2. RESUMO:No período histórico conhecido como grandes navegações, ocorreram mudanças significativas na maneira como percebemos e representamos o mundo. Desde a primeira metade do século XV, a condição de país de navegadores colocou Portugal em contato com povos, costumes e paisagens somente referidos nos relatos da antiguidade. A maneira como os portugueses se relacionavam com o outro, o diferente – seja na figura de mouros, orientais, africanos ou ameríndios – ficou registrada em nossas narrativas sobre sua aventura/desventura marítima. Conhecidas como Chegança/SE, Marujada/RN, Barca/PB e Fandango/CE, essas narrativas aparecem de maneiras distintas em cada tradição local. A encenação, os trajes e acessórios de marinheiro, os versos tradicionais e a dança são alguns dos elementos comuns na superfície de cada um deles. Contudo, esta superfície existe para ser atravessada. Abaixo dela, há as subjetividades de cada integrante, sua história pessoal e suas convicções; acima, há especulações e leituras (como esta); há sentidos e funções atribuídos à permanência da narrativa enquanto tradição viva. Portanto, embora motivada pelo desejo de discutir questões colocadas por folcloristas, a abordagem aqui proposta procura abandonar delimitações desta natureza e alcançar uma compreensão transdisciplinar do tema. Palavras-chave:chegança, alteridade, modernidade.
4. O que é a Chegança? Drama épico tradicional de inspiração ibérica encontrado, sobretudo, no nordeste e realizado por grupos folclóricos que recebem o mesmo nome; Homens vestem réplicas de uniformes da Marinha e encenam episódios vividos por navegantes portugueses há séculos atrás; Narrativa em versos tradicionais, cantados e respondidos ou ainda recitados por cada personagem, ritmados por pandeiros; Divide-se em jornadas (episódios) apresentadas em sequência, mas encenadas em datas e locais diversos; Alguns estudiosos dividem os temas encenados em dois blocos: 1) episódios náuticos e 2) batalhas entre cristãos e mouros; Apoiada pela Igreja Católica, por sua função apologética.
6. Fundamentos históricos Século XV – Tomada de Constantinopla pelos turcos e bloqueio do comércio de produtos importados (drogas, especiarias indianas, tecidos persas e porcelana chinesa); O governo português investiu em viagens de exploração com vistas à descoberta de novas rotas para seus comerciantes; Acordos comerciais, naufrágios, guerras, invasões, ocupações, colonização de terras estrangeiras e escravização de populações marcaram o nascimento do Império Português (1415 – 1999); Neste período, conhecido como Grandes Navegações, ocorreram transformações decisivas 1) nas relações entre os homens (em sociedade) e 2) nas relações do humano com sua realidade; Essas transformações marcaram ainda o início da modernidade.
7. Conceito de modernidade Bauman (2001) afirma que a modernidade começa quando espaço e tempo são separados da prática da vida e entre si; As noções de espaço e tempo estão vinculadas às velocidades de deslocamento experimentadas pelos seres humanos; Antes da modernidade, um tempo X era o intervalo necessário para se percorrer a pé ou a cavalo um determinado espaço e vice versa; Com a construção de veículos capazes de se movimentar mais rápido que as pernas, o tempo se tornou um fator variável e indepen-dente das dimensões fixas do espaço; Algumas pessoas podiam chegar muito antes que as outras; podiam também fugir e evitar serem alcançadas ou detidas. Quem viajasse mais depressa podia reivindicar mais território– controlá-lo, mapeá-lo e supervisioná-lo – e deixar de fora os competidores.
8. Conceito de modernidade O tempo se tornou a principal arma para superação do espaço; A conquista de territórios era uma das maiores ambições da época; O progresso significava tamanho crescente, expansão espacial; Impérios se espalharam por todas as partes do globo, limitados apenas por outros impérios de força igual ou maior; Conquistar um território significava limitar dentro dele o acesso às ferramentas de superação do espaço, conter seu dinamismo interno; O domínio do tempo era o segredo do poder dos administradores; Populações colonizadas ou escravizadas deviam permanecer confinadas em relações espaço-temporais defasadas e obsoletas; Intrépidos exploradores eram os heróis das novas versões modernas das “histórias de marinheiros”;
9. Fundamentos históricos Sabemos pouco sobre a vida cotidiana desses navegadores, suas contradições, desejos, desilusões, temores e crenças; Segundo Moura (2000), uma nau era como uma vila flutuante, com 500, 600, 700, 800 e mais pessoas, entre tripulantes, soldados, colonos, funcionários, autoridades, missionários e escravos; Em geral, a população embarcada era de origem humilde e bastante ligada às tradições populares de sua terra natal; No mar, as práticas religiosas se tornavam mais constantes em virtude das adversidades a que os viajantes estavam expostos; Realizavam-se celebrações religiosas tradicionais em Portugal – Procissão de Corpus Christi e Festa do Divino Espírito Santo etc; Há ainda relatos de representações teatrais nestas ocasiões.
11. Invenção das tradições Após tamanhas privações, esses marujos ávidos pelo desembarque não poderiam deixar de participar das festividades locais; Manifestações culturais realizadas em alto mar desembarcaram e se espalharam, fixando raízes nas regiões colonizadas; Apesar de bicentenárias, Cheganças, Fandangos, Marujadas ou Barcas (o nome varia em cada região ) ainda são pouco conhecidos; Em solo brasileiro, as representações tomam por personagens os marujos portugueses que difundiram aqui suas tradições; Na Chegança, além de episódios náuticos (5 jornadas), é representada a sujeição de autoridades muçulmanas por marinheiros cristãos (episódio conhecido como Mourama); Texto analisado – Mourama da Chegança de Almirante Tamandaré.
