SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 19
Baixar para ler offline
SUPER SANTAS
FÁÁÁÁBIO FABRÍÍÍÍCIO FABRETTI
Todos os direitos reservados
- Rio de Janeiro, 2005 -
Pode-se ser um santo sem Deus:
é o único problema concreto que eu conheço hoje.
ALBERT CAMUS
São os santos que transformam o mundo.
Levar o mundo a sério é a lição dos santos.
OTTO MARIA CARPEAUX
A mulher é o negro do mundo.
YOKO ONO
CONTOS
Santa Terezinha das Rosas 03
Véus, grinaldas e grilhões 06
.
Deus é doido 11
Santa Marilyn 15
Uma luz para Luzia 17
SANTA TEREZINHA DAS ROSAS
Sempre tive horror de morrer solteira. Pavor de nunca encontrar um
pretendente. Só de pensar que minhas irmãs estavam todas casando e eu
encalhada, afundada na lama das tias precoces, ficava desesperada. Esse terror
profundo sempre me perseguiu. A cada ano crescia minha vontade de casar e
viver eternamente ao lado de um homem. Nunca aceitei a solteirice. Tinha um
altar na nossa casa. E nele uma imagem de Santa Terezinha das Rosas. A
Pequena Flor de Jesus. Ela morreu doente, jovem e virgem. Isso me deixava
apavorada. Diziam minhas tias beatas – e todas casadas - que ela, antes de
morrer, avisou que deixaria cair uma chuva de rosas sobre quem rogasse o seu
nome, atendendo a qualquer pedido. Por isso pode-se pedir tudo à ela, tudo, e
ela atende. Menos pedidos de amor, pois o amor incondicional havia sido o
seu martírio.
Sozinha em casa, sem que ninguém percebesse, não resisti e pedi à
Santa Terezinha das Rosas que me arrumasse um casamento, que eu vivesse
longamente ao lado do meu esposo numa casa lotada de filhos. Ora, se era
uma santa que carregava as rosas, simbolizando o amor, que mal haveria? E
em troca da súplica divina, prometi que tesoura nenhuma jamais cortaria os
meus cabelos. Nem uma pontinha sequer.
Claro que cumpri fielmente o meu voto, deixando meus cabelos
crescerem, longos, intocáveis, livres da poda, como uma extensão do meu
desejo. O meu corpo era um templo preservado e puro. Até o dia, enfim, que
conheci um homem. Com ele, o amor e a promessa de uma vida juntos. Contei
logo pra todo mundo. Na noite da véspera do meu casamento, tudo estava
pronto, e adormeci namorando o meu vestido de noiva, sonhando com a
felicidade do enlace, esperando o momento em que me tornaria mulher nos
braços do homem que me entregaria, quando, no meio do sono, fui invadida
5
por um cheiro de rosas. Minhas compridas mechas, lentamente, se
enroscaram no meu pescoço. Como tentáculos. Apertaram a minha garganta.
E mataram-me estrangulada.
Até hoje ando por aí... arrastando meus compridos cabelos....
esperando... ouvindo os acordes nupciais... esperando... como e caminhasse
para um breve altar... esperando o dia do meu casamento.
6
VÉUS, GRINALDAS E GRILHÕES
A vida todinha sonhei conhecer esse mundão aí de fora. Não esse
mundiquinho vagabundo que eu vivo. Mas um mundão melhorzinho do que os
que as mulheres da minha família viviam. Um mundão bom de ser
desvendado, desbravado, conquistado, explorado. Quando eu era moleca
ainda, me deram de presente um globo, daqueles que tem o planeta terra,
sabe? Todo azul. Eu passava horas enfurnada no quarto, viajando, aquele
montão de lugar girando na frente dos meus olhos. Ah, tinha tanta coisa para
descobrir lá fora. Tantos idiomas pra aprender. Tanto cantinho pra conhecer,
Jesus. Aí, primeiro, eu quis ser expedicionária, pra encarar lugares como o
Alasca. Depois, moçoila, quis ser missionária, para civilizar tribos selvagens
da África. No final das contas, até ser aeromoça acabou me agradando. Nunca
contei pra ninguém os meus sonhos, com medo de que rissem de mim.
Meu nome é Laurinda Soares Abravanel. Meu marido tem esse
sobrenome por um mero acaso do destino. Ele é agente imobiliário. Nas lojas
que eu fazia crediário, as vendedoras vivia me perguntando se eu era parente
do Sílvio Santos. E eu mentia que era, só pra me sentir importante. E ainda
ganhava desconto! Minhas colega me chamavam de Laurinha, na infância.
Depois de moça virei Laura e agora sou Lala. Engraçado como no meio da
vida te resumem a um pedaço de apelido, né?
“Eu terei netos e minha filha será uma ótima esposa”, falava meu pai,
homem bão. “Eu terei netos e minha filha arrumará um casamento ric”,
profetizava minha mãe, mulher melhor ainda. Para eles, nada pior que uma
mulher sem o amor de um homem, e eu teria que provar minha feminilidade,
dar filhos, fazer família e retribuir a criação que recebi. Tinha esperança de
que um dia eles desistissem.
8
Um dia conheci Omar, o primeiro homem que me beijou, quando
voltava do meu curso de corte e costura. Naquela época eu costumava
colecionar cartões postais do mundo todo. E nunca tinha sido beijada.
Na verdade, o que me atraiu em Omar foi o nome dele, “o-mar”, que me
lembrava aquela água toda que cobre o planeta, juntando os continentes. Se
antes alimentava o desejo de viajar, transferi todo esse amor mundano pra ele.
“Um dia descortinaremos o mundo, Laura”, Omar prometia. E namoramos
sonhando conhecer as pirâmides egípcias. “Um dia saborearemos o mundo,
meu amor”. E noivamos, planejando visitar as Ilhas Salomão. “Um dia
cutucaremos o mundo, querida”. E casamos. Mas a lua-de-mel pelo mundo
teve de ser adiada, porque Omar recebera uma promoção justamente na data.
“O fundamental nesse instante é a grana, querida”. Um ano depois fiquei
grávida e foi tudo adiado de novo. “O mais importante agora é o dindim, meu
amor”, falava ele, enquanto eu desfazia as malas. Tive quatro filhos e Omar
nove promoções no serviço. Sabe o que isso significa? Que nunca viajamos.
Mas amor tem prazo de validade, sabia? Ainda mais amor de homem. E
o prazo venceu, moço. Omar cospe fogo das entranhas quando as coisas num
vão bem. Fica tiririca quando a casa num está impecável. Gosta de tudo
limpinho, fresquinho, arrumadinho, passadinho. Ah, também não suporta
comida queimada! Toda vez que vou fritar bife e fico cuidando pra num
esturricar na frigideira, tenho uma sensação estranha, sabe. Quer saber? As
mulheres que se cuidem, ou vão acabar todas virando artigo de cama, mesa e
banho. Pra gente continuar vivendo a gente inventa coisas, né? Fiz um
jardinzinho no quintal de casa, bordei colchas coloridas pras camas e cortinas
pras janelas. Nem abro mais as janelas. Mesmo abertas, as janelas parecem
que tão fechadas dentro de mim. Ainda me pego pensando em me matricular
em uma academia, e quando o instrutor me perguntar quanto tempo tô parada,
vou falar: há quarenta anos. Tem vezes que me surpreendo folheando o meu
9
velho Atlas. Nunca conheci o mundo, nem nunca fiz um passaporte e nem
aprendi dirigir.
Que dia é hoje? Amanhã é dia de compras. Tá vendo aquela imagem
ilustrada na folhinha do calendário? Santa Joana D’Arc! A defensora Joana, de
armadura e espada, batalhadora, invasora, líder de exércitos. Será que ela, por
baixo daquele capacete, era careca de verdade, pra se disfarçar de homem?
Mataram a coitada assada numa fogueira, feito um bife. E depois
chamaram ela de santa, engraçado, né? Tenho é pena dela. Ah, imaginar a
mulher morrer queimada até cozinhar o cérebro me dá nojo. Por que diabos
essa tal de Joana D’Arc teve a força que eu nunca tive? Se voltasse no tempo,
talvez mudasse a minha história.
Hoje meus fios tão tudo criado. Meu ginecologista é o único
homem que rela a mão em mim. Ele me disse que carne tem uma vitamina
importantíssima, bê alguma coisa. Sempre que vou no açougue penso que
somos feitos da mesma carne que compramos e damos pra nossa família.
Preciso mandar consertar a rachadura no teto. E os vidros da sala estão
imundos. Omar saiu cedo e num deixou o dinheiro do homem do gás. Vai
chegar tarde. Agora vive chegando tarde. Tem vez que nem liga pra avisar. “O
importante agora é o dinheiro, meu amor”. Inventa umas reuniões misteriosas.
Vive assim. Mas teve um dia que tomei coragem, “Omar, precisamos
conversar”. “O importante agora é o dinheiro, meu amor”, retrucou o bicho,
“tô atrasado”. E eu enfurnada aqui nessa cozinha, igual uma mucama. Só de
desafronto – e olha que sou mulher de desafrontar mesmo, doutor - fucei as
roupas sujas dele, as camisas fedendo fêmea, gola suja de batom, precisava
ver! Aquilo me doeu tanto. O que mais doeu não foi só isso, mas o fato que
caiu em mim é que tem tempos que não uso perfume, que não sinto falta de
usar um cheirinho, de ser ouvida, acariciada... de me sentir mulher.
