SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 20
Baixar para ler offline
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
   INSTITUTO DE ARTES – DEPARTAMENTO DE MÚSICA
          CADEIRA DE ESTÉTICA DA MÚSICA




A INTRODUÇÃO À ESTÉTICA MUSICAL DE
        MÁRIO DE ANDRADE




      PORTO ALEGRE, NOVEMBRO DE 2011
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
   INSTITUTO DE ARTES – DEPARTAMENTO DE MÚSICA
          CADEIRA DE ESTÉTICA DA MÚSICA




A INTRODUÇÃO À ESTÉTICA MUSICAL DE
        MÁRIO DE ANDRADE

     GERSON TADEU ASTOLFI VIVAN FILHO

                            Trabalho apresentado para a avaliação na
                            cadeira de Estética da Música, pelo
                            Departamento de Música do Instituto da
                            Artes da Universidade Federal do Rio
                            Grande do Sul, ministrada pelo professor
                            Fernando Lewis de Mattos.




      PORTO ALEGRE, NOVEMBRO DE 2011
Através de todos os filósofos que percorri,
                                                   num primeiro e talvez fátuo anseio de
                                                   saber, jamais um conceito deixou de se
                                                   quebrar diante de novas experiências. Eu
                                                   não sei o que é o Belo. Eu não sei o que é
                                                   a Arte.

                                                                             Mário de Andrade
                                                                           O artista e o Artesão1


                                                   Eu tenho desejo de uma arte que, social
                                                   sempre, tenha uma liberdade mais estética
                                                   em que o homem possa criar a sua forma
                                                   de belezas mais convertido aos seus
                                                   sentimentos e justiças do tempo de paz. A
                                                   arte é filha da dor, é filha sempre de
                                                   algum impedimento vital. Mas o bom, o
                                                   grande, o livre, o verdadeiro será cantar
                                                   as dores fatais, as dores profundas,
                                                   nascidas exatamente desta grandeza de
                                                   ser e de viver.

                                                                             Mário de Andrade
                                                                           Posfácio para “Café”




1
  Aula Inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, Universidade do
Distrito Federal, em 1938.
SUMÁRIO



1.     INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 1
2.     O AUTOR ................................................................................................................ 1
     2.1.    O poeta: da Semana de Arte Moderna aos anos 40 ...................................... 1
     2.2.    O musicólogo: guru dos compositores modernistas...................................... 3
3.     A OBRA ................................................................................................................... 5
4.     CONCLUSÃO ....................................................................................................... 12
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 14
1. INTRODUÇÃO

               A proposta deste breve estudo é, apesar das empenhadas tentativas de
        aprofundamento e da relativa riqueza de fontes consultadas, de cunho bastante
        superficial. Tanto a julgar pelo conhecimento limitado e em construção daquele
        que o escreve quanto pela proposta do trabalho: não quer nem pode almejar ser
        um estudo criterioso e estanque pelo próprio caráter intrínseco parcial que a
        proposta de uma resenha deve encerrar.

                Em um primeiro momento, iremos nos ater a duas das principais
        dimensões do autor, que julgamos fundamentais à formação do pensamento
        estético de Mário de Andrade, assim como da aplicação prática desse mesmo
        pensamento: suas atividades poéticas e musicológicas. Na segunda parte, a
        análise da Introdução à Estética Musical restringir-se-á basicamente aos
        capítulos solicitados na Cadeira de Estética da Música, à qual serve o presente
        trabalho, a saber, os pontos de 1 a 4, não excluindo-se, todavia, a menção ou
        comentário a outras obras do autor. Em especial, traçaremos algumas breves
        noções a partir do texto O artista e o artesão, que revela o pensamento estético
        mais amadurecido de Mário de Andrade, já no final da década de 1930.



    2. O AUTOR

        2.1. O poeta: da Semana de Arte Moderna aos anos 40

                Remetamo-nos ao ambiente da década de 1920, quando explodiria um
        dos movimentos mais cruciais na formação da arte brasileira contemporânea.
        Nesse primeiro momento, teve plano destacadíssimo a literatura, e, em especial,
        a poesia. Mário de Andrade, ao contrário de boa parte dos outros poetas de sua
        geração, saídos das Faculdades de Direito, teve por título de estudos superiores
        um curso de piano no Conservatório de São Paulo. Arrogava-se da condição de
        musicólogo, tendo mais tarde escrito relevantes ensaios acerca da música
        brasileira e sua história2, além de outros importantes livros e ensaios. Como
        poeta engajado no movimento da Primeira Geração Modernista e constante
        pensador do fazer artístico e da cultura, ele conseguiu traduzir sintética e
        brilhantemente o espírito do movimento modernista de 1922 em um único verso:
        “Sou um tupi tangendo um alaúde!”3.

                Nesse sentido, “percebendo a arte e a literatura com uma dimensão
        coletiva e organizacional da sociedade, o escritor modernista pesquisa a arte e a
        cultura popular brasileira, utilizando sua produção literária como veículo
        agregador e formador da idéia de nação, através de conteúdos já presentes na
        alma do povo”4. Isso implica um consequente rompimento com a “arte culta”
        que se vinha praticando historicamente no país, de caráter essencialmente

2
  Cite-se Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928, Compêndio sobre a Música Brasileira, de 1929,
Música do Brasil, de 1941.
3
    “O Trovador” (de Pauliceia Desvairada, São Paulo, 1922). Disponível em:
<http://www.horizonte.unam.mx/brasil/Mário1.html>. Acesso em 22 out. 2011.
4
  SILVA E ALVIN; RAMOS, 2009.


                                                1
europeu, com poucas e dificilmente bem-sucedidas tentativas de formação de
        uma identidade literária nacional com base na cultura popular, recorrendo-se não
        poucas vezes a estereótipos sociais, se não pejorativos, no mínimo ingênuos.
               Guardando-se louváveis e dignas exceções, a produção literária esteve
        muito ligada às elites econômicas, transparecendo um considerável desprezo em
        relação à tradição cultural oriunda do povo5. A obra de Mário reflete, assim, o
        ideal de ruptura presente no movimento modernista, tanto em relação à estética
        parnasiano-naturalista, quanto ao “comportamento social, decoroso e
        acomodatício, da nossa intelectualidade”6.

                Tendo se abrandado a inicial efervescência, Andrade inicia um processo
        de ruminação e crítica do modernismo, e, consequentemente, de autocrítica.
        Como observa Benedito Nunes, “o tratamento pejorativo dos operários (...)
        revela-nos o caráter aristocrático, a ‘gratuidade antipopular’ do movimento de
        1922 quando nasceu, conforme reconheceria o autor de As Enfibraturas ao fazer,
        em 1942, o retrospecto histórico da Semana”7. De espírito amadurecido, já
        distante das “juvenilidades modernistas”, nosso autor inaugura uma nova fase,
        mais consciente e social, numa busca de real aproximação com o povo. É
        precisamente nesse momento de amadurecimento e reflexão filosófico-artística e
        também da consolidação de uma carreira docente acadêmica que se dará o
        nascimento da “Introdução à Estética Musical”.

               Se por um lado, esse amadurecimento da personalidade artística de Mário
        de Andrade lhe permitiu a transição para uma nova fase de produção artística e
        para uma nova concepção a respeito da função do artista, pendendo ora à
        expressão da subjetividade, ora ao cumprimento de um papel social ao qual toda
        arte estaria condicionada, por outro, ele nunca chegou a desmerecer
        completamente a importância da Semana de Arte Moderna. Analisando
        brevemente a história que se seguiu àqueles três dias, verifica-se que teve um
        papel importantíssimo, servindo de arrancada inicial a uma tomada de
        consciência cultural, mais elevada que o indianismo gratuito e ingênuo de
        outrora. Inegável é a determinância histórica e a influência basal do movimento
        na produção artística do século XX.

               Mais a diante, à análise das compreensões estéticas do musicólogo, em
        especial em O artista e o artesão, essa auto-contradição entre teoria estética e
        obra prático-literária de Andrade irá se mostrar mais evidente. A observação de
        Dante Gatto faz-se pertinente:
                                  “A falta de resolução dialética entre o seu individualismo e suas
                                  intenções sociais não lhe permitiu, por mais que quisesse, objetivar o
                                  próprio conselho [...] que consiste em aproximar a arte literária do
                                  povo. [...] Viveu, enfim, a utopia de uma consciência universal, em
                                  que o absoluto, aquela necessidade essencial de superação, seria
                                  acessível a todos os homens por meio da arte e lhes daria um sentido

5
  Exemplo interessante é o caso do maxixe, dança popular carioca, considerada por Luís Cosme (1957) “o
primeiro tipo de dança urbana criada no Brasil”, que, pela sensualidade de seus movimentos, escandalizou
a elite social e intelectual, sendo censurado oficialmente, ao ponto de Ernesto Nazareth, segundo Carlos
Sandroni (2001, pg. 79), “chamar todos seus maxixes de tango”, e muitos escritores, aí incluso Machado
de Assis, nem sequer nominarem-no em suas obras literárias (AVELAR, 2006).
6
  NUNES, 1984, pg. 2.
7
  NUNES, 1984.

                                                   2
profundo de estar no mundo. Viveu a utopia na mais profunda
                              acepção da palavra, do homem da arte do povo.”8

        2.2. O musicólogo: guru dos compositores modernistas

                 A questão central do pensamento do Mário de Andrade musicólogo em
        relação à música nacional era aquilo a que ele reiteradas vezes se referiu como
        movimento de universalização: a partir da pesquisa folclórico-temática do país,
        construir uma música nacional que, através de um diálogo com as linguagens
        artísticas contemporâneas, tornasse o material oriundo da cultura popular em
        conteúdo estético universal. No sentido da incansável busca e documentação
        desse material, é válido mencionar que as décadas de 30 e 40, especialmente,
        foram de intenso trabalho de pesquisa, registro e catalogação da cultura popular
        do Brasil, destacando-se a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938 e a fundação
        da Discoteca Pública Municipal.

               Devemos, mais uma vez, ter em conta o ambiente musical em que o
        Brasil se encontrava, bastante fechado à estética das vanguardas européias,
        sendo a música voltada à pura satisfação da classe burguesa: era não muito mais
        que um artefato de valor utilitário, um pano de fundo à vida das elites. A arte
        como um todo era valorizada como “uma simples imitação da natureza”9.
        Arnaldo Contier10 lembra que, naquele contexto de pós-guerra (Primeira Guerra
        Mundial) e, por isso mesmo, de fortalecimento das identidades nacionais, não foi
        exclusividade brasileira a tentativa de formação de uma música “erudita”
        permeada de profunda ligação com o folclore das nações. Assim, teremos, por
        exemplo, Bartók na Hungria, Satie na França, Ginastera na Argentina.

                Observa Contier que “O lema modernista ‘do nacional para o universal’,
        em sua essência, referia-se a uma circularidade de idéias estético-ideológicas
        surgidas, concomitantemente no pós-guerra (1918), por meio de uma
        circularidade de idéias estético-políticas, afloradas em muitos países da Europa
        Ocidental, Oriental e nas Américas.”11

                Percebe-se claramente nos escritos que Mário deixou relacionados à
        teorização do modernismo nacional, a necessidade de uma, antes de estética,
        ética do músico, do compositor brasileiro. Ele acreditava que o verdadeiro artista
        devia, antes de tudo, respeito à obra de arte, e, ainda, despojar-se das suas
        vaidades artísticas de modo a coletivizar o seu destino: o individualismo puro, a
        “torre de marfim” dos românticos do século XIX era-lhe algo não só inútil e vão,
        como deplorável. É essa necessidade que o levará a engajar-se no projeto
        desastroso do Departamento de Cultura de São Paulo, em 1935, de onde seria
        demitido dois anos depois12.

               Em relação à arte popular, antes da artificialidade com que tratam muitos
        dos românticos nacionalistas, notamos não só uma grande paixão como um
        profundo respeito, de maneira que “a idéia de arte popular não pode servir de álibi

8
  GATTO, 2006.
9
   CONTIER, 2004, pg. 4.
10
   CONTIER, 2004, pg 11.
11
   CONTIER, 2004, pg. 11.
12
   SOUZA, 2005, pg. 4.

                                             3
para qualquer tipo de sentimentalismo e facilidade, da mesma forma que é rejeitada
        a noção de uma arte que se pretenda vinculada a eternidade e não ao seu tempo.
        Entre estes opostos, Mário se equilibra na tentativa de criação de uma estética.”13

                É antes necessário, para ele, que o artista represente seu tempo e seu lugar,
        algo que ao decorrer de sua trajetória vai se transformando em um conceito de
        objetividade nacional. O artista deve criar a partir de sua experiência, não a partir de
        conceitos teóricos pré-formulados e isso, no fundo, significa criar a partir da cultura
        popular, visto que ela é, com efeito, a experiência do criador. A ideia, todavia, não
        “quer dizer obrigatoriedade de produzir-se música que tenha caráter étnico. Trata-se
        de utilizar o material popular não para mimetizá-lo, mas para produzir cultura
        erudita.”14. Nesse sentido, ainda, deve se estabelecer, um processo dialético, de
        retroalimentação entre arte popular e arte “erudita”. Existe cultura erudita, mas não
        existem assuntos eruditos; assim como não existem exotismos15.

                                   Tal projeto encontra, porém, um obstáculo: falta originalidade à
                                 civilização brasileira. Ela é, na expressão de Mário, uma civilização
                                 de empréstimo cujo desenvolvimento é artificial e mais ou menos
                                 forçado. Falta a ela, inocência. A música, por exemplo, não teve como
                                 se desenvolver livre de preocupações quanto à afirmação social e
                                 nacional. Ela teve que instrumentalizar-se para alcançar seus objetivos
                                 e tal postura gerou em algumas ocasiões, o artifício e a imitação.16

                Em seu ensaio Evolução Social da Música no Brasil, de 1939, Mário
        pontua a dificuldade da afirmação nacional encontrada nos países americanos,
        coisa que a Europa não sofreu, pois o desenvolvimento de sua música foi
        bastante inconsciente. A América tem uma “civilização de empréstimo”17, e,
        dessa maneira, necessita realizar um esforço no sentido de construir uma
        identidade musical que seja universalizável. Nesse ponto, todavia, Mário coloca
        que propriamente “não há música internacional e muito menos música universal;
        o que existe são gênios que se universalizaram por demasiado fundamentais,
        Palestrina, Bach, Beethoven [...] Porém, dentro dessa internacionalidade, tais
        músicos não deixam nunca de ser funcionalmente nacionais”.18 É inevitável!

