O documento descreve uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho contra o Banco Bradesco por discriminação estética e racismo. Testemunhas confirmaram que o banco proibia o uso de barba e impunha padrões de aparência diferentes para funcionárias de acordo com sua raça. Além disso, o documento argumenta que tais práticas violam a dignidade humana e o direito à imagem, causando dano moral coletivo que deve ser reparado.
1. EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) JUIZ(A) DA VARA DO
TRABALHO DE SALVADOR
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO
- Procuradoria Regional do Trabalho da 5a
Região, com endereço
à Av. Sete de Setembro, nº 308, Vitória, Salvador/BA, indicado
para fins de intimação pessoal do Membro do parquet (§ 2º do
art. 236 CPC c/c art. 18, II, “h” da LC 75, de 20 de maio de
1.993), vem, com amparo nos arts.1º, caput e incisos III e IV;
3º, inciso IV; e 129, III, da Constituição Federal; no art.
83, III, da Lei Complementar de nº 75, de 20 de maio de 1.993
e no art. 1º, IV, da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, propor
AÇÃO CIVIL PÚBLICA em face de BANCO BRADESCO S/A,
CNPJ nº 60.746.948/0001-12, com endereço à Av. Estados Unidos,
nº 26, Bairro do Comércio, Salvador, Bahia, CEP nº 40.010-902,
à vista dos motivos que expende doravante:
1. EXPOSIÇÃO DOS FATOS. DISCRIMINAÇÃO ESTÉTICA E
RACISMO
1.1. Em virtude de celebração
de diversos Termos de Ajuste de Conduta com Shopping Centers
localizados na Cidade do Salvador, o Ministério Público do
Trabalho obteve a adesão dos estabelecimentos para o fim de
2. banir a discriminação com base em traço estético, de modo
específico no que concerne à proibição existente quanto aos
trabalhadores cultivarem barba, cavanhaque, bigode ou
costeleta.
1.2. Como forma de expandir a
investigação para outras atividades empresariais, foi iniciado
o Procedimento Preparatório de Inquérito Civil Público nº
638/04, por meio do qual se comprovou que o Acionado promove
discriminação ilegítima relativamente aos trabalhadores que
pretendam usar barba.
1.3. Não foi outra a prova que
resultou da instrução do referido Procedimento Preparatório,
tanto que FLÁVIO JOSÉ BARRETO DE OLIVEIRA, empregado do Réu,
declarou expressamente que: “(...) começou a trabalhar no
Bradesco em 1985; (...) que freqüenta as agências do Bradesco
três a quatro vezes na semana para entregar o jornal do
sindicato; (...) que já sofreu discriminação com relação a
traço estético, desde quando entrou no banco em 1985; que a
discriminação se referia ao uso de barba e corte de cabelo;
que não é permitido aos empregados do Bradesco hoje usarem
barba; que faz essa afirmativa em razão de conversa com
Colegas; (...) que não tem conhecimento de nenhuma norma
expedida pelo banco autorizando o uso de barba; que tem como
orientação nas agências que não pode usar barba, não pode usar
tênis; que geralmente essa orientação é verbal; que teve
notícia há dois meses atrás que a empresa continua proibindo o
uso de barba e de tênis, e camisa de manga curta; que a
empresa não fornece camisa social nem sapato aos empregados;
(...) que não encontrou nas agências que visita empregados com
uso de barba nem com cabelos grandes; que existe no Banco
normas com relação às bancárias, que não podem usar cabelo
3. natural quando se tratam de pessoas de diferentes raças que
não a branca”.
1.4. Incisivo e elucidativo é
o depoimento de ERIC LEON SCHMUKLER OLIVEIRA: “(...), que,
salvo engano, laborou para a empresa investigada até agosto de
2005, na ativa; que nesse período não usava bigode nem
cavanhaque; que o Gerente Geral da agência e o Gerente
Administrativo disseram que no Bradesco não era permitido usar
barba, bigode e cavanhaque; que soube desse fato porque fazia
barba de cera, e para fazer de cera tem de deixar crescer um
pouco, e nesse momento os gerentes sentiram-se incomodados com
o traço estético do depoente; que, salvo engano, isso ocorreu
em 2004; que não conhece hoje nenhum funcionário do Bradesco
que use barba ou cavanhaque; que o comportamento do Bradesco
com relação a barba não modificou a partir de 2005; que sabe
disso porque conversou com um amigo por telefone; que pelo
relato do Colega o Banco continua a agir da mesma forma; (...)
que o banco nunca liberou que o depoente pudesse usar barba”.