Ontem à noite, depois que terminei de fazer o jantar, tirei o avental,
vesti a camisola, comi, assisti a novela e deitei. Mais tarde escutei o carro dele
10
entrando na garagem, a porta abrir, os passos dele indo pro banho. Depois
deitou do meu lado e ainda puxou toda a coberta só pra ele. Estendi o braço
de mansinho e acendi a luz do abajur. Omar roncava igual aqueles porco que a
gente compra pra assar no Natal. A barriga desse tamanho subindo e
descendo. Aí senti um fedo desgraçado. Tava tudo fedendo de alho e cebola,
minha pele, no meu cabelo, na minha vida. Bem devagarzinho, arranquei a
faca debaixo do travesseiro e cravei com força naquela barriga montanhosa.
Lembrei de Joana D’Arc enfiando a lança no bucho dos inimigos. “Toma,
desgraçado! Toma! Toma!” A lâmina atravessou a coberta, o pijama, a carne.
Joana D’Arc enfiando a sua lança. Golpeei mesmo. Furei a pança, as costas, o
coração. “Morre, veado”. Aquele jorro no lençol. “O importante agora é a
liberdade, meu amor”, gritei enquanto ele grunhia, o porco. “Adeus, Omar”. O
corpo todinho retalhadinho. A barriga furada igual a lua, parecendo uma ilha
num mar vermelho.
Nunca pensei que uma faca pudesse fazer a gente se sentir tão forte.
Larguei a arma e deitei de novo na cama. Me cobri – puxando a coberta toda
só pra mim - e desliguei a luz. “Bom descanso, querido”.
Hoje de manhã ainda tive que limpar a sujeirada toda... Que horas são?
Ih, será que o senhor podia dar licença e tirar essa algemas? Daqui a pouco os
meninos vão chegar da escola e não queria que eles vissem. E também tenho
que terminar de aprontar o almoço... de preparar o Omar para o almoço.
DEUS É DOIDO
Prezado... querido... caro... estimado... Deus. Está carta é para você. Ou
senhor. Desculpe incomodar, mas preciso mesmo falar com... você ou senhor?
Ah, deixa pra lá. Vou chamar de você que fica mais amigo, tá? Aqui tudo
funciona quando a gente grita. Dessa vez, ao invés de enfiar remédio na minha
goela abaixo, a enfermeira que parece um sargento me trouxe essa caneta e
esse papel. Disse que era pra eu “registrar” minhas emoções. Eu disse pra ela
que era impossível porque aqui eu só sinto sono e raiva. Aí ela me mandou
escrever pra alguém que eu gostasse. E como também não tem ninguém que
gosto, resolvi escrever pra você. Espero que não se importe. Tenho um
segredo pra te contar. Antes de tudo quero dizer que você é doido, Deus. Até
acredito que você existe, sabe, embora acredito desacreditando. Converso com
você, faço minhas orações, mas tem vezes, quando sinto que não estás vendo,
não podes ver a gente toda hora, não é? Então aproveito sua distração e
desacredito. Desconfio mesmo, cheia de vontade. Mas isso só quando está
longe, Deus. O pior é que nem sei quando está longe ou perto de mim, porque
você é invisível, não é? Deve ser bom ser invisível. Engraçado, isso. Já
prestou atenção como todo mundo crê em você, mas ninguém te conhece?
Alguém já te viu? Então como é que podem falar todo santo dia de alguém
que eles nunca viram? A outra enfermeira, que parece aquelas moças de
filmes de gente pelada, vive lendo a Bíblia e me contou que você é onipotente,
onisciente e onipresente. Nunca vi tanto “oni” na vida. Será que não se cansa
de ser oni em tudo? Eu acho que você é o cara mais popular do mundo. Mais
que o presidente. Onifamoso. Queria um autógrafo seu, Deus.
Minha amiga do outro quarto, aquela que fala sozinha, disse que tem
raiva de você. Mas eu ei que ela é desmiolada mesmo. Ela é do tempo que
davam choque, coitada. Já avisei que quando eu começar a falar sozinha eu
vou costurar a minha boca! Igual a minha boneca, a Sandy. Ela é psicopata e
12
tentou me matar cinco vezes. Por isso furei os olhinhos dela. A paciente do
trinta e seis se matou ontem. Acordou enforcada, dependurada no chuveiro.
Acho que ela não gostava da sobremesa. Olha, vou ser bem sincera, não sei se
teria coragem de morrer pra te encontrar não. Acho se matar fora de moda.
Uma vez sonhei com bonecas assassinas saindo do armário. O paciente do
quinze, aquele que come as folhas da bíblia, vive dizendo que um dia o céu
vai se rasgar e anjos com trombetas vão descer, tem até dragão que vai sair do
mar, e você vai aparecer. Você poderia aparecer antes desse rebuliço todo,
sabe. Eu iria desfilar muito orgulhosa ao seu lado, pelo pátio! Eu e a idiota da
Sandy. A boneca, claro. Deve ser penoso aí em cima, cheio de assuntos chatos
para resolver. Aqui embaixo as coisas estão pavorosas. Nem faz idéia. Ou
faz?! Sei lá. Impossível você não sentir vergonha de ter criado o homem. Você
é tímido, Deus?! Quem diria, ninguém vai acreditar. O criador dos céus e da
terra não concede entrevistas nem se deixa fotografar. Chamam isso aqui de
hospital. Eu chamo de inferno. Até gosto dessa idéia de inferno, de ficar
bronzeadinha. Fico imaginando se os pássaros conseguem descobrir onde
mora. As estrelas falam? Ninguém sente fome aí no céu? É verdade que aí
anda todo mundo pelado e ninguém diz palavrão? Deve ser chatíssimo. Eu
teria vergonha de ir pro céu e queria te perguntar se poderia levar um
biquinizinho. Essa história de andar todos com as coisas de fora é esquisito,
né, Deus! Uma das internas, que já foi freira, me contou que era sua noiva. E
me mostrou até a aliança! Agora me responde: como é que você fica noivo de
uma desconhecida? E ela ainda tinha um hálito horrível, Deus! Você é mesmo
um santo. Tem coisas que não entendo, tipo se os anjos voam mesmo, se os
bichos também vão pro céu, se o espaço tem fim, se remédio cura de verdade.
Desconfio que vou diretinho pro inferno, porque além de roubar as calcinhas
limpas da paciente do lado, deixo ela me ver pelada no banho. Ela fica me
olhando e disse que faz sirica, tadinha. Siririca é um tipo de cosquinha
gostosa. Gosto daqui, apesar da sopa fria e do cobertor curto. Tem até piolho.
13
Piolho é engraçado, tem medo de gente e vive escondido. Você que é
esperto, Deus, fez tudo isso e se mandou. Eu sei que foi um trabalhão danado
criar esse mundaréu, mas a idéia foi sa. Agora agüenta.
Por que você inventou a dor, a injeção, a camisa-de-força? Ainda bem
que criou coisas boas, tipo beijo na boca. Beijo é igual visita surpresa, sempre
achamos que a casa está suja para receber. O paciente do treze que me ensinou
a beijar. A gente treinava escondido. Ele me babava inteirinha. Preciso te
contar o meu segredo. É que comecei a sentir coisas estranhas de uns dias pra
cá. Umas tonteiras enjoadas. Um sono sem fim. Nem o enfermeiro que me
fazia aqueles exames esquisitos apareceu mais. Ele aparecia na hora do meu
banho e pedia para colocar o “bichinho” dele em mim. Dá uma coceira aqui,
só de lembrar. E eu deixava porque gosto de bichinhos. E até gostaria dele, se
não fosse aquela mordida na bochecha que ele levou daquela paciente que late
o tempo todo. Ela pensa que é cachorro. Dá agonia só de olhar. Ontem, os
médicos me contaram que estou grávida. Eu vou ser mãe, Deus!
Às vezes penso que vou esquartejar o meu bebê, igual faço com a
Sandy, mas às vezes penso que ele será um brinquedo de verdade. Querem me
transferir. Vivem me perguntando quem é o pai, e eu só contei que é de um
homem vestido de branco. Todos usam branco, aqui. Aí o pessoal da outra ala
falou que é do Divino Espírito Santo. As invejosas me apelidaram de Virgem
Maria.
Você não acha que as mães se parecem com a Virgem Maria? Ah, eu
acho. Sempre esqueço que você não tem mãe. Você é órfão, Deus? Mesmo
estando aí no bem-bom, deve sentir falta de ter uma. Pra quê servem as mães
eu não sei, mas que elas fazem falta, ah, fazem. Tento lembrar da minha, em
como ela deve ser e o que ela deve tá fazendo. Nos dias de visita, vinha uma
senhora me trazer presentes, coisas que não me serviam pra nada, flores e
fotos de estranhos. Ela achava que eu era filha dela, pobrezinha. E eu deixava
ela pensar. Ah, ela trazia também maria-mole. Sou louca por maria-mole!
14
Parece língua de gente, parece beijar. Mas agora não vem mais ninguém e
fico sentada quietinha num canto, fingindo que nem ligo. É melhor assim.
Visitas perguntam coisas difíceis e tratam a gente igual maluco. Sei que você é
muito atarefado e não quero atrapalhar. Volto a escrever mais vezes. É só
começar a gritar e eles vêm correndo. Só não gosto quando me amarram. Fico
asfixiada. Mas a gente se acostuma, nem dói mais. Vou desenhar uma flor