                A proposta Márioandradiana de construção de uma música erudita
        verdadeiramente brasileira encontrará cânone inicial em Villa-Lobos, Guarnieri,
        Luciano Gallet e Lorenzo Fernandez, seus contemporâneos, que ele indica como
        “a fase nacionalista pela aquisição de uma consciência de si mesma” e
        acrescenta: “ela terá que se elevar ainda um dia à fase que chamei de Cultural,
        livremente estética, e sempre se entendendo que não pode haver cultura que não
        reflita as realidades profundas da terra em que se realiza”19. Nesse ponto de
        evolução, a música Brasileira deixaria de ser nacionalista, para se tornar
        nacional, pois tudo que é nacional, só o é porque é vivo20.


13
   SOUZA, 2005, pg. 9.
14
   SOUZA, 2005, pg. 15.
15
   SOUZA, 2005, pg. 18.
16
   SOUZA, 2005, pg. 26.
17
   ANDRADE, 1965, pg. 15.
18
   ANDRADE, 1965, pg. 29.
19
   ANDRADE, 1965, pg. 35.
20
   “A língua realmente viva, a que vive pela bôca e é irredutível a sinais convencionais, é o que dá o
sentido expressional duma nacionalidade” (ANDRADE, 1965, pg. 122). Mário, analogamente, propôs a

                                                  4
Esse grupo de compositores, evidentemente, sofreu certa influência de
        Mário de Andrade, em especial do Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928. É
        possível notas em Villa-Lobos, por exemplo, que concentrou sua música
        basicamente sobre a música popular urbana, especialmente nos Choros, uma das
        melhores representações do pensamento marioandradiano, seja na politonalidade
        e polirritmia, que explorou muitos aspectos dos ritmos sincopados da música
        popular, seja nas formações instrumentais totalmente inusitadas à tradição
        europeia, como, por exemplo, a combinação de flauta e clarineta – bastante
        comum nas rodas de choro – nos Choros nº2, obra de 1924, dedicada, não por
        coincidência, a Mário de Andrade.

               Todavia, o Ensaio, teve talvez até mais influência sobre a geração de
        compositores ulterior à de Villa-Lobos, aquela que incluiu os dissidentes do
        Grupo Música Viva. Guerra-Peixe, por exemplo, faz citações literais de Mário
        de Andrade em seus escritos dedicados ao comentário de sua própria obra, em
        especial no que se refere às três fases da “arte nacionalizada”: tese nacional,
        sentimento nacional e inconsciência nacional. Ainda que tenha aderido mais
        tarde à estética do húngaro Georg Lukács, o pensamento de Mário continuará
        arraigado até nas suas últimas obras.21



    3. A OBRA

                 A Introdução à Estética Musical não é nem o primeiro nem o último
        intento de Mário de Andrade numa teorização nesse sentido. As reflexões
        estéticas de Mário de Andrade, estão esparsas em uma série de obras, como em
        Klaxon, A Escrava que não é Isaura¸ Ensaio sobre a Música Brasileira,
        Pequena História da Música, e sua notabilíssima aula inaugural dos cursos de
        Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, Universidade do Distrito
        Federal, de 1938, intitulada O artista e o artesão, deságue de todo o pensamento
        que veio desenvolvendo nos textos anteriores. Não obstante, a documentação das
        entrevistas e a recuperação de correspondência revelam uma preocupação
        constante do autor pelos problemas da estética22:
                                        No período que vai de 1938 até 1945, as reflexões
                                        Márioandradianas sobre a arte ganharam amplitude ainda não
                                        experimentadas. Foi momento também marcado pela desilusão
                                        de projetos frustrados, pela tensão provocada pelo Estado Novo
                                        no meio intelectual, pela expectativa dos desdobramentos da
                                        Guerra, pelas confissões pessoais de desamparo, e, por fim,
                                        pela doença que o levaria à morte.23

               Aliás, note-se que, publicada post-mortem, essa obra é, antes, o material
        didático para os seus cursos de Estética, enquanto lecionou. Tendo sido aluno
        graduado na cadeira de piano do Conservatório Dramático e Musical de São

ideia de uma Gramatiquinha Musical do Brasil por parte dos folcloristas e compositores, no sentido de
ter por base do projeto estético essa música que seria nacional, viva de fato.
21
   Acerca do tema, leia-se o excelente artigo de VETROMILLA, Clayton. Guerra-Peixe: considerações
sobre o conceito de “objetividade folclórica”. Per Musi, Belo Horizonte, n.14, 2006, p.82-92
22
   GATTO, 2006, p.2.
23
   GATTO, 2006, p.2.

                                                 5
Paulo, Mário de Andrade é nomeado, no mês que antecede a Semana de Arte
       Moderna, em 20 de janeiro de 1922, no mesmo conservatório, professor das
       cadeiras de Dicção, História do Teatro, Estética e História da Música.

                               As leituras na biblioteca do Conservatório (...) documentam parte da
                               formação intelectual de Mário de Andrade. Na bibliografia de Na
                               pancada do ganzá e do Dicionário musical brasileiro, ordenada
                               originalmente pelo autor, é possível rastrear a leitura de títulos
                               ausentes de sua biblioteca pessoal, mas localizados entre os
                               exemplares da instituição. Muitos desses títulos são fundamentais para
                               compreender a estrutura de seu pensamento musical, como, por
                               exemplo, Le langage musical: étude médico-psychologique, de Ernest
                               Dupré e Marcel Nathan e Die Anfänge der Musik, de Carl Stumpf,
                               ambos, edições únicas publicadas em 1911.24

                O período de 1928 mostrou-se para ele uma ausência de rumo afundada
       em solidão, uma sensação de inconformidade, aliada a um desértico areal de
       incertezas, sobre o qual caminhava, em especial no tocante a sua carreira
       literária, seis anos após o momento eufórico da explosão modernista. Encontra
       refúgio na docência musical:
                               “Tem um temperamento socrático, gosta muito de ensinar e quando
                               leciona acha fácil dialogar com os alunos ou consigo mesmo,
                               recapitulando as incertezas, reformulando os conceitos, enfrentando os
                               riscos inevitáveis da afirmação e da dúvida. (...) A elaboração do
                               compêndio, que agora se impôs veio a reafirmar nele o senso dos
                               problemas, a convicção de que não se ensina Música, se ensina
                               Arte.”25

              Gilda de Mello e Souza, no prefácio à obra, chama a atenção para o fato
       de nessa Estética o autor omitir quase por completo o nacionalismo que ocupara,
       há não muito, lugar central nas suas teorizações anteriores.

               É importante notar como Mário esteve nesse momento de sua vida
       vinculado tanto a uma instituição extremamente tradicional, o
       conservadoríssimo Conservatório, quanto ao movimento mais escandaloso e
       revolucionário daquele momento, o Modernismo antropogáfico de 22. As duas
       atividades concomitantes, de professor e poeta, terão reflexo no
       desenvolvimento de seu pensamento. Em 1924, leciona num curso particular de
       Estética e História da Música a um grupo de moças.A preparação dessas aulas as
       quais “por excesso de escrúpulo e incapacidade de improvisação, habituou-se a
       redigir [...] uma por uma”26.



              Flavia Toni, a organizadora da publicação da obra, em 1993, conta:

                               Graças à gentileza dos professores Gilda de Mello Souza e Jorge Coli
                               pude analisar os cadernos de apontamentos de duas aulas de Mário de
                               Andrade, cadernos importantes para o conhecimento da gênese da
                               Estética. [...] após interromper no quarto ponto, deixa no caderno uma


24
   BARONGENO, 2010, pg. 3.
25
   SOUZA, 1993, XVI.
26
   MELLO E SOUZA, 1993, XII.

                                               6
versão nova do primeiro, [...] texto bastante semelhante ao do capítulo
                                 inicial na datilografia do autor no ensaio que prepara para publicar e
                                 deixa inédito. 27

               Fica evidente, que, dos projetos que Andrade executou para seus cursos
        tiveram influência direta na redação da Introdução, assim como fica claro
        também que era intuito do autor publicá-la, pela existência de um datiloscrito
        original com vistas de um projeto de publicação, e pelo exame de
        correspondência com Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Luís
        Câmara Cascudo.28

                A Introdução à Estética Musical é, portanto, uma obra notadamente
        didática. Está dividida em seis partes – que no projeto inicial eram nove –, a
        saber, “Da Estética”, “Do Belo”, “Da Arte”, “Da Música”, “A Manifestação
        Musical” e “Do Ritmo”.

                Um aspecto desse texto já percebido de início se revela na linguagem
        adotada pelo autor, que não é pura obra de acaso, senão que representa já em si
        um elemento da sua concepção estética e de seu pensamento, por que não,
        filosófico-linguístico. É importantíssimo ter sempre em mente que nenhuma
        decisão na elaboração de uma obra reina o imperativo da aleatoriedade;
        outrossim, cada passo da elaboração do material, desde a estruturação do
        conteúdo à redação do texto, reflete uma determinada postura ideológica, que, de
        forma consciente ou nem tanto, é transparecida pelo autor. Como nos aponta
        Gilda de Mello e Souza, “O conceito de brasilidade de Mário de Andrade era
        complexo e integral, mas não impediu que um de seus [...] se transformasse em
        motivo de discórdia dentro do grupo modernista. Nenhum dos companheiros
        aceitava sem reservas a sistematização da fala brasileira que ele procurava
        impor, e provavelmente só Manuel Bandeira continuava lendo e discutindo, com
        disciplina e lucidez, os prefácio e as notas que acrescentava aos trabalhos.”29

                Notável, ainda, é a influência de Charles Lalo (1877-1973), autor não
        muito reputado e bastante desconhecido atualmente, a cujas ideias Mário, de
        praxe, se filia, citando com muito respeito. Será também bastante citada a obra
        de Leon Tolstoi, “O que é arte?” de 1916, à qual o autor teve acesso em versão
        italiana.

                Em todos os quatro primeiros capítulos, Mário inicia com uma definição
        direta e bastante geral, da qual desenrola o resto do capítulo. Assim, essas quatro
        definições são as seguintes: “Estética é a disciplina do saber que estuda a arte”,
        “Belo é uma circunstância fisiológica que agrada imediatamente a uma
        necessidade superior e sem interesse prático do ser racional”, “Arte é a
        expressão livre e sem interesse imediato do ser racional” e a “Música é a Arte
        dos sons em movimento”. Esses postulados, que a princípio parecem ser
        colocados por algo definitivo30, serão, dentro dos capítulos, discutidos e

27
   TONI, 1993, XXIV.
28
   TONI, 1993, XXV.
29
   MELLO E SOUZA, 1993, XV.
30
   Ele próprio, em seguida, explica: “Ninguém mais hoje pode acreditar que uma definição contenha o
significado total geral e particular duma coisa. [...] Por isso desde logo dei a da Estética. Procurei
abrandar o terreno pra chegar ao objeto dela...” (ANDRADE, 1995, p. 6).

                                                  7
ratificados. Os quatro capítulos compõem a primeira parte do texto, o que Mário
         chama de uma parte mais abstrata e conceitual. Os dois capítulos que se seguem
         tratam da Manifestação Musical (que ele divide entre quatro entidades: o
         criador, a obra de arte, o intérprete e o ouvinte) e do Ritmo, de forma mais
         concreta.

                O Capítulo dedicado à Estética traça uma sucinta trajetória, mencionando
         a presença, apesar de não nomeada, da preocupação Estética, desde os
         primórdios da filosofia, quando, junto do Bem e da Verdade, o Belo figurava
         entre as “evidências psicológicas”. De especulação metafísica, a “estética
         antiga” passa a considerar os fatores psicológicos, da experiência, no sentimento
         do Belo. Comenta a psicologia biológica de Spencer31, em contraposição ao
         concomitante “cientismo exagerado”, que ele simboliza na figura da section d’or
         de Zeising, que Mário define por “relação entre dois números na qual o primeiro
         está pro segundo como este está para ambos”, pela qual Zeising teria julgado
         “descobrir essa fórmula nas proporções do corpo humano nos animais nas
         plantas nos minerais e nas obras-primas da Arte”.32 “Muito engraçado”,
         comenta. É difícil compreender o que surpreende Mário, pois a ideia é muito
         semelhante àquela da proporção áurea, que, vinda dos gregos, foi internalizado
         pelas artes, perpassando várias das manifestações até hoje.

                 Dessa exposição, ele depreende dois métodos básicos da Estética: o
         filosófico e o experimental, que não são opostos ou contraditórios, mas se
         completam, visto que a experiência estética é mutável temporal e espacialmente.
         A Estética filosófica “substitui regra por norma, ordem por desejo”. Assim, o
         ponto perfeito está no balanceamento, na ponderação dos dois métodos.

                Para tentar explicar a aparente oscilação do objeto da Estética entre o
         Belo e a Arte, Mário recorre à ideia de que a Verdade, o Bem e o Belo são ideias
         morais que existem como elementos de normalização do homem, para as quais o
         homem buscou criar disciplinas que as conhecessem (ciências morais ou
         normativas), visto que enxerga nelas a felicidade. As duas primeiras teriam
         originado a Lógica e a Moral. O Belo, porém, porque “não implica atividade ou
         melhor a ação, o fazer humano”, não pode ser objeto da Estética, tem uma
         manifestação concreta, que é a Arte. Quando o homem, buscando a felicidade, se
         serve do belo para agir, cria a Arte, que é o objeto da Estética.

                 Definido o objeto, Andrade deixa claro que a Estética é una, mas usa-se
         dividir a fins de estudo, e assim, a Estética Musical é aquela que se aplica ao
         estudo do fenômeno musical. Traçando breve histórico, chama a atenção ao fato
         de que, para os antigos, a música era “entidade numérica”, entendida apenas sob
         os aspectos da aquisição de sons e construção de escalas: era uma entidade



31
   Segundo a organizadora, a “genial definição de Spencer” de que Mário fala é, na verdade, aquela à qual
ele teve acesso através da obra O que é arte?, de Leon Tolstoi, que se transcreve: “Para Spencer, a origem
da arte é a brincadeira [...] Nos animais inferiores, toda a energia da vida é gasta em manter e continuar a
própria vida; mas, no homem, depois que essas necessidades são satisfeitas, resta uma excedente energia.
É esse excedente que é usado na brincadeira e que passa para a arte. A brincadeira é uma cópia da ação
real; a arte é o mesmo” (TOLSTOI, 2002, p. 56).
32
   ANDRADE, 1995, p.4.

                                                     8
abstrata. Os Gregos se preocuparam com os efeitos morais da música33. Com a
        modernidade, une-se a parte matemática e física à psicofisiológica e sociológica,
        sendo que hoje a Estética musical “é a mais desenvolvida e rica” das estéticas
        aplicadas. Frisa que, ao contrário do que pensa Riemann, a estética deve se
        basear sobre a técnica.

