipo. A experiência do reconhecimento fálico é muito confusa e dolorida para a criança. A capacidade racional nos auxilia reprimir, grande parte dessas experiências doloridas que foram incompreendidas. Aprendemos a esquecer até certo ponto o que, hoje, parece quase inviável admitir conscientemente. Contudo, como o destino do impulso reprimido, também a descoberta da falta do falo, persiste inconscientemente. Isso se converte frequentemente
  • 67. Renato Dias Martino 67 em projeções naquilo que temos ou naquilo que não podemos ter. Teremos oportunidade de abordar o assunto de forma mais atida em um capítulo dedicado à inveja. Compreensão do mundo o uso do “eu sei” Por que dizer “eu sei”? Será porque sabemos realmente? “Só sei que nada sei”. Sócrates (496-470 a.C. / 399 a.C.) tornou essa máxima como seu lema e o imortalizou. Mas, se não conhecemos a nós mesmos, o que sabemos então? Estudamos anos a fio certa coisa e um dia nos damos conta que sabemos muito pouco sobre ela. A satisfação que obtemos com a sensação do “saber” é realmente gratificante, mas penso ser útil encará-la como um domingo de descanso em uma semana de labuta, onde o ponto de interrogação é o norte do desenvolvimento e da expansão. Quando não temos dúvidas, nos acomodamos.
  • 68. 68 Para Além da Clínica As certezas são as maiores ilusões criadas pela mente humana. Contentamo-nos com a certeza quando nos vemos incapazes de continuar a questionar e não porque estamos realmente certos. Maurice Blanchot (1907-2003) diz: “La réponse est le malheur de la question” - “A resposta é a desgraça da pergunta”. (2002) A única certeza é a morte. Logo, buscar incessantemente certezas e garantias é o equivalente a buscarmos a morte: a morte da pesquisa, a morte do amor (sentimento rico em incertezas), a morte da busca da vida. “Navigare necesse, vivere non est necesse” no latim, “navegar é preciso, viver não é preciso”, frase de Pompeu, general romano (106-48 a.C.), foi dita aos marinheiros, amedrontados, que recusavam viajar durante a guerra, cf. Plutarco, in Vida de Pompeu. O poeta português Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 - Lisboa, 30 de Novembro de 1935), ressuscita a ideia com a condição de que: “viver não é necessário, o que é necessário é criar”.
  • 69. Renato Dias Martino 69 A criação parte da falta de algo. Criamos aquilo que ainda não existe e, se não existe, logo não sabemos. Quando dizemos: “eu sei”, encerramos a busca. Já sabemos, logo; não há nada a aprender. Muitas vezes, pronunciamos “eu sei” antes mesmo do outro concluir o que quer dizer. É uma maneira de não dar muita atenção ou de ignorar alguém. Quando respondemos automaticamente: “eu sei”, o que realmente dizemos é “não estou ouvindo o que você diz”. Assim, tiramos o valor do discurso do outro. É como se parássemos de ouvi-lo por achar que já sabemos tudo o que há para saber. Sempre que ameaçados, nos vemos impelidos a nos defender. Pode-se dizer, “eu sei” quando encontrar-se tomado por ansiedade, enquanto se espera a vez de falar. Também quando, simplesmente, não estamos dispostos ou interessados em ouvir. Seja qual for o motivo, essa reação impede que possamos aprender coisas que podem ser importantes. Em um ato de descrédito em si mesmo e na própria capacidade de aprender, criamos um abismo entre o “eu” e o outro.
  • 70. 70 Para Além da Clínica O “eu sei” pode servir como uma defesa para aquele que se sente ignorante e envergonhado, por realmente não saber. Defendendo-se assim, acaba por não aprender. O bom e o prazeroso É incansável a pesquisa na busca por modelos que possam representar as coisas da alma. Assim, encontrar lugar para essa dimensão do existir em nossas vidas seja em nosso mundo interno, enquanto protótipo de algo que clama por realizar-se, ou seja, no mundo externo nos oferecendo objetos dos quais nos levam à introjeção da própria realidade, é algo desejável. Talvez, essa incansável pesquisa na busca por modelos da alma seja um convite para arranjarmos tempo para trocar informações sobre os conteúdos de nosso aparelho psíquico. Criarmos recursos para relacionar-nos com o próprio mundo real, nos responsabilizando pelo próprio mundo. Penso que não podemos discutir, com propriedade, qualquer outro assunto, se antes não pudermos falar na responsabilização do ser humano por si mesmo e pelo mundo.
