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- Noite Profunda -
Por Caroline Cardoso
Eu me recordo bem das minhas memórias de infância. Me lembro de olhos
vermelhos sangue, pele pálida e ossuda, com uma terrível cicatriz que
atravessava a têmpora direita até a parte superior dos lábios carnudos, também
vermelhos, e repletos de sangue. Lembro-me dos cabelos, negros e ondulados,
e também o seu cheiro, pútrido, semelhante ao de um animal morto, e sua faca,
uma lâmina fina e pontuda, que lentamente, ia cortando meu pescoço em
direção ao peito esquerdo, e no seu último olhar malicioso, na última tentativa
de desferir um golpe certeiro no meu coração, uma imensidão de luz branca
toma conta do ambiente, e num surto, num pequeno ataque, acordo do
segundo sonho consecutivo da minha quase morte. Só que o mais estranho, o
mais sobrenatural, é que a cicatriz está aqui, aberta, sangrando, e a janela do
quarto, antes trancada, está aberta.
Meu nome é Laura. Acordo, e imediatamente vou refazer os pontos da minha
cicatriz. Moro em São Paulo, e tenho 17 anos. Órfã, sem irmãos, parentes, sem
registro de nascimento, sou superdotada na arte da enfermagem, e vivo
desenhando caricaturas para ganhar a vida. Termino meu serviço quase bem
feito, coloco os lençóis para lavar, e volto ao banheiro. Dessa vez me olho com
mais atenção no espelho, olhos verdes claros, olheiras arroxeadas, cabelo curto
bagunçado, e uma cicatriz que atravessa o pescoço até o lado esquerdo do
peito. Esse pequeno “acidente” é a única lembrança que eu tenho da minha
infância, e a prova de que eu realmente preciso utilizar cachecóis e echarpes
todos os dias, moro em um sobrado, que, como diz Adelaide, a dona do meu
pequeno cômodo, aparentemente é “Um sobrado para os largados da vida,
minha querida”. Obrigada Adelaide, muito obrigada mesmo, seus quatro dentes
na boca me garantem sua herança milionária.
Morar na Avenida Paulista tem suas vantagens, tomo o café mais barato da
Starbucks, e às vezes, no final do dia, gosto de pedir “Um frapuccino
descafeinado de chocolate, com cobertura de creme, obrigada. Ah, meu nome é
Laura”. Sempre fico na pequena calçada entre as avenidas, nunca em um lugar
específico. Com meu tripé, lápis, giz e folhas, espero algum turista babaca levar
uma recordação da “cidade da garoa”, e com isso, tento me manter sozinha
nessa cidade.
Hoje o dia foi longo, nenhum desenho, nenhum empresário desocupado, nada.
Eram quase dez horas da noite quando decidi guardar meu material e voltar
para casa. “Sem Starbucks por hoje”, pensei. Até que uma mulher, de alta
estatura, capacete de moto colocado na cabeça, luvas pretas, e uma jaqueta
preta manchada de marrom-avermelhado, parou na minha frente. Sem motivo
aparente, minha cicatriz começou a arder, como se os pontos estivessem sendo
cortados por aranhas, que preferiam me picar ao invés de estourar as linhas, e
uma corrente de veneno estivesse percorrendo as minhas veias. Contendo a dor
e o aparente pânico, peço educadamente que a moça se sente no banquinho à
minha frente, e remova o capacete. Percebo um pouco de excitação na sua voz.
”Claro, meu docinho”, diz ela. E retirando lentamente o capacete que lhe cobria
o rosto, revelava inicialmente um sorriso macabro, entre os lábios vermelhos e
carnudos, e bem discretamente, o início de um corte no lábio superior direito.
De repente, o mundo parou.
O barulho da grande São Paulo se cessou, e ela retirou o capacete por
completo. Meus pontos finalmente se partiram por completo, e a cicatriz estava
abrindo cada vez mais e mais, até minha blusa se tornar um completo enxame
de sangue. E ao ver aquele rosto, aquele mesmo rosto dos meus sonhos, senti
os meus batimentos cardíacos pulsarem nas pontas dos meus dedos, eu não
tinha motivos aparentes, mas eu queria voar no pescoço dela e deixá-la
terrivelmente machucada.
“O que você quer?” sem perceber, eu estava gritando, o pânico tomando conta
de mim.