               É na última seção desse capítulo (Necessidade da Estética Musical) que
        encontramos a primeira reflexão estética mais propriamente Márioandradiana e
        pessoal. Para ele “Todo músico sabe Estética musical e sabe a dele”, senão “não
        é músico”34, fazendo-se o estudo sério da Estética cada vez mais necessário,
        vista a propensão do moderno à “ilusão de liberdade absoluta”. Observa da
        mesma forma uma tendência atual em seu tempo de um esteticismo exagerado,
        no qual as teorias dominam e “pesam sobre as asas da inspiração. Dá o exemplo
        de Schöenberg e seu dodecafonismo, concluindo com duas reflexões dignas de
        nota. Primeiro aduz que “o que carece no aprendizado de uma teoria é saber
        ignorá-la em seguida”, coisa a que, podemos dizer seguramente, ele mesmo
        praticou ao longo de sua vida, e, por isso mesmo, o vemos, ao longo dos anos,
        transformando suas noções, descobrindo e reconhecendo seus equívocos do
        passado. É uma lição de constante aperfeiçoamento pessoal.

               E, ao final, brinda-nos com uma belíssima ilustração, inclusive, uma das
        únicas mostras de conteúdo nacional-folclórico nessa sua obra:

                                  É das águas fundas da subconsciência que surge a Iara da inspiração.
                                  A Iara nasceu duma sucuriju? dum boto? duma piranha? Quem que
                                  sabe! É certo que nasceu feia vestida de medo fazendo mal pros
                                  homens, ruim. Porém a lenda que o índio criou lhe descobre sob as
                                  ondas dos cabelos verdes uma mulher bonita. A inspiração nasce livre
                                  e informe. É o saber que lhe dá a forma propícia que vai despertar o
                                  máximo de amor nos homens e os levará pela contemplação
                                  desinteressada. É então que a Iara se põe a cantar e encantar. A
                                  inspiração não é bela nem feia. A inspiração é uma fatalidade. A
                                  Beleza é uma conseqüência da inspiração de que o espírito regido por
                                  necessidades superiores faz com uma obra-de-arte.35

                O Capítulo que trata do Belo é bem mais breve, atendo-se a três pontos
        básicos. Primeiro, distingue dois sentidos do Belo: um geral – “tudo o que
        desperta um prazer deslumbrado em nós” – e um mais específico – o que
        desperta prazer em um sentido “superior”, um prazer sem interesse prático e
        imediato. Num segundo momento, se baseando novamente em Lalo, define
        Sensação Estética como “é o ser inteiro que a gente projeta sobre o objeto do
        nosso pensamento pois que o Belo nos prende sem reservas e é essa a sua mais
        primeira e mais profunda característica” e acrescenta que “o Belo não reside
        nem dentro da gente nem no mundo exterior, porém na relação estabelecida
        entre essas duas entidades”36 .



33
   É provável que aqui se refira à parte da República de Platão em que Sócrates e Glauco definem as
harmonias (modos) e ritmos moralmente desejáveis, ao Livro V da Política de Aristóteles e à segunda
parte da sua Retórica.
34
   ANDRADE, 1995, p. 10.
35
   ANDRADE, 1995, p. 11.
36
   ANDRADE, 1995, p. 16.

                                                   9
É no terceiro ponto que diferencia-se as sensações estéticas puramente
        sensuais, elementares (percepção da linha, da cor, do som,...), daquelas mais
        elevadas, que ele chama “sensações estéticas propriamente ditas” que nada mais
        são que a combinação dessas elementares entre si. O objeto que percebemos
        produz em nós sensações simultâneas provenientes de sua forma e
        universalidade. Julgamos pertinente mencionar, talvez em dissonância com o
        autor, que, mesmo dotado da universalidade, a noção daquilo que é o belo,
        evidentemente é uma noção temporal e geográfica, assim como o é a toda e
        qualquer noção moral. Nesse sentido, podemos ainda aduzir uma constante, se
        não expansão, remodelagem das fronteiras do Belo.

                Por conseguinte, a Arte é a expressão desse Belo livre e sem interesse
        imediato. Para Mário de Andrade, a felicidade é “o instinto mais primeiro e
        irracional de todo ser vivo”. Toda criação humana – até mesmo a criação prática
        - é expressão e, por isso mesmo, individual e nacional. São estabelecidos duas
        propriedades psicológicas da Arte: imitação e prazer. Em toda expressão
        humana, inevitavelmente, há imitação pois “o homem expressa o que sente e
        sente o que percebe”. A dimensão do prazer se encontra precisamente em
        adicionar elementos desnecessários que torne os objetos, além de úteis,
        agradáveis. Nas manifestações artísticas rudimentares, a mímesis não é com
        relação à natureza, mas aos fatores diretos do Belo. O que o homem primitivo
        reproduzia eram os seus desejo, seus ideais práticos.

                A arte nasce de três necessidades: de expressão (o que diferencia os
        homens dos animais: controle da expressão), de prazer (interesse idealizado, que
        tende para o melhor) e de comunicação (entre homens e homens, e entre homens
        e entidades superiores). O primitivo não dissocia interesses imediatos de
        mediatos: o Bem do Belo. Nas primeiras civilizações, a arte ainda é utilitária, e,
        para alcançar esse fim, o artista não é um ser que obedece aos seus impulsos
        individuais: ele é um operário das necessidades líricas e religiosas do povo e o
        artista é uno (é poeta, músico e dançarino). Nota-se, todavia, a dissociação da
        arte e da utilidade a partir da especialização em uma única arte sobre a qual o
        “artista duma Arte só principia a brincar e a virtuosidade aparece”.

               Em O artista e o artesão, Mário irá definir o que ele chama de “três
        manifestações diferentes ou três etapas” da “técnica de fazer obras de arte”37: o
        artesanato38, a virtuosidade39 e a solução pessoal do artista40. Ao longo do
        discurso, ele irá reafirmar inúmeras vezes que o verdadeiro objeto e fim da arte
        é, precisamente, a obra de arte, entendendo haver “falta de uma atitude
        verdadeiramente estética na maioria dos artistas” seus contemporâneos, no
        sentido em que transformam eles próprios em objeto da arte, demonstrando, ao
        seu ver, puro orgulho e vaidade.41

37
   ANDRADE, 1938.
38
   “O artesanato é a parte da técnica que se pode ensinar.” (ANDRADE, 1938)
39
   “... conhecimento e prática das diversas técnicas históricas da arte.” (ANDRADE, 1938)
40
   “Esta parte da técnica obedece a segredos, caprichos e imperativos do ser subjetivo, em tudo o que ele
é, como indivíduo e como ser social. Isto não se ensina e reproduzir é imitação.” (ANDRADE, 1938)
41
   “Hoje, o objeto da arte não é mais a obra de arte, mas o artista. E não poderá haver maior engano. Faz-
se imprescindível que adquiramos uma perfeita consciência, [...] uma atitude estética disciplinada,
apaixonadamente insubversível, livre mas legítima, severa apesar de insubmissa, disciplina de todo o ser,
para que alcancemos realmente a arte.” (ANDRADE, 1938)

                                                   10
Sendo assim, a etapa do artesanato, do próprio domínio da técnica tem
        papel fundamental, necessário à realização da obra de arte, é imprescindível para
        que exista um artista verdadeiro, de forma que “nos processos de movimentar o
        material, a arte se confunde quase inteiramente com o artesanato”42. Este último
        se compõe de ensinamentos dogmáticos, cuja negação é “sempre prejudicial à
        obra de arte”43. A abstenção em relação ao artesanato, para ele, só prejudica a
        obra, mas não o artista. Nesse sentido, é fácil compreender o pessimismo com
        que Mário vê o período romântico oitocentista44 – que significou o exagero da
        dimensão que ele chamou solução pessoal do artista, dando espaço ao
        surgimento de inúmeros artistas medíocres – e a nostalgia com que fala do
        classicismo45 – um quase-extremo oposto a essa ideia: tem plena consciência do
        artesanato, e o coloca em plano de primado absoluto – explicitados na sua
        Pequena História da Música.

                 Mário aponta também para os perigos da virtuosidade, que:

                                   “pode levar o artista a um tradicionalismo técnico, meramente
                                   imitativo, em que o tradicionalismo perde suas virtudes sociais pra se
                                   tornar simplesmente ‘passadismo’[...], "academismo"; como porque
                                   pode tornar o artista uma vítima de suas próprias habilidades, um
                                   "virtuose" na pior significação da palavra, isto é, um indivíduo que
                                   nem sequer chega ao princípio estético, sempre respeitável, da arte
                                   pela arte, mas que se compraz em meros malabarismos de habilidade
                                   pessoais, entregue à sensualidade do aplauso ignaro.”46

                De volta à questão da dissociação arte-utilidade, umas últimas
        considerações são feitas: tendo se desintegrado do condicionamento à vida
        prática, tornando-se expressão de espírito livre e acidental, a arte fez-se cada vez
        mais livre e continua fazendo-se. É por isso que o seu conceito atual é o de
        “expressão livre e sem interesse imediato do espírito”. É assim que a intuição é
        inerente e necessária à produção artística. E a expressão não é a origem, e sim o
        fim do fenômeno artístico, que se realiza através do Belo. Então, para que a
        ideia de arte seja compreendida, deve ser dissociada do Belo: o Belo não é o fim
        da arte, pois essa é o “conhecimento virtual da vida idealizada”47. O capítulo
        finaliza com uma crítica contundente à arte-pura, que o autor considera pobre
        por apenas realizarem o Belo e nada mais. Diz Mário dos partidários dessa
        estética: “o mal foi que emperrados dentro duma teoria não foram bastante
        criadores ou bastante livres para se livrarem dela. [...] Se esqueceram que a arte


42
   ANDRADE, 1938.
43
   Ibidem.
44
   “...os preconceitos e falsificações estéticas da música romântica diminuem o valor, irregularizam muito
a produção musical do séc. XIX; e os compositores menores do Romantismo nos parecem, quando não
insuportáveis, no geral destituídos de intêresse” (sic). (ANDRADE, 1951, p. 118)
45
   “O que caracteriza o classicismo dele é ter atingido, como nenhum outro período antes dele, a Música
Pura, isto é: a música que não tem outra significação mais do que ser música; que comove em alegria ou
tristeza pela boniteza das formas, pela boniteza dos elementos sonoros, pela força dinamogênica, pela
perfeição da técnica e equilíbrio do todo. [...] O século XVIII é um tempo em que todo músico escrevia
bem! [...] O que faz essa gente do século XVIII parecer mais numerosa e excepcional é ter o classicismo
equilibrado, enfim o conceito estético da música com a realidade dos elementos sonoros e o efeito deles
no organismo”. (ANDRADE, 1951, p. 117-118)
46
   ANDRADE, 1938.
47
   ANDRADE, 1995, p. 31.

                                                   11
é expressão e conhecimento. Por isso os Kandinskis, os Lagers morreram de
        pobreza”48.

               A música, por fim, como arte, deve ser uma expressão, e, sendo assim,
        objeto não só de conhecimento como de compreensão. Todavia, a compreensão
        musical não é textual, a consciência não pode determiná-la, senão de maneira
        vaga associada aos outros sentidos. Para Andrade, essa compreensão não é
        consciente, mas fisiológica. É uma arte sintética:
                                   Procurando um símile que nos possa auxiliar neste trabalho aparece
                                   logo a palavra, irmã-gêmea da Música, tendo ambas nascido juntas do
                                   mesmo grito inicial. [...] O grito só deixou de ser ato reflexo e se
                                   tornou expressão quando foi intelectualizado, isto é, se tornou
                                   consciente. [...](Todavia) ao passo que esta (palavra) se transformou
                                   em símbolo de necessidade imediata [...], o som seguia direto em
                                   busca de necessidades superiores do espírito e procurava satisfazê-
                                   las.49

                A música funde o ser psicológico e o fisiológico; seus elementos, por si
        só estilizações de elementos naturais. Todavia, mesmo inconsciente, a expressão
        musical, ainda que vaga, é plena de valor, passível de compreensão intelectual,
        tendo profundos efeitos fisiológicos: ela “é compreendida como intuição pura
        pela subconsciência.”50 A música realiza-se através de ideias musicais, que se
        compreendem apenas dentro de sua própria linguagem, e não conscientemente,
        coisa que é possível nas outras artes: a compreensão musical só é possível
        através de uma consciência musical. 51



     4. CONCLUSÃO

                À guisa de uma reflexão final, faz-se de estimado interesse uma breve
        análise da Oração de Paraninfo dos diplomandos do Conservatório Dramático e
        Musical de São Paulo, no ano de 1935, intitulada Cultura Musical. O autor fala
        de uma “radical transformação” que teria se dado em sua existência e o
        motivado a “revelar coisas escuras”52. Deduz-se que essa transformação de que
        ele fala seja o início de seu trabalho no Departamento de Cultura da Prefeitura
        de São Paulo53:

                                   “Sempre conservara a ilusão de que era um homem útil apenas porque
                                   escrevia no meu canto, livros de luta em prol da arte, da renovação e
                                   da nacionalização do Brasil” e que desenvolvera uma “filosofia
                                   egoística, de espírito eminentemente esportivo, que fizera de mim
                                   literalmente um gozador [...], afortunado duma fartura vaidosa de
                                   ilusões e defesas pessoais. [...] E já agora, com um sentimento menos

48
   ANDRADE, 1995, p. 32.
49
   ANDRADE, 1995, p. 46.
50
   ANDRADE, 1995, p. 51.
51
   ANDRADE, 1995, p. 51.
52
   ANDRADE, 1965, p. 235-236
53
   “O autor acreditava [...] que é preciso ‘fazer com que o povo viva sua cultura, pois só assim poderá se
reconhecer como nação’, o que fica claro com as obras que realiza entre 1935 e 1937, período em que
atua como diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, dando continuidade objetiva às
suas idéias.” (SILVA E ALVIM; RAMOS, 2009, p. 5)

                                                   12
teórico da vida, [...] eu só posso, não perdoar-me, porém me
                                  compadecer do que fui, lembrando a escuridão da minha total
                                  ignorância: eu não sabia!”54

                Inicia-se, assim, uma sustentada crítica à concepção utilitarista e vazia
        em relação à arte presente na sociedade em que se encontrava, mas, de igual
        modo, bastante presente para nós mesmos que, como observa Harnoncourt,
        ouvimos muito mais música, mas, por isso mesmo, muito menos55. “Não tive até
        hoje um só aluno que me respondesse ter vindo estudar música!”, coisa que ele
        considera o símbolo da situação precária da nossa “moral cultural”, de modo que
        os alunos buscam no Conservatório um fim único, vaidoso, sacrificador dos
        valores nobres da arte pela esperança de um aplauso público: a busca por
        aprimorar a técnica de um instrumento, reflexo de uma “confusão moral entre
        música e virtuosidade” em que a “glória é uma palavra curta em nosso espírito, e
        significa apenas aplauso e dinheiro”.