  • 71. Renato Dias Martino 71 Discutirmos assuntos como a preservação da natureza, a ética na política, a violência nas ruas (seja da policia ou do crime), é sempre mais produtivos (se é que de outra forma se produz) quando podemos sinceramente nos responsabilizar pelo menos por nós mesmos. Insisto nisso, já que, apesar de sermos animais pensantes e até nos diferenciando dos “outros’ animais por isso, a própria capacidade de pensar ainda é muito pouco eficiente (diria até embrionária) no humano atual, que na realidade, age muito mais por seus impulsos, que pela razão (haja vista as atrocidades que hoje já não têm mais hora para passar nas televisões ou redes de comunicação na internet). Sinto extrema dificuldade em falar e escrever sobre esse tema, sem experimentar uma estranha sensação de estar sendo “chato”, por tocar em algo desagradável e que, a maioria das pessoas, prefere não mexer, e quem dirá olhar com cuidado. Podemos até confundir esse texto com um discurso intelectual, mas o assunto aqui tratado está muito mais próximo de questões emocionais do que de qualquer intelectualidade. Seguindo esse “caminho das pedras”, penso que nos seria útil distinguir duas ideias que amiúde se confundem e até parecem sinônimos, se não atentos estivermos.
  • 72. 72 Para Além da Clínica Porém, se pudermos manter “certo vértice especial de pensamento”, perceberemos que os termos em que, proponho o pensar, proporcionam um encontro antagônico. Quero propor que, nesse ponto de vista, algo prazeroso não é necessariamente e ao mesmo tempo bom, e, vise-versa. Na verdade, a psicanálise nos mostrou, com muita propriedade, que a mente só pode se expandir na medida em que podemos abrir mão de certos prazeres, em nome do pensamento, até para que possamos perceber o que realmente é bom pra nós. Para mantermos esse ponto de vista, teremos que lançar mão do símbolo ou da capacidade de simbolizar, recurso que é criado na tentativa de preencher o vazio da realidade. Quando a pessoa amada real não está, o que sustenta a alma é um pensamento simbólico. Sem o recurso do símbolo, ou seja, da capacidade de simbolizar, o bom será sempre o prazeroso e não existe aí qualquer chance de diferenciação entre as duas ideias. Então poderíamos cogitar a hipótese de que: “aquilo que é bom caminha mais próximo da ausência do prazer, pois, quando a satisfação do prazer se faz predominante, muito pouco se produz no pensamento simbólico, que é o que
  • 73. Renato Dias Martino 73 nos liberta do concreto (apreensível pelo sensorial ou órgãos dos sentidos), que nos faz real e nos permite reconhecer a própria realidade (o que poderíamos chamar de bom ou saudável).” A memória da perda Já que estamos de acordo sobre as conjecturas, sobre a distinção entre “bom” e “prazeroso”, contaremos com esses argumentos para abrir o assunto contido nesse capítulo, pois, falaremos de experiências emocionais de “cunho um tanto quanto desconfortável”, contudo de extrema necessidade. A intenção a priori é a de classificar um modelo de desenvolvimento da mente, da expansão do pensamento e da qualidade do vínculo que se pode ter com as pessoas e com as coisas. Partindo do intento onde como propõe o filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), a angústia suscitada pelo medo da morte é a expressão máxima do sofrimento humano, então talvez fosse um tema digno de cogitação aquele cujo objeto parte das emoções geradas conforme a consciência sobre a decadência e a morte.