“Não se lembra, não é?” ela retirou discretamente uma faca do bolso da calça
enquanto se aproximava. “Éramos tão amigas, tão próximas... seu coração era
tão meu”. Tentando fugir, acabei tropeçando no meu próprio tripé, e ela me
segurou pelo braço antes que eu caísse de cara no chão. Olhou dentro dos
meus olhos me hipnotizando, e sorriu ao finalmente tocar na minha cicatriz. A
dor foi surreal. Uma agonia começou a percorrer meu corpo junto com os
arrepios, todos os gritos e soluços foram abafados pela dor, tudo estava ficando
branco e trêmulo. Eu com certeza não iria aguentar aquilo por muito tempo.
Mas decidi me desvencilhar dela, e talvez por pura idiotice, decidi fazer
perguntas enquanto tentava pensar. “Quem é você? O que faz aqui? O que você
quer comigo, afinal? Qual a razão de tudo isso?” fiz um gesto abrangente na
última pergunta, olhando os carros parados ao meu redor. Minhas forças
estavam se esgotando, eu precisava distraí-la. Mas como?
“Até no fim você tenta usar diplomacia? É idêntica a sua mãe, mas você tem o
jeito do seu pai. Hoje é primeiro de julho, meu bem. Há exatos doze anos, tentei
roubar seu coração, numa tentativa frustrada de acabar com a sua linhagem.
Não sabe a história do seu sobrenome? Os Windsor, família nobre, inglesa, que
cometeu um terrível erro. Seu tataravô era um homem muito turrão, à beira da
morte de sua esposa, desacreditou em todos os médicos, e buscou outra
solução. No fim das contas, decidiu apelar às Caçadoras de Corações, mulheres
como eu, que trocam um coração ruim, por um puro e bom. Trocamos o de sua
esposa pelo de uma moça, que morreu alguns dias depois, mas como eu disse,
ele era turrão. Tentou fugir, se mudou para a América, mas o encontramos, e
como castigo por sua desonestidade, viemos roubando o coração de todas as
mulheres da família. Algumas mais cedo, outras mais tarde. Mas adivinhe, cansei
de esperar por você, de correr atrás de você, chegou a sua hora”.
Tentei absorver tudo o mais rápido possível, mas com o peito latejando, só
podia ouvir meus batimentos cardíacos ressoando nos meus ouvidos. Ela havia
matado minha família? Minha mãe? Havia me tornado órfã? Num clarão branco,
me lembrei de tudo.
Minha mãe gritando, meu pai tentando salvá-la, a faca que passou raspando no
pequeno peito de uma Laura de cinco anos, a bruxa se virando, e tirando o vivo
dos olhos do meu pai. O fim. E eu, que agora, precisava fazer alguma coisa.
Voltei do meu surto percebendo que estava sem respirar. Inspirei
profundamente e encarei aquela mulher, aquilo teria um fim agora. Sem quase
nem conseguir correr direito, agarrei a faca da mão dela, e apesar de cortar
profundamente minha mão, tentei avançar. Mas ela era rápida, me imobilizou e
me fez parar de respirar completamente. Minha pulsação ia diminuindo
gradativamente, e eu consegui enfiar a faca na sua barriga.
Ela gritou e me soltou, os olhos desejosos por vingança. Continuei segurando a
faca como se fosse uma espada, e esperei ela se aproximar. Ela veio lentamente,
me observando de cima a baixo, e deu o bote. Me segurou pelo pescoço e
começou a urrar, mas eu agi involuntariamente. Desferi a faca no seu peito, e a
puxei de volta, o sangue escorrendo pela faca. A larguei no chão e reprimi um
grito. Ela estava se contorcendo, até no final, ir se transformando em pó. Só
sobrou o que parecia um coração. Não era comum, estava preto, mofado,
estragado. Assim como ela.
Olhei para os lados, tudo ainda estava parado. Só então me dei conta da dor, e
caí de joelhos no chão. Eu continuava sozinha no mundo, aquilo não me
tornava melhor ou pior que ela. As lágrimas começaram a escorrer, pelos
dezessete anos em que as reprimi. Nada ficaria certo, disso eu tinha certeza. Eu
levaria a culpa pelo resto da vida, e mesmo assim, permaneceria sozinha. Nada
mais adiantaria, o amor, a felicidade, coisas que eu nunca havia experimentado,
e nunca iria experimentar. Não havia razão para tudo aquilo. Minha missão
estava cumprida, e eu não permitiria que meus filhos, caso os tivesse,
passassem pela mesma coisa. A faca estava bem ao meu lado. Olhei para o
sangue, e pensei que não seria tão ruim a dor, não pior do que a que eu
aguentei durante todo esse tempo. Foi uma decisão estúpida e audaciosa ao
mesmo tempo, sem pensar muito, peguei a faca, a desferi no peito, e esperei a
noite profunda me cegar.