1.5. Por outro lado, além da
discriminação estética, restou provado na investigação
empreendida pelo Ministério Público do Trabalho que o Réu
consentiu insidiosamente com a prática de racismo no
estabelecimento.
1.6. Deveras, no depoimento da
testemunha FLÁVIO JOSÉ BARRETO DE OLIVEIRA está acentuado
enfaticamente que “existe no banco normas com relação às
bancárias, que não podem usar cabelo natural quando se tratam
de pessoas de diferentes raças que não a branca”.
1.7. Diante da afirmação,
observa-se, ofuscantemente, que a circunstância passa a
descrever não apenas discriminação de color estético, mas
também inadmissível comportamento racista de gerentes do
4. estabelecimento acionado, às vistas e sob o beneplácito da
unidade empresarial.
1.8. Com efeito, que motivo
poderia conduzir o Réu a impedir que empregadas usassem o
cabelo de forma natural quando se tratassem de pessoas de
raças que não a branca? Que critério legítimo poderia ser
referido pelo Acionado para impedir que empregadas negras, por
exemplo, deixassem seus cabelos de forma natural?
Absolutamente nenhum!
1.9. Posto desta forma,
comprovada a prática de racismo no âmbito do estabelecimento
demandado, é injuntiva a adoção de providências urgentes para
o fim de banir o nefando comportamento.
2. DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS DO PEDIDO. DO
PRONUNCIAMENTO DA JURISPRUDÊNCIA TRABALHISTA
2.1. Conforme se observa dos fatos
postos à apreciação desta d. Vara do Trabalho, persegue o
Ministério Público do Trabalho a emissão de provimento
judicial que afaste a prática discriminatória do recinto da
relação de emprego.
2.2. Por sua vez, há, no Texto
Constitucional, a marca da preocupação do constituinte
originário com o respeito à condição do ser humano, tanto
que o art. 1º, III, refere expressamente como fundamento do
Estado brasileiro “a dignidade da pessoa humana”, incluindo-
se, como evidentemente não poderia deixar de ser, a
dignidade do trabalhador.
2.3. O legislador constituinte
originário concebeu a unidade política nacional como Estado
5. Democrático de Direito (art 1º, caput, da Constituição) e, por
corolário, residência permanente do princípio da igualdade.
Outro não é o propósito da ação que concretizar o querer
constituinte em termos de consecução da dignidade da pessoa
humana, referida como princípio fundamental no corpo do art.
1º.
2.4. A consciência jurídica
brasileira não consolidou, até hoje, aquilo que os teóricos
convencionaram denominar de “cultura constitucional”,
materializada em comportamentos e condutas tendentes a i)
preservar a “vontade de constituição”; ii) efetivar, no plano
máximo possível, os princípios e normas constitucionais; iii)
disseminar o conhecimento a respeito do texto constitucional.
2.5. E a inexistência de uma cultura
constitucional reverbera nos mais diversos domínios da vida
brasileira, quer no campo econômico, político, social, e – por
paradoxal que possa parecer – no altiplano do pensamento
jurídico.
2.6. E o mais intrigante ainda é
constatar que preceitos havidos como “princípios fundamentais
constitucionais” são utilizados como meros instrumentos de
retórica, indicados, aqui e ali, com grandiloqüência em
seminários e congressos de direito constitucional, sem que os
advogados, membros do Ministério Público e juízes se dêem
conta da obrigação que se lhes é continuamente dirigida para o
cumprimento dos comandos constitucionais, de modo específico
no que concerne aos denominados “princípios fundamentais”.
2.7. O quadro desolador é o que se
desenha relativamente ao princípio fundamental da dignidade da
pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição).
2.8. As relações de trabalho - face à
conhecida subordinação jurídica do empregado ao empregador, e,
6. além disso, evidenciada a instabilidade econômica ensejadora
de grande rotatividade no mercado de trabalho - é fértil campo
para o desrespeito ao indigitado princípio fundamental, como
se sucedeu na presente hipótese.
2.9. É verdade, por outro lado, que
se não conceitua dignidade da pessoa humana. Trata-se, como se
refere no sistema da ciência do direito, de um topoi, ou seja,
termo que não admite conceituação, muito embora sirva de ponto
de partida para a solução do problema normativo ocorrente. É o
mesmo que se opera com o termo “interesse público”. Não há a
possibilidade de conceituá-lo, conquanto o magistrado e o
membro do Ministério Público possam afirmar, no caso concreto,
se a hipótese tratada é de “interesse público”.