  • 74. 74 Para Além da Clínica É um saber que dá ao humano o título de homo sapiens, o sabedor de sua vulnerabilidade e mortalidade, assim como referente àquele que ele ama. Certo conhecimento mobiliza o mundo interno e cobra alguma ação psíquica no intuito de diminuir ou amenizar o efeito da descarga libidinal gerada nesse contato com a verdade. Essa verdade referente à incontestável realidade humana ou até mesmo à realidade de todo e qualquer ser vivo. É a mesma angústia que ocorre aos deuses, assistindo-nos do Olímpio. Contudo, de forma inversa e velada, talvez os deuses invejem-nos a possibilidade de descansarmos um dia da obrigação do mortal em manter-se vivo, mesmo cônscio da imutabilidade do fato da morte. De qualquer forma, a geração de ansiedade frente à ideia do desamparo, declínio e morte é um recurso natural do aparelho mental. A introdução dessa realidade no âmbito do funcionamento psíquico não é um processo simples. De forma hipotética, poderíamos aqui levantar algumas possibilidades de desenlace dessa experiência. Uma delas, e a que me parece ser a mais primitiva, é aquela em que o sujeito do conhecimento do real, automa- ticamente, pronuncia a ação física.
  • 75. Renato Dias Martino 75 Ao ser inundado pela angústia, parte logo para a ação (no mundo externo) no intuito de aplacar o desconforto gerado. A falta de recursos mentais mais aprimorados e a incapacidade de conter impulsos fazem o bebê espernear e “berrar” quando se sente assim, angustiado. Em uma linguagem psicanalítica, nesse caso a pulsão de morte é direcionada para fora do eu (em direção ao outro). Um segundo modelo seria aquele em que o sujeito, ao perceber a ineficácia da ação mecânica em conter os impulsos, o reprime e, submerso na desesperança, desiste da atuação. A partir daí, sob a regência desse modelo de funcionamento, a pulsão de morte volta-se para o eu (para dentro). Como na melancolia descrita por Sigmund Freud (1856-1939) em 1917, o sujeito desse funcionamento sente como irremediável o prejuízo dessa realidade pairando sobre o eu. Como se a partir da ciência do real, nada mais despertasse seu interesse, a não ser a fantasia (que exclui o próprio real). Estes dois modelos têm a função exclusiva de afastar o desconforto psíquico e estão enquadrados num funcionamento mental, denominado por Freud, em 1911, como princípio do prazer-desprazer.
  • 76. 76 Para Além da Clínica Um terceiro modelo, e o que nos interessa sobre medida nesse momento, é justamente aquele que faz pensar. O que implica para Freud (1911) é à entrada do princípio da realidade, o que permite adiar certas ações através da contenção do impulso que assim, ganha a chance de transformar-se em pensamento simbólico. A capacidade mental em tolerar descon- fortos é que proporciona o que chamaríamos de continência psíquica e definirá o norte dessa experiência com o real. Contudo, conter emoções desse calibre, de maneira saudável, exige essencialmente criatividade. A consciência do nascimento e morte obriga a criação de um espaço entre esses dois fatos. É justamente a subsequência de um processo do qual aprendemos chamar de “vida”. Ilustração do autor Renato Dias Martino
  • 77. Renato Dias Martino 77 Gradiente evolutiva Depois de conhecermos esses modelos de formação psíquica, e “estruturando um pensamento” de acordo com eles, podemos então, desenvolver a ideia de uma “escala evolutiva do pensar”. Uma escala onde podemos até tentar eleger um ponto de partida, contudo, assim como seu apogeu, ele nunca coincidirá com ideias acabadas ou saturadas em sua dimensão. Estamos falando do percurso seguido pelo elemento mais primitivo da mente rumo ao seu desenvolvimento ou, mais adequadamente falando, sua expansão, um impulso gerador de fantasias no contato com a consciência da perda. Podemos sugerir, talvez, a sensação gerada pelo contato com aquilo que se é capaz de chamar de realidade, como ponto de partida e a formação da ideia simbólica (a saber, a capacidade de tolerar a ausência do real sensorial), como pretensão de objetivo a se alcançar. Parece-me que, isso definirá algumas experiências, para que se possa viver com a memória da perda e, ainda, o que isso pode representar.