bem linda pra você. Às vezes olho lá pra fora e penso em fugir, para descobrir
o que tem atrás daqueles muros. Aí lembro que tem tanta gente doida solta
nesse mundo, gente zureta mesmo, e desisto... O que é um louco, Deus? A
loucura é real? Só sei que eu, a Sandy e o meu bebê não somos malucos. E
não queremos sair daqui, nunquinha na vida, Deus.
O mundo é doido, isso sim.
15
SANTA MARILYN
O senhor garantiu que não ia doer, hein, Doutor. E não quero sentir nada. N-a-
d-a. Ah, tomei duas bandas de Lexotan porque tenho pavor de sentir dor.
Depende da dor, né, Doutor. Dores que as que sinto quando vejo os clássicos
de Hollhywood. Aquelas mulheres poderosas “forget me, baby”, “I whant to
be alone...”. Sempre sonhei ter peitos. São uma deformidade necessária. Uma
mulher vale pelo tamanho dos seus seios, sabia, Doutor? A Marilyn Monroe
não se dava com a Jayne Mansfield porque disputavam quem tinha peitos
maiores. E a Marilyn prendia um botão em cada lado do sutiã, pra ficarem
mais pontudos. Coisas de Holywood, meu bem. Dizem também que ela
cerrava um dos saltos para andar rebolando, e que costuravam os vestidos no
corpo dela. Um luxo. Imagine se elas tivessem vivido a descoberta do silicone,
teriam virado um zepelim! Coisas da modernidade, meu bem. Não sei por que
nunca canonizaram a Marilyn. Santa Marilyn Monroe, não soa bem? Ela
vestia cada modelão! Nem a Kim Novak chegava aos pés dela. Passei por
todas as fases cinematográficas: Nunca fui Santa, Adorável Pecadora, Como
agarrar um milionário... Ultimamente estou mais para Os Desajustados
(gargalha). Marilyn deveria ser nomeada a santa da loiras. E por falar em
santas, ai, minha Santa Ágata, ajude a correr tudo bem com meus seios novos.
Sou devota de Santa Ágata, Doutor. Sou fã, apaixonada por ela. É a minha
santa preferida. O senhor sabe a história? Era uma mulher super chique.
Glorioso Deus, como mulher sofre! Deve ser tudo culpa daquela Eva, que
fodeu geral. Mas como eu ia dizendo, Santa Ágata negou se casar com um
homem rico, e foi mandada pra um prostíbulo. Ainda assim resistiu. Aí
prenderam ela em uma masmorra e a torturaram. Teve os peitos extirpados. O
senhor consegue entender a dor que essa mulher sentiu? Amarraram ela em
um tronco e cortaram os seios, deixando sangrar até morrer. Adoro tragédias,
Doutor. E amo os musicais também. Reparou que todo musical tem que ter
16
uma escadaria. Acho escadas um luxo! As divas sabiam descer uma escada
como ninguém. E cantando: “Daimonds are a girl best friends!” Fiz umas
regressões uma vez num centro perto de casa e descobri que fui Santa Ágata
na outra encarnação. Penso nela e me arrepio toda, olha só. Talvez por isso
que mulher pra mim tem que ter peito, tem que ser seiúda, turbinada. Vai,
manda brasa, Doutor, coloca meus quilinhos de silicone aí que quando acordar
quero me sentir um modelo aerodinâmico! Todas vão se pelar de inveja.
Quero abusar dos decotes. Usar tomara-que-caia. Adoro esse nome, “tomara-
que-caia”. É tão feminino (risos). Aplica logo, Doutor, aplica a anestesia que
Santa Ágata deve estar segurando a minha mão, ao meu lado, nesse momento,
mesmo com os buracos sangrando no peito dela. Homens malvados, arrancar
os peitos de uma mulher é igual arrancar as pétalas de uma rosa. Isso, Doutor,
me deixa igual Santa Marilyn. Me deixa linda, super poderosa, com seu
bisturi. Coloca aqui os seios de Santa Ágata. É a vingança dela. Ai, ai, rogai
por mim, minha Santa Ágata, a padroeira das siliconizadas. Vou sair daqui
encarnando a Santa Marilyn, Doutor!
A propósito, o que o senhor vai fazer depois da cirurgia?
UMA LUZ PARA LUZIA
Desculpa atrapaiá, moço, mas podia me arrumar um trocadinho? Num é
pra comprá pinga não. Meu bafo? Essa garrafa aqui no bolso? Há, é conhaque.
Bebida de granfino. Mas num se preocupa que ninguém dá dinheiro suficiente
pra podê comprá, não. Essa eu ganhei de uma molecada que voltava da farra.
Mais comum é beber cachaça mesmo, que pego nas macumbas da esquina,
toda sexta. Conhaque é bom que esquenta até a alma e diminui o oco da
barriga, do vento que passeia nas tripas. Hoje fucei uns sacos de lixo mas num
dei sorte. Cê pode me arrumar um dinheiro? Não, num é pra beber, não. Então
me arruma em cigarro, vai. Tem dia de maré boa que reviro o lixo e faço a
festa. Me banqueteio. Encontro de tudo, revista com foto, pedaço de frango
assado, muda de roupa, fatia de bolo, chinelo sem par e umas comida que nem
conheço as são deliciosas. Vou pelo cheiro, o saco mais perfumoso sempre
tem coisa mió. O fedor não me incomoda nadica de nada. Só sinto os perfume
da comida. Esse diacho da fome. Hoje só achei uns brinquedos véio. E pensei
nas minha crianças que iam pular se vissem. Pra menorzinha, que a enxurrada
da chuva levou, ia dar todas as bonecas que encontrasse. Pro mais véio, se não
tivesse escafedido de casa tão novo, dava a bola murchenta, boa pra uma
pelada. Pra mim, só serve a comida. Sou meio nada mesmo. Meio gente
nenhuma. Quase que coisa esquecida, sem aquele fogueio gingado de quando
cheguei do agreste. Eu pensava que aqui na cidade grande tudo ia ser
diferente. E foi. Diferente pra pior. No sertão a gente tem sofrimento com a
seca, aqui a gente seca com o sofrimento. Só faço querer voltar. Viciei em
desgosto depois que perdemos tudo e João deu de beber e começou me bater.
Bateu tanto que nem enxergo direito. Muita porrada no rosto. Mas nem sinto
falta de vê, os zóios verdadeiros tão no coração, moço, não na cara. Se achasse
por aqui uma carteira cheia de dinheiro, levava eu mais João embora daqui, e
só depois consertava minhas vistas. Sinto uma falta sarnenta da campina e do
vento da minha terra, principalmente depois que vendi o caçula pra aquela
18
família de estrangeiros. Ele falou que um dia voltava pra me buscá. Mas
num é que, dias desses, revirando a lixarada, achei uma coisa preciosa. Sabe o
quê? A imagem de uma santa. A danadinha tava lá, escondida no saco cheio
de papel sujo de merda, jogada fora. Santa Luzia, era ela, sim. E alembrei logo
que minha avó benzedeira proseava dela, a donzela que negou um pretendente
em troca da sua graça, e de maldade os homens do diabo arrancaram as vistas
da pobre. Cegaram ela de vez. No outro dia, ninguém esperava e a moça
acordou com dois zóio novinhos em folha e azul, da cor do céu, uns mais
lindos que o outro. Olhos divinos, lindos de morrer, que nem o sol. Tudo
presente de Deus. Quer ver ela? Tá aqui, quietinha, ó, no meu bolso, do lado
do conhaque. Carrego comigo pra dar proteção. Parece uma rainha. Eu nunca
quis ser rainha. E não é que tenho o mesmo nome que a danada, e nunca tinha
me apercebido? Santa Luzia. No dia que eu achei ela, arredei pro barraco,
Luzia carregando Luzia. Até esqueci a cegueira e quase fui atropelada perto
do viaduto. João tava lá embaixo, fazendo fogo. Aí gritei “João, óia só o que
eu achei!”. Ele olhou, encachaçado, e perguntou se era de comer. “Não. É
melhor ainda”, mostrei a minha Santa Luzia pra ele, “Olha que linda, João!”.
Ele falou que não era santa coisa nenhuma, era uma cabeça de boneca
degolada, e perguntou qual era a serventia. “Serve pra nada”, respondi, “serve
pra nada, não, é pra ficar olhando, é a Santa Luzia”. “É você?”, o morto vivo
perguntou. “É, sou eu”, falei. Sabe, moço, eu queria dinheiro pra comprar uma
vela e acender pra minha Santa Luzia. Ela também tem fome, fome de
acreditarem nela. Quem sabe ela faz os meus olhos enxergar de novo. Nos
tempos de namoro, lá no Nordeste, João dizia que eu ria com os olhos. Nem
lembro mais da cor do sol. Tudo é escuro, agora, de dia e de noite. Eu queria
fazer um agrado pra minha santinha. O moço podia me arrumar um
trocadinho?
O autor
www.fffabretti.com
Fábio Fabrício Fabretti, paranaense-carioca, é escritor, professor e jornalista cultural.
Leciona Literatura, Filosofia, Sociologia e Oficina de Escrita. Além de escrever ficção
desde cedo, enveredou para a biografia, onde estreou como assistente de pesquisa de Italo
Moriconi, na publicação das cartas póstumas de “Caio Fernando Abreu”, pela Aeroplano
Editora, em 2002.
Como ficção, escreveu com Ana Paula Maia e Thiago Picchi, “Sexo, drogas e tralalá”,
Editora 7 Letras. E participou recentemente da antologia “Folhas ao vento” da Andross
Editora.
Também escreve com o pseudônimo de Santamaria para o site
www.escritorassuicidas.com.br .