                “Não se ensina música no Brasil, vende-se virtuosidade”, vive-se de uma
        total ignorância à verdadeira cultura musical, e “em vez de buscarem na música
        as elevações morais e sociais da arte, só buscam a sensualidade dum
        malabarismo virtuosístico”. Mário defende a oficialização do ensino musical, a
        proteção estatal aos conservatórios, visto que aguardar pelo mecenismo privado,
        em geral, não “permite garantir quaisquer esperanças”: o privado vive de uma
        caridade assustada, supersticiosa; “ninguém compreende a existência como uma
        luta, mas como um perigo de ir para o inferno”.56

                Nesse sentido, defende, apesar de num plano teórico ser contrário à
        “intromissão” das escolas de artes nas universidades, a necessidade de existência
        universitária do músico brasileiro, numa época em que o ensino da música
        restringia-se, quase sempre, aos conservatórios: “o nosso músico precisa
        imediatamente contagiar-se do espírito universitário, porque a inobservância do
        nosso músico quanto a cultura geral é simplesmente inenarrável”. Além de
        fechar-se no mundo da música, restringe-se, seguidamente, à parte da música
        que se especializou, “uma vaidade de zepelin sozinho no ar”57. Mário apela aos
        alunos formandos:

                                  “Eu não vos convido siquer à felicidade, pois que da experiência que
                                  dela tenho, a felicidade individual me parece mesquinha, desumana,
                                  muito inútil. [...] eu vos trago o convite da luta [...] por uma realidade
                                  mais alta e mais de todos”.58

                      A reflexão estética presente na documentação do pensamento de
        Mário de Andrade, revela-se-nos “estética” num sentido abrangentíssimo,
        mostrando-se preocupado com todas as etapas e dimensões da arte musical: da
        produção à percepção, dos fenômenos auditivos à situação social da música. Isso
        tudo derivado de um homem que vê esse mundo de forma tanto interna quanto
        externa. Mário transita bastante e bem entre os variados campos artísticos de

54
   ANDRADE, 1965, p. 237
55
   “Ouvimos, atualmente, muito mais música que antes – quase ininterruptamente – mas esta, na prática,
representa bem pouco, possuindo não mais que uma função decorativa.” (HARNONCOURT, 1988, p. 13)
56
   ANDRADE, 1965, p. 240.
57
   ANDRADE, 1965, p. 242-243.
58
   ANDRADE, 1965, p. 246.

                                                   13
forma a, mesmo tratando de forma específica da Música, despertar uma
          problematização estética que engloba o mundo da arte como um todo.

                 A vasta experiência como instrumentista não profissional, professor de
          música, teorizador e concretizador de uma arte nacional, e, talvez mais ainda,
          ouvinte, aliada ao constante questionamento da realidade e da vida cultural em
          que se insere, deixou-nos em sua obra herança preciosa, fonte para reflexões
          extremamente atuais, ainda que não exaustivamente aprofundadas. Com efeito,
          podemos aduzir que sua principal virtude está precisamente nessa reflexão
          contingencial e integrada das dimensões da música, assim como de suas relações
          exteriores, fugindo ao comum hermetismo com que atuam muitos daqueles que
          se dedicam ao aprofundamento.

              Vosso domínio é a música, e infame será quem julgar menos útil cuidar da
          música que do algodão. Tanto num como noutro destino, encontrareis sempre,
          como fim final de tudo, a humanidade. E todos os sacrifícios que me custaram
          as frases desse discurso, todos eu fiz por vós, fiz contente, buscando abrir-vos
          de par a par, em toda a sua soberania insaciável, as portas da humanidade.59




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



ANDRADE, Mário de. Pequena História da Música. São Paulo, Martins, 1951.

59
     ANDRADE, 1965, p. 246.

                                             14
______. Aspectos da Música Brasileira. São Paulo, Martins, 1965.

______. Introdução à Estética Musical. São Paulo, Hucitec, 1995.

______. O Trovador In: Pauliceia Desvairada, São Paulo, 1922. Disponível em:
<http://www.horizonte.unam.mx/brasil/Mário1.html>. Acesso em 22 out. 2011.

______. O artista e o Artesão: Aula Inaugural dos cursos de Filosofia e História da
Arte, do Instituto de Artes, Universidade do Distrito Federal, em 1938. Disponível em
<http://grupocad.blogspot.com/2007/02/mrio-de-andrade-o-artista-e-o-arteso.html>.
Acesso em 20.10.2011.

AVELAR, Idelber. Ritmos do popular no erudito: Política e música em Machado de
Assis. X Congresso ABRALIC, Rio de Janeiro, 2006.

BARONGENO, Luciana. Mário de Andrade, Professor do Conservatório Dramático e
Musical de São Paulo. XV Colóquio do Programa de Pós-Graduação da UNIRIO. Rio
de Janeiro, nov. 2010.

BREUNING, Tiago Hermano. Ética e Estética em Mário de Andrade. Anuário de
Literatura, Santa Catarina v. 13, n. 1, 2008, p. 134

CONTIER, A. D. O Nacional na Música Erudita Brasileira: Mário de Andrade e a
Questão da Identidade Cultural. Fenix - Revista de História e Estudos Culturais, v. 1, n.
1, out/dez. 2004. Disponível em <revistafenix.pro.br>. Acesso em 17 out. 2001.

COSME, Luís. Dicionário Musical. Rio de Janeiro, INL, 1957.

GATTO, Dante. O sacrifício estético e a tragédia pessoal de Mário de Andrade. Revista
Urutágua, Maringá, n. 9, abr/jul, 2006.

NUNES, B. Mário de Andrade: As Enfibraturas do Modernismo. Revista
Iberoamericana. Madri, v. 50, n. 126, p. 63-75, jan/mar. 1984. Disponível em:
<http://revista-iberoamericana.pitt.edu/ojs/index.php/Iberoamericana/article/view/3861/
4030>. Acesso em 22 out. 2011.

HARNONCOURT, Nikolaus. O discurso dos sons. Tradução por Marcelo Fagerlande.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.

MELLO E SOUZA, Gilda de. Prefácio In Introdução à Estética Musical. São Paulo,
Hucitec, 1995.

SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro,
1917-1933. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor Ltda, 2001.

SILVA E ALVIN, F. J.; RAMOS, M. M. Identidade Nacional e Nacionalismo Estético
em Mário de Andrade. REVELLI Revista de Educação, Linguagem e Literatura da
UEG-Inhumas, v. 1, n. 1, pg. 65-79, mar. 2009.




                                           15
SOUZA, Ricardo Luiz. Modernismo e Cultura Popular: o Projeto Estético de Mário de
Andrade. Mediações – Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 10, n.1, p. 105-123,
jan.-jun. 2005

TOLSTOI, Leon. O que é arte? Tradução por Bete Torii. São Paulo, Ediouro, 2002.

TONI, Flávia Camargo. Um livro Didático de Mário de Andrade In: Introdução à
Estética Musical. São Paulo, Hucitec, 1995.




                                        16

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Tecnologia assistiva na inclusão
Tecnologia assistiva na inclusãoTecnologia assistiva na inclusão
Tecnologia assistiva na inclusãoCariocaseventos
 
Literatura infantil eli 2013 1
Literatura infantil eli 2013 1Literatura infantil eli 2013 1
Literatura infantil eli 2013 1rosanafpontes
 
Psicopatologia I - Aula 1: Introdução aos Conceitos da Psicopatologia.
Psicopatologia I - Aula 1: Introdução aos Conceitos da Psicopatologia.Psicopatologia I - Aula 1: Introdução aos Conceitos da Psicopatologia.
Psicopatologia I - Aula 1: Introdução aos Conceitos da Psicopatologia.Alexandre Simoes
 
O papel da família na educação dos filhos
O papel da família na educação dos filhosO papel da família na educação dos filhos
O papel da família na educação dos filhosMarta Lemos
 
Improvisação para o teatro - Viola Spolin
Improvisação para o teatro - Viola SpolinImprovisação para o teatro - Viola Spolin
Improvisação para o teatro - Viola SpolinPIBID_Teatro2014
 
3o slide linha do tempo na historia da educacao de surdos
3o slide   linha do tempo na historia da educacao de surdos3o slide   linha do tempo na historia da educacao de surdos
3o slide linha do tempo na historia da educacao de surdosJean Rodrigo
 
Slide Autismo
Slide   AutismoSlide   Autismo
Slide AutismoUNIME
 
Conteúdos d arte e ed. f[isica para o 1º e 2º ano do ensino fundamental
Conteúdos d arte e ed. f[isica para o 1º e 2º ano do ensino fundamentalConteúdos d arte e ed. f[isica para o 1º e 2º ano do ensino fundamental
Conteúdos d arte e ed. f[isica para o 1º e 2º ano do ensino fundamentaljosivaldopassos
 
Desenvolvimento Humano
Desenvolvimento HumanoDesenvolvimento Humano
Desenvolvimento Humanoandressa bonn
 
Reuniao Maternal I e II
Reuniao  Maternal I e IIReuniao  Maternal I e II
Reuniao Maternal I e IICRG
 
Ficha ssa2 situação de saude e acompanhamento das familias na area
Ficha ssa2 situação de saude e acompanhamento das familias na areaFicha ssa2 situação de saude e acompanhamento das familias na area
Ficha ssa2 situação de saude e acompanhamento das familias na arearosa07
 
EDUCAÇÃO, PSICOLOGIA E PARADIGMAS
EDUCAÇÃO, PSICOLOGIA E PARADIGMASEDUCAÇÃO, PSICOLOGIA E PARADIGMAS
EDUCAÇÃO, PSICOLOGIA E PARADIGMASCassia Duque
 
Intervenção precoce na infância
Intervenção precoce na infânciaIntervenção precoce na infância
Intervenção precoce na infânciaBertilia Madeira
 
UFCD 9185- Cuidados de Rotina Diária e Atividades Promotoras do Desenvolvimen...
UFCD 9185- Cuidados de Rotina Diária e Atividades Promotoras do Desenvolvimen...UFCD 9185- Cuidados de Rotina Diária e Atividades Promotoras do Desenvolvimen...
UFCD 9185- Cuidados de Rotina Diária e Atividades Promotoras do Desenvolvimen...MafaldaIsabelMoraisB
 
Introdução a neuropsicopedagogia
Introdução a neuropsicopedagogiaIntrodução a neuropsicopedagogia
Introdução a neuropsicopedagogiaRochelle Arruda
 

Mais procurados (20)

Apoio à infância
Apoio à infânciaApoio à infância
Apoio à infância
 
Tecnologia assistiva na inclusão
Tecnologia assistiva na inclusãoTecnologia assistiva na inclusão
Tecnologia assistiva na inclusão
 
Literatura infantil eli 2013 1
Literatura infantil eli 2013 1Literatura infantil eli 2013 1
Literatura infantil eli 2013 1
 
Psicopatologia I - Aula 1: Introdução aos Conceitos da Psicopatologia.
Psicopatologia I - Aula 1: Introdução aos Conceitos da Psicopatologia.Psicopatologia I - Aula 1: Introdução aos Conceitos da Psicopatologia.
Psicopatologia I - Aula 1: Introdução aos Conceitos da Psicopatologia.
 
Componente curricular de arte
Componente curricular de arteComponente curricular de arte
Componente curricular de arte
 
O papel da família na educação dos filhos
O papel da família na educação dos filhosO papel da família na educação dos filhos
O papel da família na educação dos filhos
 
Improvisação para o teatro - Viola Spolin
Improvisação para o teatro - Viola SpolinImprovisação para o teatro - Viola Spolin
Improvisação para o teatro - Viola Spolin
 
Artes Visuais
Artes VisuaisArtes Visuais
Artes Visuais
 
3o slide linha do tempo na historia da educacao de surdos
3o slide   linha do tempo na historia da educacao de surdos3o slide   linha do tempo na historia da educacao de surdos
3o slide linha do tempo na historia da educacao de surdos
 
Slide Autismo
Slide   AutismoSlide   Autismo
Slide Autismo
 
Conteúdos d arte e ed. f[isica para o 1º e 2º ano do ensino fundamental
Conteúdos d arte e ed. f[isica para o 1º e 2º ano do ensino fundamentalConteúdos d arte e ed. f[isica para o 1º e 2º ano do ensino fundamental
Conteúdos d arte e ed. f[isica para o 1º e 2º ano do ensino fundamental
 
Plano de aula
Plano de aulaPlano de aula
Plano de aula
 
Desenvolvimento Humano
Desenvolvimento HumanoDesenvolvimento Humano
Desenvolvimento Humano
 
Reuniao Maternal I e II
Reuniao  Maternal I e IIReuniao  Maternal I e II
Reuniao Maternal I e II
 
Ufcd-9634-Jovens.doc
Ufcd-9634-Jovens.docUfcd-9634-Jovens.doc
Ufcd-9634-Jovens.doc
 
Ficha ssa2 situação de saude e acompanhamento das familias na area
Ficha ssa2 situação de saude e acompanhamento das familias na areaFicha ssa2 situação de saude e acompanhamento das familias na area
Ficha ssa2 situação de saude e acompanhamento das familias na area
 
EDUCAÇÃO, PSICOLOGIA E PARADIGMAS
EDUCAÇÃO, PSICOLOGIA E PARADIGMASEDUCAÇÃO, PSICOLOGIA E PARADIGMAS
EDUCAÇÃO, PSICOLOGIA E PARADIGMAS
 
Intervenção precoce na infância
Intervenção precoce na infânciaIntervenção precoce na infância
Intervenção precoce na infância
 
UFCD 9185- Cuidados de Rotina Diária e Atividades Promotoras do Desenvolvimen...
UFCD 9185- Cuidados de Rotina Diária e Atividades Promotoras do Desenvolvimen...UFCD 9185- Cuidados de Rotina Diária e Atividades Promotoras do Desenvolvimen...
UFCD 9185- Cuidados de Rotina Diária e Atividades Promotoras do Desenvolvimen...
 