  • 78. 78 Para Além da Clínica Algo como prejuízo na estrutura do ego (personali- dade) ou no extremo oposto, vitória e superação de limites e consequentemente fortalecimento e expansão do eu. De qualquer forma, a ideia ou o pensamento simbólico se manifesta na capacidade de relatar em palavras a história da própria vida, já que transformar fatos em palavra exige certa habilidade simbólica. Foi a partir desse modelo que Freud abandonou o “método catártico da hipnose”. Em 1891, Freud publica “Contribuições à Concepção das Afasias”, obra que afirmar, categoricamente, o rompimento com as hipóteses sobre os “estados hipinóides” e o método catártico de Joseph Breuer (1842-1925). O pai da psicanálise começou a perceber e, a partir dessa percepção, passou a criar instrumentos para identificar, no discurso de seus pacientes, a parte da mente que exigia cuidado. Assim, podemos mensurar a dimensão da importância da memória da perda, como necessidade de nos tornarmos conscientes dela, para o bom funcionamento mental. Cada iminência de perda remete a experiências de sensação de desamparo ocorrida num tempo, onde o
  • 79. Renato Dias Martino 79 acolhimento, sensação de segurança ou de se sentir contido num ambiente saudável era a única maneira e, justamente, o que definiria a sensação de estar vivo: a confusão do que é a morte da abstração e o que é a morte efetiva. A dor e a palavra “Dor da palavra” O que seria da minha palavra se minha dor nela não habitasse? O que seria da minha dor se não encontrasse palavra que a expressasse? A tarefa de publicação de ideias referentes ao fato psíquico ou as manifestações da alma, esbarra em uma questão da qual gostaria de abordar, nessas linhas seguintes. Gostaria, em primeiro lugar, de expor que o conceito de publicação aqui sugerido, refere-se a toda ação pública que contenha a ideia proposta ou certa tentativa de transmitir a ideia ou certa impressão do mundo.
  • 80. 80 Para Além da Clínica Quando pensamos na ciência natural ou na física, os fatos são tratados e discutidos até se definir em um desfecho indiscutível. As opiniões passeiam por um tempo, entretanto, deságuam numa confirmação concreta e muito próxima de um resultado fechado e resolvido em si. Obtém-se, através de teorias e experiências, certo saldo saturado em sua conclusão. O fato que assim se confirma está sujeito, então, a uma manifestação externa, no plano concreto para que se dê a união das opiniões em uma confirmação. Por exemplo, se o intuito é provar a velocidade que atinge uma pedra de certo peso, quando esta despenca de certa altura, até chegar ao chão, nós dispomos de recursos e instrumentos, que usados corretamente, conduzirão a resposta que ganha um status de exatidão quase indiscutível. Assim, as partes divergentes, baseadas em um fato confirmado concretamente, unem-se em uma verdade. Outro exemplo muito interessante é o introduzido por Wilfred Bion, em sua obra “Atenção e Interpretação, uma aproximação cientifica à compreensão interna na psicanálise e nos grupos”, 1970. Bion cogita que um médico adota um procedimento, onde recebe a queixa do paciente do qual descreve uma dor física e, com apoio
  • 81. Renato Dias Martino 81 de exames como ultra-sonografia, eletrocardiograma, Raios-X, pode diagnosticar certo quadro, permitindo a aplicação de uma forma de tratamento. Segue-se a terapêutica, tendo como base uma “doença” confirmada por meio dos sentidos. As expe- riências sensoriais pelo tato, olfato, visão e audição foram disponibilizadas para o diagnóstico e, assim, propor a terapia adequada. Mas, voltemos ao fato psíquico ou movimento da alma. Este não pode ser confirmado concretamente. Não posso pegar uma ansiedade na mão, não há como cheirar uma depressão. Não é acessível aos órgãos dos sentidos. Então, surge uma questão: “Como comunicar ao outro esse fato incon- testável, mas, ao mesmo tempo, tão fugaz e frágil à confirmação?”. Lembro-me de um paciente que, queixando-se de severa depressão, me conta que seus familiares apelidaram sua dor como sendo “coisa da cabeça” e assim, rebaixaram a importância desta, como se ela estivesse num segundo plano. Talvez eles aguardassem notícias físicas desta dor e sendo ela visivelmente constatável, eles dessem início a algum cuidado.
