1. OPINIÃO A esperança como padrão político
Cristina Sá Carvalho
Psicóloga
A democracia não é um sistema político perfeito cado destruíram, sob o império da iniciativa e da
e, às vezes, nem facilita o despedimento de go- reivindicação individual, a vontade de construir
vernos que, à luz do actual establishment, tam- algo relevante para todos. Sem percepção de um
bém devia ser 33% mais barato. Mas o que é 33% colectivo e dos valores que sustentam o bem-co-
da felicidade, da dignidade, dos direitos humanos mum, a democracia destrói as suas próprias ba-
da pessoa? O que é 33% da governabilidade e dos ses. O individuo, deixado à solta pela ausência
compromissos com quem nos empresta dinheiro, de padrões e constrangimentos relacionais, odeia
a um troco que não conhecemos? Sobrevivemos o outro, vê-o como um obstáculo à sua realiza-
jovialmente a um Verão marcado pela ção, que deve ser destruído: o
PÁG. penúria da paciência, relativamente A situação homem volta a caçar o homem.
incrédulos quanto à incapacidade que vivemos
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Perdemos, pois, mais do que ca-
do Governo para governar, e qua- é trágica não, pacidade negocial nos mercados
se sentimos saudades de Sócrates, o fundamentalmente, ou competência para promover
parisiense. A ruína, analisável tanto
por causa da dívida e crescimento económico: minámos
do ponto de vista das policies (umas a esperança de poder continuar a
ideias amarfanhadas e rascunhadas da sua renegociação, progredir como sociedade. A di-
sem percepção da realidade) como mas porque põe ficuldade que enfrentamos não
das politics (das quais a estrutura a descoberto, na se deve, apenas, à incompetên-
do governo como ideia de fundo se vida concreta das cia e paroquialismo dos políticos
mostrou um despropósito sem lógica profissionais, mas ao facto de os
pessoas (...),como a
nem fundamento), esgotou a resig- cidadãos terem adormecido no
nação sobrante, quando tal máquina democracia entrou convencimento arriscado de que
governativa acelerou em direcção ao num processo de a democracia é um estado natu-
abismo e afoitou-se em medidas, tão auto-restrição, ral de existir. No entanto, a força
boas como as outras, mas mais irre- num apagamento e a capacidade transformativa da
versivelmente capazes de produzir democracia reside na consciência
da possibilidade de
rombos na nossa arte da navegação e na acção dos cidadãos: os parti-
como sociedade. Sendo que o inter- construirmos uma dos políticos, garantindo o plura-
valo estival não produziu ilustração, visão do futuro lismo, são importantes guardiões
o Governo conseguiu o feito histórico da democracia ao evitarem o to-
de reunir uma oposição, dramaticamente consen- talitarismo do partido único, da política acabada,
sual, às medidas de austeridade e parece ser o do líder iluminado, mas só podem funcionar ade-
único surpreendido com os “desvios” aos arreca- quadamente se, para além do voto, o eleitor lhes
damentos sonhados. Mostra, pois, que consegui- oferecer escrutínio, ideias, serviço.
mos eleger e dotar de autoridade representativa Julgo que a tragédia que é o apagamento da es-
um par de pessoas que desconhece os traços es- perança tem uma única solução e precisamente
senciais de uma vida adulta e responsável e que, aquela que reivindica a filiação histórica de li-
inspirado pela desvalorização da experiência, do berdade, justiça e recusa da desumanidade que
conhecimento, da sabedoria e do trabalho, se ro- fez a Europa. A compreensão da resposta huma-
deou de um enxame – caro e intocável – de imber- na para a vida das pessoas não se fará pela via
bes mancebos e jovens rapariguinhas, que o as- da fragmentação das sociedades nem do velho
sessora com pareceres, alvitres e considerações. continente, pela decomposição das instituições,
A situação que vivemos é trágica não, fundamen- pela imposição da competição face à solidarie-
talmente, por causa da dívida e da sua renegocia- dade, pela pressão ditatorial da finança sobre a
ção, mas porque põe a descoberto, na vida con- cultura. É preciso acelerar e construir o projecto
creta das pessoas – e não há nada menos abstracto europeu. Alguém tem de explicar isso a Merkel,
do que os impostos – como a democracia entrou compreendendo que esta veio do frio e do vazio,
num processo de auto-restrição, num apagamen- e aos seus dóceis aprendizes, que não acreditam
to da possibilidade de construirmos uma visão do em nada e, por isso, se enganam em tudo o que
futuro. As estimas presentes no modelo de mer- é essencial.
r/com renascença comunicação multimédia, 2012