Introdução a neuropsicopedagogia
Introdução a neuropsicopedagogiaIntrodução a neuropsicopedagogia
Introdução a neuropsicopedagogia
 

Destaque

Mário de Andrade - Introdução à estética musical
Mário de Andrade - Introdução à estética musicalMário de Andrade - Introdução à estética musical
Mário de Andrade - Introdução à estética musicalIan S.
 
Anais - Semináro Sobre Leitura e Produção no Ensino Superior
Anais - Semináro Sobre Leitura e Produção no Ensino SuperiorAnais - Semináro Sobre Leitura e Produção no Ensino Superior
Anais - Semináro Sobre Leitura e Produção no Ensino Superiorslpes
 
Resenha do livro Pais Brilhantes, Professores Fascinantes
Resenha do livro Pais Brilhantes, Professores Fascinantes Resenha do livro Pais Brilhantes, Professores Fascinantes
Resenha do livro Pais Brilhantes, Professores Fascinantes zmcampos
 
Projeto ler e escrever compromisso de todas as áreas GEOGRAFIA
Projeto ler e escrever compromisso de todas as áreas GEOGRAFIAProjeto ler e escrever compromisso de todas as áreas GEOGRAFIA
Projeto ler e escrever compromisso de todas as áreas GEOGRAFIAAdriana Melo
 
Ficha descritiva 1 ano 1 trimestre
Ficha descritiva 1 ano   1 trimestreFicha descritiva 1 ano   1 trimestre
Ficha descritiva 1 ano 1 trimestreNaysa Taboada
 
A IMPORTÂNCIA DA LEITURA NO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COGNITIVO DO SER HUMANO:...
A IMPORTÂNCIA DA LEITURA NO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COGNITIVO DO SER HUMANO:...A IMPORTÂNCIA DA LEITURA NO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COGNITIVO DO SER HUMANO:...
A IMPORTÂNCIA DA LEITURA NO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COGNITIVO DO SER HUMANO:...Jede Silva
 

Destaque (8)

Mário de Andrade - Introdução à estética musical
Mário de Andrade - Introdução à estética musicalMário de Andrade - Introdução à estética musical
Mário de Andrade - Introdução à estética musical
 
Anais - Semináro Sobre Leitura e Produção no Ensino Superior
Anais - Semináro Sobre Leitura e Produção no Ensino SuperiorAnais - Semináro Sobre Leitura e Produção no Ensino Superior
Anais - Semináro Sobre Leitura e Produção no Ensino Superior
 
Resenha do livro Pais Brilhantes, Professores Fascinantes
Resenha do livro Pais Brilhantes, Professores Fascinantes Resenha do livro Pais Brilhantes, Professores Fascinantes
Resenha do livro Pais Brilhantes, Professores Fascinantes
 
Biblioteca escolar
Biblioteca escolarBiblioteca escolar
Biblioteca escolar
 
Projeto ler e escrever compromisso de todas as áreas GEOGRAFIA
Projeto ler e escrever compromisso de todas as áreas GEOGRAFIAProjeto ler e escrever compromisso de todas as áreas GEOGRAFIA
Projeto ler e escrever compromisso de todas as áreas GEOGRAFIA
 
Atividades
AtividadesAtividades
Atividades
 
Ficha descritiva 1 ano 1 trimestre
Ficha descritiva 1 ano   1 trimestreFicha descritiva 1 ano   1 trimestre
Ficha descritiva 1 ano 1 trimestre
 
A IMPORTÂNCIA DA LEITURA NO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COGNITIVO DO SER HUMANO:...
A IMPORTÂNCIA DA LEITURA NO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COGNITIVO DO SER HUMANO:...A IMPORTÂNCIA DA LEITURA NO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COGNITIVO DO SER HUMANO:...
A IMPORTÂNCIA DA LEITURA NO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COGNITIVO DO SER HUMANO:...
 

Semelhante a A introdução à estética musical

Semelhante a A introdução à estética musical (20)

Definições de arte pergunta resposta
Definições de arte pergunta respostaDefinições de arte pergunta resposta
Definições de arte pergunta resposta
 
M O D E R N I S M
M O D E R N I S MM O D E R N I S M
M O D E R N I S M
 
robertobaronas,+Gerente+da+revista,+19.pdf
robertobaronas,+Gerente+da+revista,+19.pdfrobertobaronas,+Gerente+da+revista,+19.pdf
robertobaronas,+Gerente+da+revista,+19.pdf
 
Apostila de-arte-eja
Apostila de-arte-ejaApostila de-arte-eja
Apostila de-arte-eja
 
Apostila de Arte - EJA.pdf
Apostila de Arte - EJA.pdfApostila de Arte - EJA.pdf
Apostila de Arte - EJA.pdf
 
Critica
CriticaCritica
Critica
 
Modernismo no Brasil
Modernismo no BrasilModernismo no Brasil
Modernismo no Brasil
 
Modernismo no Brasil - Literatura
Modernismo no Brasil - LiteraturaModernismo no Brasil - Literatura
Modernismo no Brasil - Literatura
 
A origem da arte
A origem da arteA origem da arte
A origem da arte
 
semana de arte moderna
semana de arte modernasemana de arte moderna
semana de arte moderna
 
O modernismo em portugal
O modernismo em portugalO modernismo em portugal
O modernismo em portugal
 
semana-da-arte-moderna-e-manifestos-modernistas-para-os-3os-anos.ppt
semana-da-arte-moderna-e-manifestos-modernistas-para-os-3os-anos.pptsemana-da-arte-moderna-e-manifestos-modernistas-para-os-3os-anos.ppt
semana-da-arte-moderna-e-manifestos-modernistas-para-os-3os-anos.ppt
 
A obra de eurico goncalves na perspectiva do surrealismo português e internac...
A obra de eurico goncalves na perspectiva do surrealismo português e internac...A obra de eurico goncalves na perspectiva do surrealismo português e internac...
A obra de eurico goncalves na perspectiva do surrealismo português e internac...
 
Arte (Academia ENEM).pptx
Arte (Academia ENEM).pptxArte (Academia ENEM).pptx
Arte (Academia ENEM).pptx
 
O que é a arte
O que é a arteO que é a arte
O que é a arte
 
Romantismo 2
Romantismo 2Romantismo 2
Romantismo 2
 
AULA 1 - O QUE É ARTE.pdf
AULA 1 - O QUE É ARTE.pdfAULA 1 - O QUE É ARTE.pdf
AULA 1 - O QUE É ARTE.pdf
 
1 o que é arte- Texto-
1 o que é arte- Texto-1 o que é arte- Texto-
1 o que é arte- Texto-
 
Revisão 4ºbim respondida
Revisão 4ºbim respondidaRevisão 4ºbim respondida
Revisão 4ºbim respondida
 
Mordenismo
MordenismoMordenismo
Mordenismo
 

Mais de gersonastolfi

Guerra-Peixe: Obras para violino e piano - encarte
Guerra-Peixe: Obras para violino e piano - encarteGuerra-Peixe: Obras para violino e piano - encarte
Guerra-Peixe: Obras para violino e piano - encartegersonastolfi
 
Encarte Poemas da terra
Encarte Poemas da terraEncarte Poemas da terra
Encarte Poemas da terragersonastolfi
 
Quarteto Poemas da terra - Bruno Kiefer
Quarteto Poemas da terra - Bruno KieferQuarteto Poemas da terra - Bruno Kiefer
Quarteto Poemas da terra - Bruno Kiefergersonastolfi
 
Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)
Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)
Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)gersonastolfi
 
Encarte - Prelúdios em Porto Alegre
Encarte - Prelúdios em Porto AlegreEncarte - Prelúdios em Porto Alegre
Encarte - Prelúdios em Porto Alegregersonastolfi
 
Música de Porto Alegre - Erudito I
Música de Porto Alegre - Erudito IMúsica de Porto Alegre - Erudito I
Música de Porto Alegre - Erudito Igersonastolfi
 
Mario de Andrade: O Artista e o Artesão
Mario de Andrade: O Artista e o ArtesãoMario de Andrade: O Artista e o Artesão
Mario de Andrade: O Artista e o Artesãogersonastolfi
 
Francisco carpintero: "Mos italicus", "mos gallicus" y el humanismo racional...
Francisco carpintero:  "Mos italicus", "mos gallicus" y el humanismo racional...Francisco carpintero:  "Mos italicus", "mos gallicus" y el humanismo racional...
Francisco carpintero: "Mos italicus", "mos gallicus" y el humanismo racional...gersonastolfi
 
Cicero - Das Leis (De legibus)
Cicero - Das Leis (De legibus)Cicero - Das Leis (De legibus)
Cicero - Das Leis (De legibus)gersonastolfi
 
Jesús Ballesteros - Postmodernidad: decadencia o resistencia
Jesús Ballesteros - Postmodernidad: decadencia o resistenciaJesús Ballesteros - Postmodernidad: decadencia o resistencia
Jesús Ballesteros - Postmodernidad: decadencia o resistenciagersonastolfi
 

Mais de gersonastolfi (12)

Guerra-Peixe: Obras para violino e piano - encarte
Guerra-Peixe: Obras para violino e piano - encarteGuerra-Peixe: Obras para violino e piano - encarte
Guerra-Peixe: Obras para violino e piano - encarte
 
Encarte Poemas da terra
Encarte Poemas da terraEncarte Poemas da terra
Encarte Poemas da terra
 
Quarteto Poemas da terra - Bruno Kiefer
Quarteto Poemas da terra - Bruno KieferQuarteto Poemas da terra - Bruno Kiefer
Quarteto Poemas da terra - Bruno Kiefer
 
Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)
Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)
Salamanca do Jarau (Ensaio de Luiz Cosme)
 
Catalogo Piazzolla
Catalogo PiazzollaCatalogo Piazzolla
Catalogo Piazzolla
 
Encarte - Prelúdios em Porto Alegre
Encarte - Prelúdios em Porto AlegreEncarte - Prelúdios em Porto Alegre
Encarte - Prelúdios em Porto Alegre
 
Música de Porto Alegre - Erudito I
Música de Porto Alegre - Erudito IMúsica de Porto Alegre - Erudito I
Música de Porto Alegre - Erudito I
 
Mario de Andrade: O Artista e o Artesão
Mario de Andrade: O Artista e o ArtesãoMario de Andrade: O Artista e o Artesão
Mario de Andrade: O Artista e o Artesão
 
Francisco carpintero: "Mos italicus", "mos gallicus" y el humanismo racional...
Francisco carpintero:  "Mos italicus", "mos gallicus" y el humanismo racional...Francisco carpintero:  "Mos italicus", "mos gallicus" y el humanismo racional...
Francisco carpintero: "Mos italicus", "mos gallicus" y el humanismo racional...
 
Cicero - Das Leis (De legibus)
Cicero - Das Leis (De legibus)Cicero - Das Leis (De legibus)
Cicero - Das Leis (De legibus)
 
Mahler contrapunto
Mahler contrapuntoMahler contrapunto
Mahler contrapunto
 
Jesús Ballesteros - Postmodernidad: decadencia o resistencia
Jesús Ballesteros - Postmodernidad: decadencia o resistenciaJesús Ballesteros - Postmodernidad: decadencia o resistencia
Jesús Ballesteros - Postmodernidad: decadencia o resistencia
 