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

O Erro - 3 primeiros capítulos
O Erro - 3 primeiros capítulosO Erro - 3 primeiros capítulos
O Erro - 3 primeiros capítulosIuri Montenegro
 
C.s.lewis as crônicas de nárnia - vol. 7 - a última batalha
C.s.lewis   as crônicas de nárnia - vol. 7 - a última batalhaC.s.lewis   as crônicas de nárnia - vol. 7 - a última batalha
C.s.lewis as crônicas de nárnia - vol. 7 - a última batalhaAriovaldo Cunha
 
Aula figuras de linguagem
Aula figuras de linguagemAula figuras de linguagem
Aula figuras de linguagemCurso Letrados
 
Nao matem os jacares
Nao matem os jacaresNao matem os jacares
Nao matem os jacaresNilce Bravo
 
Mario de Andrade e Vestida de Preto
Mario de Andrade e Vestida de PretoMario de Andrade e Vestida de Preto
Mario de Andrade e Vestida de PretoDani Bertollo
 
Contos que elevam a alma
Contos que elevam a almaContos que elevam a alma
Contos que elevam a almaAntonio SSantos
 
Amor inteiro trecho inédito
Amor inteiro trecho inéditoAmor inteiro trecho inédito
Amor inteiro trecho inéditoMaribell_Azevedo
 
James Potter e a travessia dos Titãs - G. Norman Lippert
James Potter e a travessia dos Titãs - G. Norman Lippert James Potter e a travessia dos Titãs - G. Norman Lippert
James Potter e a travessia dos Titãs - G. Norman Lippert Victor Ignis
 
Grimpow o eleito dos templarios - Rafael Abalos
Grimpow o eleito dos templarios - Rafael AbalosGrimpow o eleito dos templarios - Rafael Abalos
Grimpow o eleito dos templarios - Rafael AbalosIFMT - Pontes e Lacerda
 
Kafka um medico_de_aldeia
Kafka um medico_de_aldeiaKafka um medico_de_aldeia
Kafka um medico_de_aldeiaLuis Taborda
 
Brasilpandeir Oyy 1
Brasilpandeir Oyy 1Brasilpandeir Oyy 1
Brasilpandeir Oyy 1Luis Nassif
 
Contos de fadas slaid novo
Contos de fadas slaid novoContos de fadas slaid novo
Contos de fadas slaid novononoano
 

Mais procurados (18)

O Erro - 3 primeiros capítulos
O Erro - 3 primeiros capítulosO Erro - 3 primeiros capítulos
O Erro - 3 primeiros capítulos
 
C.s.lewis as crônicas de nárnia - vol. 7 - a última batalha
C.s.lewis   as crônicas de nárnia - vol. 7 - a última batalhaC.s.lewis   as crônicas de nárnia - vol. 7 - a última batalha
C.s.lewis as crônicas de nárnia - vol. 7 - a última batalha
 
vadiao
vadiaovadiao
vadiao
 
Aula figuras de linguagem
Aula figuras de linguagemAula figuras de linguagem
Aula figuras de linguagem
 
Visita de um amigo
Visita de um amigoVisita de um amigo
Visita de um amigo
 
As aventuras de joão sem medo imagens
As aventuras de joão sem medo imagensAs aventuras de joão sem medo imagens
As aventuras de joão sem medo imagens
 
Ana Margarida
Ana MargaridaAna Margarida
Ana Margarida
 
Nao matem os jacares
Nao matem os jacaresNao matem os jacares
Nao matem os jacares
 
Mario de Andrade e Vestida de Preto
Mario de Andrade e Vestida de PretoMario de Andrade e Vestida de Preto
Mario de Andrade e Vestida de Preto
 
Contos que elevam a alma
Contos que elevam a almaContos que elevam a alma
Contos que elevam a alma
 
Amor inteiro trecho inédito
Amor inteiro trecho inéditoAmor inteiro trecho inédito
Amor inteiro trecho inédito
 
James Potter e a travessia dos Titãs - G. Norman Lippert
James Potter e a travessia dos Titãs - G. Norman Lippert James Potter e a travessia dos Titãs - G. Norman Lippert
James Potter e a travessia dos Titãs - G. Norman Lippert
 
Taxi curitibano
Taxi curitibanoTaxi curitibano
Taxi curitibano
 
Grimpow o eleito dos templarios - Rafael Abalos
Grimpow o eleito dos templarios - Rafael AbalosGrimpow o eleito dos templarios - Rafael Abalos
Grimpow o eleito dos templarios - Rafael Abalos
 
Kafka um medico_de_aldeia
Kafka um medico_de_aldeiaKafka um medico_de_aldeia
Kafka um medico_de_aldeia
 
Zeli pausa
Zeli pausaZeli pausa
Zeli pausa
 
Brasilpandeir Oyy 1
Brasilpandeir Oyy 1Brasilpandeir Oyy 1
Brasilpandeir Oyy 1
 
Contos de fadas slaid novo
Contos de fadas slaid novoContos de fadas slaid novo
Contos de fadas slaid novo
 

Semelhante a Fabio.fabricio.fabreti.super.santas

Suplemento acre 0011 e book
Suplemento acre 0011 e book Suplemento acre 0011 e book
Suplemento acre 0011 e book AMEOPOEMA Editora
 
Homenagem a Francisco Neves de Macedo
Homenagem a Francisco Neves de MacedoHomenagem a Francisco Neves de Macedo
Homenagem a Francisco Neves de MacedoConfraria Paranaense
 
Minha fama de mau erasmo carlos
Minha fama de mau   erasmo carlosMinha fama de mau   erasmo carlos
Minha fama de mau erasmo carlosTelmo Giani
 
Diário de Kassandra: a marca da bruxa
Diário de Kassandra:  a marca da bruxaDiário de Kassandra:  a marca da bruxa
Diário de Kassandra: a marca da bruxaRaquel Alves
 
Resumo do segredo dos girassós livro de adriana matheus
Resumo do segredo dos girassós  livro de adriana matheusResumo do segredo dos girassós  livro de adriana matheus
Resumo do segredo dos girassós livro de adriana matheusAdriana Matheus
 
Sem Ao Menos Um Aceno
Sem Ao Menos Um AcenoSem Ao Menos Um Aceno
Sem Ao Menos Um Acenoguesta47b474
 
Santa Benedita Cambiagio
Santa Benedita CambiagioSanta Benedita Cambiagio
Santa Benedita CambiagioSBProv
 
A confidente da rameira caduca
A confidente da rameira caducaA confidente da rameira caduca
A confidente da rameira caducaArthur Dellarubia
 
Memórias de um lobo mau
Memórias de um lobo mauMemórias de um lobo mau
Memórias de um lobo mauCarlos Pinheiro
 
Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12
Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12
Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12lousrondon
 
Sem ao menos_um_aceno
Sem ao menos_um_acenoSem ao menos_um_aceno
Sem ao menos_um_acenoHBMenezes
 

Semelhante a Fabio.fabricio.fabreti.super.santas (20)

Noite profunda
Noite profundaNoite profunda
Noite profunda
 
Noite profunda
Noite profundaNoite profunda
Noite profunda
 
Suplemento acre 0011 e book
Suplemento acre 0011 e book Suplemento acre 0011 e book
Suplemento acre 0011 e book
 
Aula 2 pdf.pdf
Aula 2 pdf.pdfAula 2 pdf.pdf
Aula 2 pdf.pdf
 
Homenagem a Francisco Neves de Macedo
Homenagem a Francisco Neves de MacedoHomenagem a Francisco Neves de Macedo
Homenagem a Francisco Neves de Macedo
 