  • 82. 82 Para Além da Clínica Esse mesmo fato é de fácil constatação quando, em uma fila de espera do atendimento público de saúde, acabamos nos dando conta de que grande parte (pra não dizer a maioria) das pessoas que aguardam atendimento é fisicamente sã e que, no entanto, pode estar apenas emocionalmente doente. Essa é a dimensão da incapacidade humana de se perceber além do corpo. O fato psíquico entra em uma esfera particularmente distinta da concretude dos fatos. A necessidade é de que se desenvolva o que, com auxílio da filosofia, chamo aqui de intuição. E que já estivera no escopo de Carl Gustav Jung (Kesswil, 1875 - Küsnacht, 1961) e Bion. Não é algo que se apoia em simples compreensão. É o despojamento de capacidade sensorial, ou seja, algo que fica além do que se constata pelo aparelho sensorial. Além do corpo, do concreto, constatável. É um recurso da subjetividade, algo que tem a condição de abstração. Como posso comunicar algo que chamo de “saudade” e sinto, como uma experiência vivida, em minha história, para aquele a quem a “saudade” não passa de um conceito do qual se encontra tão vazio de vivência?
  • 83. Renato Dias Martino 83 O contrário também se aplica quando, evitando sofrer algo, não se cria meios para nomeá-lo. De tal modo, se utilizamos um modelo semelhante ao aparelho reprodutor, perceberemos que a publicação do fato psíquico se vê em meio à dificuldade da “cópula” entre aquilo que se tenta publicar e a possibilidade de experiência daquele que recebe a informação. O afeto e questões emocionais estão implicados de forma crucial, onde o conteúdo e o continente se encontram. O valor do que será concebido nessa ligação depende do afeto envolvido nesse encontro. O que fazer com um conceito se nunca se viveu algo que o preencha de experiência? O que fazer com uma experiência da qual não se foi capaz de nomear? Algumas palavras sobre a palavra A palavra é uma unidade de linguagem, um instrumento de comunicação das ideias por meio da fala ou da escrita, e essa é uma definição lógica, aquilo que transforma em conceito o conjunto de letras “p”, “a”, “l”, “v” e “r”, arranjadas de certa forma específica. Palavra vem do grego parabolé.
  • 84. 84 Para Além da Clínica Cedo percebemos que a palavra foi criada no intuito de vinculação entre as pessoas, a palavra une as pes- soas. De qualquer forma, a proposta desse texto não é se prender a modelos já pensados, mas tentar transcender o modelo de conceito racional, vazio de experiência, até porque, não é só isso: o valor que se pode dar à palavra está intimamente ligado ao desenvolvimento emocional. A palavra está vinculada e é subordinada de certa área de nosso psiquismo onde o racional não pode penetrar. Logo, da forma como lidamos com a palavra, podemos revelar sinais da saúde mental, que pode ser descrita como a capacidade de vínculo que se pode ter entre nosso mundo interno (impulsos instintuais e fantasias) e mundo externo (o outro, aquilo que existe independente do eu). Dessa forma é indispensável, para o desempenho da palavra, a capacidade de simbolização, já que a própria palavra é antes de tudo um símbolo, e isso quer dizer que tem a propriedade de fazer o conteúdo da ideia presente, mesmo em sua ausência. Poderíamos, até, fazer uso de um modelo filosófico para pensar o que é símbolo. Imaginemos, então, algo, alguém, algum lugar, que possamos sentir a presença, mesmo não podendo confirmar com os órgãos dos sentidos.