13. Personagens cristãos Uniformes brancos da Marinha brasileira e espadas de aço; Duas fileiras unidas nas pontas, para simular uma embarcação; Disciplinados, atuam em conjunto sob o comando do General. adaptado de Dantas (1976)
15. Personagens mouros Roupas monocromáticas (uma cor para cada personagem) e espadas de aço; Formação do grupo em fileira simples (personagens principais ao centro); Soberbos, atuam individualmente sob as ordens do Rei Mouro. 1° Embaixador 2° Embaixador 3° Embaixador Princesa Princesa Ministro Rainha Rei
16. Sinopse da encenação Navio dos mouros se aproxima da nau portuguesa; Rei mouro envia seu primeiro embaixador, para convencer o General a tornar-se seu súdito, sob ameaça de guerra; General nega e o embaixador retorna para o navio; Rei mouro envia o segundo embaixador e o terceiro, que oferece ao General mão da Princesa, mas não obtém êxito; Rei mouro envia seu ministro, para convencer o General, mas ele não aceita sua prosposta; Rei mouro manda seus súditos invadirem o navio português e inicia-se um combate;
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18. Na ausência do Rei mouro, o General manda sequestrar as duas Princesas e a Rainha;
19. Rei mouro tenta resgatar as Princesas e entra em combate com o General, mas acaba sendo vencido e preso;
20. Os cristãos ameaçam torturar e matar os mouros se estes não aceitarem o batismo cristão;
21. Os mouros são batizados em uma cerimônia humilhante;
24. Leitura da encenação A cada embaixada, os mouros procuram dissuadir os cristãos de suas convicções políticas e religiosas e subjugá-los pela força; Empregam diversos expedientes – prometem riquezas, prestígio, a mão da Princesa, agridem e ameaçam seus adversários; Representados como mais ponderados, os cristãos demonstram uma convicção inabalável em sua pátria e em sua religião; Retratam-se como incorruptíveis e afirmam preferir a morte a serem obrigados a negar sua fé e sua pátria; Presos e ameaçados de morte, os mouros demonstram um relativismo moral que acaba por distinguí-los dos portugueses; Tudo isso produz consequências consideráveis no campo da identidade.
25. Discurso e identidade Nossas práticas lingüísticas implicam posicionamentos sociais; Quando digo que “sou português”,estou negando (embora implicitamente) os demais posicionamentos possíveis; A identidade é convencionada sócio-historicamente e só adquire sentido pela normalização de caracteres a ela relacionados; Conforme SILVA (2000), a “mesmidade” comporta por definiçãoum traço inerente de “outridade”; Identidade e diferença são, portanto, indissociáveis e resultam de um mesmo processo de produção simbólica e discursiva; São concebidas pela perspectiva de quem detém o poder de representar a si (identidade) e ao outro (diferença); Isto permite fazer uma análise das representação sociais na Chegança.
27. Hipóteses e especulações Como vimos, o modelo adotado pela metrópole para gerir as colônias era o confinamento em condições de vida do passado; Ainda hoje, esta é a condição de vida das populações das zonas de exclusão social (periferias urbanas e áreas rurais); O princípio de competição/exploração colocava no mesmo plano, indistintamente, todos os adversários dos portugueses; Mouros, indianos, chineses, africanos, indígenas eram como bárbaros e deviam ser mantidos sob controle, em seu lugar; Os portugueses detinham o monopólio da civilização, medido pela superioridade se seus dispositivos tecnológicos e sociais; Podemos compreender a Chegança, no contexto social em que tem sido realizada, não apenas como uma forma de catequese;
28. Hipóteses e especulações A Chegança poderia ser considerada um mito de origem da estrutura social implantada pela colonização – estrutura que, conforme Fernandes (1976), nunca funcionou segundo o modelo; O mito parece assumir a função prescritiva, sobretudo, onde as diferenças entre o paradigma civilizatório e a sociedade possível parecem inconciliáveis; Na Chegança, encontram-se representados ideais, incoerências, injustiças e pressupostos característicos da modernidade; A fase inicial da modernidade, que Bauman (2001) chama de “modernidade pesada”, vigora ainda nas zonas rurais e nas áreas de exclusão social das grandes cidades; Seria, portanto, a Chegança um mito de origem da própria modernidade, representada pela navegação portuguesa?
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30. BENJAMIM, Roberto. Cristãos e Mouros. In: Anais do Encontro Cultural de Laranjeiras. Aracajú: Fundação Estadual de Cultura de Sergipe, 1993.
31. BOXER, Charles R. O império colonial português(tradução de Inês Silva Duarte). Lisboa: Edições 70, 1969.
32. DANTAS, Beatriz G. Chegança (Cadernos de Folclore, 14). Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/ Universidade Federal de Sergipe – CECAC, 1976.
34. MOURA, Carlos Francisco. Teatro a bordo de naus portuguesas nos séculos XV, XVI, XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Instituto Luso-Brasileiro de História e Liceu Literário Português, 2000.
35. SILVA, Tomás Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In: Tomás Tadeu da Silva, (Org.) Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 81-102.