2.10. Dignidade da pessoa humana não
é passível de conceituação, se bem que o juiz possa – ou
melhor, deva – decidir se tal ou qual conduta ofende o
referido princípio conformador do Estado brasileiro.
2.11. E a conclusão no particular não
é outra senão que prepostos da Acionada, ao proibirem o uso
de barba pelos empregados e ao praticarem o racismo,
transgrediram acintosamente a dignidade dos trabalhadores,
além de, na segunda situação, incorrerem em crime reputado
inafiançável e imprescritível pela Constituição de 1988.
2.12. Demais disso, é necessário
registrar que a discriminação estética perpetrada tem nítido
caráter ilegítimo.
2.13. Sem dúvida, não há fato da vida
a consentir a proibição patronal, fundamentalmente porque usar
ou não barba, cavanhaque, bigode ou costeleta nenhuma relação
porta com maior ou menor eficiência no tocante à prestação de
trabalho.
7. 2.14. Outrossim, não reside na
proibição firmada pelo empregador qualquer justificativa
relacionada à segurança dos trabalhadores, como se sucede em
algumas plantas industriais. Nesses casos a vedação ao uso de
barba está plenamente vinculada à proteção da saúde e
segurança dos trabalhadores, visto que a colocação de máscaras
contra o vazamento de gases tóxicos termina não cumprindo o
objetivo, porque a barba impede total aderência da máscara
protetora ao rosto do trabalhador.
2.15. A jurisprudência dos Tribunais
Trabalhistas já reprova a discriminação ilegítima amparada em
traço estético: “O caso em questão (...) relaciona-se à
imagem, à aparência física do reclamante. Envolve fato
ocorrido durante a jornada de trabalho do demandante que, por
não ter obedecido a ordem de superior hierárquico, no sentido
de retirar cavanhaque, foi afastado de suas atividades e
suspenso do trabalho por cerca de três meses, sem receber
remuneração. (...) Como se percebe, houve o constrangimento em
público sofrido pelo autor que, exposto em situação vexatória,
teve que se retirar do serviço, diante de passageiros e
funcionários da empresa, para ‘ter uma conversa’ com o chefe
de tráfego, o qual, sentindo-se desrespeitado, resolveu
afastar e substituir o reclamante de suas atividades, por não
ter obedecido a uma ordem sua. (...). O ato discriminatório
tornou-se ainda mais evidente quando constatado, pela
instrução do feito, que outros funcionários, diretores, e,
inclusive, o próprio chefe que afastou o reclamante, eram
adeptos do cavanhaque” (Processo nº 00542.2003.001.13.00-9,
relª Desembargadora Mirtes Takeko Shimanoe, DJ de 05/04/2004).
8. 3. DO DANO MORAL COLETIVO. NECESSIDADE DE REPARAÇÃO
3.1. O comportamento do Réu não
vulnera o direito de trabalhador singularmente considerado;
antes ofende, sim, o direito à construção da imagem física de
todos os empregados do estabelecimento que tiveram, de modo
ilegítimo, restringido o direito fundamental, que está, por
sua vez, protegido pelo direito à imagem (art. 5º, X, da
Constituição).
3.2. Cabe esclarecer que o direito à
construção da imagem física é absolutamente relevante para
alcançar-se a elevação da auto-estima de qualquer pessoa,
razão por que os trabalhadores do Réu sofreram gravemente com
a limitação à liberdade, devendo esta v. Justiça Especializada
fixar indenização que, a um só tempo e de forma didática,
compila o empregador à reverência à dignidade dos seus
empregados e sirva de aviso a tantos outros maus empregadores
que eventualmente se arrisquem à realização de semelhante
comportamento.
3.3. Por fim, esclareça-se que o
princípio da reparação integral referido no art. 5º, X, da
Constituição, determina a reparabilidade não apenas do dano
moral de compostura individual, mas também o de caráter
coletivo, pena de o patrimônio moral da coletividade dos
trabalhadores não ser destinatário de efetiva proteção
judicial.