  • 85. Renato Dias Martino 85 Quando dermos conta dessa proposta, podemos de alguma forma simbolizar. O símbolo se encontra exatamente na ausência real do objeto. O bebê aprende a simbolizar a mãe e, isso é o que lhe permite tolerar, até que ela atenda seu choro. O símbolo sustenta a alma na falta do objeto, aí então, se está apto a transformar em palavra. Hanna Segal (grande pensadora da psicanálise) coloca em 1982 que: “A formação de símbolos governa a capacidade de comunicação, já que toda a comunicação se faz mediante símbolos”. Ela postula que, quando ocorrem perturbações que comprometem essa capacidade simbólica, a capacidade de comunicação é também perturbada: “primeiro, porque a diferenciação entre o sujeito e o objeto se desfaz; segundo, porque os meios de comunicação estão ausentes, já que os símbolos são sentidos de modo concreto e, portanto, não estão disponíveis para fins de comunicação.” p.88 Quando se comunica a ideia de alguma coisa através da palavra, acredita-se nela, mesmo sem que se tenha, a mão, a coisa em si.
  • 86. 86 Para Além da Clínica A capacidade do espaço mental em sustentar uma imagem interna boa o bastante para que se possa transmiti-la ao outro é o que define a qualidade da palavra e consequentemente da saúde psicológica. Quando levantamos a hipótese da degradação da palavra, estamos antes de tudo descrevendo um estado de incapacidade de troca afetiva. A palavra deve ser uma extensão do ser, ou seja, a qualidade da ideia contida na palavra é o que define a própria palavra. Palavras distantes do ser são frias e como uma “nota fiscal fria” (refiro-me a um modelo tributário), não conta com a responsabilidade daqueles que a emitem. Ainda Sobre a Palavra Onde estão os homens de palavra? Onde foram eles? Gostaria de saber e também de me reunir junto a eles, levando comigo alguns que conheci há algum tempo. Não me parece radicalismo ou loucura propor que não estamos numa época que poderíamos chamar de “valorização da palavra”.
  • 87. Renato Dias Martino 87 Ao contrário, penso eu, que preocupados com a simplicidade da palavra, nem cheguemos até ela. Esse instrumento chamado palavra é talvez a forma mais breve de definição do objeto. Onde no formato de símbolo básico, a “coisa” vira um nome e a partir daí abrem-se oportunidades de expansão da palavra em direção à conceituação. O conceito apura a relação com aquilo que se quer dizer através da palavra. Traz mais dados sobre isso que se deseja expressar com a palavra. Mas, para se chegar ao conceito, deve-se ter passado pela palavra. Um dia, cada conceito que utilizamos hoje em nossas vidas, foi uma simples palavra. Entretanto, se a evolução da ideia para por aí, algo curioso acontece. E de acordo com esse modo de pensar, e, se realmente podemos dizer que a palavra é uma ponte entre a “coisa” e o conceito, então experimen- tamos, nessa etapa do caminho, algo em formato de preconceito, aquilo que antecede a formação conceitual. Logo, a incapacidade de atravessar essa ponte é o que gera o preconceito rígido e intransponível. Sabe-se muito pouco da “coisa” e já se impõe como verdade absoluta, o que se imagina saber. Apesar disso, pensando no desenvolvimento da ideia, a partir do conceito podemos expandir o pensa- mento e experimentarmos a intuição.