A introdução à estética musical

  • 1. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES – DEPARTAMENTO DE MÚSICA CADEIRA DE ESTÉTICA DA MÚSICA A INTRODUÇÃO À ESTÉTICA MUSICAL DE MÁRIO DE ANDRADE PORTO ALEGRE, NOVEMBRO DE 2011
  • 2. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE ARTES – DEPARTAMENTO DE MÚSICA CADEIRA DE ESTÉTICA DA MÚSICA A INTRODUÇÃO À ESTÉTICA MUSICAL DE MÁRIO DE ANDRADE GERSON TADEU ASTOLFI VIVAN FILHO Trabalho apresentado para a avaliação na cadeira de Estética da Música, pelo Departamento de Música do Instituto da Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ministrada pelo professor Fernando Lewis de Mattos. PORTO ALEGRE, NOVEMBRO DE 2011
  • 3. Através de todos os filósofos que percorri, num primeiro e talvez fátuo anseio de saber, jamais um conceito deixou de se quebrar diante de novas experiências. Eu não sei o que é o Belo. Eu não sei o que é a Arte. Mário de Andrade O artista e o Artesão1 Eu tenho desejo de uma arte que, social sempre, tenha uma liberdade mais estética em que o homem possa criar a sua forma de belezas mais convertido aos seus sentimentos e justiças do tempo de paz. A arte é filha da dor, é filha sempre de algum impedimento vital. Mas o bom, o grande, o livre, o verdadeiro será cantar as dores fatais, as dores profundas, nascidas exatamente desta grandeza de ser e de viver. Mário de Andrade Posfácio para “Café” 1 Aula Inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, Universidade do Distrito Federal, em 1938.
  • 4. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 1 2. O AUTOR ................................................................................................................ 1 2.1. O poeta: da Semana de Arte Moderna aos anos 40 ...................................... 1 2.2. O musicólogo: guru dos compositores modernistas...................................... 3 3. A OBRA ................................................................................................................... 5 4. CONCLUSÃO ....................................................................................................... 12 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 14
  • 5. 1. INTRODUÇÃO A proposta deste breve estudo é, apesar das empenhadas tentativas de aprofundamento e da relativa riqueza de fontes consultadas, de cunho bastante superficial. Tanto a julgar pelo conhecimento limitado e em construção daquele que o escreve quanto pela proposta do trabalho: não quer nem pode almejar ser um estudo criterioso e estanque pelo próprio caráter intrínseco parcial que a proposta de uma resenha deve encerrar. Em um primeiro momento, iremos nos ater a duas das principais dimensões do autor, que julgamos fundamentais à formação do pensamento estético de Mário de Andrade, assim como da aplicação prática desse mesmo pensamento: suas atividades poéticas e musicológicas. Na segunda parte, a análise da Introdução à Estética Musical restringir-se-á basicamente aos capítulos solicitados na Cadeira de Estética da Música, à qual serve o presente trabalho, a saber, os pontos de 1 a 4, não excluindo-se, todavia, a menção ou comentário a outras obras do autor. Em especial, traçaremos algumas breves noções a partir do texto O artista e o artesão, que revela o pensamento estético mais amadurecido de Mário de Andrade, já no final da década de 1930. 2. O AUTOR 2.1. O poeta: da Semana de Arte Moderna aos anos 40 Remetamo-nos ao ambiente da década de 1920, quando explodiria um dos movimentos mais cruciais na formação da arte brasileira contemporânea. Nesse primeiro momento, teve plano destacadíssimo a literatura, e, em especial, a poesia. Mário de Andrade, ao contrário de boa parte dos outros poetas de sua geração, saídos das Faculdades de Direito, teve por título de estudos superiores um curso de piano no Conservatório de São Paulo. Arrogava-se da condição de musicólogo, tendo mais tarde escrito relevantes ensaios acerca da música brasileira e sua história2, além de outros importantes livros e ensaios. Como poeta engajado no movimento da Primeira Geração Modernista e constante pensador do fazer artístico e da cultura, ele conseguiu traduzir sintética e brilhantemente o espírito do movimento modernista de 1922 em um único verso: “Sou um tupi tangendo um alaúde!”3. Nesse sentido, “percebendo a arte e a literatura com uma dimensão coletiva e organizacional da sociedade, o escritor modernista pesquisa a arte e a cultura popular brasileira, utilizando sua produção literária como veículo agregador e formador da idéia de nação, através de conteúdos já presentes na alma do povo”4. Isso implica um consequente rompimento com a “arte culta” que se vinha praticando historicamente no país, de caráter essencialmente 2 Cite-se Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928, Compêndio sobre a Música Brasileira, de 1929, Música do Brasil, de 1941. 3 “O Trovador” (de Pauliceia Desvairada, São Paulo, 1922). Disponível em: <http://www.horizonte.unam.mx/brasil/Mário1.html>. Acesso em 22 out. 2011. 4 SILVA E ALVIN; RAMOS, 2009. 1
  • 6. europeu, com poucas e dificilmente bem-sucedidas tentativas de formação de uma identidade literária nacional com base na cultura popular, recorrendo-se não poucas vezes a estereótipos sociais, se não pejorativos, no mínimo ingênuos. Guardando-se louváveis e dignas exceções, a produção literária esteve muito ligada às elites econômicas, transparecendo um considerável desprezo em relação à tradição cultural oriunda do povo5. A obra de Mário reflete, assim, o ideal de ruptura presente no movimento modernista, tanto em relação à estética parnasiano-naturalista, quanto ao “comportamento social, decoroso e acomodatício, da nossa intelectualidade”6. Tendo se abrandado a inicial efervescência, Andrade inicia um processo de ruminação e crítica do modernismo, e, consequentemente, de autocrítica. Como observa Benedito Nunes, “o tratamento pejorativo dos operários (...) revela-nos o caráter aristocrático, a ‘gratuidade antipopular’ do movimento de 1922 quando nasceu, conforme reconheceria o autor de As Enfibraturas ao fazer, em 1942, o retrospecto histórico da Semana”7. De espírito amadurecido, já distante das “juvenilidades modernistas”, nosso autor inaugura uma nova fase, mais consciente e social, numa busca de real aproximação com o povo. É precisamente nesse momento de amadurecimento e reflexão filosófico-artística e também da consolidação de uma carreira docente acadêmica que se dará o nascimento da “Introdução à Estética Musical”. Se por um lado, esse amadurecimento da personalidade artística de Mário de Andrade lhe permitiu a transição para uma nova fase de produção artística e para uma nova concepção a respeito da função do artista, pendendo ora à expressão da subjetividade, ora ao cumprimento de um papel social ao qual toda arte estaria condicionada, por outro, ele nunca chegou a desmerecer completamente a importância da Semana de Arte Moderna. Analisando brevemente a história que se seguiu àqueles três dias, verifica-se que teve um papel importantíssimo, servindo de arrancada inicial a uma tomada de consciência cultural, mais elevada que o indianismo gratuito e ingênuo de outrora. Inegável é a determinância histórica e a influência basal do movimento na produção artística do século XX. Mais a diante, à análise das compreensões estéticas do musicólogo, em especial em O artista e o artesão, essa auto-contradição entre teoria estética e obra prático-literária de Andrade irá se mostrar mais evidente. A observação de Dante Gatto faz-se pertinente: “A falta de resolução dialética entre o seu individualismo e suas intenções sociais não lhe permitiu, por mais que quisesse, objetivar o próprio conselho [...] que consiste em aproximar a arte literária do povo. [...] Viveu, enfim, a utopia de uma consciência universal, em que o absoluto, aquela necessidade essencial de superação, seria acessível a todos os homens por meio da arte e lhes daria um sentido 5 Exemplo interessante é o caso do maxixe, dança popular carioca, considerada por Luís Cosme (1957) “o primeiro tipo de dança urbana criada no Brasil”, que, pela sensualidade de seus movimentos, escandalizou a elite social e intelectual, sendo censurado oficialmente, ao ponto de Ernesto Nazareth, segundo Carlos Sandroni (2001, pg. 79), “chamar todos seus maxixes de tango”, e muitos escritores, aí incluso Machado de Assis, nem sequer nominarem-no em suas obras literárias (AVELAR, 2006). 6 NUNES, 1984, pg. 2. 7 NUNES, 1984. 2
  • 7. profundo de estar no mundo. Viveu a utopia na mais profunda acepção da palavra, do homem da arte do povo.”8 2.2. O musicólogo: guru dos compositores modernistas A questão central do pensamento do Mário de Andrade musicólogo em relação à música nacional era aquilo a que ele reiteradas vezes se referiu como movimento de universalização: a partir da pesquisa folclórico-temática do país, construir uma música nacional que, através de um diálogo com as linguagens artísticas contemporâneas, tornasse o material oriundo da cultura popular em conteúdo estético universal. No sentido da incansável busca e documentação desse material, é válido mencionar que as décadas de 30 e 40, especialmente, foram de intenso trabalho de pesquisa, registro e catalogação da cultura popular do Brasil, destacando-se a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938 e a fundação da Discoteca Pública Municipal. Devemos, mais uma vez, ter em conta o ambiente musical em que o Brasil se encontrava, bastante fechado à estética das vanguardas européias, sendo a música voltada à pura satisfação da classe burguesa: era não muito mais que um artefato de valor utilitário, um pano de fundo à vida das elites. A arte como um todo era valorizada como “uma simples imitação da natureza”9. Arnaldo Contier10 lembra que, naquele contexto de pós-guerra (Primeira Guerra Mundial) e, por isso mesmo, de fortalecimento das identidades nacionais, não foi exclusividade brasileira a tentativa de formação de uma música “erudita” permeada de profunda ligação com o folclore das nações. Assim, teremos, por exemplo, Bartók na Hungria, Satie na França, Ginastera na Argentina. Observa Contier que “O lema modernista ‘do nacional para o universal’, em sua essência, referia-se a uma circularidade de idéias estético-ideológicas surgidas, concomitantemente no pós-guerra (1918), por meio de uma circularidade de idéias estético-políticas, afloradas em muitos países da Europa Ocidental, Oriental e nas Américas.”11 Percebe-se claramente nos escritos que Mário deixou relacionados à teorização do modernismo nacional, a necessidade de uma, antes de estética, ética do músico, do compositor brasileiro. Ele acreditava que o verdadeiro artista devia, antes de tudo, respeito à obra de arte, e, ainda, despojar-se das suas vaidades artísticas de modo a coletivizar o seu destino: o individualismo puro, a “torre de marfim” dos românticos do século XIX era-lhe algo não só inútil e vão, como deplorável. É essa necessidade que o levará a engajar-se no projeto desastroso do Departamento de Cultura de São Paulo, em 1935, de onde seria demitido dois anos depois12. Em relação à arte popular, antes da artificialidade com que tratam muitos dos românticos nacionalistas, notamos não só uma grande paixão como um profundo respeito, de maneira que “a idéia de arte popular não pode servir de álibi 8 GATTO, 2006. 9 CONTIER, 2004, pg. 4. 10 CONTIER, 2004, pg 11. 11 CONTIER, 2004, pg. 11. 12 SOUZA, 2005, pg. 4. 3
  • 8. para qualquer tipo de sentimentalismo e facilidade, da mesma forma que é rejeitada a noção de uma arte que se pretenda vinculada a eternidade e não ao seu tempo. Entre estes opostos, Mário se equilibra na tentativa de criação de uma estética.”13 É antes necessário, para ele, que o artista represente seu tempo e seu lugar, algo que ao decorrer de sua trajetória vai se transformando em um conceito de objetividade nacional. O artista deve criar a partir de sua experiência, não a partir de conceitos teóricos pré-formulados e isso, no fundo, significa criar a partir da cultura popular, visto que ela é, com efeito, a experiência do criador. A ideia, todavia, não “quer dizer obrigatoriedade de produzir-se música que tenha caráter étnico. Trata-se de utilizar o material popular não para mimetizá-lo, mas para produzir cultura erudita.”14. Nesse sentido, ainda, deve se estabelecer, um processo dialético, de retroalimentação entre arte popular e arte “erudita”. Existe cultura erudita, mas não existem assuntos eruditos; assim como não existem exotismos15. Tal projeto encontra, porém, um obstáculo: falta originalidade à civilização brasileira. Ela é, na expressão de Mário, uma civilização de empréstimo cujo desenvolvimento é artificial e mais ou menos forçado. Falta a ela, inocência. A música, por exemplo, não teve como se desenvolver livre de preocupações quanto à afirmação social e nacional. Ela teve que instrumentalizar-se para alcançar seus objetivos e tal postura gerou em algumas ocasiões, o artifício e a imitação.16 Em seu ensaio Evolução Social da Música no Brasil, de 1939, Mário pontua a dificuldade da afirmação nacional encontrada nos países americanos, coisa que a Europa não sofreu, pois o desenvolvimento de sua música foi bastante inconsciente. A América tem uma “civilização de empréstimo”17, e, dessa maneira, necessita realizar um esforço no sentido de construir uma identidade musical que seja universalizável. Nesse ponto, todavia, Mário coloca que propriamente “não há música internacional e muito menos música universal; o que existe são gênios que se universalizaram por demasiado fundamentais, Palestrina, Bach, Beethoven [...] Porém, dentro dessa internacionalidade, tais músicos não deixam nunca de ser funcionalmente nacionais”.18 É inevitável! A proposta Márioandradiana de construção de uma música erudita verdadeiramente brasileira encontrará cânone inicial em Villa-Lobos, Guarnieri, Luciano Gallet e Lorenzo Fernandez, seus contemporâneos, que ele indica como “a fase nacionalista pela aquisição de uma consciência de si mesma” e acrescenta: “ela terá que se elevar ainda um dia à fase que chamei de Cultural, livremente estética, e sempre se entendendo que não pode haver cultura que não reflita as realidades profundas da terra em que se realiza”19. Nesse ponto de evolução, a música Brasileira deixaria de ser nacionalista, para se tornar nacional, pois tudo que é nacional, só o é porque é vivo20. 13 SOUZA, 2005, pg. 9. 14 SOUZA, 2005, pg. 15. 15 SOUZA, 2005, pg. 18. 16 SOUZA, 2005, pg. 26. 17 ANDRADE, 1965, pg. 15. 18 ANDRADE, 1965, pg. 29. 19 ANDRADE, 1965, pg. 35. 20 “A língua realmente viva, a que vive pela bôca e é irredutível a sinais convencionais, é o que dá o sentido expressional duma nacionalidade” (ANDRADE, 1965, pg. 122). Mário, analogamente, propôs a 4