4. PEDIDO
4.1. Ante o exposto, requer o
Ministério Público do Trabalho:
9. 4.1.1. A condenação do Acionado à
obrigação de fazer relativa à publicação no primeiro caderno
do jornal de maior circulação do Estado da Bahia de 10 (dez)
notas com tamanho mínimo de 20 cm X 30 cm, com letras que
ocupem toda a área da nota e que não sejam inferiores ao
padrão Times New Roman 12, com o seguinte conteúdo: “BRADESCO
S/A, em virtude de condenação imposta pela MM. (...) Vara do
Trabalho de Salvador, conforme determinação contida em decisão
prolatada em ação civil pública sob nº (...), proposta pelo
Ministério Público do Trabalho na Bahia, registra que a
Constituição de 1988 refere que são direitos de todos os
trabalhadores brasileiros a preservação de sua dignidade e
proteção contra qualquer prática discriminatória,
especialmente aquelas de cunho estético, cumprindo salientar
ainda que o BRADESCO S/A, ao reconhecer a ilicitude do seu
comportamento relativo à proibição de que seus trabalhadores
do sexo masculino usassem barba, bigode, cavanhaque e
costeleta, vem a público esclarecer que alterou o seu Manual
de Pessoal para incluir expressamente tal possibilidade,
porque entende que o direito à construção da imagem física é
direito fundamental de todo trabalhador brasileiro.”
4.1.2. A condenação do Acionado à
obrigação de fazer relativa à veiculação de mensagem em todas
as redes de televisão aberta, em âmbito nacional, em horário
anterior ao principal jornal de informações de cada rede de
televisão, com o seguinte texto, que deve aparecer na tela,
juntamente com a fala e com tradução simultânea para LIBRAS
(Linguagem Brasileira de Sinais): “BRADESCO S/A, em virtude de
condenação imposta pela MM. (...) Vara do Trabalho de
Salvador, conforme determinação contida em decisão prolatada
em ação civil pública sob nº (...), proposta pelo Ministério
Público do Trabalho na Bahia, registra que a Constituição de
10. 1988 refere que são direitos de todos os trabalhadores
brasileiros a preservação de sua dignidade e proteção contra
qualquer prática discriminatória, especialmente aquelas de
cunho estético, cumprindo salientar ainda que o BRADESCO S/A,
ao reconhecer a ilicitude do seu comportamento relativo à
proibição de que seus trabalhadores do sexo masculino usassem
barba, bigode, cavanhaque e costeleta, vem a público
esclarecer que alterou o seu Manual de Pessoal para incluir
expressamente tal possibilidade, porque entende que o direito
à construção da imagem física é direito fundamental de todo
trabalhador brasileiro”.
4.1.3. Tratando-se de imposição de
duas distintas obrigações de fazer, requer o Ministério
Público do Trabalho a condenação do Acionado a multa diária
(art. 11 da Lei 7.347/85 e § 4º do art. 84 da Lei 8.078/90), à
ordem de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais), por
descumprimento de cada obrigação de fazer, imposta pela
decisão de fundo, valor a ser revertido a instituições
filantrópicas com sede e administração no Estado da Bahia e
indicadas na r. sentença;
4.1.4. Condenação do Acionado a
indenização por dano moral coletivo à ordem de R$
100.000.000,00 (cem milhões de reais) em virtude da prática de
discriminação ilegítima com base em traço estético, valor a
ser revertido a instituições filantrópicas com sede e
administração no Estado da Bahia indicadas no r. decisum;
4.1.5. Condenação do Acionado a
indenização por dano moral coletivo à ordem de R$
100.000.000,00 (cem milhões de reais) em virtude da prática de
racismo contra as trabalhadoras negras do estabelecimento,
valor a ser revertido a instituições filantrópicas com sede e
administração no Estado da Bahia indicadas no r. decisum;
11. 4.2. A citação do Acionado para,
querendo, contestar a ação em audiência a ser designada, sob
pena de revelia, valendo para todos os seus termos;
4.3. Seja, por sentença, julgada
procedente a ação, condenando-se o Acionado ao pagamento da
taxa judiciária;
4.4. Reitera o Ministério Público do
Trabalho o pleito de intimação pessoal de todos os atos
processuais, conforme prevê o § 2º do art. 236 CPC c/c art.
18, II, “h” da LC 75, de 20 de maio de 1.993.
4.5. Protesta pela produção de todos
os meios de prova assentidos no processo do trabalho,
especificando, de logo: juntada ulterior de documentos, oitiva
de testemunhas e prova pericial.
Dá-se à causa o valor de R$
200.000.000,00 (duzentos milhões de reais).
E. deferimento.
Salvador, 27 de fevereiro de 2008.
MANOEL JORGE E SILVA NETO
PROCURADOR REGIONAL DO TRABALHO