FLOR DO DESERTO
FLOR DO DESERTOFLOR DO DESERTO
FLOR DO DESERTO
 
67
6767
67
 
Oficinas de escrita
Oficinas de escritaOficinas de escrita
Oficinas de escrita
 
Minha fama de mau erasmo carlos
Minha fama de mau   erasmo carlosMinha fama de mau   erasmo carlos
Minha fama de mau erasmo carlos
 
A pequena flor do campo
A pequena flor do campoA pequena flor do campo
A pequena flor do campo
 
Diário de Kassandra: a marca da bruxa
Diário de Kassandra:  a marca da bruxaDiário de Kassandra:  a marca da bruxa
Diário de Kassandra: a marca da bruxa
 
Resumo do segredo dos girassós livro de adriana matheus
Resumo do segredo dos girassós  livro de adriana matheusResumo do segredo dos girassós  livro de adriana matheus
Resumo do segredo dos girassós livro de adriana matheus
 
Sem Ao Menos Um Aceno
Sem Ao Menos Um AcenoSem Ao Menos Um Aceno
Sem Ao Menos Um Aceno
 
Santa Benedita Cambiagio
Santa Benedita CambiagioSanta Benedita Cambiagio
Santa Benedita Cambiagio
 
A confidente da rameira caduca
A confidente da rameira caducaA confidente da rameira caduca
A confidente da rameira caduca
 
Memórias de um lobo mau
Memórias de um lobo mauMemórias de um lobo mau
Memórias de um lobo mau
 
D 11.pptx
D 11.pptxD 11.pptx
D 11.pptx
 
Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12
Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12
Lous rondon-contos-reunidosi-margin1-letter-arial12
 
The Dead Zone
The Dead ZoneThe Dead Zone
The Dead Zone
 
Sem ao menos_um_aceno
Sem ao menos_um_acenoSem ao menos_um_aceno
Sem ao menos_um_aceno
 

Mais de Ariane Mafra

Urdimento voz oralidade
Urdimento voz oralidadeUrdimento voz oralidade
Urdimento voz oralidadeAriane Mafra
 
Revista moin moin_6
Revista moin moin_6Revista moin moin_6
Revista moin moin_6Ariane Mafra
 
Revista moin moin_5
Revista moin moin_5Revista moin moin_5
Revista moin moin_5Ariane Mafra
 
Revista moin moin_4
Revista moin moin_4Revista moin moin_4
Revista moin moin_4Ariane Mafra
 
Revista moin moin_1
Revista moin moin_1Revista moin moin_1
Revista moin moin_1Ariane Mafra
 
Sociedade do espetaculo
Sociedade do espetaculoSociedade do espetaculo
Sociedade do espetaculoAriane Mafra
 
Psicossociologia análise social e intervenção
Psicossociologia   análise social e intervençãoPsicossociologia   análise social e intervenção
Psicossociologia análise social e intervençãoAriane Mafra
 
Pedagogia dos monstros os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras
Pedagogia dos monstros   os prazeres e os perigos da confusão de fronteirasPedagogia dos monstros   os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras
Pedagogia dos monstros os prazeres e os perigos da confusão de fronteirasAriane Mafra
 
Paolo.parise. .arte.de.criar.-.dinamicas.para.grupos.de.jovens
Paolo.parise. .arte.de.criar.-.dinamicas.para.grupos.de.jovensPaolo.parise. .arte.de.criar.-.dinamicas.para.grupos.de.jovens
Paolo.parise. .arte.de.criar.-.dinamicas.para.grupos.de.jovensAriane Mafra
 
O assunto eh_vinho_carlos_alberto_sardenberg_renato_machado
O assunto eh_vinho_carlos_alberto_sardenberg_renato_machadoO assunto eh_vinho_carlos_alberto_sardenberg_renato_machado
O assunto eh_vinho_carlos_alberto_sardenberg_renato_machadoAriane Mafra
 
Mozart.couto.curso.completo.de.desenho.volume.1
Mozart.couto.curso.completo.de.desenho.volume.1Mozart.couto.curso.completo.de.desenho.volume.1
Mozart.couto.curso.completo.de.desenho.volume.1Ariane Mafra
 
Miro.baia.arte.da.expressao.teatro
Miro.baia.arte.da.expressao.teatroMiro.baia.arte.da.expressao.teatro
Miro.baia.arte.da.expressao.teatroAriane Mafra
 
Isabel allende o reino do dragão de ouro
Isabel allende   o reino do dragão de ouroIsabel allende   o reino do dragão de ouro
Isabel allende o reino do dragão de ouroAriane Mafra
 
Dave.pelzer.uma.crianca.chamada.coisa
Dave.pelzer.uma.crianca.chamada.coisaDave.pelzer.uma.crianca.chamada.coisa
Dave.pelzer.uma.crianca.chamada.coisaAriane Mafra
 

Mais de Ariane Mafra (20)

Urdimento voz oralidade
Urdimento voz oralidadeUrdimento voz oralidade
Urdimento voz oralidade
 
Urdimento 12
Urdimento 12Urdimento 12
Urdimento 12
 
Urdimento 11
Urdimento 11Urdimento 11
Urdimento 11
 
Urdimento 5
Urdimento 5Urdimento 5
Urdimento 5
 
Urdimento 4
Urdimento 4Urdimento 4
Urdimento 4
 
Revista moin moin_6
Revista moin moin_6Revista moin moin_6
Revista moin moin_6
 
Revista moin moin_5
Revista moin moin_5Revista moin moin_5
Revista moin moin_5
 
Revista moin moin_4
Revista moin moin_4Revista moin moin_4
Revista moin moin_4
 
Revista moin moin_1
Revista moin moin_1Revista moin moin_1
Revista moin moin_1
 
Sociedade do espetaculo
Sociedade do espetaculoSociedade do espetaculo
Sociedade do espetaculo
 
Psicossociologia análise social e intervenção
Psicossociologia   análise social e intervençãoPsicossociologia   análise social e intervenção
Psicossociologia análise social e intervenção
 
Pedagogia dos monstros os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras
Pedagogia dos monstros   os prazeres e os perigos da confusão de fronteirasPedagogia dos monstros   os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras
Pedagogia dos monstros os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras
 
Paolo.parise. .arte.de.criar.-.dinamicas.para.grupos.de.jovens
Paolo.parise. .arte.de.criar.-.dinamicas.para.grupos.de.jovensPaolo.parise. .arte.de.criar.-.dinamicas.para.grupos.de.jovens
Paolo.parise. .arte.de.criar.-.dinamicas.para.grupos.de.jovens
 
O assunto eh_vinho_carlos_alberto_sardenberg_renato_machado
O assunto eh_vinho_carlos_alberto_sardenberg_renato_machadoO assunto eh_vinho_carlos_alberto_sardenberg_renato_machado
O assunto eh_vinho_carlos_alberto_sardenberg_renato_machado
 
Mozart.couto.curso.completo.de.desenho.volume.1
Mozart.couto.curso.completo.de.desenho.volume.1Mozart.couto.curso.completo.de.desenho.volume.1
Mozart.couto.curso.completo.de.desenho.volume.1
 
Miro.baia.arte.da.expressao.teatro
Miro.baia.arte.da.expressao.teatroMiro.baia.arte.da.expressao.teatro
Miro.baia.arte.da.expressao.teatro
 
Isabel allende o reino do dragão de ouro
Isabel allende   o reino do dragão de ouroIsabel allende   o reino do dragão de ouro
Isabel allende o reino do dragão de ouro
 
Dave.pelzer.uma.crianca.chamada.coisa
Dave.pelzer.uma.crianca.chamada.coisaDave.pelzer.uma.crianca.chamada.coisa
Dave.pelzer.uma.crianca.chamada.coisa
 