  • 9. Esse grupo de compositores, evidentemente, sofreu certa influência de Mário de Andrade, em especial do Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928. É possível notas em Villa-Lobos, por exemplo, que concentrou sua música basicamente sobre a música popular urbana, especialmente nos Choros, uma das melhores representações do pensamento marioandradiano, seja na politonalidade e polirritmia, que explorou muitos aspectos dos ritmos sincopados da música popular, seja nas formações instrumentais totalmente inusitadas à tradição europeia, como, por exemplo, a combinação de flauta e clarineta – bastante comum nas rodas de choro – nos Choros nº2, obra de 1924, dedicada, não por coincidência, a Mário de Andrade. Todavia, o Ensaio, teve talvez até mais influência sobre a geração de compositores ulterior à de Villa-Lobos, aquela que incluiu os dissidentes do Grupo Música Viva. Guerra-Peixe, por exemplo, faz citações literais de Mário de Andrade em seus escritos dedicados ao comentário de sua própria obra, em especial no que se refere às três fases da “arte nacionalizada”: tese nacional, sentimento nacional e inconsciência nacional. Ainda que tenha aderido mais tarde à estética do húngaro Georg Lukács, o pensamento de Mário continuará arraigado até nas suas últimas obras.21 3. A OBRA A Introdução à Estética Musical não é nem o primeiro nem o último intento de Mário de Andrade numa teorização nesse sentido. As reflexões estéticas de Mário de Andrade, estão esparsas em uma série de obras, como em Klaxon, A Escrava que não é Isaura¸ Ensaio sobre a Música Brasileira, Pequena História da Música, e sua notabilíssima aula inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, Universidade do Distrito Federal, de 1938, intitulada O artista e o artesão, deságue de todo o pensamento que veio desenvolvendo nos textos anteriores. Não obstante, a documentação das entrevistas e a recuperação de correspondência revelam uma preocupação constante do autor pelos problemas da estética22: No período que vai de 1938 até 1945, as reflexões Márioandradianas sobre a arte ganharam amplitude ainda não experimentadas. Foi momento também marcado pela desilusão de projetos frustrados, pela tensão provocada pelo Estado Novo no meio intelectual, pela expectativa dos desdobramentos da Guerra, pelas confissões pessoais de desamparo, e, por fim, pela doença que o levaria à morte.23 Aliás, note-se que, publicada post-mortem, essa obra é, antes, o material didático para os seus cursos de Estética, enquanto lecionou. Tendo sido aluno graduado na cadeira de piano do Conservatório Dramático e Musical de São ideia de uma Gramatiquinha Musical do Brasil por parte dos folcloristas e compositores, no sentido de ter por base do projeto estético essa música que seria nacional, viva de fato. 21 Acerca do tema, leia-se o excelente artigo de VETROMILLA, Clayton. Guerra-Peixe: considerações sobre o conceito de “objetividade folclórica”. Per Musi, Belo Horizonte, n.14, 2006, p.82-92 22 GATTO, 2006, p.2. 23 GATTO, 2006, p.2. 5
  • 10. Paulo, Mário de Andrade é nomeado, no mês que antecede a Semana de Arte Moderna, em 20 de janeiro de 1922, no mesmo conservatório, professor das cadeiras de Dicção, História do Teatro, Estética e História da Música. As leituras na biblioteca do Conservatório (...) documentam parte da formação intelectual de Mário de Andrade. Na bibliografia de Na pancada do ganzá e do Dicionário musical brasileiro, ordenada originalmente pelo autor, é possível rastrear a leitura de títulos ausentes de sua biblioteca pessoal, mas localizados entre os exemplares da instituição. Muitos desses títulos são fundamentais para compreender a estrutura de seu pensamento musical, como, por exemplo, Le langage musical: étude médico-psychologique, de Ernest Dupré e Marcel Nathan e Die Anfänge der Musik, de Carl Stumpf, ambos, edições únicas publicadas em 1911.24 O período de 1928 mostrou-se para ele uma ausência de rumo afundada em solidão, uma sensação de inconformidade, aliada a um desértico areal de incertezas, sobre o qual caminhava, em especial no tocante a sua carreira literária, seis anos após o momento eufórico da explosão modernista. Encontra refúgio na docência musical: “Tem um temperamento socrático, gosta muito de ensinar e quando leciona acha fácil dialogar com os alunos ou consigo mesmo, recapitulando as incertezas, reformulando os conceitos, enfrentando os riscos inevitáveis da afirmação e da dúvida. (...) A elaboração do compêndio, que agora se impôs veio a reafirmar nele o senso dos problemas, a convicção de que não se ensina Música, se ensina Arte.”25 Gilda de Mello e Souza, no prefácio à obra, chama a atenção para o fato de nessa Estética o autor omitir quase por completo o nacionalismo que ocupara, há não muito, lugar central nas suas teorizações anteriores. É importante notar como Mário esteve nesse momento de sua vida vinculado tanto a uma instituição extremamente tradicional, o conservadoríssimo Conservatório, quanto ao movimento mais escandaloso e revolucionário daquele momento, o Modernismo antropogáfico de 22. As duas atividades concomitantes, de professor e poeta, terão reflexo no desenvolvimento de seu pensamento. Em 1924, leciona num curso particular de Estética e História da Música a um grupo de moças.A preparação dessas aulas as quais “por excesso de escrúpulo e incapacidade de improvisação, habituou-se a redigir [...] uma por uma”26. Flavia Toni, a organizadora da publicação da obra, em 1993, conta: Graças à gentileza dos professores Gilda de Mello Souza e Jorge Coli pude analisar os cadernos de apontamentos de duas aulas de Mário de Andrade, cadernos importantes para o conhecimento da gênese da Estética. [...] após interromper no quarto ponto, deixa no caderno uma 24 BARONGENO, 2010, pg. 3. 25 SOUZA, 1993, XVI. 26 MELLO E SOUZA, 1993, XII. 6
  • 11. versão nova do primeiro, [...] texto bastante semelhante ao do capítulo inicial na datilografia do autor no ensaio que prepara para publicar e deixa inédito. 27 Fica evidente, que, dos projetos que Andrade executou para seus cursos tiveram influência direta na redação da Introdução, assim como fica claro também que era intuito do autor publicá-la, pela existência de um datiloscrito original com vistas de um projeto de publicação, e pelo exame de correspondência com Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Luís Câmara Cascudo.28 A Introdução à Estética Musical é, portanto, uma obra notadamente didática. Está dividida em seis partes – que no projeto inicial eram nove –, a saber, “Da Estética”, “Do Belo”, “Da Arte”, “Da Música”, “A Manifestação Musical” e “Do Ritmo”. Um aspecto desse texto já percebido de início se revela na linguagem adotada pelo autor, que não é pura obra de acaso, senão que representa já em si um elemento da sua concepção estética e de seu pensamento, por que não, filosófico-linguístico. É importantíssimo ter sempre em mente que nenhuma decisão na elaboração de uma obra reina o imperativo da aleatoriedade; outrossim, cada passo da elaboração do material, desde a estruturação do conteúdo à redação do texto, reflete uma determinada postura ideológica, que, de forma consciente ou nem tanto, é transparecida pelo autor. Como nos aponta Gilda de Mello e Souza, “O conceito de brasilidade de Mário de Andrade era complexo e integral, mas não impediu que um de seus [...] se transformasse em motivo de discórdia dentro do grupo modernista. Nenhum dos companheiros aceitava sem reservas a sistematização da fala brasileira que ele procurava impor, e provavelmente só Manuel Bandeira continuava lendo e discutindo, com disciplina e lucidez, os prefácio e as notas que acrescentava aos trabalhos.”29 Notável, ainda, é a influência de Charles Lalo (1877-1973), autor não muito reputado e bastante desconhecido atualmente, a cujas ideias Mário, de praxe, se filia, citando com muito respeito. Será também bastante citada a obra de Leon Tolstoi, “O que é arte?” de 1916, à qual o autor teve acesso em versão italiana. Em todos os quatro primeiros capítulos, Mário inicia com uma definição direta e bastante geral, da qual desenrola o resto do capítulo. Assim, essas quatro definições são as seguintes: “Estética é a disciplina do saber que estuda a arte”, “Belo é uma circunstância fisiológica que agrada imediatamente a uma necessidade superior e sem interesse prático do ser racional”, “Arte é a expressão livre e sem interesse imediato do ser racional” e a “Música é a Arte dos sons em movimento”. Esses postulados, que a princípio parecem ser colocados por algo definitivo30, serão, dentro dos capítulos, discutidos e 27 TONI, 1993, XXIV. 28 TONI, 1993, XXV. 29 MELLO E SOUZA, 1993, XV. 30 Ele próprio, em seguida, explica: “Ninguém mais hoje pode acreditar que uma definição contenha o significado total geral e particular duma coisa. [...] Por isso desde logo dei a da Estética. Procurei abrandar o terreno pra chegar ao objeto dela...” (ANDRADE, 1995, p. 6). 7
  • 12. ratificados. Os quatro capítulos compõem a primeira parte do texto, o que Mário chama de uma parte mais abstrata e conceitual. Os dois capítulos que se seguem tratam da Manifestação Musical (que ele divide entre quatro entidades: o criador, a obra de arte, o intérprete e o ouvinte) e do Ritmo, de forma mais concreta. O Capítulo dedicado à Estética traça uma sucinta trajetória, mencionando a presença, apesar de não nomeada, da preocupação Estética, desde os primórdios da filosofia, quando, junto do Bem e da Verdade, o Belo figurava entre as “evidências psicológicas”. De especulação metafísica, a “estética antiga” passa a considerar os fatores psicológicos, da experiência, no sentimento do Belo. Comenta a psicologia biológica de Spencer31, em contraposição ao concomitante “cientismo exagerado”, que ele simboliza na figura da section d’or de Zeising, que Mário define por “relação entre dois números na qual o primeiro está pro segundo como este está para ambos”, pela qual Zeising teria julgado “descobrir essa fórmula nas proporções do corpo humano nos animais nas plantas nos minerais e nas obras-primas da Arte”.32 “Muito engraçado”, comenta. É difícil compreender o que surpreende Mário, pois a ideia é muito semelhante àquela da proporção áurea, que, vinda dos gregos, foi internalizado pelas artes, perpassando várias das manifestações até hoje. Dessa exposição, ele depreende dois métodos básicos da Estética: o filosófico e o experimental, que não são opostos ou contraditórios, mas se completam, visto que a experiência estética é mutável temporal e espacialmente. A Estética filosófica “substitui regra por norma, ordem por desejo”. Assim, o ponto perfeito está no balanceamento, na ponderação dos dois métodos. Para tentar explicar a aparente oscilação do objeto da Estética entre o Belo e a Arte, Mário recorre à ideia de que a Verdade, o Bem e o Belo são ideias morais que existem como elementos de normalização do homem, para as quais o homem buscou criar disciplinas que as conhecessem (ciências morais ou normativas), visto que enxerga nelas a felicidade. As duas primeiras teriam originado a Lógica e a Moral. O Belo, porém, porque “não implica atividade ou melhor a ação, o fazer humano”, não pode ser objeto da Estética, tem uma manifestação concreta, que é a Arte. Quando o homem, buscando a felicidade, se serve do belo para agir, cria a Arte, que é o objeto da Estética. Definido o objeto, Andrade deixa claro que a Estética é una, mas usa-se dividir a fins de estudo, e assim, a Estética Musical é aquela que se aplica ao estudo do fenômeno musical. Traçando breve histórico, chama a atenção ao fato de que, para os antigos, a música era “entidade numérica”, entendida apenas sob os aspectos da aquisição de sons e construção de escalas: era uma entidade 31 Segundo a organizadora, a “genial definição de Spencer” de que Mário fala é, na verdade, aquela à qual ele teve acesso através da obra O que é arte?, de Leon Tolstoi, que se transcreve: “Para Spencer, a origem da arte é a brincadeira [...] Nos animais inferiores, toda a energia da vida é gasta em manter e continuar a própria vida; mas, no homem, depois que essas necessidades são satisfeitas, resta uma excedente energia. É esse excedente que é usado na brincadeira e que passa para a arte. A brincadeira é uma cópia da ação real; a arte é o mesmo” (TOLSTOI, 2002, p. 56). 32 ANDRADE, 1995, p.4. 8
  • 13. abstrata. Os Gregos se preocuparam com os efeitos morais da música33. Com a modernidade, une-se a parte matemática e física à psicofisiológica e sociológica, sendo que hoje a Estética musical “é a mais desenvolvida e rica” das estéticas aplicadas. Frisa que, ao contrário do que pensa Riemann, a estética deve se basear sobre a técnica. É na última seção desse capítulo (Necessidade da Estética Musical) que encontramos a primeira reflexão estética mais propriamente Márioandradiana e pessoal. Para ele “Todo músico sabe Estética musical e sabe a dele”, senão “não é músico”34, fazendo-se o estudo sério da Estética cada vez mais necessário, vista a propensão do moderno à “ilusão de liberdade absoluta”. Observa da mesma forma uma tendência atual em seu tempo de um esteticismo exagerado, no qual as teorias dominam e “pesam sobre as asas da inspiração. Dá o exemplo de Schöenberg e seu dodecafonismo, concluindo com duas reflexões dignas de nota. Primeiro aduz que “o que carece no aprendizado de uma teoria é saber ignorá-la em seguida”, coisa a que, podemos dizer seguramente, ele mesmo praticou ao longo de sua vida, e, por isso mesmo, o vemos, ao longo dos anos, transformando suas noções, descobrindo e reconhecendo seus equívocos do passado. É uma lição de constante aperfeiçoamento pessoal. E, ao final, brinda-nos com uma belíssima ilustração, inclusive, uma das únicas mostras de conteúdo nacional-folclórico nessa sua obra: É das águas fundas da subconsciência que surge a Iara da inspiração. A Iara nasceu duma sucuriju? dum boto? duma piranha? Quem que sabe! É certo que nasceu feia vestida de medo fazendo mal pros homens, ruim. Porém a lenda que o índio criou lhe descobre sob as ondas dos cabelos verdes uma mulher bonita. A inspiração nasce livre e informe. É o saber que lhe dá a forma propícia que vai despertar o máximo de amor nos homens e os levará pela contemplação desinteressada. É então que a Iara se põe a cantar e encantar. A inspiração não é bela nem feia. A inspiração é uma fatalidade. A Beleza é uma conseqüência da inspiração de que o espírito regido por necessidades superiores faz com uma obra-de-arte.35 O Capítulo que trata do Belo é bem mais breve, atendo-se a três pontos básicos. Primeiro, distingue dois sentidos do Belo: um geral – “tudo o que desperta um prazer deslumbrado em nós” – e um mais específico – o que desperta prazer em um sentido “superior”, um prazer sem interesse prático e imediato. Num segundo momento, se baseando novamente em Lalo, define Sensação Estética como “é o ser inteiro que a gente projeta sobre o objeto do nosso pensamento pois que o Belo nos prende sem reservas e é essa a sua mais primeira e mais profunda característica” e acrescenta que “o Belo não reside nem dentro da gente nem no mundo exterior, porém na relação estabelecida entre essas duas entidades”36 . 33 É provável que aqui se refira à parte da República de Platão em que Sócrates e Glauco definem as harmonias (modos) e ritmos moralmente desejáveis, ao Livro V da Política de Aristóteles e à segunda parte da sua Retórica. 34 ANDRADE, 1995, p. 10. 35 ANDRADE, 1995, p. 11. 36 ANDRADE, 1995, p. 16. 9
