O documento apresenta trechos do diário de um jornalista chamado L. Rondon. Ele expressa seu tédio com a vida e fantasias violentas envolvendo assassinato e estupro. Em um trecho, ele contrata os serviços de uma prostituta chamada Ana, mas fica enfadado e a estrangula. Nos capítulos seguintes, ele bebe em um bar lotado e expressa desejo de morrer para escapar de sua angústia.
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1. LOUS
RONDON
O Jornalista Entediado
Capítulo I
Tédio, tédio! Eu tomo pastilha para dor de cabeça que nem uma mulher tomando
anticoncepcional, todos os dias... pero parece não funcionar, ainda me sinto triste.
Meu coração treme. Espero não estar voltando com os ataques de pânico. A
caneta balança em minha mão, sem pegar o rumo certo. Há, penso eu, uma raça
superior. Nabokov é genial, serão os russos? Ou os germânicos? Não paro de pensar
no eurocentrismo. Bendita é a língua portuguesa, não sendo ela, talvez eu apelasse ao
inglês, I've no hope, minha língua move aos sopros do vento que foi domesticado a fluir
entre os contornos e frestas dos meus dentes latinobrasileiros.
Miller e as bocetas de Paris hão de me esperar. Já é quase dia e preciso
reclamar das cadelas prenhas que sabem só falar de filhos. Há uma mágica intimista
no manuescrito e toda essa caligrafia.
Chamo-me L. Rondon, tenho duas décadas e alguns invernos. Sem tevê e toca
discos em casa. Levo o dia a pensar e ler, chego a terrível conclusão que prefiro ler.
Chairo as minhas facas regularmente, o aço parece não se esgotar. Dor no peito.
Estas palavras situam-se no espaço e tempo de forma sutil e expontânea, mais
próxima ao pensamento corriqueiro, aquele indisciplinado. Contudo não chega a ser
um devaneio, poderíamos dizer que apenas fazem parte de algo mais natural ou
realista, cotidiano. Neste ponto devem estar começando uma relação sentimental com
o autor. Que sentimento é esse? Imagino que um longo relato seja fundamental para
despertar a quem lê raiva ou desprezo, no mínimo ansiedade, “acabe logo”, ou “espero
que dê tudo certo.”
Tenho um punhal de que muito aprecio, fiz na época que meu pai estava vivo.
Forjamos a partir de uma grande e resistente tesoura de jardinagem. Pronta, de tão
estreita e pontuda, penso ser capaz de abrir espaço na pele e na carne. Lambuzada
em seu óleo mineral, amenizando o atrito com os músculos, perfurando com uma
facilidade surpreendente, que até para mim, um amador cuteleiro e medíocre
colecionador de armas brancas desacredito, digo “pero já?” Está lá entranhada no
corpo acompanhando a velocidade do meu raciocínio...
Tomei o ônibus, ao meu lado uma vagabundazinha preta com perna cabeluda.
Eu poderia esperá-la descer num ponto escuro, poria a peixeira pontiaguda em seu
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2. pescoço e ela teria de caminhar até um parque ou praça que mais parece um terreno
baldio. Olhos medrosos fitando-me, “Por favor não me machuque.” Depois disso
rasgaria sua garganta com a ponta da faca, o sangue imundo de comida
industrializada, açúcar e gordura escorreria ao pé daquela pele cheia d'acne e
tatuagens malfeitas. Encostaria atrás duma árvore e lá ficaria para sempre! Ninguém
dela sentiria falta, estaria livrando a cidade da cadela no cio, jovem miserável que
cheirava à creme... sinto a porra do cheiro!
Paro de fitá-la de soslaio, matar por matar não faz meu tipo. Matar sempre tem
de vir acompanhado de sexo, alguma moça que faça meu pau levantar e que por fim
borbulhe o sangue numa espuma de sêmen. Morta de boca escancarada e uma carne
ainda quente. Bom cheiro de vagina peluda que baterá uma punheta na faca entrando
e saindo. Minha língua lamberia o cu enquanto encaro a cara de negação da mulher,
acabou, não pode mais recusar, puta.
I try to read, pero não posso. Em um inseto empedrado na parede faz-me pensar
que Machado está a esperar-me em algum lugar. Sinto minhas costas a doerem, minha
cabeça aérea como se fumasse um cigarro forte, e estivesse com o rim cheio d'álcool.
Meu corpo está mais magro, consigo reparar.
Capítulo II
I'm the worst kind of writer, is all true. Quando to à toa a melhor maneira é pegar
um desses jornais antigos, que ainda propagandeam prostitutas. Ligo para a moça
arretada e ela jura que terei a mais incrível noite da minha vida por duas centenas de
reais. Diz que está na segunda década de vida e tem cochas bem moldadas. Olhos
verdes e cabelo longo e preto. Fala também que fornece serviço completo, motel e
massagem. Que está disposta a tudo. Não tem frescuras. Respondo que quero
experimentar. Que se gostar pretendo ser cliente fixo. Ela retruca, “É atendimento alto
nível e discreto.” Por fim passa o endereço e lá estou numa casa simples e verde.