Os persas
Os persasOs persas
Os persas
 
Os Cavaleiros
Os CavaleirosOs Cavaleiros
Os Cavaleiros
 

Fabio.fabricio.fabreti.super.santas

  • 1. SUPER SANTAS FÁÁÁÁBIO FABRÍÍÍÍCIO FABRETTI Todos os direitos reservados - Rio de Janeiro, 2005 -
  • 2. Pode-se ser um santo sem Deus: é o único problema concreto que eu conheço hoje. ALBERT CAMUS São os santos que transformam o mundo. Levar o mundo a sério é a lição dos santos. OTTO MARIA CARPEAUX A mulher é o negro do mundo. YOKO ONO
  • 3. CONTOS Santa Terezinha das Rosas 03 Véus, grinaldas e grilhões 06 . Deus é doido 11 Santa Marilyn 15 Uma luz para Luzia 17
  • 4. SANTA TEREZINHA DAS ROSAS Sempre tive horror de morrer solteira. Pavor de nunca encontrar um pretendente. Só de pensar que minhas irmãs estavam todas casando e eu encalhada, afundada na lama das tias precoces, ficava desesperada. Esse terror profundo sempre me perseguiu. A cada ano crescia minha vontade de casar e viver eternamente ao lado de um homem. Nunca aceitei a solteirice. Tinha um altar na nossa casa. E nele uma imagem de Santa Terezinha das Rosas. A Pequena Flor de Jesus. Ela morreu doente, jovem e virgem. Isso me deixava apavorada. Diziam minhas tias beatas – e todas casadas - que ela, antes de morrer, avisou que deixaria cair uma chuva de rosas sobre quem rogasse o seu nome, atendendo a qualquer pedido. Por isso pode-se pedir tudo à ela, tudo, e ela atende. Menos pedidos de amor, pois o amor incondicional havia sido o seu martírio. Sozinha em casa, sem que ninguém percebesse, não resisti e pedi à Santa Terezinha das Rosas que me arrumasse um casamento, que eu vivesse longamente ao lado do meu esposo numa casa lotada de filhos. Ora, se era uma santa que carregava as rosas, simbolizando o amor, que mal haveria? E em troca da súplica divina, prometi que tesoura nenhuma jamais cortaria os meus cabelos. Nem uma pontinha sequer. Claro que cumpri fielmente o meu voto, deixando meus cabelos crescerem, longos, intocáveis, livres da poda, como uma extensão do meu desejo. O meu corpo era um templo preservado e puro. Até o dia, enfim, que conheci um homem. Com ele, o amor e a promessa de uma vida juntos. Contei logo pra todo mundo. Na noite da véspera do meu casamento, tudo estava pronto, e adormeci namorando o meu vestido de noiva, sonhando com a felicidade do enlace, esperando o momento em que me tornaria mulher nos braços do homem que me entregaria, quando, no meio do sono, fui invadida
  • 5. 5 por um cheiro de rosas. Minhas compridas mechas, lentamente, se enroscaram no meu pescoço. Como tentáculos. Apertaram a minha garganta. E mataram-me estrangulada. Até hoje ando por aí... arrastando meus compridos cabelos.... esperando... ouvindo os acordes nupciais... esperando... como e caminhasse para um breve altar... esperando o dia do meu casamento.
  • 6. 6
  • 7. VÉUS, GRINALDAS E GRILHÕES A vida todinha sonhei conhecer esse mundão aí de fora. Não esse mundiquinho vagabundo que eu vivo. Mas um mundão melhorzinho do que os que as mulheres da minha família viviam. Um mundão bom de ser desvendado, desbravado, conquistado, explorado. Quando eu era moleca ainda, me deram de presente um globo, daqueles que tem o planeta terra, sabe? Todo azul. Eu passava horas enfurnada no quarto, viajando, aquele montão de lugar girando na frente dos meus olhos. Ah, tinha tanta coisa para descobrir lá fora. Tantos idiomas pra aprender. Tanto cantinho pra conhecer, Jesus. Aí, primeiro, eu quis ser expedicionária, pra encarar lugares como o Alasca. Depois, moçoila, quis ser missionária, para civilizar tribos selvagens da África. No final das contas, até ser aeromoça acabou me agradando. Nunca contei pra ninguém os meus sonhos, com medo de que rissem de mim. Meu nome é Laurinda Soares Abravanel. Meu marido tem esse sobrenome por um mero acaso do destino. Ele é agente imobiliário. Nas lojas que eu fazia crediário, as vendedoras vivia me perguntando se eu era parente do Sílvio Santos. E eu mentia que era, só pra me sentir importante. E ainda ganhava desconto! Minhas colega me chamavam de Laurinha, na infância. Depois de moça virei Laura e agora sou Lala. Engraçado como no meio da vida te resumem a um pedaço de apelido, né? “Eu terei netos e minha filha será uma ótima esposa”, falava meu pai, homem bão. “Eu terei netos e minha filha arrumará um casamento ric”, profetizava minha mãe, mulher melhor ainda. Para eles, nada pior que uma mulher sem o amor de um homem, e eu teria que provar minha feminilidade, dar filhos, fazer família e retribuir a criação que recebi. Tinha esperança de que um dia eles desistissem.
  • 8. 8 Um dia conheci Omar, o primeiro homem que me beijou, quando voltava do meu curso de corte e costura. Naquela época eu costumava colecionar cartões postais do mundo todo. E nunca tinha sido beijada. Na verdade, o que me atraiu em Omar foi o nome dele, “o-mar”, que me lembrava aquela água toda que cobre o planeta, juntando os continentes. Se antes alimentava o desejo de viajar, transferi todo esse amor mundano pra ele. “Um dia descortinaremos o mundo, Laura”, Omar prometia. E namoramos sonhando conhecer as pirâmides egípcias. “Um dia saborearemos o mundo, meu amor”. E noivamos, planejando visitar as Ilhas Salomão. “Um dia cutucaremos o mundo, querida”. E casamos. Mas a lua-de-mel pelo mundo teve de ser adiada, porque Omar recebera uma promoção justamente na data. “O fundamental nesse instante é a grana, querida”. Um ano depois fiquei grávida e foi tudo adiado de novo. “O mais importante agora é o dindim, meu amor”, falava ele, enquanto eu desfazia as malas. Tive quatro filhos e Omar nove promoções no serviço. Sabe o que isso significa? Que nunca viajamos. Mas amor tem prazo de validade, sabia? Ainda mais amor de homem. E o prazo venceu, moço. Omar cospe fogo das entranhas quando as coisas num vão bem. Fica tiririca quando a casa num está impecável. Gosta de tudo limpinho, fresquinho, arrumadinho, passadinho. Ah, também não suporta comida queimada! Toda vez que vou fritar bife e fico cuidando pra num esturricar na frigideira, tenho uma sensação estranha, sabe. Quer saber? As mulheres que se cuidem, ou vão acabar todas virando artigo de cama, mesa e banho. Pra gente continuar vivendo a gente inventa coisas, né? Fiz um jardinzinho no quintal de casa, bordei colchas coloridas pras camas e cortinas pras janelas. Nem abro mais as janelas. Mesmo abertas, as janelas parecem que tão fechadas dentro de mim. Ainda me pego pensando em me matricular em uma academia, e quando o instrutor me perguntar quanto tempo tô parada, vou falar: há quarenta anos. Tem vezes que me surpreendo folheando o meu
  • 9. 9 velho Atlas. Nunca conheci o mundo, nem nunca fiz um passaporte e nem aprendi dirigir. Que dia é hoje? Amanhã é dia de compras. Tá vendo aquela imagem ilustrada na folhinha do calendário? Santa Joana D’Arc! A defensora Joana, de armadura e espada, batalhadora, invasora, líder de exércitos. Será que ela, por baixo daquele capacete, era careca de verdade, pra se disfarçar de homem? Mataram a coitada assada numa fogueira, feito um bife. E depois chamaram ela de santa, engraçado, né? Tenho é pena dela. Ah, imaginar a mulher morrer queimada até cozinhar o cérebro me dá nojo. Por que diabos essa tal de Joana D’Arc teve a força que eu nunca tive? Se voltasse no tempo, talvez mudasse a minha história. Hoje meus fios tão tudo criado. Meu ginecologista é o único homem que rela a mão em mim. Ele me disse que carne tem uma vitamina importantíssima, bê alguma coisa. Sempre que vou no açougue penso que somos feitos da mesma carne que compramos e damos pra nossa família. Preciso mandar consertar a rachadura no teto. E os vidros da sala estão imundos. Omar saiu cedo e num deixou o dinheiro do homem do gás. Vai chegar tarde. Agora vive chegando tarde. Tem vez que nem liga pra avisar. “O importante agora é o dinheiro, meu amor”. Inventa umas reuniões misteriosas. Vive assim. Mas teve um dia que tomei coragem, “Omar, precisamos conversar”. “O importante agora é o dinheiro, meu amor”, retrucou o bicho, “tô atrasado”. E eu enfurnada aqui nessa cozinha, igual uma mucama. Só de desafronto – e olha que sou mulher de desafrontar mesmo, doutor - fucei as roupas sujas dele, as camisas fedendo fêmea, gola suja de batom, precisava ver! Aquilo me doeu tanto. O que mais doeu não foi só isso, mas o fato que caiu em mim é que tem tempos que não uso perfume, que não sinto falta de usar um cheirinho, de ser ouvida, acariciada... de me sentir mulher. Ontem à noite, depois que terminei de fazer o jantar, tirei o avental, vesti a camisola, comi, assisti a novela e deitei. Mais tarde escutei o carro dele
