Este documento discute o medo e a supressão do sujeito na sociedade portuguesa. Apesar da liberdade trazida pela revolução de 1974, Portugal ainda demonstra sinais de medo e ressentimento social que inibem a afirmação do indivíduo. Isto ocorre devido a uma cultura de mediocridade e baixos níveis de segurança e estabilidade que favorecem a inibição e o retraimento das pessoas. As instituições democráticas portuguesas também não fazem o suficiente para promover a participação c
Rebeliao de classe media_precariedade de movimentos sociais
Opiniao 7 o regresso do medo, 2006
1. O regresso do medo e a supressão do sujeito
Elísio Estanque
Sociólogo – Centro de Estudos Sociais da FEUC
Jornal ‘Público’, 25/11/06
A Revolução de Abril de 1974 celebrou com cravos a chegada da liberdade. Mas
trinta e dois anos depois e vinte após a integração europeia, o nosso país continua a
manifestar sinais preocupantes de que existe medo e ressentimento na sociedade. Já não
o medo da repressão e do autoritarismo do regime, mas um sentimento difuso, um
“medo social”, que neutraliza a afirmação do Sujeito consciente e livre, que o impede
de dizer o que pensa e de se assumir como cidadão. Por que será que isto acontece?
Porque é que numa sociedade democrática onde os direitos individuais e a liberdade de
opinião estão há muito consagrados na lei, continuam a existir tantas situações onde, em
vez da opinião aberta e do confronto de ideias, as pessoas se retraem e se escondem?
Fala-se muito, mas sob a forma de rumor, de boato do “diz que disse”... Fala-se nos
“corredores” por vezes o contrário do que se disse em público, quando em público não
nos limitamos a ficar calados e a abanar a cabeça em sinal de acordo.
Esta realidade reflecte uma sociedade ainda amarrada a um conjunto de peias que, a
meu ver, nos impede de alcançar padrões de desenvolvimento e formas democráticas de
intervenção cívica nos quais há poucos anos atrás muitos de nós acreditámos (e
continuamos a acreditar, apesar de tudo). Porque é que proliferam tantas atitudes
bajuladoras do “chefe”, do “mentor”, do “patrão”, do “orientador” ou do “padrinho”?
Porque na maioria dos contextos organizacionais se isso não acontecer o mais provável
é que nos caiam em cima as mais diversas formas de retaliação, das mais perversas e
subtis às mais arrogantes. Enquanto a cultura do mérito permanece incipiente, a cultura
da mediocridade, do “cala-te e deixa estar”, parece tornar-se cada vez mais forte. Há
uma pressão para os “alinhamentos” incondicionais com este ou com aquele, e se as
expectativas de quem está na posição de poder não se confirmam é comum que a
reacção autoritária se faça sentir sobre o “elo mais fraco”.
José Gil definiu o país pelo «Medo de Existir». Mas o medo existe, de facto. Medo
de quê? Medo, por exemplo, do possível despedimento ou do estatuto de
“excedentário”; do tratamento desfavorável, da desconsideração, da pequena
“vingança”... As pessoas sentem uma grande falta de segurança e estabilidade. Isto,
associado aos baixos níveis salariais – que, como se sabe, estão cada vez mais longe de
satisfazer as exigências do custo de vida actual e as expectativas de uma “carreira” ou
de um padrão de consumo de “classe média” –, favorece a inibição, o retraimento e a
crispação. Num clima geral onde quem triunfa é em geral o “yes man”, espera-se que
todos nos comportemos como tal. Continuamos a debater-nos com necessidades
primárias por cumprir. E a segurança é uma delas. Por isso também no mundo
empresarial prolifera uma mentalidade que é avessa à mudança, à iniciativa individual,
à inovação tecnológica e sobretudo à inovação social e organizacional. As lideranças
são em geral medíocres e por isso também favorecem a mediocridade e o carreirismo,
cego e seguidista, quer nas novas contratações quer nas avaliações e promoções de
quadros e subordinados. O peso dos micropoderes nas instituições burocráticas e nas
empresas continua a alimentar múltiplas situações de opressão que asfixiam a dignidade
individual, a autonomia e a criatividade de cada um. Quer enquanto trabalhador quer
enquanto cidadão, o Sujeito individual é suprimido ou esconde-se no anonimato e na
esfera privada, inibindo por sua vez a emergência de novos sujeitos colectivos. Porque
2. sem liberdade e iniciativa individual não é possível construir empresas competitivas,
comunidades cosmopolitas e uma “esfera pública” dinâmica e exigente.
Mas, não se pode assacar as responsabilidades deste estado de coisas a uma
qualquer essência “individual”. Embora os factores culturais e a mentalidade submissa
estejam enraizados na própria estrutura mental dos indivíduos, são, antes de mais, as
instituições democráticas, os departamentos do Estado, o governo, o parlamento, as
universidades e os próprios partidos políticos, que nada fazem para promover culturas
de responsabilização das pessoas, criar procedimentos, incentivos e mecanismos de
diálogo orientados para a participação e para estimular a iniciativa de cada um. E no
nosso país não só não o fazem como, não poucas vezes, é daí que vêm os piores
exemplos. (BLOGUE: http://boasociedade.blogspot.com)