Parece alugada. Recebe-me à porta. Não estava mentindo, tem boas pernas. Pero
aparenta ter mais de vinte.
Leva-me ao quarto. Um entre outros, pergunto, “Trabalha sozinha?”
“Sim.” Ela responde prontamente. Faço olhar curioso e ela continua, “Divido na
semana com uma amiga.”
Desveste-se e espera que eu faça o mesmo, faço. A langerie miúda junto do
sapato de salto alto torna o corpo esguio, diminue a barriga, espichando. A calcinha fio
dental salienta uma bunda volumosa que mais tarde percebi ser feita de uma pele
envelhecida. Com certeza ela já conta com trinta anos. Não faz mal. Nunca fui
exigente com puta.
Meu pau está eriçado. Normal, ela entende e me põe na banheira cheirosa e
morna. Por uns furos na parede venta, e a água borbulha. Passa um óleo corporal na
mão e acaricia pesadamente meus ombros, pescoço. Diz que estou cansado, e eu
acredito. Estou exausto! Por pouco não desisto do trabalho de jornalista. Agora penso
que este poderia ser um texto de propaganda. Ocorre-me dar a ela a sugestão, pero
contenho-me a tempo. Não é isso que vim fazer aqui. E depois, defunto não paga
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3. matéria.
Sinto que a vida deixou meu corpo. Estou triste e cansado. Há anos não tenho ar
no peito. Quero chorar! Imagino que essas mãos que me tocam são amigas.
Reconforto-me por tempo breve. Mais tarde voltarei a monotonia e tédio desesperador.
Antes que ela desça as mãos eu pergunto se tem café, e responde, “Você quer
café?”
“Só se tiver pronto.”
“Está, já trago.”
Não preciso desculpar-me. Há de entender, trabalha com isso tem tempo. Deve
saber das frustrações de cada um. O cheiro do café chega. Apanho a xícara da
bandeija.
“É Ana, não é?”
“É.”
“Obrigado, Ana.”
Ana espera-me terminar. Então recolhe. Volta a deslizar as mãos em mim, e
pensa que deve adiantar o serviço. Puxa e saio da banheira, joga-me na cama. Sobe
em cima de mim e retira o sutiã, vejo seu peito dobrar-se sobre a parte inferior. Desce a
calcinha. Está depilada e posso ver seu clitóris sobressalente. Sorri e oferece-me a
lamber. Lambo. Beija meu peito, desce e coloca a camisinha que tem em mãos.
Camisinha sempre apertou meu pênis, fico tenso. Mais pressão, ela coloca na boca.
Preservativo é estranho, não sente-se a língua, somente esta “pressão.”
Ela para pela minha cara de enfado. Sobe e começa a galopar. Passar a língua
dentro do meu ouvido e etcétera. Beija meu pescoço, estou mesmo enfadado. O olhar
dela perde o brilho ao ver-me desanimado, parece que vai desistir. Antes de botar-se
noutra posição tenho a bondade de agarrá-la pelo pescoço e jogá-la na cama. Ela
morde o beiço e faz cara de sexy para tentar se defender. Acha que eu me esquentei.
Pero assusta-se quando meus fortes dedos forçam-lhe a traqueia. Num segundo ela
parece ter-se despertado apavorada e começa uma luta para desvencilhar-se das
minhas garras. Inútil, minha filha... estas mãos aqui estão acostumadas a forjar duros
aços e achatá-los com a marreta. Vanglorio-me pois meus ombros são resistentes e
aguentarão sem fraquejar por horas e mais horas do mais brutal serviço. Pensei tudo
isso e ela parece ter entendido. Acaba de morrer. Volto para casa. A felicidade de hoje
foi garantida.
Capítulo III
“I'm not an elephant! I'm a human being!”... e o demasiado sono não me deixa
dormir. Cansaço não significa dormir bem, quer dizer apenas que'stá incomodado com
algo tão inútil que não proporciona prazer, senão somente um desgosto angustiante e
desequilibrado a ponto de perder o pouco sono que te resta na tediosa e preocupada
vida enfadonha e pobre, tão cruelmente projetada para que trabalhe por comida e pra
pagar conta de água e luz que faltando, a droga da vida seria-lhe impossível, do you
know what I mean?
Calço as minhas botas, ajeito uma peixeira na parte detrás da cintura e cubro
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4. com a velha jaqueta jeans. Avise ao meu solitário violão que saí para beber. Ouvir os
carros buzinando, cegando-me com faróis fortíssimos que claream a pista nesta
madrugada. O Morro da Luz apresenta seu mato denso e sinistramente escuro. Subo
as escadarias, o ar é bom; a paísagem desolada, carrega misteriosamente um perfume
sexual, junto do característico odor da maconha queimada. Encontro o que vim
encontrar. Rapariga caximbando craque. Aproximo-me honestamente desinteressado.