  • 14. É no terceiro ponto que diferencia-se as sensações estéticas puramente sensuais, elementares (percepção da linha, da cor, do som,...), daquelas mais elevadas, que ele chama “sensações estéticas propriamente ditas” que nada mais são que a combinação dessas elementares entre si. O objeto que percebemos produz em nós sensações simultâneas provenientes de sua forma e universalidade. Julgamos pertinente mencionar, talvez em dissonância com o autor, que, mesmo dotado da universalidade, a noção daquilo que é o belo, evidentemente é uma noção temporal e geográfica, assim como o é a toda e qualquer noção moral. Nesse sentido, podemos ainda aduzir uma constante, se não expansão, remodelagem das fronteiras do Belo. Por conseguinte, a Arte é a expressão desse Belo livre e sem interesse imediato. Para Mário de Andrade, a felicidade é “o instinto mais primeiro e irracional de todo ser vivo”. Toda criação humana – até mesmo a criação prática - é expressão e, por isso mesmo, individual e nacional. São estabelecidos duas propriedades psicológicas da Arte: imitação e prazer. Em toda expressão humana, inevitavelmente, há imitação pois “o homem expressa o que sente e sente o que percebe”. A dimensão do prazer se encontra precisamente em adicionar elementos desnecessários que torne os objetos, além de úteis, agradáveis. Nas manifestações artísticas rudimentares, a mímesis não é com relação à natureza, mas aos fatores diretos do Belo. O que o homem primitivo reproduzia eram os seus desejo, seus ideais práticos. A arte nasce de três necessidades: de expressão (o que diferencia os homens dos animais: controle da expressão), de prazer (interesse idealizado, que tende para o melhor) e de comunicação (entre homens e homens, e entre homens e entidades superiores). O primitivo não dissocia interesses imediatos de mediatos: o Bem do Belo. Nas primeiras civilizações, a arte ainda é utilitária, e, para alcançar esse fim, o artista não é um ser que obedece aos seus impulsos individuais: ele é um operário das necessidades líricas e religiosas do povo e o artista é uno (é poeta, músico e dançarino). Nota-se, todavia, a dissociação da arte e da utilidade a partir da especialização em uma única arte sobre a qual o “artista duma Arte só principia a brincar e a virtuosidade aparece”. Em O artista e o artesão, Mário irá definir o que ele chama de “três manifestações diferentes ou três etapas” da “técnica de fazer obras de arte”37: o artesanato38, a virtuosidade39 e a solução pessoal do artista40. Ao longo do discurso, ele irá reafirmar inúmeras vezes que o verdadeiro objeto e fim da arte é, precisamente, a obra de arte, entendendo haver “falta de uma atitude verdadeiramente estética na maioria dos artistas” seus contemporâneos, no sentido em que transformam eles próprios em objeto da arte, demonstrando, ao seu ver, puro orgulho e vaidade.41 37 ANDRADE, 1938. 38 “O artesanato é a parte da técnica que se pode ensinar.” (ANDRADE, 1938) 39 “... conhecimento e prática das diversas técnicas históricas da arte.” (ANDRADE, 1938) 40 “Esta parte da técnica obedece a segredos, caprichos e imperativos do ser subjetivo, em tudo o que ele é, como indivíduo e como ser social. Isto não se ensina e reproduzir é imitação.” (ANDRADE, 1938) 41 “Hoje, o objeto da arte não é mais a obra de arte, mas o artista. E não poderá haver maior engano. Faz- se imprescindível que adquiramos uma perfeita consciência, [...] uma atitude estética disciplinada, apaixonadamente insubversível, livre mas legítima, severa apesar de insubmissa, disciplina de todo o ser, para que alcancemos realmente a arte.” (ANDRADE, 1938) 10
  • 15. Sendo assim, a etapa do artesanato, do próprio domínio da técnica tem papel fundamental, necessário à realização da obra de arte, é imprescindível para que exista um artista verdadeiro, de forma que “nos processos de movimentar o material, a arte se confunde quase inteiramente com o artesanato”42. Este último se compõe de ensinamentos dogmáticos, cuja negação é “sempre prejudicial à obra de arte”43. A abstenção em relação ao artesanato, para ele, só prejudica a obra, mas não o artista. Nesse sentido, é fácil compreender o pessimismo com que Mário vê o período romântico oitocentista44 – que significou o exagero da dimensão que ele chamou solução pessoal do artista, dando espaço ao surgimento de inúmeros artistas medíocres – e a nostalgia com que fala do classicismo45 – um quase-extremo oposto a essa ideia: tem plena consciência do artesanato, e o coloca em plano de primado absoluto – explicitados na sua Pequena História da Música. Mário aponta também para os perigos da virtuosidade, que: “pode levar o artista a um tradicionalismo técnico, meramente imitativo, em que o tradicionalismo perde suas virtudes sociais pra se tornar simplesmente ‘passadismo’[...], "academismo"; como porque pode tornar o artista uma vítima de suas próprias habilidades, um "virtuose" na pior significação da palavra, isto é, um indivíduo que nem sequer chega ao princípio estético, sempre respeitável, da arte pela arte, mas que se compraz em meros malabarismos de habilidade pessoais, entregue à sensualidade do aplauso ignaro.”46 De volta à questão da dissociação arte-utilidade, umas últimas considerações são feitas: tendo se desintegrado do condicionamento à vida prática, tornando-se expressão de espírito livre e acidental, a arte fez-se cada vez mais livre e continua fazendo-se. É por isso que o seu conceito atual é o de “expressão livre e sem interesse imediato do espírito”. É assim que a intuição é inerente e necessária à produção artística. E a expressão não é a origem, e sim o fim do fenômeno artístico, que se realiza através do Belo. Então, para que a ideia de arte seja compreendida, deve ser dissociada do Belo: o Belo não é o fim da arte, pois essa é o “conhecimento virtual da vida idealizada”47. O capítulo finaliza com uma crítica contundente à arte-pura, que o autor considera pobre por apenas realizarem o Belo e nada mais. Diz Mário dos partidários dessa estética: “o mal foi que emperrados dentro duma teoria não foram bastante criadores ou bastante livres para se livrarem dela. [...] Se esqueceram que a arte 42 ANDRADE, 1938. 43 Ibidem. 44 “...os preconceitos e falsificações estéticas da música romântica diminuem o valor, irregularizam muito a produção musical do séc. XIX; e os compositores menores do Romantismo nos parecem, quando não insuportáveis, no geral destituídos de intêresse” (sic). (ANDRADE, 1951, p. 118) 45 “O que caracteriza o classicismo dele é ter atingido, como nenhum outro período antes dele, a Música Pura, isto é: a música que não tem outra significação mais do que ser música; que comove em alegria ou tristeza pela boniteza das formas, pela boniteza dos elementos sonoros, pela força dinamogênica, pela perfeição da técnica e equilíbrio do todo. [...] O século XVIII é um tempo em que todo músico escrevia bem! [...] O que faz essa gente do século XVIII parecer mais numerosa e excepcional é ter o classicismo equilibrado, enfim o conceito estético da música com a realidade dos elementos sonoros e o efeito deles no organismo”. (ANDRADE, 1951, p. 117-118) 46 ANDRADE, 1938. 47 ANDRADE, 1995, p. 31. 11
  • 16. é expressão e conhecimento. Por isso os Kandinskis, os Lagers morreram de pobreza”48. A música, por fim, como arte, deve ser uma expressão, e, sendo assim, objeto não só de conhecimento como de compreensão. Todavia, a compreensão musical não é textual, a consciência não pode determiná-la, senão de maneira vaga associada aos outros sentidos. Para Andrade, essa compreensão não é consciente, mas fisiológica. É uma arte sintética: Procurando um símile que nos possa auxiliar neste trabalho aparece logo a palavra, irmã-gêmea da Música, tendo ambas nascido juntas do mesmo grito inicial. [...] O grito só deixou de ser ato reflexo e se tornou expressão quando foi intelectualizado, isto é, se tornou consciente. [...](Todavia) ao passo que esta (palavra) se transformou em símbolo de necessidade imediata [...], o som seguia direto em busca de necessidades superiores do espírito e procurava satisfazê- las.49 A música funde o ser psicológico e o fisiológico; seus elementos, por si só estilizações de elementos naturais. Todavia, mesmo inconsciente, a expressão musical, ainda que vaga, é plena de valor, passível de compreensão intelectual, tendo profundos efeitos fisiológicos: ela “é compreendida como intuição pura pela subconsciência.”50 A música realiza-se através de ideias musicais, que se compreendem apenas dentro de sua própria linguagem, e não conscientemente, coisa que é possível nas outras artes: a compreensão musical só é possível através de uma consciência musical. 51 4. CONCLUSÃO À guisa de uma reflexão final, faz-se de estimado interesse uma breve análise da Oração de Paraninfo dos diplomandos do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, no ano de 1935, intitulada Cultura Musical. O autor fala de uma “radical transformação” que teria se dado em sua existência e o motivado a “revelar coisas escuras”52. Deduz-se que essa transformação de que ele fala seja o início de seu trabalho no Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo53: “Sempre conservara a ilusão de que era um homem útil apenas porque escrevia no meu canto, livros de luta em prol da arte, da renovação e da nacionalização do Brasil” e que desenvolvera uma “filosofia egoística, de espírito eminentemente esportivo, que fizera de mim literalmente um gozador [...], afortunado duma fartura vaidosa de ilusões e defesas pessoais. [...] E já agora, com um sentimento menos 48 ANDRADE, 1995, p. 32. 49 ANDRADE, 1995, p. 46. 50 ANDRADE, 1995, p. 51. 51 ANDRADE, 1995, p. 51. 52 ANDRADE, 1965, p. 235-236 53 “O autor acreditava [...] que é preciso ‘fazer com que o povo viva sua cultura, pois só assim poderá se reconhecer como nação’, o que fica claro com as obras que realiza entre 1935 e 1937, período em que atua como diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, dando continuidade objetiva às suas idéias.” (SILVA E ALVIM; RAMOS, 2009, p. 5) 12
  • 17. teórico da vida, [...] eu só posso, não perdoar-me, porém me compadecer do que fui, lembrando a escuridão da minha total ignorância: eu não sabia!”54 Inicia-se, assim, uma sustentada crítica à concepção utilitarista e vazia em relação à arte presente na sociedade em que se encontrava, mas, de igual modo, bastante presente para nós mesmos que, como observa Harnoncourt, ouvimos muito mais música, mas, por isso mesmo, muito menos55. “Não tive até hoje um só aluno que me respondesse ter vindo estudar música!”, coisa que ele considera o símbolo da situação precária da nossa “moral cultural”, de modo que os alunos buscam no Conservatório um fim único, vaidoso, sacrificador dos valores nobres da arte pela esperança de um aplauso público: a busca por aprimorar a técnica de um instrumento, reflexo de uma “confusão moral entre música e virtuosidade” em que a “glória é uma palavra curta em nosso espírito, e significa apenas aplauso e dinheiro”. “Não se ensina música no Brasil, vende-se virtuosidade”, vive-se de uma total ignorância à verdadeira cultura musical, e “em vez de buscarem na música as elevações morais e sociais da arte, só buscam a sensualidade dum malabarismo virtuosístico”. Mário defende a oficialização do ensino musical, a proteção estatal aos conservatórios, visto que aguardar pelo mecenismo privado, em geral, não “permite garantir quaisquer esperanças”: o privado vive de uma caridade assustada, supersticiosa; “ninguém compreende a existência como uma luta, mas como um perigo de ir para o inferno”.56 Nesse sentido, defende, apesar de num plano teórico ser contrário à “intromissão” das escolas de artes nas universidades, a necessidade de existência universitária do músico brasileiro, numa época em que o ensino da música restringia-se, quase sempre, aos conservatórios: “o nosso músico precisa imediatamente contagiar-se do espírito universitário, porque a inobservância do nosso músico quanto a cultura geral é simplesmente inenarrável”. Além de fechar-se no mundo da música, restringe-se, seguidamente, à parte da música que se especializou, “uma vaidade de zepelin sozinho no ar”57. Mário apela aos alunos formandos: “Eu não vos convido siquer à felicidade, pois que da experiência que dela tenho, a felicidade individual me parece mesquinha, desumana, muito inútil. [...] eu vos trago o convite da luta [...] por uma realidade mais alta e mais de todos”.58 A reflexão estética presente na documentação do pensamento de Mário de Andrade, revela-se-nos “estética” num sentido abrangentíssimo, mostrando-se preocupado com todas as etapas e dimensões da arte musical: da produção à percepção, dos fenômenos auditivos à situação social da música. Isso tudo derivado de um homem que vê esse mundo de forma tanto interna quanto externa. Mário transita bastante e bem entre os variados campos artísticos de 54 ANDRADE, 1965, p. 237 55 “Ouvimos, atualmente, muito mais música que antes – quase ininterruptamente – mas esta, na prática, representa bem pouco, possuindo não mais que uma função decorativa.” (HARNONCOURT, 1988, p. 13) 56 ANDRADE, 1965, p. 240. 57 ANDRADE, 1965, p. 242-243. 58 ANDRADE, 1965, p. 246. 13
  • 18. forma a, mesmo tratando de forma específica da Música, despertar uma problematização estética que engloba o mundo da arte como um todo. A vasta experiência como instrumentista não profissional, professor de música, teorizador e concretizador de uma arte nacional, e, talvez mais ainda, ouvinte, aliada ao constante questionamento da realidade e da vida cultural em que se insere, deixou-nos em sua obra herança preciosa, fonte para reflexões extremamente atuais, ainda que não exaustivamente aprofundadas. Com efeito, podemos aduzir que sua principal virtude está precisamente nessa reflexão contingencial e integrada das dimensões da música, assim como de suas relações exteriores, fugindo ao comum hermetismo com que atuam muitos daqueles que se dedicam ao aprofundamento. Vosso domínio é a música, e infame será quem julgar menos útil cuidar da música que do algodão. Tanto num como noutro destino, encontrareis sempre, como fim final de tudo, a humanidade. E todos os sacrifícios que me custaram as frases desse discurso, todos eu fiz por vós, fiz contente, buscando abrir-vos de par a par, em toda a sua soberania insaciável, as portas da humanidade.59 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Mário de. Pequena História da Música. São Paulo, Martins, 1951. 59 ANDRADE, 1965, p. 246. 14
  • 19. ______. Aspectos da Música Brasileira. São Paulo, Martins, 1965. ______. Introdução à Estética Musical. São Paulo, Hucitec, 1995. ______. O Trovador In: Pauliceia Desvairada, São Paulo, 1922. Disponível em: <http://www.horizonte.unam.mx/brasil/Mário1.html>. Acesso em 22 out. 2011. ______. O artista e o Artesão: Aula Inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, Universidade do Distrito Federal, em 1938. Disponível em <http://grupocad.blogspot.com/2007/02/mrio-de-andrade-o-artista-e-o-arteso.html>. Acesso em 20.10.2011. AVELAR, Idelber. Ritmos do popular no erudito: Política e música em Machado de Assis. X Congresso ABRALIC, Rio de Janeiro, 2006. BARONGENO, Luciana. Mário de Andrade, Professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. XV Colóquio do Programa de Pós-Graduação da UNIRIO. Rio de Janeiro, nov. 2010. BREUNING, Tiago Hermano. Ética e Estética em Mário de Andrade. Anuário de Literatura, Santa Catarina v. 13, n. 1, 2008, p. 134 CONTIER, A. D. O Nacional na Música Erudita Brasileira: Mário de Andrade e a Questão da Identidade Cultural. Fenix - Revista de História e Estudos Culturais, v. 1, n. 1, out/dez. 2004. Disponível em <revistafenix.pro.br>. Acesso em 17 out. 2001. COSME, Luís. Dicionário Musical. Rio de Janeiro, INL, 1957. GATTO, Dante. O sacrifício estético e a tragédia pessoal de Mário de Andrade. Revista Urutágua, Maringá, n. 9, abr/jul, 2006. NUNES, B. Mário de Andrade: As Enfibraturas do Modernismo. Revista Iberoamericana. Madri, v. 50, n. 126, p. 63-75, jan/mar. 1984. Disponível em: <http://revista-iberoamericana.pitt.edu/ojs/index.php/Iberoamericana/article/view/3861/ 4030>. Acesso em 22 out. 2011. HARNONCOURT, Nikolaus. O discurso dos sons. Tradução por Marcelo Fagerlande. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998. MELLO E SOUZA, Gilda de. Prefácio In Introdução à Estética Musical. São Paulo, Hucitec, 1995. SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor Ltda, 2001. SILVA E ALVIN, F. J.; RAMOS, M. M. Identidade Nacional e Nacionalismo Estético em Mário de Andrade. REVELLI Revista de Educação, Linguagem e Literatura da UEG-Inhumas, v. 1, n. 1, pg. 65-79, mar. 2009. 15
  • 20. SOUZA, Ricardo Luiz. Modernismo e Cultura Popular: o Projeto Estético de Mário de Andrade. Mediações – Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 10, n.1, p. 105-123, jan.-jun. 2005 TOLSTOI, Leon. O que é arte? Tradução por Bete Torii. São Paulo, Ediouro, 2002. TONI, Flávia Camargo. Um livro Didático de Mário de Andrade In: Introdução à Estética Musical. São Paulo, Hucitec, 1995. 16