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  • 1. - Noite Profunda - Por Caroline Cardoso Eu me recordo bem das minhas memórias de infância. Me lembro de olhos vermelhos sangue, pele pálida e ossuda, com uma terrível cicatriz que atravessava a têmpora direita até a parte superior dos lábios carnudos, também vermelhos, e repletos de sangue. Lembro-me dos cabelos, negros e ondulados, e também o seu cheiro, pútrido, semelhante ao de um animal morto, e sua faca, uma lâmina fina e pontuda, que lentamente, ia cortando meu pescoço em direção ao peito esquerdo, e no seu último olhar malicioso, na última tentativa de desferir um golpe certeiro no meu coração, uma imensidão de luz branca toma conta do ambiente, e num surto, num pequeno ataque, acordo do segundo sonho consecutivo da minha quase morte. Só que o mais estranho, o mais sobrenatural, é que a cicatriz está aqui, aberta, sangrando, e a janela do quarto, antes trancada, está aberta. Meu nome é Laura. Acordo, e imediatamente vou refazer os pontos da minha cicatriz. Moro em São Paulo, e tenho 17 anos. Órfã, sem irmãos, parentes, sem registro de nascimento, sou superdotada na arte da enfermagem, e vivo desenhando caricaturas para ganhar a vida. Termino meu serviço quase bem feito, coloco os lençóis para lavar, e volto ao banheiro. Dessa vez me olho com mais atenção no espelho, olhos verdes claros, olheiras arroxeadas, cabelo curto bagunçado, e uma cicatriz que atravessa o pescoço até o lado esquerdo do peito. Esse pequeno “acidente” é a única lembrança que eu tenho da minha infância, e a prova de que eu realmente preciso utilizar cachecóis e echarpes todos os dias, moro em um sobrado, que, como diz Adelaide, a dona do meu pequeno cômodo, aparentemente é “Um sobrado para os largados da vida, minha querida”. Obrigada Adelaide, muito obrigada mesmo, seus quatro dentes na boca me garantem sua herança milionária. Morar na Avenida Paulista tem suas vantagens, tomo o café mais barato da Starbucks, e às vezes, no final do dia, gosto de pedir “Um frapuccino
  • 2. descafeinado de chocolate, com cobertura de creme, obrigada. Ah, meu nome é Laura”. Sempre fico na pequena calçada entre as avenidas, nunca em um lugar específico. Com meu tripé, lápis, giz e folhas, espero algum turista babaca levar uma recordação da “cidade da garoa”, e com isso, tento me manter sozinha nessa cidade. Hoje o dia foi longo, nenhum desenho, nenhum empresário desocupado, nada. Eram quase dez horas da noite quando decidi guardar meu material e voltar para casa. “Sem Starbucks por hoje”, pensei. Até que uma mulher, de alta estatura, capacete de moto colocado na cabeça, luvas pretas, e uma jaqueta preta manchada de marrom-avermelhado, parou na minha frente. Sem motivo aparente, minha cicatriz começou a arder, como se os pontos estivessem sendo cortados por aranhas, que preferiam me picar ao invés de estourar as linhas, e uma corrente de veneno estivesse percorrendo as minhas veias. Contendo a dor e o aparente pânico, peço educadamente que a moça se sente no banquinho à minha frente, e remova o capacete. Percebo um pouco de excitação na sua voz. ”Claro, meu docinho”, diz ela. E retirando lentamente o capacete que lhe cobria o rosto, revelava inicialmente um sorriso macabro, entre os lábios vermelhos e carnudos, e bem discretamente, o início de um corte no lábio superior direito. De repente, o mundo parou. O barulho da grande São Paulo se cessou, e ela retirou o capacete por completo. Meus pontos finalmente se partiram por completo, e a cicatriz estava abrindo cada vez mais e mais, até minha blusa se tornar um completo enxame de sangue. E ao ver aquele rosto, aquele mesmo rosto dos meus sonhos, senti os meus batimentos cardíacos pulsarem nas pontas dos meus dedos, eu não tinha motivos aparentes, mas eu queria voar no pescoço dela e deixá-la terrivelmente machucada. “O que você quer?” sem perceber, eu estava gritando, o pânico tomando conta de mim. “Não se lembra, não é?” ela retirou discretamente uma faca do bolso da calça enquanto se aproximava. “Éramos tão amigas, tão próximas... seu coração era tão meu”. Tentando fugir, acabei tropeçando no meu próprio tripé, e ela me