Agaixo-me perto dela, que diz,
“Não vendo, meu. Pero se quiser a gente compra aqui atrás, na rua do pronto
socorro.”
“Não vim comprar. Eu só queria...” Finco a faca na sua barriga funda e desnuda.
Que sensação boa! Mexo um pouco lá dentro. Faço como se fosse tirar e empurro mais
para o fundo. Incrível este gosto de poder abrir um corpo. Tomar lugar, não afastando
os órgãos, pero magicamente perfurando-os. Dois corpos ocupando o mesmo lugar no
espaço... é possível se comprimir os tecidos. E quando puxei... que graça! Que
maravilha! Soltou dali uns fios de sangue grosso que logo tomaram conta da calça da
vagabunda. E não parava nunca! Será que só tinha sangue dentro dela? Quanto deste
líquido pode mais haver? Faço outro furo, localizado no peito... cortando o osso
esterno.
“É aqui que fica o coração? Não deve ser. Atingi apenas o canto inferior do
pulmão direito. Pero aqui...” tentei de novo num furo acima. “Ah sim! Agora acertei não
é mesmo? Pode dizer, eu consigo ver pela sua cara. Expressão estranha que está a
fazer agora. O que está sentindo?, como é?, gostoso?”
Fujo dali para um boteco da Avenida Fernando Correa.
Puxo uma cadeira de plástico e sento. O bar lotado, cheio de fumaça, fedendo a
mijo. Mulheres de short curtíssimo e barriga de fora passeam com o cigarro na boca e
copo na mão. Algumas já tem dono. O clássico velho barrigudo de camisa aberta chega
para ver o que quero,
“Vai querer o quê?”
Peço a cerveja mais barata. Mesmo ela é cara aqui perto do centro. Saudade da
periferia. Conversa alta e música ruim. É tudo que eu mais queria! Ah! Como tenho nojo
dessa minha vida. Rezo para acontecer uma briga. Se tiver tiro, caio no chão e espero
acabar. Se for soco, torço para o valentão apanhar de vários. Se tiver facada, espero
ver sangue. Se o socorro chegar eu acompanho a maca. Saio antes da polícia revistar
todo mundo, com a famigerada frase “homens encostam naquela parede e mulheres
nesta.” Não tenho o que temer, só um punhal sujo de sangue aidético. Pero nada
ocorre. Socorro! O tédio vem vindo!
Capítulo IV
Arranco o isopor da garrafa e espero o velho vir me trazer outra. Quando chega
peço um cigarro filtro vermelho. Bebo e fumo ali o quanto meu dinheiro pode pagar. As
primeiras cervejas tinham gosto doce, conforme minha sede foi acabando, amargou-se.
Agora não sinto gosto de nada, o tabaco deixou-me rouco. O bar é sempre o mesmo,
boteco nunca muda, seja aqui ou em qualquer outro lugar. Há prostitutas, pero esta
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5. noite não vou ter foda. Depois de ir ao banheiro algumas vezes, notei que os
embrulhos de pó na lixeira foram só aumentando. Esta é a capital da droga, já ouvi
dizerem... levanto-me meio que tropeçando, o bar, no começo estranho ganhou um
aconchego de casa. Quanto mais tempo nele, mais difícil sair.
O resto de cerveja no copo está quente e começa a atrair formigas. Os outros
bêbados estão conversando entre si, também com quem encontram no caminho. Estou
de mal humor. Minha cabeça começa a doer, meu cérebro cansado pensa no que
escreverá da próxima vez. Sinto-me angustiadamente quebrado. Quero morrer. É
incrível como num ambiente desse todos parecem farinha do mesmo saco. Qualquer
um aqui discutiria Freud e Machado tão bem quanto eu. Álcool deixa-nos no mesmo
nível intelectual. Meu inglês ruim não sairia de pensamentos... chega, vou para casa.
Entro em casa com a calma de quem tem todo tempo do mundo. Olho os moveis
imoveis. Espero o fogão fazer-me comida, e da geladeira uma água trincando.
Nada recebo. Então sento-me para contemplar o vazio e o silêncio.
Numa cadeira, roupas sem passar. Jornais na mesa. A janela pendura uma
corda preta. Sinto-me atraído por ela. Começo a destrinchá-la. Quantos nós posso
fazer?, de quais espécies e com quais usos? Faço um grandioso e belíssimo, forte e
seguro nó de enforco de sete voltas, reforçado por uma oitava. Procuro por procurar o
local mais alto, para que possa analisar o tamanho da corda. Acho no primeiro andar,
com vista para o quintal um pilar de concreto, e lá amarro.
Com um rápido cálculo, observando altura, meu peso e comprimento da corda,
concluo que conseguiria uma morte satisfatoriamente indolor. E laço meu pescoço
como uma cobaia. Pulo.
Pendurado festejo, até que enfim estou morto!, “da vida não levo uma saudade!”
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