  • 88. 88 Para Além da Clínica A partir da capacidade de intuir, a palavra começa a ser dispensável. Como se já houvesse contribuído o suficiente, ela pode ser abandonada, isso na presença da intuição. Vamos desvalorizar juntos a palavra, mas, depois de estarmos seguros do que ela quis dizer. Tédio Filosoficamente, poderíamos descrever o tédio como um estado de espírito onde o fato futuro não tem representante na expectativa. É, talvez, estar “nem aí”, na linguagem coloquial. Assim como uma espécie de aborrecimento onde vemos as coisas do mundo com certo desinteresse. Certo funcionamento da mente onde elementos como fervor, entusiasmo ou impetuosidade, se encontram inoperantes. O tédio parece ser algo que é vivido tão intro- vertidamente, que muitas vezes se torna um estado emocional extremamente sutil, distante dos olhos alheios. Por conta desta falta de veemência, o tédio acaba por não encontrar lugar significativo na literatura psicanalítica ou nos estudos feitos pela psicologia, seja
  • 89. Renato Dias Martino 89 ela qual for a abordagem que utilize. Porém, o fato da manifestação psíquica muitas vezes não se revelar externamente e não se encontrar veemente, não reduz sua importância no funcionamento mental do sujeito e na influência que ocupa nas escolhas da vida de cada um de nós. Uma criança possivelmente ilustraria esse estado como “nada pra fazer”. E a partir desta teoria infantil (na minha visão, a mais próxima de um estado desprovido de defesas, logo mais próximo da realidade), e pela ausência de uma teoria mais bem elaborada, podemos arriscar criar alguma tentativa de unir alguns pontos desse assunto. Isso no intuito de gerar um símbolo do que seria tédio. Criar, a partir de um olhar mais atento, um sentido para compreendermos o porquê e como nos ocorre o tédio. A criança pode fazer uso do tédio como um ensaio da separação da mãe, ainda na presença dela. Uma tentativa de “pensar a si mesmo” sem aquilo que mais se valoriza na vida. Estar “nem aí”, talvez, seja estar mais “aqui”, no agora, onde o real acontece. Dessa maneira, se pensarmos na maturidade como missão humana do desenvolvimento, a capacidade de entediar-se pode ser uma conquista na independência da criança. Um ensaio da perda, inevitável. Um momento
  • 90. 90 Para Além da Clínica na vida que nos propomos a sentir o vazio interior, um sentimento que pode sugerir certa angústia e que, assim, gera esse estado de quietude e marasmo interior. Na verdade, é o resultado da percepção interna de algo que habita a alma. Alguma coisa que faz parte dela, mas que, normalmente (até prudentemente, em certos momentos) evitamos senti-la ou sofrê-la. Quando digo “sofrê-la”, penso na ambiguidade do termo, pois a vida é um processo e, sendo assim, não o sofrer caracteriza certa ação (não-ação) patológica. Um obstáculo no viver. O roqueiro Steven Tyler, vocalista da banda Aerosmith, em uma entrevista sobre as dificuldades que enfrentou na busca para livrar-se de sua relação compulsiva com as drogas disse: “a única forma da coisa passar é passando pela coisa”. Quando pensamos no tédio como um momento da vida emocional, perceberemos um tempo mental onde a pressa não parece encontrar lugar. Passamos, então, a olhar o termo que denomina essa experiência com outros olhos, diferente daquele da colocação popular sobre o tédio. Dessa forma, é muito interessante percebermos aspectos internos e externos. Isso quando a exigência social entra em contraste como nosso estado de espírito.
  • 91. Renato Dias Martino 91 Perceba como alguém sem pressa incomoda o homem moderno, que corre desesperado atrás de “sabe lá o que”. Por essa decorrência, amiúde criamos um “falso eu”, como coloca Donald Woods Winnicott (1896-1971) pediatra e psicanalista inglês, ou como o psicólogo suíço Carl Gustav Jung (1875- 1961) denomina o arquétipo da “Persona” (parte do eu que existe para satisfazer o outro), de tal modo, que nunca se entendia. Algo que é criado para satisfazer o outro ou, melhor dizendo, um eu criado para satisfazer a necessidade de sermos desejados pelo outro. Na predominância desse recurso, porém, abandonamos nosso eu real no quarto dos fundos do nosso interior, muitas vezes, sem dar-nos conta disso. Pensemos na utilidade de, através do tédio, repensar nossos objetos de desejo. Dois caminhos depois da perda O tema proposto nesse texto foi muito bem debatido por Freud e seus discípulos, porém sinto de extrema utilidade que possamos cogitar alguns aspectos dos caminhos que se pode tomar, quando aquilo que contamos como primordial, nos escapar.