  • 3. segurou pelo braço antes que eu caísse de cara no chão. Olhou dentro dos meus olhos me hipnotizando, e sorriu ao finalmente tocar na minha cicatriz. A dor foi surreal. Uma agonia começou a percorrer meu corpo junto com os arrepios, todos os gritos e soluços foram abafados pela dor, tudo estava ficando branco e trêmulo. Eu com certeza não iria aguentar aquilo por muito tempo. Mas decidi me desvencilhar dela, e talvez por pura idiotice, decidi fazer perguntas enquanto tentava pensar. “Quem é você? O que faz aqui? O que você quer comigo, afinal? Qual a razão de tudo isso?” fiz um gesto abrangente na última pergunta, olhando os carros parados ao meu redor. Minhas forças estavam se esgotando, eu precisava distraí-la. Mas como? “Até no fim você tenta usar diplomacia? É idêntica a sua mãe, mas você tem o jeito do seu pai. Hoje é primeiro de julho, meu bem. Há exatos doze anos, tentei roubar seu coração, numa tentativa frustrada de acabar com a sua linhagem. Não sabe a história do seu sobrenome? Os Windsor, família nobre, inglesa, que cometeu um terrível erro. Seu tataravô era um homem muito turrão, à beira da morte de sua esposa, desacreditou em todos os médicos, e buscou outra solução. No fim das contas, decidiu apelar às Caçadoras de Corações, mulheres como eu, que trocam um coração ruim, por um puro e bom. Trocamos o de sua esposa pelo de uma moça, que morreu alguns dias depois, mas como eu disse, ele era turrão. Tentou fugir, se mudou para a América, mas o encontramos, e como castigo por sua desonestidade, viemos roubando o coração de todas as mulheres da família. Algumas mais cedo, outras mais tarde. Mas adivinhe, cansei de esperar por você, de correr atrás de você, chegou a sua hora”. Tentei absorver tudo o mais rápido possível, mas com o peito latejando, só podia ouvir meus batimentos cardíacos ressoando nos meus ouvidos. Ela havia matado minha família? Minha mãe? Havia me tornado órfã? Num clarão branco, me lembrei de tudo. Minha mãe gritando, meu pai tentando salvá-la, a faca que passou raspando no pequeno peito de uma Laura de cinco anos, a bruxa se virando, e tirando o vivo dos olhos do meu pai. O fim. E eu, que agora, precisava fazer alguma coisa.
  • 4. Voltei do meu surto percebendo que estava sem respirar. Inspirei profundamente e encarei aquela mulher, aquilo teria um fim agora. Sem quase nem conseguir correr direito, agarrei a faca da mão dela, e apesar de cortar profundamente minha mão, tentei avançar. Mas ela era rápida, me imobilizou e me fez parar de respirar completamente. Minha pulsação ia diminuindo gradativamente, e eu consegui enfiar a faca na sua barriga. Ela gritou e me soltou, os olhos desejosos por vingança. Continuei segurando a faca como se fosse uma espada, e esperei ela se aproximar. Ela veio lentamente, me observando de cima a baixo, e deu o bote. Me segurou pelo pescoço e começou a urrar, mas eu agi involuntariamente. Desferi a faca no seu peito, e a puxei de volta, o sangue escorrendo pela faca. A larguei no chão e reprimi um grito. Ela estava se contorcendo, até no final, ir se transformando em pó. Só sobrou o que parecia um coração. Não era comum, estava preto, mofado, estragado. Assim como ela. Olhei para os lados, tudo ainda estava parado. Só então me dei conta da dor, e caí de joelhos no chão. Eu continuava sozinha no mundo, aquilo não me tornava melhor ou pior que ela. As lágrimas começaram a escorrer, pelos dezessete anos em que as reprimi. Nada ficaria certo, disso eu tinha certeza. Eu levaria a culpa pelo resto da vida, e mesmo assim, permaneceria sozinha. Nada mais adiantaria, o amor, a felicidade, coisas que eu nunca havia experimentado, e nunca iria experimentar. Não havia razão para tudo aquilo. Minha missão estava cumprida, e eu não permitiria que meus filhos, caso os tivesse, passassem pela mesma coisa. A faca estava bem ao meu lado. Olhei para o sangue, e pensei que não seria tão ruim a dor, não pior do que a que eu aguentei durante todo esse tempo. Foi uma decisão estúpida e audaciosa ao mesmo tempo, sem pensar muito, peguei a faca, a desferi no peito, e esperei a noite profunda me cegar.