  • 10. 10 entrando na garagem, a porta abrir, os passos dele indo pro banho. Depois deitou do meu lado e ainda puxou toda a coberta só pra ele. Estendi o braço de mansinho e acendi a luz do abajur. Omar roncava igual aqueles porco que a gente compra pra assar no Natal. A barriga desse tamanho subindo e descendo. Aí senti um fedo desgraçado. Tava tudo fedendo de alho e cebola, minha pele, no meu cabelo, na minha vida. Bem devagarzinho, arranquei a faca debaixo do travesseiro e cravei com força naquela barriga montanhosa. Lembrei de Joana D’Arc enfiando a lança no bucho dos inimigos. “Toma, desgraçado! Toma! Toma!” A lâmina atravessou a coberta, o pijama, a carne. Joana D’Arc enfiando a sua lança. Golpeei mesmo. Furei a pança, as costas, o coração. “Morre, veado”. Aquele jorro no lençol. “O importante agora é a liberdade, meu amor”, gritei enquanto ele grunhia, o porco. “Adeus, Omar”. O corpo todinho retalhadinho. A barriga furada igual a lua, parecendo uma ilha num mar vermelho. Nunca pensei que uma faca pudesse fazer a gente se sentir tão forte. Larguei a arma e deitei de novo na cama. Me cobri – puxando a coberta toda só pra mim - e desliguei a luz. “Bom descanso, querido”. Hoje de manhã ainda tive que limpar a sujeirada toda... Que horas são? Ih, será que o senhor podia dar licença e tirar essa algemas? Daqui a pouco os meninos vão chegar da escola e não queria que eles vissem. E também tenho que terminar de aprontar o almoço... de preparar o Omar para o almoço.
  • 11. DEUS É DOIDO Prezado... querido... caro... estimado... Deus. Está carta é para você. Ou senhor. Desculpe incomodar, mas preciso mesmo falar com... você ou senhor? Ah, deixa pra lá. Vou chamar de você que fica mais amigo, tá? Aqui tudo funciona quando a gente grita. Dessa vez, ao invés de enfiar remédio na minha goela abaixo, a enfermeira que parece um sargento me trouxe essa caneta e esse papel. Disse que era pra eu “registrar” minhas emoções. Eu disse pra ela que era impossível porque aqui eu só sinto sono e raiva. Aí ela me mandou escrever pra alguém que eu gostasse. E como também não tem ninguém que gosto, resolvi escrever pra você. Espero que não se importe. Tenho um segredo pra te contar. Antes de tudo quero dizer que você é doido, Deus. Até acredito que você existe, sabe, embora acredito desacreditando. Converso com você, faço minhas orações, mas tem vezes, quando sinto que não estás vendo, não podes ver a gente toda hora, não é? Então aproveito sua distração e desacredito. Desconfio mesmo, cheia de vontade. Mas isso só quando está longe, Deus. O pior é que nem sei quando está longe ou perto de mim, porque você é invisível, não é? Deve ser bom ser invisível. Engraçado, isso. Já prestou atenção como todo mundo crê em você, mas ninguém te conhece? Alguém já te viu? Então como é que podem falar todo santo dia de alguém que eles nunca viram? A outra enfermeira, que parece aquelas moças de filmes de gente pelada, vive lendo a Bíblia e me contou que você é onipotente, onisciente e onipresente. Nunca vi tanto “oni” na vida. Será que não se cansa de ser oni em tudo? Eu acho que você é o cara mais popular do mundo. Mais que o presidente. Onifamoso. Queria um autógrafo seu, Deus. Minha amiga do outro quarto, aquela que fala sozinha, disse que tem raiva de você. Mas eu ei que ela é desmiolada mesmo. Ela é do tempo que davam choque, coitada. Já avisei que quando eu começar a falar sozinha eu vou costurar a minha boca! Igual a minha boneca, a Sandy. Ela é psicopata e
  • 12. 12 tentou me matar cinco vezes. Por isso furei os olhinhos dela. A paciente do trinta e seis se matou ontem. Acordou enforcada, dependurada no chuveiro. Acho que ela não gostava da sobremesa. Olha, vou ser bem sincera, não sei se teria coragem de morrer pra te encontrar não. Acho se matar fora de moda. Uma vez sonhei com bonecas assassinas saindo do armário. O paciente do quinze, aquele que come as folhas da bíblia, vive dizendo que um dia o céu vai se rasgar e anjos com trombetas vão descer, tem até dragão que vai sair do mar, e você vai aparecer. Você poderia aparecer antes desse rebuliço todo, sabe. Eu iria desfilar muito orgulhosa ao seu lado, pelo pátio! Eu e a idiota da Sandy. A boneca, claro. Deve ser penoso aí em cima, cheio de assuntos chatos para resolver. Aqui embaixo as coisas estão pavorosas. Nem faz idéia. Ou faz?! Sei lá. Impossível você não sentir vergonha de ter criado o homem. Você é tímido, Deus?! Quem diria, ninguém vai acreditar. O criador dos céus e da terra não concede entrevistas nem se deixa fotografar. Chamam isso aqui de hospital. Eu chamo de inferno. Até gosto dessa idéia de inferno, de ficar bronzeadinha. Fico imaginando se os pássaros conseguem descobrir onde mora. As estrelas falam? Ninguém sente fome aí no céu? É verdade que aí anda todo mundo pelado e ninguém diz palavrão? Deve ser chatíssimo. Eu teria vergonha de ir pro céu e queria te perguntar se poderia levar um biquinizinho. Essa história de andar todos com as coisas de fora é esquisito, né, Deus! Uma das internas, que já foi freira, me contou que era sua noiva. E me mostrou até a aliança! Agora me responde: como é que você fica noivo de uma desconhecida? E ela ainda tinha um hálito horrível, Deus! Você é mesmo um santo. Tem coisas que não entendo, tipo se os anjos voam mesmo, se os bichos também vão pro céu, se o espaço tem fim, se remédio cura de verdade. Desconfio que vou diretinho pro inferno, porque além de roubar as calcinhas limpas da paciente do lado, deixo ela me ver pelada no banho. Ela fica me olhando e disse que faz sirica, tadinha. Siririca é um tipo de cosquinha gostosa. Gosto daqui, apesar da sopa fria e do cobertor curto. Tem até piolho.
  • 13. 13 Piolho é engraçado, tem medo de gente e vive escondido. Você que é esperto, Deus, fez tudo isso e se mandou. Eu sei que foi um trabalhão danado criar esse mundaréu, mas a idéia foi sa. Agora agüenta. Por que você inventou a dor, a injeção, a camisa-de-força? Ainda bem que criou coisas boas, tipo beijo na boca. Beijo é igual visita surpresa, sempre achamos que a casa está suja para receber. O paciente do treze que me ensinou a beijar. A gente treinava escondido. Ele me babava inteirinha. Preciso te contar o meu segredo. É que comecei a sentir coisas estranhas de uns dias pra cá. Umas tonteiras enjoadas. Um sono sem fim. Nem o enfermeiro que me fazia aqueles exames esquisitos apareceu mais. Ele aparecia na hora do meu banho e pedia para colocar o “bichinho” dele em mim. Dá uma coceira aqui, só de lembrar. E eu deixava porque gosto de bichinhos. E até gostaria dele, se não fosse aquela mordida na bochecha que ele levou daquela paciente que late o tempo todo. Ela pensa que é cachorro. Dá agonia só de olhar. Ontem, os médicos me contaram que estou grávida. Eu vou ser mãe, Deus! Às vezes penso que vou esquartejar o meu bebê, igual faço com a Sandy, mas às vezes penso que ele será um brinquedo de verdade. Querem me transferir. Vivem me perguntando quem é o pai, e eu só contei que é de um homem vestido de branco. Todos usam branco, aqui. Aí o pessoal da outra ala falou que é do Divino Espírito Santo. As invejosas me apelidaram de Virgem Maria. Você não acha que as mães se parecem com a Virgem Maria? Ah, eu acho. Sempre esqueço que você não tem mãe. Você é órfão, Deus? Mesmo estando aí no bem-bom, deve sentir falta de ter uma. Pra quê servem as mães eu não sei, mas que elas fazem falta, ah, fazem. Tento lembrar da minha, em como ela deve ser e o que ela deve tá fazendo. Nos dias de visita, vinha uma senhora me trazer presentes, coisas que não me serviam pra nada, flores e fotos de estranhos. Ela achava que eu era filha dela, pobrezinha. E eu deixava ela pensar. Ah, ela trazia também maria-mole. Sou louca por maria-mole!
  • 14. 14 Parece língua de gente, parece beijar. Mas agora não vem mais ninguém e fico sentada quietinha num canto, fingindo que nem ligo. É melhor assim. Visitas perguntam coisas difíceis e tratam a gente igual maluco. Sei que você é muito atarefado e não quero atrapalhar. Volto a escrever mais vezes. É só começar a gritar e eles vêm correndo. Só não gosto quando me amarram. Fico asfixiada. Mas a gente se acostuma, nem dói mais. Vou desenhar uma flor bem linda pra você. Às vezes olho lá pra fora e penso em fugir, para descobrir o que tem atrás daqueles muros. Aí lembro que tem tanta gente doida solta nesse mundo, gente zureta mesmo, e desisto... O que é um louco, Deus? A loucura é real? Só sei que eu, a Sandy e o meu bebê não somos malucos. E não queremos sair daqui, nunquinha na vida, Deus. O mundo é doido, isso sim.
  • 15. 15 SANTA MARILYN O senhor garantiu que não ia doer, hein, Doutor. E não quero sentir nada. N-a- d-a. Ah, tomei duas bandas de Lexotan porque tenho pavor de sentir dor. Depende da dor, né, Doutor. Dores que as que sinto quando vejo os clássicos de Hollhywood. Aquelas mulheres poderosas “forget me, baby”, “I whant to be alone...”. Sempre sonhei ter peitos. São uma deformidade necessária. Uma mulher vale pelo tamanho dos seus seios, sabia, Doutor? A Marilyn Monroe não se dava com a Jayne Mansfield porque disputavam quem tinha peitos maiores. E a Marilyn prendia um botão em cada lado do sutiã, pra ficarem mais pontudos. Coisas de Holywood, meu bem. Dizem também que ela cerrava um dos saltos para andar rebolando, e que costuravam os vestidos no corpo dela. Um luxo. Imagine se elas tivessem vivido a descoberta do silicone, teriam virado um zepelim! Coisas da modernidade, meu bem. Não sei por que nunca canonizaram a Marilyn. Santa Marilyn Monroe, não soa bem? Ela vestia cada modelão! Nem a Kim Novak chegava aos pés dela. Passei por todas as fases cinematográficas: Nunca fui Santa, Adorável Pecadora, Como agarrar um milionário... Ultimamente estou mais para Os Desajustados (gargalha). Marilyn deveria ser nomeada a santa da loiras. E por falar em santas, ai, minha Santa Ágata, ajude a correr tudo bem com meus seios novos. Sou devota de Santa Ágata, Doutor. Sou fã, apaixonada por ela. É a minha santa preferida. O senhor sabe a história? Era uma mulher super chique. Glorioso Deus, como mulher sofre! Deve ser tudo culpa daquela Eva, que fodeu geral. Mas como eu ia dizendo, Santa Ágata negou se casar com um homem rico, e foi mandada pra um prostíbulo. Ainda assim resistiu. Aí prenderam ela em uma masmorra e a torturaram. Teve os peitos extirpados. O senhor consegue entender a dor que essa mulher sentiu? Amarraram ela em um tronco e cortaram os seios, deixando sangrar até morrer. Adoro tragédias, Doutor. E amo os musicais também. Reparou que todo musical tem que ter
  • 16. 16 uma escadaria. Acho escadas um luxo! As divas sabiam descer uma escada como ninguém. E cantando: “Daimonds are a girl best friends!” Fiz umas regressões uma vez num centro perto de casa e descobri que fui Santa Ágata na outra encarnação. Penso nela e me arrepio toda, olha só. Talvez por isso que mulher pra mim tem que ter peito, tem que ser seiúda, turbinada. Vai, manda brasa, Doutor, coloca meus quilinhos de silicone aí que quando acordar quero me sentir um modelo aerodinâmico! Todas vão se pelar de inveja. Quero abusar dos decotes. Usar tomara-que-caia. Adoro esse nome, “tomara- que-caia”. É tão feminino (risos). Aplica logo, Doutor, aplica a anestesia que Santa Ágata deve estar segurando a minha mão, ao meu lado, nesse momento, mesmo com os buracos sangrando no peito dela. Homens malvados, arrancar os peitos de uma mulher é igual arrancar as pétalas de uma rosa. Isso, Doutor, me deixa igual Santa Marilyn. Me deixa linda, super poderosa, com seu bisturi. Coloca aqui os seios de Santa Ágata. É a vingança dela. Ai, ai, rogai por mim, minha Santa Ágata, a padroeira das siliconizadas. Vou sair daqui encarnando a Santa Marilyn, Doutor! A propósito, o que o senhor vai fazer depois da cirurgia?
  • 17. UMA LUZ PARA LUZIA Desculpa atrapaiá, moço, mas podia me arrumar um trocadinho? Num é pra comprá pinga não. Meu bafo? Essa garrafa aqui no bolso? Há, é conhaque. Bebida de granfino. Mas num se preocupa que ninguém dá dinheiro suficiente pra podê comprá, não. Essa eu ganhei de uma molecada que voltava da farra. Mais comum é beber cachaça mesmo, que pego nas macumbas da esquina, toda sexta. Conhaque é bom que esquenta até a alma e diminui o oco da barriga, do vento que passeia nas tripas. Hoje fucei uns sacos de lixo mas num dei sorte. Cê pode me arrumar um dinheiro? Não, num é pra beber, não. Então me arruma em cigarro, vai. Tem dia de maré boa que reviro o lixo e faço a festa. Me banqueteio. Encontro de tudo, revista com foto, pedaço de frango assado, muda de roupa, fatia de bolo, chinelo sem par e umas comida que nem conheço as são deliciosas. Vou pelo cheiro, o saco mais perfumoso sempre tem coisa mió. O fedor não me incomoda nadica de nada. Só sinto os perfume da comida. Esse diacho da fome. Hoje só achei uns brinquedos véio. E pensei nas minha crianças que iam pular se vissem. Pra menorzinha, que a enxurrada da chuva levou, ia dar todas as bonecas que encontrasse. Pro mais véio, se não tivesse escafedido de casa tão novo, dava a bola murchenta, boa pra uma pelada. Pra mim, só serve a comida. Sou meio nada mesmo. Meio gente nenhuma. Quase que coisa esquecida, sem aquele fogueio gingado de quando cheguei do agreste. Eu pensava que aqui na cidade grande tudo ia ser diferente. E foi. Diferente pra pior. No sertão a gente tem sofrimento com a seca, aqui a gente seca com o sofrimento. Só faço querer voltar. Viciei em desgosto depois que perdemos tudo e João deu de beber e começou me bater. Bateu tanto que nem enxergo direito. Muita porrada no rosto. Mas nem sinto falta de vê, os zóios verdadeiros tão no coração, moço, não na cara. Se achasse por aqui uma carteira cheia de dinheiro, levava eu mais João embora daqui, e só depois consertava minhas vistas. Sinto uma falta sarnenta da campina e do vento da minha terra, principalmente depois que vendi o caçula pra aquela
  • 18. 18 família de estrangeiros. Ele falou que um dia voltava pra me buscá. Mas num é que, dias desses, revirando a lixarada, achei uma coisa preciosa. Sabe o quê? A imagem de uma santa. A danadinha tava lá, escondida no saco cheio de papel sujo de merda, jogada fora. Santa Luzia, era ela, sim. E alembrei logo que minha avó benzedeira proseava dela, a donzela que negou um pretendente em troca da sua graça, e de maldade os homens do diabo arrancaram as vistas da pobre. Cegaram ela de vez. No outro dia, ninguém esperava e a moça acordou com dois zóio novinhos em folha e azul, da cor do céu, uns mais lindos que o outro. Olhos divinos, lindos de morrer, que nem o sol. Tudo presente de Deus. Quer ver ela? Tá aqui, quietinha, ó, no meu bolso, do lado do conhaque. Carrego comigo pra dar proteção. Parece uma rainha. Eu nunca quis ser rainha. E não é que tenho o mesmo nome que a danada, e nunca tinha me apercebido? Santa Luzia. No dia que eu achei ela, arredei pro barraco, Luzia carregando Luzia. Até esqueci a cegueira e quase fui atropelada perto do viaduto. João tava lá embaixo, fazendo fogo. Aí gritei “João, óia só o que eu achei!”. Ele olhou, encachaçado, e perguntou se era de comer. “Não. É melhor ainda”, mostrei a minha Santa Luzia pra ele, “Olha que linda, João!”. Ele falou que não era santa coisa nenhuma, era uma cabeça de boneca degolada, e perguntou qual era a serventia. “Serve pra nada”, respondi, “serve pra nada, não, é pra ficar olhando, é a Santa Luzia”. “É você?”, o morto vivo perguntou. “É, sou eu”, falei. Sabe, moço, eu queria dinheiro pra comprar uma vela e acender pra minha Santa Luzia. Ela também tem fome, fome de acreditarem nela. Quem sabe ela faz os meus olhos enxergar de novo. Nos tempos de namoro, lá no Nordeste, João dizia que eu ria com os olhos. Nem lembro mais da cor do sol. Tudo é escuro, agora, de dia e de noite. Eu queria fazer um agrado pra minha santinha. O moço podia me arrumar um trocadinho?
  • 19. O autor www.fffabretti.com Fábio Fabrício Fabretti, paranaense-carioca, é escritor, professor e jornalista cultural. Leciona Literatura, Filosofia, Sociologia e Oficina de Escrita. Além de escrever ficção desde cedo, enveredou para a biografia, onde estreou como assistente de pesquisa de Italo Moriconi, na publicação das cartas póstumas de “Caio Fernando Abreu”, pela Aeroplano Editora, em 2002. Como ficção, escreveu com Ana Paula Maia e Thiago Picchi, “Sexo, drogas e tralalá”, Editora 7 Letras. E participou recentemente da antologia “Folhas ao vento” da Andross Editora. Também escreve com o pseudônimo de Santamaria para o site www.escritorassuicidas.com.br .